Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
Trauma infantil e crime sexual: uma análise de caso a partir de Freud, Stoller e da linhagem psicanalítica Ferenczi-Winnicott
Childhood trauma and sexual crime: a case study from Freud, Stoller and Ferenczi-Winnicott psychoanalytic lineage
Trauma infantil y crimen sexual: un análisis de caso a partir de Freud, Stoller y del linaje psicoanalítico Ferenczi-Winnicott
Jaqueline Feltrin InadaI; Alfredo Naffah NetoII
IPsicóloga pela UEM. Mestre em Filosofia pela Unesp. Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. Bolsista da Capes. Professora da Faculdade Cidade Verde e da UniCesumar, tendo nesta instituição bolsa do Padep. E-mail: jaqfeltrin@hotmail.com
IIPsicanalista. Mestre em Filosofia pela USP. Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Professor titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica, no Núcleo de Método Psicanalítico e Formações da Cultura. E-mail: naffahneto@gmail.com
RESUMO
Este artigo investiga a relação entre trauma infantil e crime sexual valendo-se da análise de processos penais, fundamentada em Freud, Stoller e na linhagem Ferenczi-Winnicott. De diferentes perspectivas, as interpretações se complementam, ao lançarem luz sobre um mesmo fenômeno. A partir de uma base freudiana, que vê certos traumas como irrepresentáveis e, nessa direção, compulsivamente repetidos (a partir do texto Além do princípio de prazer, 1920/2010), Stoller, por um lado, edifica sua compreensão relacionando a experiência traumática à formação da perversão, como um modo psíquico de operar que almeja a aniquilação do trauma por meio da obtenção cruel do prazer a qualquer custo. Sem apontar vítimas e culpados, a linhagem psicanalítica Ferenczi-Winnicott, por outro lado, concebe o crime como uma tentativa de controle psíquico da experiência traumática, a partir da qual o agressor se torna objeto de identificação e introjeção da vítima que, assim, o faz desaparecer de sua realidade, a fim de proteger seu verdadeiro self.
Palavras-chave: Trauma infantil. Crime sexual. Psicanálise.
ABSTRACT
This paper investigates the relationship between childhood trauma and sexual crime, drawing upon the analysis of criminal cases, based on Freud, Stoller and Ferenczi -Winnicott line. From different perspectives, the interpretations complement themselves, to shed light on the same phenomenon. From a Freudian base, that sees certain traumas as unrepresentable and, in this direction, compulsively repeated (from the text Beyond the pleasure principle, 1920/2010), Stoller, on the one hand, builds his understanding relating the traumatic experience to the formation of perversion, as a psychic mode of operation that aims the annihilation of the trauma through cruel achievement of pleasure at any cost. Without giving victims and offenders, the psychoanalytic lineage Ferenczi - Winnicott, on the other hand, sees the crime as an attempt to control the psychic traumatic experience from which the offender becomes the object of identification and internalization of the victim who thus causes it to disappear from his or her reality, in order to protect his or her true self.
Keywords: Child trauma. Sexual crime. Psychoanalysis.
RESUMEN
Este artículo investiga la relación entre trauma infantil y crimen sexual, valiéndose del análisis de procesos penales, fundamentado en Freud, Stoller y en el linaje Ferenczi-Winnicott. Las interpretaciones se complementan de diferentes perspectivas, al lanzar luz sobre un mismo fenómeno. A partir de una base freudiana, que concibe algunos traumas como irrepresentables y, en este sentido, compulsivamente repetidos (a partir del texto Allá del principio del placer, 1920/2010), Stoller, por un lado, edifica su comprensión relacionando la experiencia traumática a la formación de la perversión, como un modo psíquico de operar que desea la aniquilación del trauma por medio de la obtención cruel del placer a cualquier costo. Por otro lado, sin apuntar víctimas y culpados, el linaje psicoanalítico Ferenczi-Winnicott concibe el crimen como un intento de control psíquico de la experiencia traumática, a partir de la cual el agresor se torna objeto de identificación e introyección de la víctima que, así, le hace desaparecer de su realidad, a fin de proteger su verdadero self.
