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Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

     

 

Das "coisas jogadas fora": ensaio sobre um estágio em Psicologia Social e Processos Comunitários

 

"Throwing things away": essay on an internship in Social Psychology and Community Processes

 

De las "cosas tiradas fuera": ensayo sobre una etapa en Psicología Social y Procesos Comunitarios

 

 

José Rodrigues de Alvarenga Filho

Doutor em Psicologia Pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Departamento de Psicologia e da Pós-Graduação Interdisciplinar em Artes, Urbanidades e Sustentabilidade (Pipaus) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo colocar em análise a realização de um estágio em Psicologia e Processos Comunitários em um abrigo masculino para população em situação de rua do município do Rio de Janeiro, em 2015. Para tanto, fazendo uso da cartografia como estratégia metodológica tanto do estágio quanto da produção deste texto, assim como das contribuições de Foucault, entre outros, percorremos brevemente a experiência da intervenção em suas conexões com o então contexto político da cidade. Esta, havia acabado de sediar a final da Copa do Mundo de Futebol de 2014 e preparava-se para o início das Olimpíadas de 2016. Políticas higienistas de limpeza urbana dos indesejáveis, criminalização dos pobres e repressão de movimentos sociais aconteciam em paralelo à realização dos megaeventos esportivos. Nesse contexto adverso, o estágio se construiu como um espaço de acolhimento, cuidado, escuta atenta e problematizações norteadas pelas diferentes experiências dos seus participantes.

Palavras-chave: Psicologia Social. Processos Comunitários. Estágio. Cartografia. Cidade.


ABSTRACT

This article aims to analyze the completion of an internship in Psychology and Community Processes in a male shelter for homeless people in the city of Rio de Janeiro, in 2015. Therefore, making use of cartography as a methodological strategy From the stage and production of this text, as well as from Foucault's contributions, among others, we briefly walk through the experience of the intervention in its connections with the then political context of the city. It had just hosted the 2014 Football World Cup final and was preparing for the start of the 2016 Olympics. Hygienist policies of urban cleansing of the undesirable, criminalization of the poor and repression of social movements were taking place in parallel with mega sports events. In this adverse context, the internship was built as a space for welcoming, caring, attentive listening and problematization guided by the different experiences of its participants.

Keywords: Social Psychology; Community Procedures; internship; cartography; City.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar la realización de una pasantía en Psicología y procesos comunitarios en un refugio para hombres sin hogar en la ciudad de Río de Janeiro, en 2015. Por lo tanto, el uso de la cartografía como estrategia metodológica Desde el escenario y la producción de este texto, así como desde las contribuciones de Foucault, entre otros, recorremos brevemente la experiencia de la intervención en sus conexiones con el contexto político de la ciudad. Acababa de albergar la final de la Copa Mundial de Fútbol de 2014 y se estaba preparando para el inicio de los Juegos Olímpicos de 2016. Políticas higienistas sobre la limpieza urbana de lo indeseable, la criminalización de los pobres y la represión de los movimientos sociales estaban teniendo lugar en paralelo con mega eventos deportivos. En este contexto adverso, la pasantía se construyó como un espacio de acogida, atención, escucha atenta y problematización guiada por las diferentes experiencias de sus participantes.

Palabras clave: Psicología Social. Procedimientos Comunitarios. Etapa. Cartografía. Ciudad.


 

 

Introdução

As coisas jogadas fora têm grande importância

- como um homem jogado fora.

(Manoel de Barros)

Nosso artigo é, antes de mais nada, um exercício de fazer da memória um artefato político a ser utilizado em nossos enfrentamentos cotidianos. Em tempo de revisionismos, quando acontecimentos históricos passam a ser relativizados e ganham outros significados, é preciso que "contemos as histórias que estamos dispostos a esquecer" (Alvarenga Filho, 2013). Histórias que, além de trazerem o "ronco surdo das batalhas" (Foucault, 2014, p. 302), nos falam de movimentos e práticas de insurgências e resistências. Se o nosso tempo parece estranho, como afirma Stengers (2015), façamos dele um tempo de estranhamentos.

