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Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

     

 

Acompanhamento de crianças filhas de mulheres usuárias de drogas: um relato de experiência

 

Keeping up with children of women that use drugs: an experience report

 

Acompañamiento de niños de mujeres usuarias de drogas: un relato de experiencia

 

 

Paola de Oliveira CamargoI; Michele Mandagará de OliveiraII; Lieni Fredo HerreiraIII; Andreza Erdmann FurtadoIV; Suélen Cardoso Leite BicaV

IPedagoga, Doutoranda em Enfermagem pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
IIEnfermeira, Doutora em Enfermagem em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Docente da Universidade Federal de Pelotas
IIIMestranda em Enfermagem pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
IVAcadêmica de Enfermagem pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
VEnfermeira, doutoranda em enfermagem pela Universidade Federal de Pelotas

 

 


RESUMO

Relatar experiências do projeto de extensão "Promoção da saúde no território: acompanhamento de crianças filhas de mulheres usuárias de crack, álcool e outras drogas, realizado por meio de visitas domiciliares aos filhos cujas mães fizeram uso de substâncias psicoativas na gestação. Desde o ano de 2013, são acompanhadas pelo projeto quatro famílias captadas pelos serviços de atenção aos usuários de álcool e drogas do município. Percebeu-se durante avaliação de exame físico realizado nas crianças desde o nascimento, além do acompanhamento, observação e leitura da carteira de vacinação, que as crianças acompanhadas não apresentaram síndrome de abstinência e demonstraram desenvolvimento senso-motor adequado para a idade. É importante a reflexão dos profissionais de saúde em relação às perspectivas teóricas endurecidas, desconstruindo a ideia de que apenas o uso da substância deve ser considerado no cuidado, mas sim o indivíduo em todos seus aspectos biopsicossociais.

Palavras-chave: Cocaína crack. Promoção da saúde. Mulheres. Desenvolvimento infantil.


ABSTRACT

To report experiences of the extension project "Promotion of health in the territory: follow-up of children daughters of women who use crack, alcohol and other drugs" through home visits to children whose mothers used psychoactive substances during pregnancy. Since the year 2013, four families have been monitored by the services of attention to alcohol and drug users in the municipality. It was noticed during the evaluation of the physical examination carried out in the children from birth, besides the monitoring, observation and reading of the vaccination card, that the children followed up did not present with withdrawal syndrome and demonstrated a sense-motor development adequate for the age. It is important the reflection of the health professionals against the hardened theoretical perspectives, deconstructing the idea that only the use of the substance should be considered in the care, but the individual in all its biopsychosocial aspects.

Keywords: Crack cocaine. Health promotion. Woman. Child development.


RESUMEN

Relatar experiencias del proyecto de extensión "Promoción de salud en el territorio: acompañamiento de niños de mujeres usuarias de crack, alcohol y otras drogas", realizado a través de visitas domiciliarias a niños de los que la madre hice uso de substancias psicoactivas durante el embarazo. Son acompañadas cuatro familias captadas por los servicios de atención a los usuarios de alcohol y drogas en la ciudad. Se percibió durante la evaluación del examen físico realizado en los niños desde el nacimiento, además del seguimiento, observación y lectura de la cartera de vacunación, que los niños acompañados no presentaron síndrome de abstinencia y demostraron un desarrollo senso-motor adecuado para la edad. Es importante reflectar como profesionales de salud delante las perspectivas teóricas endurecidas, deconstruyendo la idea de que solamente el uso de substancia debe ser considerado en el cuidado, pero si el individuo en todos sus aspectos biopsicosociales.

Palabras claves: Cocaína crack. Promoción de la salud. Mujeres. Desarrollo Infantil.


 

 

Introdução

Ao refletir sobre o uso de substâncias psicoativas, deve-se lembrar que estas são utilizadas desde os primórdios da humanidade e por quase todas as culturas e civilizações, tanto para usos medicinais como para o lazer. Essas substâncias podem ser capazes de alterar a forma como percebemos o mundo na busca pelo prazer, imortalidade, sabedoria, curiosidade e desejo de transcendência (Arruda, Soares, & Adorno, 2013).

É disponibilizado pelo Governo Federal, para atenção aos usuários de álcool, crack e outras drogas, o programa de Redução de Danos (RD), que tem como objetivo o cuidado integral aos usuários de substâncias psicoativas, visando à prevenção dos problemas decorrentes do seu uso (Al Alam et al., 2012).