Palabras clave: Trauma infantil. Crimen sexual. Psicoanálisis.
Introdução
Os crimes foram de estupro e homicídio e as palavras proferidas pelo acusado para explicar porque escolheu L. - dentre muitas outras crianças que brincavam no imenso pátio de um parque da cidade - foram: "maior estatura".
"Maior estatura", para um leigo, refere-se, simplesmente, à altura de um indivíduo, o que nada contribui para a compreensão de um crime. Tanto é que, em processos penais, esses detalhes são reproduzidos no depoimento do acusado pelo escrivão, mas de nada servem para a investigação em si mesma. Trata-se apenas de um detalhe pouco importante.
Não obstante, para um psicanalista que se propõe a escutar o mesmo depoimento, mantendo-se livre de julgamentos e da seleção de conteúdos, ou seja, adotando a atenção flutuante (Freud, 1912/2010), "maior estatura" está além de sua compreensão rotineira dada pela língua portuguesa. Essa expressão revela o significado daquilo que não está manifesto, possibilitando, sim, que o crime seja, dessa forma, interpretado, sobretudo, quando conectado a outros elementos do depoimento que, por algum motivo, chamam a atenção do psicanalista.
O acusado dos crimes mencionados, no mesmo depoimento em que confessou como escolheu sua vítima, relatou ter sido abusado sexualmente por um homem descrito como "muito grande" quando tinha apenas oito anos de idade. Relegado ao limbo, esse relato ocupou o espaço de, no máximo, duas linhas daquelas redigidas no depoimento pelo escrivão. Apesar de conciso, foi o suficiente para nos despertar a atenção. Assim, intrigados com o fenômeno observado, logo pudemos questionar, ao rememorarmos como a vítima foi escolhida: qual é a relação entre o fato de ser abusado por um homem "muito grande" e o de ter usado como critério para a escolha da vítima a "maior estatura"? Embora a constante "tamanho" seja evidente e nada nos explique por si só, entendemos ter sido capaz de nortear a construção de uma hipótese: a de que existe alguma relação - qual? - entre o crime sexual e o trauma.
Objetivando compreender essa relação por meio de um caso extraído da análise de processos penais,1 dividimos este artigo em cinco partes, sendo a primeira dedicada à explanação de alguns elementos do caso, considerados como fundamentais, e as subsequentes destinadas à análise da temática do trauma em Freud e as suas relações com o crime sexual, com aportes importantes de Stoller sobre a natureza da perversão. Visando a ampliar a compreensão do caso, procuramos interpretar o crime na linhagem que vai de Ferenczi a Winnicott. Finalizamos o artigo com algumas considerações a respeito do todo discutido.
Passemos, pois, aos dados do processo penal.
O processo penal
Era uma tarde de sábado ensolarado num grande parque da cidade quando, em meio a vozes de crianças e adultos em diversão, uma, angustiada, sobressaiu-se: você viu a minha filha? Rapidamente, todos se mobilizaram para achar L., uma menina de nove anos de idade que havia desaparecido enquanto brincava, próxima à mãe, com outras crianças.
As buscas, naquela tarde e noite, fracassaram, já que L. não apareceu. Seu corpo foi encontrado, no domingo de manhã, por alguns pescadores, próximo a um rio da região rural da cidade. Consta que, na época, a sociedade como um todo se chocou. A pressão social para encontrar o criminoso foi tamanha que, rapidamente, alguns suspeitos foram identificados pela polícia a fim de serem investigados.
Dentre eles, o principal era C. C. conhecia a família de L. há três anos, pois frequentavam a mesma Igreja. Tanto no dia do desaparecimento da criança quanto no velório, mostrou-se muito solidário, ajudando nas buscas e indo prestar seus sentimentos à família, respectivamente. Porém, quando convocado para prestar depoimento após uma denúncia anônima realizada à polícia, os álibis apresentados se mostraram muito frágeis: as pessoas não confirmavam que haviam estado com ele, os horários eram incompatíveis, as histórias mudavam constantemente. Além disso, pesou contra C. o fato de já ter cometido um crime sexual e estar cumprindo pena em regime aberto após ter estado na prisão por sete anos.
