Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
Autopercepção dos profissionais do sistema socioeducativo do Distrito Federal/Brasil a partir de um processo de formação sobre drogas e direitos humanos
Self-perception of the professionals of the socio-educational system of the federal district/brazil from a training process on drugs and human rights
Autopercepción de los profesionales del sistema socioeducativo del Distrito Federal/Brasil a partir de un proceso de capacitación sobre drogas y derechos humanos
Tayane Medeiros de OliveiraI; Maria de Nazareth Rodrigues Malcher de Oliveira SilvaII; Daniela Ketlyn Porto de Souza.III; Flávia Virgínia de Lima SouzaIV; Andrea Donatti GallassiV
ITerapeuta Ocupacional. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências e Tecnologias em Saúde da Faculdade de Ceilândia, Universidade de Brasília
IITerapeuta Ocupacional. Professora Adjunta do curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Ceilândia, Universidade de Brasília (FCE/UnB). Coordenadora Adjunta do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da FCE/UnB
IIISanitarista pela Faculdade de Ceilândia da Universidade de Brasília (FCE/UnB). Coordenadora de estagiários bolsistas do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da FCE/UnB
IVCoordenadora de Território do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da FCE/UnB
VProfessora Adjunta III da FCE/UnB e do Programa de Pós-Graduação em Ciências e Tecnologias em Saúde da FCE/UnB. Coordenadora Geral do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da FCE/UnB
RESUMO
INTRODUÇÃO: o atendimento de adolescentes em conflito com a lei torna-se mais desafiador quando estes usam drogas.
OBJETIVO: descrever a autopercepção dos profissionais do Sistema Socioeducativo sobre capacitações, condições de trabalho, rede de apoio e satisfação pessoal e profissional no acompanhamento de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa que usam drogas
MÉTODO: estudo transversal a partir de um curso de formação sobre drogas e direitos humanos para profissionais do Sistema Socioeducativo do Distrito Federal/Brasil.
RESULTADOS: a maioria recebeu treinamento sobre drogas (56,7%), realiza atendimentos (86,7%), mas não se sente capacitada (85,4%); desempenho profissional (43,6%) e realização pessoal (48,7%) considerados bons; espaço físico (48,7%), relação entre unidades (44,7%) e satisfação com o trabalho (42,3%) considerados razoáveis; disponibilidade de materiais (42,5%), quantidade de profissionais (38,2%) e relação com a comunidade (29,3%) considerados muito ruins.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: capacitações são importantes e o método utilizado deve ser capaz de impactar a atuação do profissional no trabalho.
Palavras-chave: Autopercepção. Sistema socioeducativo. Capacitação profissional. Álcool e outras drogas.
RESUMO
INTRODUCTION: Counseling adolescents in conflict with the law becomes more challenging when they use drugs.
OBJECTIVE: to describe the self-perception of professionals in the socio-educational system about skills, working conditions, support network and personal and professional satisfaction.
METHOD: a cross-sectional study based on a training course on drugs and human rights for professionals from the socio-educational system of the Federal District/Brazil.
RESULTS: the majority received training on drugs (56.7%), performed care (86.7%), but did not feel qualified (85.4%); professional performance (43.6%) and personal performance (48.7%) considered to be good; physical space (48.7%), relation between units (44.7%) and satisfaction with work (42.3%) considered reasonable; availability of materials (42.5%), number of professionals (38.2%) and community relations (29.3%) considered to be very bad.
CONCLUSION: training is important and the method used should be capable of impacting the performance of the professional at work.
Keywords: Self-perception. Correctional system. Professional training. Alcohol and other drugs.
RESUMEN
INTRODUCCIÓN: la atención de adolescentes en conflicto con la ley se vuelve más desafiante cuando éstos usan drogas.
OBJETIVO: describir la autopercepción de los profesionales del Sistema Socioeducativo sobre capacitaciones, condiciones de trabajo, red de apoyo y satisfacción personal y profesional.
MÉTODO: estudio transversal a partir de un curso de formación sobre drogas y derechos humanos para profesionales del sistema socioeducativo del Distrito Federal/Brasil.