O trabalho realizado pela equipe da RD visa reduzir os danos causados pelo uso de substâncias psicoativas, a fim de melhorar a qualidade de vida dos usuários, por meio de um trabalho realizado diretamente com a comunidade. É um movimento internacional que teve início na década de 1980, começando seu trabalho a partir de medidas de prevenção à propagação da AIDS (Al Alam et al., 2012, Machado & Boarini, 2013). Embora, em nossa percepção, seja um trabalho que deveria ter maior visibilidade social e de saúde, observa-se que os redutores acabam muitas vezes por realizar um trabalho que parece estar invisível aos olhos do governo e da sociedade, o que é percebido de forma diferente pelos usuários, que veem nesse trabalho o cuidado às suas vidas.

A mídia em alguns momentos deixa lacunas na informação ao tratar do assunto de uma maneira sensacionalista e não esclarecedora e preventiva, deixando dúvidas a respeito do padrão de uso, faltando consistência científica nas informações levadas à população (Romanini & Roso, 2012; Garcia, Moraes, Moraes, Fernandes, & Renner, 2017; Bard, Antunes, Roos, Olschowsky, & Pinho, 2016). Os mesmos autores ressaltam, então, a importância de mais trabalhos científicos na área, que tratem o uso/abuso do crack na sua totalidade e não abordando a temática apenas pelo lado das consequências negativas do consumo abusivo e do caráter de destruição que a substância carrega, mas sim considerando as especificidades de cada usuário, que acima de tudo são seres humanos que merecem ser tratados com respeito e dignidade.

Kassada, Marcon e Waidman (2014) trazem que quando a pessoa que usa droga é uma mulher a discriminação por parte da sociedade e dos serviços de saúde tende a ser maior, o que acaba por colaborar para que ela faça uso às escondidas e não procure ajuda, aumentando assim a vulnerabilidade e os riscos a outros problemas de saúde.

Para Cruz et al. (2014), as mulheres usuárias de crack têm necessidades específicas que são diretamente influenciadas pela própria sociedade. Esse grupo não tem a devida atenção e consideração por parte dos profissionais de saúde, e essa é uma prática que deveria ser repensada na prestação dos serviços, levando em conta a relação de gênero e vulnerabilidade existentes.

Conforme Dias et al. (2013), são escassos os estudos que tratam do uso de substâncias psicoativas, em especial o crack, entre mulheres; e os que focam nas mulheres gestantes ou nos filhos de mães que fizeram uso de alguma substância na gestação concentram-se na falta dessa abordagem no pré-natal, o que deixa uma grande lacuna a respeito dos reais efeitos das substâncias psicoativas no feto, nos recém-nascidos e nas crianças nessa situação.

Sabemos que ainda se tem poucos estudos que abordem os reais efeitos à criança por uso do crack durante a gestação, porém se percebe a importância de realizar um acompanhamento permeado por integralidade a essas famílias, a fim de observar além dos dados clínicos dessa criança (medidas antropométricas), olhar o contexto em que essas famílias estão inseridas e a quais vulnerabilidades elas são expostas (Oliveira, 2018).

Sobretudo, muitos desses problemas que podem decorrer do uso de alguma substância na gestação, como descolamento da placenta, partos prematuros, ruptura interina, dependem em maior ou menor magnitude da quantidade da substância que as mulheres utilizaram durante a gravidez e de tantos outros fatores sociais, ambientais, culturais e de saúde envolvidos, que não exclusivamente o uso abusivo da droga (Camargo & Martins, 2014). Sendo assim há a necessidade de um trabalho de acompanhamento com essas crianças, a fim de identificar suas necessidades de saúde por meio da observação, sensibilizando as mães quanto às diferentes estratégias de redução de danos e também de um acompanhamento integral para a família dessa usuária. A intenção da realização do acompanhamento das crianças, de suas mães e família é buscar a possibilidade de acesso à informação para que haja um cuidado integral, a partir da identificação das vulnerabilidades, por intermédio da perspectiva de um trabalho interdisciplinar e intersetorial que vise enfrentar os obstáculos do acesso aos serviços sociais e de saúde que os usuários de drogas encontram.

Por fim este estudo tem como objetivo relatar as ações de saúde que são desenvolvidas pelos alunos do projeto de extensão conhecido como "Promoção da saúde no território: acompanhamento de crianças filhas de mulheres usuárias de crack, álcool e outras drogas" diante das adversidades acontecidas durante o acompanhamento dessas famílias.