Diante desse contexto, não restou à polícia mais prudente alternativa senão solicitar sua prisão temporária e fazer a coleta de material para análise de compatibilidade com os produtos encontrados na vagina da vítima. E o resultado foi positivo: os produtos eram de C. Diante desta irrefutável prova, o suspeito confessou a autoria do crime e, no depoimento prestado ao delegado que conduzia o caso, relatou, detalhadamente, a execução do ato.
C. contou que, naquele sábado ensolarado, decidiu ir ao parque. Quando lá chegou, manteve-se às margens do pátio principal com o propósito de não ser percebido. Escondido entre os carros no estacionamento, chamou L., a qual se avizinhava do local para pegar uma bola. A criança, inocentemente, dele se aproximou e, sem hesitar, aceitou o convite feito para buscar doces em sua casa e distribuir para seus amigos no parque. Nesse momento, perguntou o delegado: por que você escolheu L.? C. respondeu, sem demorar: porque ela era a criança de maior estatura. Na sequência, relatou cenas de violência extrema que culminaram no homicídio da criança.
C. levou L. para sua casa, onde cometeu os crimes de estupro e de homicídio mediante asfixia com uma sacola plástica. Para se livrar do cadáver, simplesmente o jogou nas margens de um rio, cometendo, antes, necrofilia, com a justificativa de ter se excitado novamente ao ver a criança parcialmente nua.
No fim do depoimento, consta, de modo descontextualizado, já que nenhuma pergunta a ele foi feita, o seguinte relato: "quando eu tinha oito anos e morava com meus pais, fui abusado, sexualmente, por um homem 'muito grande'".
Algumas articulações entre o processo penal e o trauma em Freud
Ter sido abusado por um homem muito grande na infância foi, segundo nossa interpretação, traumático. Traumático porque operou como uma vivência, cuja brutalidade extrapolou em demasia os recursos dos quais C. dispunha para processá-la, em razão de ter apenas oito anos.
Considerando que o conceito de trauma carrega oscilações teóricas ao longo da obra de Freud, é digno de nota deixar claro que, neste artigo, estamos focando a perspectiva econômica apresentada no texto Além do princípio de prazer, de 1920, a qual faz referência à ideia de tensão não descarregada, sendo empregada, inicialmente, na teoria da sedução e retomada com a problemática das neuroses de guerra, a partir de 1916-1917, com Conferências introdutórias à psicanálise (Ferreira, 2011).
Em Conferências introdutórias à psicanálise, Freud define o trauma como "[...] uma vivência que, em curto espaço de tempo, traz para a vida psíquica um tal incremento de estímulos que sua resolução ou elaboração não é possível de forma costumeira, disso resultando inevitavelmente perturbações duradouras no funcionamento da energia" (Freud, 1916-1917/2014, p. 367). Mais tarde, ao tomar a vesícula viva como metáfora para pensar o aparelho psíquico, Freud, em Além do princípio de prazer, explica que o incremento de estímulos é produzido por excitações externas fortes o suficiente para romper o escudo protetor do organismo vivo e produzir uma enorme perturbação no gerenciamento da energia. Uma vez que o princípio de prazer é afastado, todas as defesas disponíveis são acionadas. Surge, assim, a tarefa de eliminar a tensão a partir da ligação desta com representações disponíveis.
Pois bem, quando esse processo não se efetua, Queiroz (2004) nos ensina que a experiência permanece inscrita apenas no sistema perceptivo, sob o formato de conteúdo sensorial. Sua retranscrição no sistema de representação não é possível, podendo gerar perturbações duradoras. Essas perturbações duradoras poderiam ser, por exemplo, a necessidade de a experiência retornar da mesma forma que foi produzida, ou seja, no real, já que a capacidade de representar está comprometida. Nesse sentido, não haveria representações capazes de conter os instintos; estes, quando surgissem, procurariam atuar diretamente na realidade, sem passar por algum crivo forte o suficiente para ser capaz de fazê-los permanecer no espaço psíquico.