RESULTADOS: la mayoría recibió entrenamiento sobre drogas (56,7%), realiza atendimientos (86,7%), pero no se siente capacitada (85,4%); desempeño profesional (43,6%) y realización personal (48,7%) considerados buenos; espacio físico (48,7%), relación entre unidades (44,7%) y satisfacción con el trabajo (42,3%) considerados razonables; la disponibilidad de materiales (42,5%), cantidad de profesionales (38,2%) y relación con la comunidad (29,3%) considerados muy malos.
CONCLUSIÓN: Capacitaciones son importantes y el método utilizado debe ser capaz de impactar la actuación del profesional en el trabajo.
Palabras clave: Autopercepción. Sistema Socioeducativo. Capacitación profesional. Alcohol y otras drogas.
Introdução
É um desafio profissional atender adolescentes que se encontram em cumprimento de medida socioeducativa pelo cometimento de atos infracionais; e torna-se ainda mais complexo quando estes fazem uso de álcool e outras drogas.
Segundo o Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei (Presidência da República, 2013), no Brasil, observa-se um aumento de 64% da população de adolescentes que se encontram cumprindo alguma medida socioeducativa, sendo que no Distrito Federal (DF) esse aumento foi de 84%. No Brasil, em 2010, eram 17.703, e em 2013 passou para 23.066 adolescentes em restrição e privação de liberdade (internação, internação provisória e semiliberdade), além de 659 em outras modalidades (atendimento inicial, sanção e medida protetiva). Quanto ao gênero e raça, 96% são do sexo masculino e 57% considerados pardos/negros. No DF, 24,8% dos atos infracionais descritos correspondem ao análogo de tráfico de drogas, ficando atrás, apenas, do roubo, com 42%. São 31.826 profissionais, sendo 50% socioeducadores, 15% de segurança, 11% técnicos multidisciplinares, entre assistente social, psicólogo e pedagogo, além de 3,7% gestores.
Em 2004, foi implantada a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde - PNEPS (Ministério da Saúde, 2009). A partir de então, iniciou-se um processo que tinha como objetivo a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente e que, para isso, o caminho passasse a ser trilhado, como Miccas (2014, p. 173) chamou, de "integração entre o universo do ensino e do trabalho". Portanto, a capacitação passaria a ter maior importância e receberia investimentos de uma ação estratégica envolvendo esforços multiprofissionais, intersetoriais, interinstitucionais e multidisciplinares (Deslandes, Cavalcanti, Vieira, & Silva, 2015). Em um estudo sobre capacitação de educadores de abrigo de crianças e adolescentes, os autores constataram que o conhecimento e a troca são os principais aspectos que ancoram o significado da capacitação nos documentos que regulamentam essa prática e que esta, por sua vez, possibilita a criação de um espaço de troca de experiências e de sentimentos provenientes da prática (Barros & Naiff, 2015).
As dificuldades do sistema socioeducativo são numerosas e têm sido apontadas em estudos de diferentes áreas como Direito, Psicologia e Educação (Ferrão, Zappe, & Dias, 2012).
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (2012), adolescência é a fase entre a infância e a vida adulta na idade entre 12 e 18 anos. No Brasil, o Sistema Socioeducativo tem por objetivo atender adolescentes que cometem ato infracional, sendo responsável por analisar e intervir de maneira integral com esses adolescentes em conflito com a lei por meio da aplicação de medidas socioeducativas. Esse Sistema, regido pelo ECA e pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), foi instituído pela Lei n° 12.594, 2012 e oferece atendimento multiprofissional e cuidado integral (Presidência da República, 2006). Logo, para a atenção aos adolescentes em conflito com a lei em cumprimento de medida socioeducativa, conta-se com a abordagem multidisciplinar, a qual considera os contextos favoráveis e os de vulnerabilidade dessa população, os perfis sociodemográficos, as variáveis situacionais, os contextos históricos e a influência/correlação com o uso de álcool e outras drogas (Gallassi, et al., 2015).