 

Metodologia

O presente artigo é um relato de experiência de um projeto de extensão que foi criado em decorrência das necessidades da população evidenciadas na coleta de dados do projeto de pesquisa "Perfil dos usuários de crack e padrões de uso", em um município do extremo Sul do Brasil, financiado pelo MCT/CNPq 041/2010 e que vem sendo realizado desde janeiro de 2011 pelo Grupo de Pesquisa da Enfermagem, Saúde Mental e Saúde Coletiva em parceria com técnicos da Estratégia da Redução de Danos e profissionais do Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e drogas (Caps AD).

O projeto de extensão se iniciou no ano de 2012 e é intitulado "Promoção da saúde no território: acompanhamento de crianças filhas de usuários de crack, álcool e outras drogas". O projeto aqui relatado não tem financiamento de órgãos de fomento, apenas conta com bolsistas de extensão universitária, voluntários do curso de Enfermagem, mestrandas do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e uma psicopedagoga, também doutoranda do curso, além da professora-doutora coordenadora do projeto.

No ano de 2012, o projeto contou apenas com uma bolsista, que realizou revisões bibliográficas sobre a temática e iniciou o acompanhamento a uma família cuja avó era usuária abusiva de álcool, porém não foi possível seguir o acompanhamento, pois não houve uma maior abertura para a criação do vínculo necessário, sendo assim, o grupo percebeu a necessidade de respeitar o espaço da família e não prosseguiu com o acompanhamento. No ano de 2013, o projeto contou com quatro bolsistas de extensão e mais quatro voluntários, além de duas mestrandas que também começaram a fazer parte do projeto. Com um número maior de integrantes foi possível retomar a procura por famílias para serem acompanhadas, chegando a um número de sete famílias, porém devido à falta de criação dos vínculos necessários, o que é difícil no contexto trabalhado, por serem famílias que já vêm com histórico de exclusão dos serviços de saúde, e com isso apresentam resistência, fechamos com quatro famílias, que são as mesmas acompanhadas até os dias de hoje.

Durante o ano de 2013, além das visitas domiciliares, o projeto também realizou atividades de educação em saúde em uma escola municipal, em um dos bairros visitados pela equipe. Nos anos seguintes, o número de bolsistas foi diminuindo, até que no ano de 2016 o projeto contava com apenas dois alunos bolsistas. Para o ano de 2017, ainda seguem reuniões do grupo e as visitas domiciliares, pois entendemos a importância do vínculo que foi criado com as famílias e por isso a interrupção do acompanhamento poderia acarretar em prejuízos ao vínculo já estabelecido.

A execução do projeto vem ocorrendo por meio de visitas domiciliares quinzenais às famílias acompanhadas pela equipe. Durante as visitas são dadas orientações, é elaborado o Genograma e Ecomapa, faz-se acompanhamento da situação vacinal e da curva de crescimento da criança, identifica-se a UBS de referência, a mãe ou responsável é orientada sobre o registro de nascimento da criança e mapeamento dos equipamentos sociais do território que possam servir de apoio à família. Após as visitas, que geralmente acontecem em duplas ou trios, é construído o diário de campo e os casos discutidos em reunião do grupo, para que todos possam estar a par da situação de cada família.

Além do acompanhamento às crianças, os integrantes do projeto também acompanham de forma geral toda a família, pois entendemos a importância de olhar e cuidar todas as pessoas envolvidas com o indivíduo que utiliza alguma substância, com isso sempre que necessário aferimos pressão arterial, ajudamos na aproximação com a UBS de referência, assim como orientações de saúde em geral.

 

Resultados e discussões

Dentre as quatro famílias acompanhadas pela equipe do projeto, acompanhamos seis crianças e/ou adolescentes, com idade entre dois anos e 17 anos. A idade das mães variam de 25 a 36 anos. As visitas se iniciaram no mês de junho de 2013, depois da procura em hospitais universitários do município, sendo que na época não se teve nenhum êxito, então as mulheres foram acessadas com ajuda da equipe da Redução de Danos e do Caps AD, parceiros para a realização do projeto.

Cada família é acompanhada por um dos bolsistas do projeto e mais um voluntário, além de uma psicopedagoga que também é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, embora praticamente toda a equipe já tenha tido ao mínimo um contato com cada uma das famílias. Como forma de organização, cada estudante ficou responsável por adotar uma das famílias e seguir realizando as vistas quinzenalmente, para que a criação do vínculo não fosse fragilizada e garantindo assim o sucesso do projeto e do acompanhamento. As visitas nunca são realizadas por apenas um membro da equipe, sendo necessário no mínimo duas pessoas, e são realizadas em sua maioria de ônibus e com recursos dos próprios estudantes. Cada família reside em um bairro da cidade, todos considerados vulneráveis à violência e ao tráfico.