Reunindo os fios da meada, compreendemos o crime cometido por C. como o retorno no real da experiência traumática que, por seu excesso, não pôde ligar-se às representações a fim de permanecer retida na esfera psíquica e ser, de alguma forma, elaborada. Ela foi atuada diretamente na realidade. C. estuprou e matou uma criança.
Não se trata, com essas reflexões, de estabelecer uma relação causal entre o abuso, o trauma e o crime, pois assim procedendo estaríamos abdicando à teoria do inconsciente. Trata-se, sobretudo, de colocar diante de uma cena potencialmente traumática uma escuta psicanalítica, partindo da premissa de que o ser humano é sempre constituído na relação com o outro e, assim, levantar hipóteses que, de algum modo, possam lançar luz sobre a questão (Ferreira, 2011).
Embora não haja um paciente que associe livremente, entendemos que a pesquisa em psicanálise pode ser realizada para além do contexto clínico, tomando como objeto de estudo uma biografia, uma obra de arte, um documento, entre outros. Posicionando-se passivamente, Naffah Neto (2006) explica que, nesses casos, é preciso se deixar afetar ou impregnar pelo outro, mesmo que este não seja humano, para "[...] destilar das marcas desse encontro os ingredientes necessários à formulação do conhecimento buscado" (p. 281). Nesses casos, o trabalho, porém, torna-se ainda mais complexo, tendo em vista que exige o uso de todos os signos e sinais oferecidos pelo objeto. "Pressupõe enfrentar o objeto de estudo às escuras, perscrutando, nos documentos disponíveis, aquilo que possa orientar a pesquisa de forma análoga à associação livre" (p. 286).
Trauma infantil e crime sexual: as reflexões de Stoller
Se o artigo se propusesse a apenas articular o conceito de trauma em Freud - focando a perspectiva econômica com ênfase naquele exposto em Além do princípio de prazer - e o crime relatado, as discussões se encerrariam por aqui. A compreensão da excitação produzida por um adulto como o fator traumático que possibilitou a consolidação da perversão de C. seria suficiente.
As reflexões de Stoller, porém, nos permitem seguir adiante. Para ele, o trauma pode, de fato, solidificar a perversão. Contudo, de um modo diferente daquele que expomos anteriormente, quando enfatizamos que o indivíduo, incapaz de representá-lo, o mantém inscrito no sistema perceptivo. É preciso, para o autor, que a estimulação tenha sido em demasia e, como contrapartida, tenha havido pouca descarga ou muito sentimento de culpa (Stoller, 2015, p. 56). Assim, a experiência traumática teria a potência de, por meio da cena perversa, ou seja, de um ato cujas características principais são a vingança e a hostilidade, transformar-se, imaginariamente, em um acontecimento próspero, moldando-se na história do sujeito, de modo que, conhecendo esta, seria possível desvelar a representação de cada elemento da cena perversa (Stoller, 2015). Erotizar o ódio decorrente do ato do qual se foi vítima seria, dessa forma, um modo desesperado de preservar a sexualidade.
Assim sendo, o que Stoller faz, ao articular o trauma infantil e o crime sexual, é muito parecido com o que o próprio Freud um dia empreendeu - quando começou a pensar o adoecimento psíquico - e, ainda hoje, tanto nos inspira: associar trauma e sintoma, procurando, na infância, as verdadeiras raízes do adoecer. A diferença é que, enquanto Stoller discorre sobre a perversão, Freud se dedica ao estudo da neurose, embora tenha nos deixado importantes escritos a respeito da psicose e até mesmo da perversão, a partir dos quais tentamos fazer a psicanálise prosperar.
Temos, no caso de C., poucos detalhes acerca do abuso sofrido para postular o que, realmente, ocorreu: pouca descarga ou muita culpa? O que temos, com o processo, são as minúcias do crime. A fim de iniciarmos a análise, tomamos como ponto de partida o fenômeno que nos intrigou e instigou a escrever este artigo: a relação entre a característica de seu abusador - "muito grande" - e o critério eleito para escolher a vítima - "maior estatura".