Assegurar condições favoráveis ao desenvolvimento de potencialidades humanas, resguardar o interesse dos adolescentes e guiar-se pela ideia de (re)socializar pelo aumento de habilidades, redução de exposição a vulnerabilidades, (re)inserção social e (re)construção de autonomia, são caminhos propostos para a intervenção socioeducativa com adolescentes em conflito com a lei (Barros & Naiff, 2015; Saraceno, 2001).
Contudo, para efetivar o princípio de excepcionalidade, brevidade e respeito ao adolescente que se encontra em processo de construção psíquica e de sua identidade, é necessário que se tenha educação continuada e permanente voltada para os atores que atuam no Sistema Socioeducativo (Presidência da República, 2006). Visando à incorporação de conhecimentos, habilidades e atitudes alinhadas conceitual, estratégica e operacionalmente aos princípios do Sinase, faz-se necessário um espaço onde todos os atores possam fundamentar sua prática, trocar experiências, aprimorar instrumentos de trabalho e efetivar as políticas de atendimento ao adolescente em cumprimento de medida socioeducativa. Nesse sentido, a capacitação tem a possibilidade de funcionar como um espaço de troca de experiências e de sentimentos provenientes de sua prática, além de ser a troca e o conhecimento os principais aspectos que ancoram o significado da capacitação segundo as legislações que regulamentam a prática profissional (Barros & Naiff, 2015).
Este estudo foi desenvolvido a partir de dados coletados em um curso de formação sobre drogas e direitos humanos voltado para os profissionais do Sistema Socioeducativo do Distrito Federal (DF). A realização desse curso foi motivada por uma solicitação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), encaminhada à Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, do Ministério da Justiça (Senad/MJ), realizado pela Universidade de Brasília, por uma dificuldade apontada pelos trabalhadores do Sinase em abordar o tema drogas com adolescentes em conflito com a lei. A orientação do CNJ e da Senad/MJ foi para que o curso tivesse como eixo condutor o fortalecimento dos direitos humanos dos adolescentes e dos fatores de proteção, como a maior participação destes em atividades significativas, não centralizando a discussão somente nas drogas em si e seus efeitos. Brasília foi escolhida como piloto na realização dessa formação para, posteriormente, prosseguir para outras regiões do país.
Destaca-se a importância da educação continuada e permanente desses profissionais, visto que ela é dada como uma ação estratégica de transformação do processo de trabalho, visando maior qualidade na prestação de serviços, a partir do aperfeiçoamento de técnicas e abordagens, métodos e práticas que promovam e produzam sentido e aprendizado significativo (Rocha, Bevilacqua, & Barletto, 2015). Ou seja, a educação continuada e permanente torna-se indispensável, pois alcança uma atuação baseada na reflexão crítica da realidade, assim como dá espaço à subjetividade e interação dos sujeitos, aplicando o conceito de tecnologia leve, definida por Merhy como o processo relacional entre o profissional e o usuário do serviço (Merhy & Ceccim, 2006).
Metodologia
Trata-se de um estudo transversal, realizado a partir dos dados coletados por meio de três instrumentos aplicados ao longo do curso de formação sobre drogas e direitos humanos voltado para os profissionais do Sistema Socioeducativo do DF realizado de agosto a outubro de 2015. Os instrumentos utilizados foram: a Ficha de Inscrição, contendo os dados sociodemográficos dos participantes e o histórico de capacitações já realizadas; o Formulário Descritivo, que apresentava questões sobre a estrutura física, os recursos materiais e humanos, a articulação com a rede intersetorial, a relação intrainstitucional, os aspectos pessoais sobre a satisfação com o trabalho e questões sobre a própria política de atenção aos adolescentes; e, por fim, o Ecomapa, que descrevia os diversos serviços que compõem a rede intersetorial do Sistema Socioeducativo do DF - os participantes deveriam indicar a qualidade da parceria estabelecida com cada um dos listados.
O preenchimento dos instrumentos foi realizado pelos profissionais participantes do curso de todas as áreas que compõem o Sistema Socioeducativo, sem nenhum tipo de distinção por cargo e/ou função, nível de escolaridade, tempo de experiência ou qualquer outra separação categórica. As variáveis dependentes deste estudo são o processo de capacitação dos profissionais, o "estar capacitado" para realizar atendimentos com adolescentes que fazem uso de álcool e outras drogas, a estrutura e as condições de trabalho e a satisfação pessoal e profissional de cada participante.