Nós, que nascemos e habitamos esta enorme América Latina, carregamos conosco a memória viva dos povos deste continente. Memória atrevida daqueles que ousam não esquecer que, apesar do sofrimento com dentes cerrados e do silenciamento a que somos submetidos, vozes dissonantes e corpos impertinentes afirmam a potência da diversidade onde em nossas cidades busca-se a imposição de uma lógica fascista de perseguição e extermínio das diferenças. Onde "querem Leblon"1 - pacífica, burguesa e higienizada - nós nos inventamos Pernambuco; subúrbio, favela.

Falamos no singular, mas também no plural, não por medo de nos mostrar, antes pela aposta de que no coletivo nos construímos e nos fortalecemos. Ao nosso lado, em nossas trajetórias, carregamos no "peito batalhas incontáveis" (Tierra, 2010), e um vasto horizonte se faz a nossa frente a nos lembrar sempre que são as utopias ativas e imanentes que nos levam a perseguir esse mesmo horizonte que, contudo, jamais alcançamos. As utopias que nos fazem caminhar nos ajudam a não nos sufocarmos diante de toda a toxina que paira sobre o Planeta. Como escreve Rolnik (2018, p. 29), "saturados de partículas tóxicas do regime colonial-capitalístico, o ar ambiente nos sufoca".

"Palavras que afloram de um nó na garganta" (Rolnik, 2018, p. 29) nos falam de um cansaço no corpo daqueles que lutam; daqueles que sonham e enfrentam moinhos para inventar outros mundos, menos tóxicos e mais diferentes. Pensamos o cansaço como um afeto de tristeza (Espinosa, 2015), isto é, como diminuição de nossa potência de existir. A tristeza vem dos enfrentamentos que são vários e cada dia mais intensivos, mas emergem também diante de tantos retrocessos e disparidades que assistimos no âmbito do atual contexto político global. Contudo, como alerta Pelbart (2017), "não é bom, em meio a um contexto tão sinistro, deixar-se afundar no catastrofismo melancólico e derrotista. Porque todo poder visa também a isto: nos separar de nossa força, nos inculcar a tristeza, a angústia, o medo, a culpa e sobretudo a sensação de impotência".

Escrevemos não para afirmar impotências; majorar ressentimentos; habitar desatinados pessimismos; mas, pelo contrário, porque apostamos na potência das narrativas de construir outros mundos. A realidade não está pronta e acabada. Ela existe em processos que são inconclusos e inusitados. Assim também somos mais do que cômodas identidades, que são como seculares retratos fixados na parede, com a imponência de um passado do qual não conseguimos nos afastar; somos processos de subjetivação (Guattari & Rolnik, 2013), isto é, modos de existir que vazam das molduras, que racham as paredes, que transbordam. É porque a vida escapa que há tantas tecnologias de poder tentando torná-la "dócil" (Foucault, 2014).

"Escrevo porque a vida me dói", diz Eliane Brum (2013, p. 49). Principalmente, escrevemos para transformar dor em potências de viver; para fazermos do exercício de pesquisar-intervir uma forma de habitar a dor, mas, também, um exercício ético de transformação de si e do mundo. Afinal, como anuncia Nietzsche (2017, p. 9), "o que não me mata me fortalece".

Tal como o trapeiro de Benjamin (2006), catamos no lixo da História e dos dias a matéria-prima para forjar o nosso pensamento e construir pesquisas-intervenções que tentem promover desvios nesta enorme "máquina de moer pobres", como canta Emicida.2 Os pobres, os pretos, os pardos, os ninguéns, que valem tão pouco, que valem cada vez menos. São essas "vidas infames" (Foucault, 2006a), alijadas dos grandes banquetes do poder, distantes das suntuosas câmeras da grande mídia, os alvos de políticas de tutela, por um lado, e repressão e extermínio, por outro. Vidas que fazem o sistema ranger e que por este são dilaceradas.

O capital financeiro internacional - que "constrói e destrói coisas belas"3 com sua lógica transnacional desconhece fronteiras e barreiras a sua majoração. Em sua fase neoliberal, as forças "capitalísticas" se intensificam em solapar direitos. Ao mesmo tempo em que o Estado é diminuído como garantidor de políticas sociais, o seu papel é ressignificado como um "Estado mais penal" (Wacquant, 2001), isto é, um Estado cujo principal investimento é na construção de políticas de segurança pública (do aprisionamento, da repressão, do extermínio).