A cena montada por C. assinala uma primeira conexão com o trauma pelo viés da inversão de papéis. Se, na infância, C. foi abusado pelo maior, hoje, é quem abusa da maior. Para Stoller, essa passagem da passividade para a atividade produz um novo desfecho para o trauma de C.: o triunfo adulto sobre o trauma infantil, expresso pela obtenção do orgasmo (Ferraz, 2001).
Nessa trama, a hostilidade é o elemento central. Segundo as reflexões de Stoller (2015), está relacionada ao desejo do perverso de danificar o objeto na atuação de sua fantasia. Para tanto, assume a forma de uma vingança, convertendo, então, o trauma em triunfo.
Lembremos que C. estuprou e matou sua vítima com requintes de crueldade - segundo o relatório da polícia, jamais vistos pelos investigadores do caso -, ao utilizar saco plástico com a intenção de provocar a asfixia. Além disso, consta nos autos que, antes de abandonar o corpo próximo a um rio, cometeu necrofilia, confessando ter se excitado sexualmente ao ver o cadáver da criança parcialmente nu. Os exames cadavéricos revelaram que L. sofreu muito antes de morrer por tentar lutar, corporalmente, com seu agressor. O corpo apresentava muitas marcas de resistência nos pulsos, em decorrência dos hematomas, além de lacerações na vagina e no ânus e aprofundamento do crânio e do tórax.
Para qualquer pessoa que se propusesse a ler esse processo, estamos certos de que uma pergunta, com certeza, não abandonaria a leitura do começo ao fim: como um ser humano foi capaz de cometer tamanha crueldade com outro ser humano? Stoller nos responde discorrendo sobre a desumanização do objeto empreendida pelo perverso. O perverso, sob pena da cena montada não produzir o prazer esperado, precisa esvaziar a vítima de suas características humanas, tornando-a um objeto. E, mais do que isso: um objeto descartável que, após sua utilização, é simplesmente dispensado.
Para maximizar seu prazer, há ainda de acrescentar o perigo em sua montagem. Ir ao parque, selecionar a vítima, conduzi-la até sua casa, cometer o crime, matar, praticar necrofilia e abandonar o corpo, muito provavelmente, incrementaram o prazer de C., porque, a qualquer momento, alguém poderia vê-lo ou até mesmo chegar no local.
Porém, por alguns momentos, o perigo pareceu extrapolar a meta de maximizar o prazer ao aparecer em demasia. Em vez do triunfar, C. quase reeditou o trauma, já que, por diversas vezes, não conseguiu manter a ereção. A ejaculação foi obtida uma vez - diríamos que o suficiente para, pelo menos desta vez, "anular" o trauma.
Contudo, dado que a memória do trauma não pode ser completamente removida, o ato perverso precisa se repetir, compulsivamente, como um modo de cessar sua manifestação. Segundo Stoller (2015, pp. 55-56),
[...] a necessidade de repeti-lo - ad infinitum, sempre da mesma maneira - resulta da incapacidade de a pessoa se sentir completamente livre do perigo do trauma. Ele aconteceu; e, exceto por aquele momento em que o ato de perversão é repetido, e se processa sem problemas, o indivíduo não pode fingir para si mesmo que o trauma não aconteceu - embora sua lembrança seja inconsciente.
No processo analisado neste artigo, a necessidade de desfazer o trauma infantil não ocorreu apenas com o crime cometido contra L., já que C., há alguns anos, tinha cometido um crime sexual. Embora o desfecho não tenha sido a morte da criança e nem a vítima alguém com tão pouca idade, o ato delituoso foi o estupro de uma adolescente que, assim como o crime de C., foi violentamente executado.
Assim sendo, Stoller (2015) afirma, referindo-se à perversão e com muita adequação ao caso analisado neste artigo: "[...] ela é excessivamente estável e, portanto, em geral não é passível de ser alterada, seja pelas experiências de vida do indivíduo, seja pela terapia" (2015, p. 188, grifos nossos).