Todos os dados coletados foram de autopreenchimento e analisados utilizando o Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 22.0, que calculou as frequências simples e as porcentagens.
O curso de formação sobre drogas e direitos humanos foi desenvolvido pelo Centro de Referência Sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas da Faculdade de Ceilândia - Universidade de Brasília (CRR/FCE/UnB) em parceria com a Senad/MJ e o CNJ.
A partir dos instrumentos utilizados, foi possível desenvolver a análise descritiva por meio do cálculo de prevalência das variáveis investigadas referente à autopercepção dos profissionais do sistema socioeducativo. Segundo Minayo (2011), a análise temática consiste em descobrir os núcleos de sentido, considerando que a presença e a frequência significam algo e, por ser uma unidade complexa de significações, possibilita a reflexão dos processos ideológicos e históricos, aos quais os cursistas estão expostos em seus contextos de trabalho. Com isso, as respostas deles passam a ser analisadas como a voz de todo um Sistema reflexivo e expositor, tanto da realidade quanto das proposições para o futuro.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, sob o número CAAE 39116514.6.0000.0030 de 09/12/2014.
Resultados
O total de respondentes de cada um dos instrumentos foi: o de Inscrição n=92, o Descritivo n=78 e o Ecomapa n=78. A diferença entre o total de respondentes em cada instrumento foi devido à sua aplicação ocorrer em períodos distintos durante o curso, sendo que a Ficha de Inscrição, correspondente aos dados apresentados na Tabela 1, foi respondida no primeiro dia, e os outros dois instrumentos, correspondentes aos dados apresentados nas Tabelas 2, 3 e 4, no terceiro dia do curso. Essa estratégia de não aplicar todos os instrumentos de uma só vez foi para evitar o cansaço dos participantes e isso prejudicar a qualidade das respostas dadas. O perfil sociodemográfico dos profissionais do sistema socioeducativo participantes do curso de formação pode ser definido como sendo composto, em sua maioria, por mulheres, de meia idade, pardas, com escolaridade universitária e/ou técnica, atuante no Sistema há pelo menos 4 anos e que trabalham 40 horas semanais.
O Sistema Socioeducativo do DF é composto por especialistas com curso superior, atendente de reintegração socioeducativo (ATRS), gestores e administrativos; atuam na modalidade de internação, meio aberto, e "outros", e realizam acolhimento/orientação e apoio/liberdade assistida e semiliberdade (cabe ressaltar que essas informações são consideradas a partir do quantitativo presente no curso no momento da aplicação dos instrumentos de pesquisa, não revelando, portanto, a quantidade real de profissionais de todo o Sistema).
Os dados da Tabela 1 demonstram que a maioria dos participantes fez curso de aperfeiçoamento (90,2%), sendo educação a principal área (41%, ou 34 participantes); a maioria já recebeu treinamento sobre drogas (56,7%), atende adolescentes que apresentam esse demanda (86,7%), entretanto, não se considera capacitada para realizar tal atendimento (85,4%).
Segundo os dados apresentados na Tabela 2, os profissionais definem como razoável o espaço físico (48,7%), a disponibilidade de equipamentos (43,6%), a qualidade das instalações (37,2%), a ambientação (37,2%), e o acesso à internet (34,2%); como ruim, classificaram, apenas, a disponibilidade de material de escritório (30,8%). Porém, como muito ruim foram classificadas: a disponibilidade de carro para serviços externos (43,4%), a disponibilidade de materiais para atividades com os adolescentes (42,5%), e a quantidade de profissionais no sistema (38,2%).
Segundo a percepção dos profissionais, disposta na Tabela 3, a relação com a chefia direta é considerada excelente (42,3%); boa foram consideradas a relação com os colegas de trabalho (42,9%) e com as famílias dos adolescentes (31,6%); razoável a relação entre as unidades do Sistema Socioeducativo (44,7%); e muito ruim a relação com a comunidade (29,3%).