A primeira família adotada é composta por um casal de ex-usuários de crack. A criança está com três anos e 11 meses de idade e é acompanhada pela equipe desde o seu nascimento. A criança vem apresentando os resultados físicos e cognitivos esperados para a sua faixa etária, como desenvolvimento neuropsicomotor e não apresenta sinais de abstinência. Mãe e filha também são acompanhadas por outros serviços de saúde, sendo que a mãe deixou o uso do crack há aproximadamente um ano e meio. Quando se iniciou o acompanhamento, o pai da menina estava encarcerado, sendo liberado para condicional um ano depois e agora já está em liberdade.

Durante mais de um mês, ficamos apenas com essa família, o que fez com que toda a equipe do projeto criasse um bom vínculo com a usuária e a criança, que nos recebe sempre com muita hospitalidade e sempre se refere a toda equipe com muito carinho. Nessa família foi possível acompanhar uma boa evolução da mãe quanto ao uso do crack e também aos cuidados com a criança, principalmente de higiene, visto que nos primeiros anos de acompanhamento a família não tinha nem energia elétrica na residência, conseguindo com o tempo uma melhora nas questões de saúde e sociais. Mesmo com a interrupção do uso do crack, a mãe segue fazendo uso abusivo de álcool.

Depois, também em 2013, encontramos a segunda família, assim como a primeira, por meio da equipe da Redução de Danos. O primeiro contato pessoal, pois já estávamos mantendo contato telefônico há algumas semanas, foi durante o chá de bebê da usuária, que já estava na 28ª semana de gestação e continuava consumindo crack em grande quantidade por dia, embora já tivesse reduzido um pouco, se comparado ao tempo anterior à gestação. Antes do nascimento, seguimos visitando a mãe e acompanhando a gestação até o momento do parto, fomos com a mãe à única consulta pré-natal realizada, e acompanhamos também uma internação realizada para exames. Hoje a criança está com três anos e nove meses e a avó materna divide os cuidados com a mãe, que já não utiliza mais crack há aproximadamente dois anos, desde que foi presa por envolvimento com drogas. O menino não apresentou sinais de crise de abstinência, observados pela equipe, e vem se desenvolvendo dentro do preconizado para a sua idade, inclusive já frequenta uma escola de educação infantil.

Acompanhamos nessa família toda a questão do encarceramento da mãe da criança e a sobrecarga que a avó materna teve ao assumir integralmente os cuidados do neto, sem deixar de dar o apoio necessário à filha durante o momento em que esteve encarcerada e também cuidando da sua outra filha, que além de também ser usuária de crack na época, é portadora do vírus do HIV e esteve internada durante dois meses para tratar problemas decorrentes, quando a equipe do projeto também esteve presente acompanhando a internação, dando as orientações necessárias e fortalecendo o vínculo com todos os familiares, fazendo visitas constantes ao hospital.

A terceira família adotada, ainda durante o ano de 2013, foi encaminhada pela equipe do Caps AD e o primeiro contato com a mãe ocorreu no próprio serviço de saúde. A família é composta pela mãe, que faz uso de tabaco e de álcool moderadamente, mas que segundo relatos da própria usuária também havia utilizado cocaína na primeira gestação, o companheiro e três filhos, um menino de dois anos e sete meses, uma menina de 14 anos e um adolescente de dezessete. Conforme relatos da mãe, a menina nunca reprovou de ano, já o menino é repetente por três anos e quando contrariado apresenta sinais de agressividade. Observamos que durante nossas visitas a menina fica mais calada e o menino é mais participativo. Nessa família já acompanhamos a usuária até a UBS de referência e também na realização de exames, o que fez com que o vínculo começasse a ficar mais fortalecido. Durante o segundo ano de acompanhamento, a participante esteve gestante e a equipe do projeto pôde realizar todo o acompanhamento, desde a descoberta da gravidez até o momento do parto.

Nessa família, a mãe relata ter feito uso de cocaína e crack durante a gestação dos dois primeiros filhos, de um deles tentou o aborto, também não realizou nenhuma consulta de pré-natal nas duas primeiras gestações, totalmente diferente da terceira gravidez, na qual pudemos acompanhar, sendo realizadas todas as consultas de pré-natal preconizadas, e até mesmo de grupos de gestantes a mãe e o companheiro participaram, demonstrando grandes mudanças entre as primeiras e a última gestação.