Os governos locais, incapazes de lidar com os desarranjos globais do sistema capitalista - produção de desemprego em massa, poluição, aumento das desigualdades, etc. -, voltam-se para a construção de políticas cujo principal alvo é o suposto combate ao crime. A partir daí, as estratégias e táticas de sobrevivência dos segmentos mais pobres passam a ser criminalizadas. A política estadunidense da "tolerância zero", orquestrada em Nova Iorque na década de 1990, e exportada para cidades como o Rio de Janeiro, é um exemplo de política que produz a repressão dos pobres e encarceramento em massa.

Em nome da "defesa da sociedade" (Foucault, 2010), políticas repressivas transformam os diferentes territórios das cidades em palco para o seu investimento. Desde meados do século XVIII, produz-se o medo das multidões (Barros & Josephson, 2005). Desempregados, proletários, miseráveis que vagam ou se organizam em massa passam a ser criminalizados e tutelados. Ao mesmo tempo, como aponta Sennett (2015), há um esvaziamento dos espaços públicos e uma privatização da vida. Diferentes atores sociais ajudaram a fabricar os espaços públicos, as ruas, as praças, como locais potencialmente perigosos. O filósofo I. Kant (apud Perrot, 1992, p. 307) afirma que

A casa, o domicílio, é a única barreira contra o horror do caos, da noite e da origem obscura; encerra em suas paredes tudo que a humanidade pacientemente recolheu ao longo dos séculos; opõe-se à evasão, à perda, à ausência, pois organiza sua ordem interna, sua civilidade, sua paixão. Sua liberdade desabrocha no estável, no contido, e não no aberto ou infinito. Estar em casa é reconhecer a lentidão da vida e o prazer da meditação imóvel A identidade do homem é, portanto, domiciliar; e eis porque o revolucionário, aquele que não possui eira nem beira - e portanto nem fé, nem lei - condensa em si toda angústia da vagabundagem o homem de lugar nenhum é um criminoso em potencial.

O medo do "criminoso em potencial" faz com que onde há processos de criminalização, racismos e fabricação de vidas descartáveis veja-se apenas supostas essências desconectadas do contexto social em que a seletividade penal opera, fazendo sentir os seus efeitos sobre determinados segmentos sociais. Da Teoria das Degenerescências de Morel à Antropologia Criminal de Lombroso (Coimbra & Nascimento, 2005) assistimos agora a um novo personagem entrando em cena nos discursos penais-psiquiátricos: o psicopata. A figura do psicopata faz conjurar o discurso médico com o discurso jurídico. Medicalização e judicialização do viver caminhando juntas, lado a lado.

As cidades se tornaram um grande palco para a intensificação de tais processos de criminalização, judicialização, medicalização e repressão. Do Rio de Janeiro a São Paulo, vemos emergir políticas higienistas de limpeza urbana dos indesejáveis sociais.4 Operações de internação compulsória acontecem apostando na segregação e na abstinência, quando novas formas de pensar a promoção da saúde e do cuidado são experimentadas.

A experiência que aqui compartilhamos se passou na cidade do Rio de Janeiro, no ano de 2015. Na época, construímos um projeto de estágio em Psicologia e Processos Comunitários. As intervenções aconteceram com a população em situação de rua que habitava provisoriamente em um abrigo masculino da rede municipal de assistência social da prefeitura local. O estágio, apostando em intervenções grupais, buscou construir, em parceria com os usuários do abrigo, espaços de cuidado e problematização da experiência de habitar as ruas. Utilizamos a cartografia como perspectiva político-metodológica, aliada às ferramentas advindas da análise institucional francesa.

Construímos nosso texto fazendo uso de uma linguagem ensaística, buscando experimentar outras escritas. Utilizamos a narrativa de cenas como acontecimentos analisadores (Lourau, 1993) do entrelace entre a prática do estágio e o contexto político da cidade onde o experimento aconteceu. A partir de Foucault (2006b, p. 41), "por cena, não entender um episódio teatral, mas um ritual, uma estratégia, uma batalha". Não temos nenhum apreço às generalizações, prescrições ou suposta neutralidade cuja simpatia o modo de fazer ciência hegemônico - cartesiano e positivista - tão fortemente se apega. Falamos a partir de outro lugar e fazendo uso de ferramentas que fazem com que desconfiemos ativamente dos especialismos; dos métodos lineares e sistemáticos que se constroem estranhamente a priori às experiências; bem como, da "vontade de poder" (Nietzsche, 2008) de controlar a vida a partir do primado da razão.