Os dados da Tabela 4 mostram que os profissionais consideram boa sua realização pessoal no trabalho (48,7%) e o seu desempenho (43,6%); razoável a satisfação com o resultado do trabalho (42,3%), a eficiência (37,1%) e a efetividade (35,9%); e, por fim, consideram ruim a eficácia do trabalho desenvolvido (39,75%).
Discussão
O presente estudo analisou o histórico de capacitação dos profissionais que atuam no Sistema Socioeducativo do DF, o atendimento por eles realizado com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa que fazem uso de álcool e outras drogas, e a autopercepção desses profissionais em relação a esse atendimento. Considerando o conceito de Silva (2012), de que a capacitação é tida como o processo de construção de competência, no qual a junção de conhecimentos, habilidades e atitudes fazem a diferença na prestação da assistência, tem-se que, na busca pela promoção e desenvolvimento da atuação, o profissional deve esclarecer-se em relação ao que fazer, como fazer, ter capacidade, motivação e interação para que se alcance os objetivos pessoais e institucionais. Segundo Mora (2015), deve haver interação entre teoria e prática, de modo que haja apropriação de saberes e, nesse sentido, a capacitação não deve, apenas, repassar conhecimentos, mas promover o desenvolvimento dessas competências profissionais que fará a técnica resultar no bom desempenho.
Em um estudo sobre a autopercepção de competências transversais de trabalho com universitários, evidenciou-se que capacitar é aprender e aplicar seus conhecimentos no cotidiano de modo eficiente e útil (Silva, 2012, p. 206), demonstrando a relevância do que mostra os dados expressos na Tabela 1, na qual a maioria dos profissionais declarou já ter realizado curso de aperfeiçoamento.
Por envolver esforços multidisciplinares, intersetoriais, interinstitucionais e multiprofissionais, a capacitação se torna uma ação estratégica, porém desafiadora, especialmente quando se trata de assuntos que conflitam com crenças, valores, moral, preconceitos e estigmas, como é o caso do uso de drogas. Isso se evidenciou em muitos momentos ao longo do processo de formação desses profissionais, quando as discussões apontavam para a necessidade de uma abordagem com adolescentes que não se baseassem em aspectos legais e punitivos, mas que buscassem ampliar e detalhar as demais vulnerabilidades às quais eles conviviam, especialmente com relação à não entrega de direitos fundamentais, como educação, saúde e moradia, expondo-os a situações de risco, como o uso e o tráfico de drogas. Em 2015, um estudo acerca das capacitações para profissionais da rede pública de saúde de Fortaleza/CE que atendem crianças e adolescentes vítimas de violência sexual revelou que a rotatividade de profissionais, aliada à complexidade e diversidade de demandas de atendimento, interfere no processo de capacitação profissional, assim como propõe a construção de um plano de capacitação que registre o mapeamento de conteúdos, metodologias e objetivos alcançados e planejados para serem buscados (Deslandes et al, 2015, p. 434).
Nesse sentido, torna-se um desafio ainda maior para os profissionais o atendimento de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e que fazem uso de álcool e outras drogas. São muitos os estudos que abordam o adolescente e o contexto de uso de drogas, entre eles, destaca-se um que tratou das influências socioeconômicas e culturais no e para o comportamento do adolescente, concluindo que os adolescentes que apresentam maiores vulnerabilidades (sexo feminino, fumante, classe socioeconómica baixa), têm autopercepção negativa maior que seus pares em relação à saúde (Sousa et al., 2010). Outro estudo com adolescentes do ensino médio das capitais brasileiras e a associação do uso do tabaco com estilos parentais, revelou certas características familiares, como medidas protetivas ao adolescente, além da influência comportamental dos pais nos filhos e do suporte emocional em conjunto com outros fatores psicossociais que se inter-relacionam para o envolvimento do adolescente com o uso de álcool e outras drogas (Tondowski et ai, 2015). Além do uso de drogas, é importante destacar que o aumento do número de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa é um tema de amplo debate e se deve, em certa medida, à intensificação da repressão ao tráfico de drogas com consequentes e recorrentes episódios de violência que atentam, em especial, contra jovens que vivem em regiões de conflito armado e segregação urbana (Arantes & Motta, 2002.).