A última família foi acompanhada a partir do fim de 2013, sendo que o primeiro contato ocorreu, assim como com a família anterior, no Caps AD. A família é composta pela mãe, ex-usuária de crack, que mora com sua filha de 11 anos e seus pais e irmãos. Nessa família, assim como nas outras, o acompanhamento se estende a todos os membros da casa, em especial as avós das crianças, que geralmente se sentem carregadas por também dividir os cuidados dos netos, além da responsabilidade da casa. A menina repetiu de ano uma vez e apresenta algumas dificuldades em Matemática, atividades de apoio escolar são realizadas pela psicopedagoga do projeto, o que já vem surtindo efeitos positivos no seu rendimento.

Com essa família, no primeiro momento, foi mais difícil a criação de vínculo, pois os avós da criança se mostravam um pouco resistentes ao acompanhamento do projeto, mas com o tempo o vínculo foi estabelecido e atualmente é possível realizar um trabalho extensivo a todos os membros da casa.

Todos os casos são discutidos no grupo e com a professora coordenadora do projeto, para que juntos possam sugerir soluções e maneiras de colaborar com essas famílias e crianças. As visitas acontecem até mesmo nos fins de semana e todas com recursos do próprio estudante e coordenadoras. Tem sido um grande aprendizado poder conhecer a realidade dessas famílias e enxergá-las fora da óptica do preconceito que o usuário de drogas está estigmatizado a sofrer.

Participamos de momentos importantes na vida dessas mulheres, como o chá de bebê do primeiro filho, a primeira e última consulta pré-natal, momento do parto, aniversários, atividades de interação promovidas pelo projeto no dia das crianças, Páscoa e Natal, entre tantos outros momentos em que somos para elas mais do que apenas uma equipe de um projeto, mas sim uma extensão do que elas vivem, pois sem preconceitos estamos lá, dentro de suas residências, ouvindo as suas histórias de vida, compartilhando as nossas e assim transformando, mesmo que seja lentamente, a perspectiva de vida dessas famílias.

Durante as visitas percebemos que a maioria das mulheres não fez o número ideal de consultas de pré-natal, isso quando chegaram a realizar ao menos uma. Mulheres usuárias de algum tipo de substância muitas vezes referem encontrar obstáculos ao procurar algum serviço de saúde e, por esse motivo, deixam de procurar assistência quando necessária ou procuram tardiamente e em casos de extrema necessidade.

Corroborando com o que encontramos em relação ao acesso aos serviços de saúde, no estudo de Aguiar e Menezes (2017), realizado com mulheres usuárias de crack, foi encontrado que elas apresentam dificuldades em acessar os serviços de saúde, por não cumprirem os requisitos e atitudes considerados favoráveis para um atendimento de qualidade com foco na prevenção e promoção da saúde delas.

É cedo para afirmar os reais efeitos das drogas durante a gestação, visto que até o momento as crianças acompanhadas pelo projeto não sofreram efeito de abstinência e nem outro efeito que podemos relacionar ao uso das substâncias. Mas o que se observa é que essas famílias precisam de profissionais humanizados que os acompanhem e prestem os cuidados necessários a elas, que compreendam sua forma de vida sem expedir julgamentos morais e com prestação de cuidado integral e multidisciplinar.

No estudo de Maria e Mesquita (2015), realizado com mulheres usuárias de drogas e profissionais de enfermagem em relação ao processo de maternidade, observou-se que os bebês recém-nascidos, filhos de usuárias de drogas, apresentam baixo peso ao nascer, problemas respiratórios e parto prematuro. Destaca-se também o relato dos enfermeiros e dessas mulheres em relação ao difícil acesso aos serviços de saúde, alegando não estarem preparados para atender à demanda, dificultando assim a criação de vínculo e o cuidado integral.

Autores como Abraham e Hess (2016) e Aghamohammadi e Zafari (2015) também falam sobre o uso de drogas durante a gravidez, que pode exercer no feto efeitos negativos preocupantes, como o descolamento prematuro da placenta, malformações, alterações no crescimento do cérebro e na arquitetura do córtex e o aborto espontâneo, assim como no recém-nascido, baixo peso ao nascer, diminuição do perímetro cefálico, irritabilidade e dificuldades no sono. Em contrapartida, outros autores como Camargo e Martins (2014), Silva, Algeri, Cunha e Oliveira (2016) e Reis e Loureiro (2015) trazem que a relação entre a exposição ao crack durante a gestação e a presença de prejuízos no desenvolvimento da criança é ainda desconhecida cientificamente.