O crime, interpretado segundo a linhagem Ferenczi-Winnicott2
Ferenczi foi um dos pioneiros a falar de uma identificação da vítima com o agressor. Kahtuni e Paraná Sanches (2009, p. 211) comentam sobre esse processo:
Sendo um dos possíveis efeitos do trauma na criança, a identificação com o agressor é um tipo de defesa psíquica no qual o sujeito confrontado com o objeto traumatogênico - normalmente uma figura de autoridade significativa -, identifica-se com seu agressor, compreendendo suas razões e introjetando sua culpa [...] O que acontece com o sujeito identificado com seu agressor é que ele, quando adulto, tenderá a se comportar com os objetos com os quais se relaciona do mesmo modo que os objetos agressores se comportaram com ele, quando ele era ainda uma criança indefesa. [...] É o que explica o fato de todo adulto perverso ter sido, em algum momento de sua história, vítima de abuso.
Isso já nos põe, de imediato, no centro do crime aqui examinado: C. havia sido abusado sexualmente por um homem "muito grande" quando criança; então, tendo se identificado com o seu agressor, quando adulto, ataca sexualmente e mata a criança de "maior estatura". O crime se repete por meio de uma inversão de papéis. Entretanto, convém nos estendermos um pouco mais sobre esse mecanismo de identificação com o agressor.
Ferenczi (1933/1992, p. 102) nos conta o que acontece com as crianças no ato de abuso sexual por um adulto:
As crianças sentem-se física e moralmente sem defesa, sua personalidade é ainda frágil demais para poder protestar, mesmo em pensamento, contra a força e a autoridade esmagadora dos adultos que a emudecem, podendo até fazê-las perder a consciência. Mas esse medo, quando atinge seu ponto culminante, obriga-as a submeter-se automaticamente à vontade do agressor, a adivinhar o menor dos seus desejos, a obedecer esquecendo-se de si mesma e a identificar-se totalmente com o agressor. Por identificação, digamos, por introjeção do agressor, este desaparece enquanto realidade exterior, e torna-se intrapsíquico; mas [...] o que é intrapsíquico pode, segundo o princípio do prazer, ser modelado e transformado, de maneira alucinatória, positiva ou negativa.
Ou seja, podemos entender, por esse prisma, que a identificação com o agressor - como mecanismo de defesa da criança - visa a fazer o abusador desaparecer da realidade exterior e a torná-lo intrapsíquico, com vistas a poder sofrer transformações alucinatórias do processo primário, a fim de controlar psiquicamente a experiência traumática. Mas o resultado final disso, conforme vimos, é a perpetuação do crime ad infinitum.
Agora, deixemos Ferenczi de lado e vamos para Winnicott. Ele nos ensina que, diante de falhas ambientais insuportáveis, uma parte daquela virtualidade que formaria o self infantil, ao longo do desenvolvimento, precipita-se na formação de um falso self patológico, que se cinde do núcleo originário e passa a funcionar como um escudo protetor deste, interpondo-se entre ele e a situação traumática (Winnicott, 1960/1990). O falso self patológico forma-se, sempre, por meio de mimetizações e introjeções de traços ambientais e tem a função básica de proteger o self verdadeiro.
Isso, entretanto, é descrito como uma defesa psicótica, que ocorre no início da vida, quando o bebê se encontra ainda num estágio de dependência absoluta ou relativa do ambiente sustentador. Estamos, pois, aí, no terreno das esquizofrenias e das patologias de tipo borderline. Nos casos saudáveis, entretanto, o falso self formar-se-á de forma diferente: não prematuramente, nem por um processo de cisão, mas por um desenvolvimento normal do self infantil, encarnando a sua face social e mantendo-se relativamente articulado ao self verdadeiro (que abriga o lado oculto e incomunicável do self).
Seria possível, a partir daí, conjeturar que - no caso do abuso sexual mais tardio - o acontecimento traumático poderia produzir a transformação de um falso self até então saudável num falso self patológico, por meio de um processo de cisão entre os dois selves e de introjeção dos traços do agressor na estrutura do falso self, tornado, então, patológico? Isso tudo, como um modo de formar um escudo protetor ao self verdadeiro, que abriga a criança vitimizada?