Nosso texto, tal como foi a nossa experiência de estágio, é uma experimentação incerta e inconclusa cujo principal compromisso é com a invenção, a criação de outros modos de existir e outros mundos. Não buscamos desvelar ou descobrir a verdade. Mas não negamos que, tal como Foucault (2010), sonhamos em fazer uma "anticiência" que conjugue saberes eruditos com saberes populares, saberes sujeitados; um saber que sirva não para explicar, mas para cortar.5

Cena I: "Vocês que gostam de gente pobre"

Atuávamos em meados de 2015 numa instituição privada de ensino situada no subúrbio do Rio de Janeiro. A faculdade ficava no coração de um conjunto de favelas. Apesar do prédio estar numa das principais avenidas da região, para qualquer direção que olhássemos víamos favelas e por elas, de diferentes formas, éramos interpelados e também vistos. No ano de 2009, um helicóptero da polícia militar que sobrevoava um morro local foi atingido por uma metralhadora antiaérea. O dispositivo caiu num terreno ao lado da faculdade, matando três policiais. Em 2015, uma operação do Batalhão de Operações Especiais (Bope) fez uma incursão numa das favelas adjacentes à instituição. Houve morte de moradores e revolta. Um ônibus foi queimado em frente à entrada principal da faculdade e funcionários e estudantes ficaram presos dentro do campus durante horas.

Era recorrente durante as aulas ouvirmos som de tiros de armas de diferente calibres: fuzis, pistolas e até rajadas de metralhadoras ou explosões de granadas. Estávamos no "front", entre a violência do varejo local do tráfico de drogas e a violência da polícia militar. Obviamente, nada se compara aos milhares de moradores que ali viviam e tinham suas vidas, seu ir e vir, ameaçados pelos recorrentes conflitos. A vida, naquelas condições, estava sempre num tenso fio de navalha, em que sobreviver, manter-se vivo, é um ato de resistência. À noite, encerradas as aulas, voltávamos para casa, mas carregávamos conosco um nó na garganta difícil de desatar. E aquela população, cujo direito à existência está sempre sendo ameaçado, permanece naquele território. Sobrevivendo no "fogo cruzado".

Ainda que a instituição onde atuávamos estivesse nesse contexto, e fosse referência na região, no que tange às graduações na área de licenciatura e saúde, temas/problemas que saltavam aos olhos e corpos daqueles que ali habitavam - como diferentes tipos de violência, desigualdade social, distribuição de renda, dentre outros - passavam despercebidos da grade curricular dos diferentes cursos. Tais temas eram entendidos como temas menores, marginais. Entretanto, esses temas insistiam em aparecer nos corredores e demais espaços informais, provocando a emergência de discursos higienistas ("as favelas deveriam ser removidas"!), punitivos (a solução para todos aqueles problemas seria a punição), judicializantes (evocava-se sempre as leis e uma suposta justiça neutra que traria a boa harmonia da cidade), dentre outros.

É trabalhando numa instituição de ensino que nega ou busca afastar-se das mazelas e da população do território, onde se encontra há mais de 40 anos, que procuramos experimentar a construção de um estágio em Psicologia e Processos Comunitários.6 A própria faculdade demandava por trabalhos que "dessem algum retorno à comunidade". Entendemos tal demanda produzida não como uma preocupação da direção por compor com aquela população, mas para cumprir a necessidade de atividades extensionistas que articulassem, minimamente, a instituição com as favelas da região.

"Vocês que gostam de gente pobre, de criança remelenta...", assim começou uma conversa com um dos responsáveis pelos cursos da instituição. A fala foi seguida de um riso, depois um breve silêncio. Afinal, a miséria que ali se materializava deveria ser motivo de piadas e gozações? Seria a Psicologia Social - matéria que lecionávamos - um campo "menor" da Psicologia instituída no Brasil? Nosso trabalho se resumiria a construir intervenções trabalhando com "gente pobre", com estratégias de cunho assistencialista e tutelares? Definitivamente não.