Desse modo, é dada a importância das consultas de pré-natal, pois é por meio da atenção da qualidade ofertada pelo profissional de saúde que se propõe ações em vistas à promoção da saúde física e mental da mãe. No pré-natal, também se dá as solicitações de exames laboratoriais e de imagem, investigando quaisquer condições de saúde que possam vir a intervir no adequado desenvolvimento do feto e prescrita suplementação de ferro e vitaminas. É necessária e de fundamental importância a criação de vínculo profissional durante as consultas de pré-natal para ser possível acompanhar o desenvolvimento do feto até seu nascimento e as condições de saúde da mãe, obtendo informações sobre o parto e no acompanhamento do puerpério. É relevante destacar que é durante a gestação e puerpério que diversas dúvidas rodeiam a mãe, sendo que estas, no momento das consultas, devem ser investigadas e sanadas pelo profissional, oferecendo clareza e confiabilidade para a gestante (Lima, Santos, Povoas, & Silva, 2015).

Para os autores Gubert et al. (2016), o programa de puericultura também tem o objetivo de sanar dúvidas que partem da mãe e familiares, de orientar sobre prevenção de acidentes, acompanhar a cobertura vacinal, oferecer estímulo para o aleitamento materno e período adequado para introdução da alimentação sólida, além de acompanhar o crescimento e desenvolvimento neuropsicomotor da criança e prevenir doenças que acometem as pessoas no primeiro ano de vida.

A partir do acompanhamento das famílias e das observações das crianças até o momento, corrobora-se com o que alguns autores, como Camargo e Martins (2014), Marques, Ribeiro, Laranjeira e Andrada (2012) e Silva et al. (2016), afirmam: que há poucos estudos que comprovem cientificamente que a crise de abstinência e o uso do crack pela mãe durante a gestação possa causar algum tipo de dano permanente.

A partir das leituras e das observações realizadas, vamos ao encontro de Camargo e Martins (2014) e Silva et al. (2016) sobre o que diz respeito à temática, pois a real extensão dos danos que o consumo do crack pode causar na gravidez é até hoje pouco conhecida. Mais trabalhos como este, de acompanhamento a essas crianças são necessários para que haja mais produções teóricas consistentes sobre o uso de drogas.

 

Considerações finais

É ainda difícil dizer com certeza o que é mito ou realidade quando se trata dos efeitos das drogas nas crianças, faltam estudos que visem compreender os reais efeitos que a droga e a não realização do pré-natal podem vir a causar nos filhos de mães usuárias, principalmente quando se trata do crack, uma droga que no Brasil vem sendo estudada há poucas décadas.

Em relação às participantes desta pesquisa, percebeu-se que algumas delas só aderiram ao programa de pré-natal após o acompanhamento do grupo, que levou informações acerca da importância da realização de consultas periódicas para a saúde da mãe e do feto. As participantes, além de não ter informações sobre o programa, também relatavam receio em acessar os serviços de saúde devido a sua condição de uso de drogas.

Para o grupo, o mais prazeroso é a satisfação das mães em nos receber, em cada visita há sempre um sorriso, braços abertos e a alegria nos olhos daquelas mulheres, que parecem que encontraram em nós a ajuda que não lhes é dada em outros serviços. Nosso trabalho parece estar sendo bem acolhido e isso é notável na fala das mães, que chegam a referir que nossas visitas alegram o seu dia. Muitas vezes percebemos uma ansiedade nelas de apenas serem ouvidas, compreendidas e não somente julgadas, e é isso que realizamos em cada visita, um acompanhamento humanizado, uma escuta terapêutica, levando conforto e diálogo acima de tudo, pois é assim que se constrói o cuidado: com a formação de vínculos reais.

Ainda temos muito que descobrir com a participação nessas atividades e sabemos que não é uma escolha fácil trabalhar com essa temática, muito mais quando além de usuários de drogas se trabalha também com seus filhos e familiares, mas é um trabalho necessário para que novas políticas públicas possam ser implementadas, para que os profissionais sejam capacitados para atender essa população, para que assim se tenha um cuidado integral, humanizado e livre de julgamentos e discriminações.

 

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Recebido em: 26/5/2017
Aceito em: 30/5/2019

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