Entendemos que sim, mas, para fundamentar essa interpretação, é preciso abrir um pequeno parêntesis aqui, já que, originalmente, Winnicott propõe a formação do falso self patológico no início da vida do bebê, em função de falhas ambientais primitivas e nunca pensou nessa formação no caso de um abuso sexual infantil. Entretanto, não é possível imaginar que, mesmo uma criança de oito anos, ao sofrer um trauma incapaz de ser absorvido e elaborado pelo self, possa lançar mão da cisão entre os dois selves (o falso e o verdadeiro, que, até então, mantinham-se razoavelmente articulados um ao outro) como mecanismo de defesa? E que, por meio da introjeção dos traços do agressor (lembrando que, para Winnicott, essa mimetização do agente traumatizante tem sempre a função de tentar seduzi-lo e obter a sua clemência, o seu cuidado), ocorreriam transformações significativas na composição do falso self, tornando-o, então, um fac-símile do abusador, uma espécie de boi de piranha, feito à imagem e semelhança, capaz de seduzi-lo e enfrentá-lo?
É verdade que a cisão é pensada por Winnicott como uma defesa esquizofrênica e que, aqui no caso, estaríamos estendendo esse mecanismo também para a perversão (à semelhança de Freud e Ferenczi). Mas, muito embora a cronologia da formação da defesa seja diferente nos dois casos (a esquizofrênica, nos estágios de dependência absoluta e relativa, a perversa, por ocasião de um trauma sexual mais tardio), o princípio básico é o mesmo, ou seja, o que está em questão é a proteção do núcleo isolado e incomunicável do self (Winnicott, 1963/1990). E a cisão constitui, sem dúvida nenhuma, a defesa primitiva mais eficaz para a proteção do self infantil, quando o ambiente se torna insuportavelmente ameaçador, invasivo, imprevisível e incontrolável.3 É possível, inclusive, conjeturar que, diante da violação sexual insuportável, a criança de oito anos possa sofrer uma regressão momentânea a estágios mais primitivos, como forma de lançar mão de defesas características desses estágios.
Podem nos acusar de licenciosidade no uso dos conceitos winnicottianos? Sem dúvida nenhuma, mas se não tivermos alguma ousadia nesse terreno, como seria possível expandir a teoria psicopatológica winnicottiana para mares pouco navegados por ele, como o das perversões?
Feitas essas considerações, voltemos ao nosso caso.
Podemos, então, concluir que com a introjeção dos traços do abusador sexual, agressor e vítima passam a conviver numa mesma psique, mas cindidos um do outro. É exatamente esta a estrutura psíquica de C.: ele é capaz de estuprar e matar (por meio do falso self, mimetização do seu agressor na infância) e, logo em seguida, ir ao enterro da menina morta e se condoer pela família (por meio do self verdadeiro, guardião da criança abusada que ele foi um dia). Dois selves cindidos um do outro, atuando sem se afetarem mutuamente.4
Mas podemos ainda ir mais longe e nos perguntarmos o quanto essa repetição compulsiva do crime não representa, ainda, uma esperança malograda, por parte do criminoso, de que o crime original seja, de algum forma, punido e reparado.
Ora, a verdade é que C. acaba dando todas as oportunidades para ser preso: após o crime, fica rondando a vítima, vai ao enterro, presta solidariedade à família; enfim, não se protege de forma alguma, o que reafirma, de modo enfático, a hipótese da cisão egoica. É óbvio para qualquer um que ele seria descoberto, menos para ele mesmo.
Assim, é como se, dando-se a prender, o criminoso tentasse, inconscientemente, promover uma reparação para o crime cometido, tanto o original quanto a sua perpetuação compulsiva, ao longo da história. O abusador-assassino paga pelo crime cometido e, assim, de alguma forma, busca repará-lo. Que a criança abusada seja presa junto com ele - já que compõem a mesma psique -, constitui um dos paradoxos do caso.
Entretanto, nada é perfeito e tanto Ferenczi quanto Winnicott nos ensinam que sem uma regressão terapêutica propiciada pela transferência analítica nenhuma experiência passada pode ser reparada no presente.5 O que indica que, quando C. for novamente solto da prisão, a onda de abusos será reiniciada. Eterno retorno de um crime sem solução possível.