Os profissionais devem se atentar à condição de vulnerabilidade à qual os adolescentes se encontram ao longo do cumprimento da medida socioeducativa, assim como também para o seu contexto social. Mora e Moreira (2015, p. 1146) apontam que "as abordagens de aspectos sociais, como os valores e regras culturais, as visões do gênero e da sexualidade e o conhecimento dos direitos civis, são dificilmente aprendidos por manuais ou processos normatizadores", ou seja, os profissionais, para além dos aprendizados teóricos, devem se voltar ao cotidiano prático de trabalho, da equipe, dos contextos e construir uma interação positiva entre o que se aprende e o que se vive na prática de trabalho.
Considerando o uso problemático de álcool e outras drogas um problema de saúde pública, este pode ser mais uma das vulnerabilidades às quais adolescentes do Sistema Socioeducativo encontram-se expostos, o que pode gerar dificuldades, tanto na prática cotidiana quanto na busca e na produção de conhecimentos dos profissionais para atuarem de forma integral com esse público.
Estudo realizado pelo Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a prevenção do cometimento de atos infracionais e tratamento demonstra que o envolvimento com a justiça precede a abordagem pelo sistema de saúde, fato que interfere na intervenção dos profissionais que atendem os adolescentes, uma vez que a desconstrução de mitos, a produção de novos sentidos para a vida, o reconhecimento de particularidades e a escuta qualificada/capacitada são exemplos de intervenções que devem estar presentes na atuação cotidiana do profissional e que deve ser adquirida em capacitações (Silva et al., 2014). Este estudo revela, ainda, a falta de comunicação e integração de ações entre as esferas de governo e entre diferentes setores da política social, que tendem a dificultar a possibilidade de instauração de um processo inclusivo e resolutivo acerca da capacitação dos profissionais e da assistência ao adolescente em cumprimento de medida socioeducativa e que fazem uso de álcool e outras drogas.
Outros estudos também abordaram a estrutura e as condições de trabalho que são oferecidas aos profissionais e discutem o quanto, dessa forma, se constrói uma situação para a qual se tem poucos recursos disponíveis, não só materiais, mas humanos, fatores que influenciam diretamente na atuação profissional e na assistência e qualidade do serviço realizado (Barros, 2014; Barros & Naiff, 2015; Dolitzsch et al, 2016; Reichert & Loch 2012).
Com relação à rede de apoio, Ventura (2014, p. 67) descreve que estabelecer uma relação de horizontalidade e acesso à rede é de suma importância, pois deve-se "assumir as diretrizes do Sistema Único de Assistência Social (Suas), em especial a territorialização e a matricialidade sociofamiliar", para que se alcance estratégias de atendimento ao adolescente em conflito com a lei, de modo que as ações intersetoriais fortaleçam a proteção integral. Em um estudo sobre o atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência sexual, evidenciou-se que as experiências dos centros integrados de atendimento se destacam, positivamente, pela integralidade e pela intersetorialidade da atenção e que a qualificação do processo de trabalho, quando articulada em rede, (re)constrói a prática e proporciona intervenções e resultados qualitativos aos profissionais e aos adolescentes (Deslandes, Vieira, Cavalcanti & Silva, 2016).
Siqueira e Dell' Aglio (2010, p. 408) definem que "rede de apoio social é o conjunto de sistemas e de pessoas significativas que compõe os elos de relacionamento recebidos e percebidos do indivíduo", atuando, então, como um fator de proteção. Segundo a percepção dos profissionais participantes do curso sobre drogas e direitos humanos, fazem parte da rede de apoio escola, família, profissionais do serviço, Estratégia de Saúde da Família (ESF) e chefia direta. Por outro lado, não são tidos como rede do Sistema Socioeducativo outros profissionais da comunidade, associação de bairro, igreja, grupos religiosos, organizações não governamentais (ONGs), vizinhos, promotores/juízes, polícia comunitária, batalhão escolar, defensoria pública, Centros de Saúde, Centro de Atenção Psicossocial (Caps), hospital e empresas. Com isso, a rede de apoio dos profissionais do Sistema Socioeducativo do DF se mostra relativamente empobrecida, pois, sendo a proposta do sistema a proteção integral e a (re)socialização de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, seria indispensável uma maior amplitude da rede, de modo que os atores mantivessem sua atuação cotidiana envolvida com diversos serviços e profissionais parceiros.