II: "Fico com a sensação que o trabalho não está servindo para nada"

Com a saída de um dos colegas, "herdamos" um grupo de estagiários que desenvolviam intervenções num abrigo municipal para população em situação de rua. O abrigo era uma construção embaixo de um viaduto. O local se encontrava bem próximo à entrada de um grande parque municipal.

O grupo de estagiários era formado por estudantes que não se "encaixavam" na perspectiva clínica de consultório que se fazia hegemônica na Faculdade. Do primeiro ao décimo período, havia disciplinas que pensavam a clínica. Por outro lado, poucas eram as matérias que problematizavam questões relacionadas ao social e às políticas públicas, por exemplo. Ali, naquela formação, se afirmava uma Psicologia individualista, cuja "escuta surda" (Baptista, 2000) se recusava a ouvir o que emanava para além dos consultórios e da sala de aula. A "fábrica de interiores" produzia psicólogos que dicotomizavam clínica e social, apostando na separabilidade das esferas coletivas e individuais.

O trabalho com o grupo de estagiários começa com um exercício de análise das implicações (Lourau, 1993). Problematizamos nossas trajetórias, afirmando a inseparabilidade, também, entre modos de existir e formas de pensar. Por que cada um - incluindo-me na análise - estava naquele estágio; o que cada um acreditava que poderia ser feito; o que já havia sido experimentado? Apresento ao grupo a perspectiva a partir do qual trabalho e discutimos o que seria a construção de um estágio perpassado pela prática da autogestão e da autoanálise.7 Há muitas interrogações e dúvidas no ar. Eu mesmo não me coloco no lugar daquele que sabe; daquele que fala a partir de uma hierarquia que faz com que a relação entre supervisor e estagiários seja vivenciada de forma vertical e, muitas vezes, pouco dialógica.

Contudo, entre anunciar um horizonte mais colaborativo, dialógico e autogestionário e o grupo se inventar a partir dessa perspectiva, uma distância enorme desde o início do trabalho se apresenta. Todos os estagiários mostram-se afetados pelos encontros com os usuários do abrigo. Relatam que voltam para casa e continuam pensando no que ouviram, nos diferentes e sofridos relatos de vida. Há lágrimas nos olhos de alguns deles quando, nas supervisões, contam o que foi experimentado em grupo. Porém, percebemos que, apesar desses afetos poderem ser pensados como catalisadores do trabalho, poucos estagiários implicam-se com o processo de autogestão, que exige uma postura mais ativa, e mostram-se passivos esperando o próximo passo, o próximo texto, a próxima orientação do supervisor.

Colocamos essa questão em análise. Inclusive, as recorrentes faltas de alguns estagiários que iam para o abrigo, mas não apareciam nas supervisões. O que estava acontecendo ou deixando de acontecer nestas? Será que a autogestão está tão longe do que podemos de fato construir em nossos cursos de graduação em Psicologia? A maioria dos estagiários não se sentia muito à vontade para colocar em análise a própria supervisão e percebi que, mesmo eu buscando construir um outro lugar de supervisor, eles me viam, ainda, com a desconfiança daqueles que passaram por várias experiências pedagógicas opressivas. Sentia que apenas com o tempo e, sobretudo, com os encontros que poderíamos construir juntos, eles sentiriam mais confiança na perspectiva que estava propondo.

Ainda assim, não foi difícil que o grupo colocasse questões como: "não estamos acostumados com essa liberdade"; "a gente sabe copiar muito bem, mas quando você pede para criar, aí a gente trava"; "a gente vai para lá (no abrigo), escuta a fala deles, conversa, leva propostas, e não que isso seja ruim, mas, sabe, fico com a sensação de que o trabalho não está servindo para nada".8 Falas analisadoras!

No dizer de Lourau (1993), a análise das implicações é o escândalo proposto pela Análise Institucional. Afinal, estão todos muito acostumados (e acomodados?) com a possibilidade - ainda que ficcional - da neutralidade científica. O escandaloso - e o doloroso - é nos colocarmos em análise. Não penso que se os estagiários não estavam embarcando na ideia da autogestão era por uma questão individual ou incapacidade do grupo, acostumado demais com práticas coercitivas. No entanto, é claro que depois de anos de processos de escolarização todos nós - estudantes e professores - somos perpassados por forças que engendram processos de subjetivação marcados pelo medo, pela insegurança, pelo silenciamento. Processos esses que fazem, muitas vezes à nossa revelia, morada em nós. É nas relações que construímos no cotidiano de nossas práticas que podemos produzir desvios nessa máquina educacional produtora de corpos obedientes.