Considerações finais
As diferentes interpretações psicanalíticas do crime não se contradizem; muito pelo contrário, complementam-se, embora lancem luz sobre aspectos diferentes do acontecimento e, algumas vezes, provoquem um colorido emocional diferenciado no leitor.
Freud dá as bases das quais todos os outros partem. Às vezes, a maneira como cada escola psicanalítica apreende os ensinamentos do mestre vienense lembra-nos aquela parábola do grupo de cegos apalpando o elefante para defini-lo: o que apalpa a tromba diz: "Ele é comprido como uma linguiça"; o que apalpa o corpo diz: "Não, ele é sólido como uma parede"; e o que apalpa o rabo diz: "Ambos estão enganados; ele é fininho e móvel como uma cobrinha". Ou seja, na verdade, todos estão certos, mas apreendem um aspecto singular do elefante e não o seu todo. De qualquer forma, é assim que a ciência psicanalítica tem se desenvolvido. Portanto, não cabe aqui qualquer tipo de crítica ou de censura.
Para a compreensão do crime descrito - como reedição de um outro, mais antigo -, Freud lança a pedra fundamental, com a noção de trauma irrepresentável e compulsivamente repetido ao longo da vida.
Stoller, por sua vez, nos conduz à crueza da perversão, ao prazer vivido a qualquer custo; ao sadismo que estupra, mata e vilipendia para tentar transformar o sofrimento em triunfo, em prazer sexual.
Já a tradição Ferenczi-Winnicott nos propicia uma visão do acontecimento que poderíamos classificar como eminentemente trágica. Nela, não existem culpados e inocentes, visto que todos são puras vítimas. Como o crime atual é uma reedição de outros mais antigos, num tempo incomensurável, se fôssemos procurar o culpado por toda a série criminosa compulsivamente repetida, seríamos provavelmente levados a um desfiladeiro ininterrupto, chegando aos confins da história humana.
Para pensar o crime, resta-nos, então, considerar as conjunturas do destino, os jogos do acaso, a existência de componentes paradoxais irreconciliáveis na natureza humana. Nada além disso.
Referências
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Recebido em: 30/9/2016
Aprovado em: 4/8/2018
1 Esta pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética da PUC-SP, sob número de Parecer nº 1.681.861.
2 Partimos do pressuposto de que Ferenczi e Winnicott fazem parte de uma mesma linhagem psicanalítica, que tem seu eixo central na noção de trauma e em técnicas terapêuticas específicas (como a proposta da regressão terapêutica, por exemplo). Não nos cabe discutir aqui tal temática, visto que ela fugiria totalmente ao tema proposto. Ao leitor interessado, recomendamos, entretanto, a leitura dos artigos de Figueiredo (2002), Naffah Neto (2007) e Oliveira Dias (2011).
3 Defesas mais sofisticadas, como o recalque, pressupõem que o trauma possa vir a ser representado, o que, na maior parte das vezes, não acontece devido à intensidade da sua virulência.
4 Dizer que o perverso sabe perfeitamente o que fez e que as suas condolências à família da menina assassinada é puro disfarce, puro fingimento, embora não seja incorreto, não traduz toda a verdade, pois poder realizar as duas ações - o assassinato, com todos os requintes de crueldade, e o ato de pêsames - requer uma cisão entre os dois agentes, dado que o assassinato é realizado num estado de pura compulsão, ou seja, o perverso é como que possuído pelo impulso assassino, da mesma forma que ele pode, sim, sentir-se condoído pela menina violada e morta, por meio da lembrança da criança abusada que foi um dia.
5 A regressão terapêutica propicia que o sujeito possa retornar ao passado, à situação traumática vivida, num novo contexto ambiental, capaz de acolhê-lo e sustentá-lo, propiciando que o desmedido possa ser revivido e, por fim, encontrar elaboração psíquica. Sem esse processo, passado e presente continuam inexoravelmente separados um do outro, impedindo que qualquer ação presente possa afetar uma experiência passada e transformá-la (cf. o verbete "regressão terapêutica" em Kahtuni & Paraná Sanches, 2009, pp. 322-324).