Para além do perfil, da estrutura e da rede de apoio dos profissionais do Sistema Socioeducativo do DF, este estudo revela, também, que mais de 80% desses profissionais consideraram a satisfação com o resultado do seu trabalho variando, nesta ordem, entre razoável, ruim e bom, e mais de 86% responderam variando entre ruim, razoável e bom acerca de sua eficiência no trabalho. Esse cenário revela uma influência entre o alcance dos objetivos pessoais e profissionais e o desempenho das funções cotidianas de trabalho, de modo que a prática laboral e a satisfação pessoal estejam diretamente relacionadas. Se os profissionais relatam baixa satisfação e efetividade com o trabalho, qual é a possível interferência dessa relação na assistência e na qualidade do serviço prestado ao adolescente do Sistema Socioeducativo? Malfitano, Adorno e Lopes (2015) afirmam que quando se trata das práticas para além do campo da saúde, como aquela nos serviços sociais de atendimento à infância e à adolescência, as experiências nessa área, e mesmo o conhecimento e a apropriação sobre as discussões e propostas da saúde mental, são absolutamente incipientes, mostrando fragilidades importantes nas ações executadas, assim como a reprodução do paradigma de isolamento da população.
Considerações finais
Algumas limitações do estudo devem ser reconhecidas. Os instrumentos para a coleta de dados não foram submetidos a nenhum tipo de comparação, por exemplo, com outro grupo de profissionais de outro estado e/ou região, tendo sido desenvolvido e aplicado exclusivamente para os profissionais participantes do curso de formação sobre drogas e direitos humanos do Sistema Socioeducativo do DF.
Este trabalho possibilitou identificar a autopercepção dos profissionais do Sistema Socioeducativo do DF em relação à capacitação profissional e à realização do atendimento a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa e que também fazem uso de álcool e outras drogas. Identificou-se a importância dos processos formativos para uma melhor atuação no trabalho, salientando a necessidade de se analisar e avaliar os métodos de formação utilizados atualmente, de modo a evitar o que foi identificado pelo estudo, que profissionais relatam ter participado de treinamentos, mas não se sentem capacitados para realizar os atendimentos de adolescentes que fazem uso de álcool e outras drogas, revelando uma lacuna entre o que e como estão sendo ministrados os conteúdos nos processos de capacitação profissional e o que, de fato, se repercute na prática profissional e do que ela necessita.
Referências
Arantes, E., & Motta M. M. (2002). Envolvimento de adolescentes com o uso e o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Cadernos Prodenan de Pesquisa Rio de Janeiro - UERJ. Rio de Janeiro: Editora Cortez. [ Links ]
Barros, N. S. (2014). Capacitação para educadores de abrigo de crianças e adolescentes: identificando representações sociais. Dissertação de mestrado, Curso de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. [ Links ]
Barros, N. S., & Naiff, L. A. M. (2015). Capacitação para educadores de abrigo de crianças e adolescentes: identificando representações sociais. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 75(1), 240-259. [ Links ]
Deslandes, S., Cavalcanti, L. F., Vieira, L. J. E. de S., & Silva, R. M (2015). Capacitação profissional para o enfrentamento às violências sexuais contra crianças e adolescentes em Fortaleza, Ceará, Brasil. Caderno de Saúde Pública, 37(2), 431-435. [ Links ]
Deslandes, S. F., Vieira, L. J. E. S., Cavalcanti, L. F., & Silva, R. M. (2016). Cuidado de la salud para niños y adolescentes víctimas de violencia sexual em cuatro capitales brasileñas. Interface, 20(59), 865-77. [ Links ]
Dolitzsch, C., Schmid, M., Keller, F., Besier, T., Fegert, J. M., Schmeck, K., &Kolch, M. (2016). Professional Caregiver's Knowledge of Self-Reported Delinquency in an Adolescent Sample in Swiss Youth Welfare and Juvenile Justice Institutions. International Journal of Law and Psychiatry, 47, 10-17. [ Links ]
Ferrão, I. S., Zappe, J. G., & Dias, A. C. G. (2012). O olhar de socioeducadores de uma unidade de internação sobre a efetivação da doutrina da proteção integral. Barbarói, 36(Esp), 42-55. [ Links ]
Gallassi, A. D., Santos, S. L., Santos, V., Nakano, E. Y., Ficher, B., Galinkin, A. L., & Wagner, G. A. (2015). Factors Associated with Recidivism among Adolescents Girls in Conflict with the Law in an Institution in Brasília, Federal District, Brazil. Cad. Saúde Pública, 31(12), 25692576. [ Links ]
Lei Federal 8.069, de 1990 (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Versão atualizada em 2012.