Cena III: "Querem nos remover como se fôssemos lixo"

A partir da perspectiva cartográfica (Passos et al., 2009 e 2016), não há manual ou passo a passo de como intervir. Existem pistas que mais do que delimitar nossa forma de pensar/agir nos oferecem apontamentos provisórios a partir dos quais, conjugando com a obra de diferentes autores "nômades", vamos, ao habitar a experiência do território e/ou instituição, construindo maneiras singulares de intervir. Por esse viés, o "método" não é um a priori que, se bem executado, garante a apreensão do conhecimento verdadeiro. O método é um artefato (ferramenta) que criamos na experiência de intervir. Ele só existe a partir das relações que vamos fabricando.

Outras pistas cartográficas nos dizem que não existem sujeitos universais e a-históricos, mas produzidos a partir de práticas historicamente localizáveis. Não trabalhamos com a construção de uma postura de neutralidade. Pois a entendemos como sonho ou delírio de um fazer científico que se quer asséptico e "desimplicado". Preferimos apostar em práticas de análise das implicações. Ao mesmo tempo, não há coleta de dados, pois o mundo não está acabado e os "dados" não existem nele, bastando que encontremos o método certo para coletá-los. Se a realidade é processual, inconclusa e incerta, as estratégias interventivas não deixam de ser sempre rascunhos provisórios que deverão cotidianamente serem revistos e questionados, não para dar conta de controlar a realidade, mas para, minimamente, conseguir acompanhar os movimentos dos processos de fabricação do mundo.

Por esse viés, iniciar o processo de estágio no abrigo significou uma aposta incerta cujos efeitos não poderiam, de antemão, serem previstos. Combinamos que os estagiários se dividiriam em duplas e que cada uma iria em dias e horários diferentes. Um trabalho com aquele grupo de estagiários já havia sido começado no período anterior sob a supervisão de outro professor. Por isso, acordamos que a partir da forma de atuar já estabelecida repensaríamos as estratégias interventivas.

O abrigo era um espaço onde as portas permaneciam abertas. Os usuários entravam e saíam livremente do local. Muitos faziam trabalhos informais na região, catavam latinhas ou perambulavam pelas adjacências. Tratava-se de uma população que apesar de estar agenciada a uma instituição municipal não deixava de ser nômade. Ao chegar ao local, os estagiários entravam e iam até a porta dos dormitórios e demais locais e convidavam os usuários. Era explicado que se tratava de um projeto de um grupo de estagiários da Psicologia, que gostaríamos de construir grupos de acolhimento e reflexão. Os estagiários já tinham o saber, produzido no período anterior, que fazer os grupos dentro do abrigo não potencializava a intervenção. Os funcionários da instituição poderiam ouvir o que estava sendo falado e os usuários não se sentiam à vontade.

Como estávamos ao lado de um grande parque municipal, não foi difícil que os próprios estagiários pensassem em utilizar o espaço do parque para a realização dos grupos. Assim, os usuários eram convidados e iam com os estagiários para fora do abrigo. Escolhiam um local no parque e lá sentavam em roda na grama ou utilizavam algumas das cadeiras de cimento do local.

Fui ao primeiro encontro e com os estagiários entramos no abrigo e convidamos alguns usuários. Escolhemos um local no parque e começamos a conversar. Alguns dos usuários já eram conhecidos dos estagiários. A proposta inicial de criar ali um espaço para conversarmos sobre diferentes questões sobre a vida dos participantes foi discutida. A maioria das falas deles concerniam a dificuldades de serem ouvidos socialmente; que no dia a dia as pessoas tinham medo e fugiam deles quando estavam nas ruas. Por isso, eles consideravam importante existir aquele grupo. Muitos terminaram o encontro nos agradecendo, como se estivéssemos fazendo um favor para eles. Ou, pedindo desculpa "por qualquer coisa" que tenham falado.