Malfitano, A. P. S., Adorno, R. C. F., & Lopes, R. E. (2011). Um relato de vida, um caminho institucional: juventude, medicalização e sofrimentos sociais. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, 15(38), 701-714. [ Links ]
Merhy, E. E., Feuerwerker, L. C. M., & Ceccim, R. B. (2006). Educación permanente en salud: una estrategia para intervenir na micropolítica del trabajo en salud. Salud Colectiva, 2(2), 147-160. [ Links ]
Miccas, F. L., & Batista, S. H. S. da S. (2014). Educação permanente em saúde: metassíntese. Revista de Saúde Pública, 48(1), 170-185. [ Links ]
Minayo, M. C. S. (2011). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Políticas de Gestão da Educação em Saúde (2009). Política Nacional de Educação Permanente em Saúde Brasília. Brasília: Editora MS. [ Links ]
Mora, C., Monteiro, S., & Moreira, C. O. F. (2015). Formación, prácticas y trayectorias de consejeros de centros de test anti-VIH de Río de Janeiro, Brasil. Interface, 19(55), 1145-56. [ Links ]
Presidência da República, Secretaria de Direitos Humanos (2013). Levantamento nacional do atendimento socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei. Brasília: Author. [ Links ]
Presidência da República, Secretaria dos Direitos Humanos (2006). Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - Sinase. Brasília: Conanda. [ Links ]
Reichert, F. F., & Loch, M. R., (2012). Autopercepção de saúde em adolescentes, adultos e idosos. Ciências & Saúde Coletiva, 17(12), 3353-3362. [ Links ]
Rocha, N. H. N., Bevilacqua, P. D., & Barletto, M. (2015). Metodologias participativas e educação permanente na formação de agentes comunitários. Trab. Educ. Saúde, 13(3), 597-615. [ Links ]
Saraceno, B. (2001). Libertando identidades: da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Rio de Janeiro: Te Corá [ Links ].
Silva, C. C., Costa, C. O. M., Carvalho, R. C., Amaral, M. T. R., Cruz, N. L. A., & Silva, M. R. (2014). Iniciação e consumo de substâncias psicoativas entre adolescentes e adultos jovens de Centro de Atenção Psicossocial Antidrogas Caps-AD. Ciência & Saúde Coletiva, 19(3), 737-745. [ Links ]
Siqueira, A. C., & Dell'Aglio, D. D. (2010). Crianças e adolescentes institucionalizados: desempenho escolar, satisfação de vida e rede de apoio social. Psic.: Teor. e Pesq., 26(3), 407-415. [ Links ]
Sousa, T. F., Silva, K. S., Garcia, L. M. T., Duca, G. F. D., Oliveira, E. S. A., & Nahas, M. V. (2010). Autoavaliação de saúde e fatores associados em adolescentes do estado de Santa Catarina, Brasil. Revista Paulista de Pediatria, 25(4), 333-339. [ Links ]
Tondowski, C. S., Bedendo, A., Zuquetto, C., Locatelli, D. P., Opaleye, E. S., & Noto, A. R. (2015). Estilos parentais como fator de proteção ao consumo de tabaco entre adolescentes brasileiros. Caderno de Saúde Pública, 31(12), 2514-2522. [ Links ]
Ventura, T. A. (2014). O atendimento às medidas socioeducativas no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. [ Links ]
Recebido em: 23/10/2017
Aprovado em: 22/11/2018