A grande maioria relatava que não tinha mais contato com a família. Muitos tinham questões com o uso de álcool e outras drogas, inclusive, indo parar nas ruas devido a excessos cometidos pelos vícios. Enquanto as falas aconteciam, chegou ao grupo um catador de latinhas que passava no local. Ele ficou olhando e perguntou se podia se juntar a nós. Ele já tinha passado pelo abrigo, mas naquele momento morava numa ocupação no centro da cidade. Rapidamente o tema remoções de comunidades e populações em situação de rua emergiu.

M. (O catador de latinhas) disse que a cidade era hostil a pessoas como eles e que a prefeitura queria removê-los como se fossem lixo para bem longe de onde aconteceriam os Jogos Olímpicos. Ele dizia que a violência contra a população em situação de rua havia aumentado e que tais ações eram orquestradas pela prefeitura. Segundo suas palavras, "A prefeitura tem como propósito retirar todas as pessoas carentes da cidade e jogar para bem longe, fazer da cidade um clube de pessoas ricas. Fujo disso, fazendo da rua o meu lar".

O debate provocado por M. fez com que os estagiários se olhassem. Sua fala era muito lúcida sobre algumas das práticas e processos que aconteciam no Rio de Janeiro naquele momento. O caráter higienista das ações da prefeitura e do governo do estado ficavam evidentes. Ao mesmo tempo em que suntuosas obras eram edificadas, pessoas em situação de rua eram internadas contra a vontade em abrigos públicos; jovens eram internados em dispositivos do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase); famílias inteiras eram removidas e suas casas destruídas.9

A fala de M. e de outros participantes dos encontros denunciavam o quanto as suas vidas eram diariamente consideradas descartáveis (Alvarenga Filho, 2013). O seu livre perambular tornava-se alvo de perseguições e repressões. Seu discurso era silenciado e os seus saberes capturados e tutelados, juntamente com os seus corpos, por dispositivos como abrigos, centros de triagem, prisões, dentre outros.

A população que habitava as ruas sabia muito bem que a "festa olímpica" não era para os pobres e que suas vidas faziam parte das "coisas jogadas fora" (Barros, 2016). Aos encontros que se seguiram, o tema das remoções e internações compulsórias voltava na fala dos participantes como um mantra sinistro a anunciar que tempos ainda mais sombrios estavam por vir.

Os pobres e os miseráveis do Terceiro Mundo temem os grandes eventos internacionais, pois sabem que seus governos, como aponta Davis (2006, p. 111), orquestram verdadeiras "cruzadas de limpeza da cidade". Eles são o lixo humano descartável que deve ser removido dos espaços valorizados da cidade. Ainda de acordo com o autor, "os favelados sabem que são a 'sujeira' ou a 'praga' que seus governos preferem que o mundo não veja". Os megaeventos esportivos soaram como uma espécie de belo "canto de sereia" a atrair homens e mulheres, crianças e velhos. Os projetos de preparação do Rio de Janeiro para tais eventos foram midiaticamente encantadores e sedutores. A cidade prosperará, dizia a propaganda. A cidade abrirá milhares de ofertas de trabalho. A cidade ficará mais bonita, mais segura e mais democrática.

Como uma moradora da Ladeira dos Tabajaras (favela situada em Copacabana) já dizia em 2011:

Eu não sabia que para a gente ter jogos, pra gente ter olimpíadas, a Copa aqui, precisaria remover todas as comunidades... limpar a fachada do Rio de Janeiro. Afinal de contas, esta Copa e esta Olimpíada é pra mim ou pra gringo? Este Rio de Janeiro grande e bonito que foi construído pelos pobres das encostas... Se as encostas existem, se as favelas existem é porque o pobre veio pro asfalto construir casa pra rico. E agora que foi construído as casas dos ricos os pobres não podem mais morar nas encostas? Agora encosta é, também, para rico?! Então, onde vão colocar a gente? No lixo?! Nós não somos lixo para sermos removidos!10

Cena IV: "É que a gente fica dopado aqui"

O primeiro encontro do estágio foi muito intenso e nos provocou diferentes afetos e reflexões. Além de vermos as forças capitalistas/higienistas que atuavam na cidade sendo denunciadas e interrogadas na fala dos participantes, percebíamos efeitos da institucionalização da vida deles por meio de sua estada no abrigo. Por mais que as portas ficassem abertas durante todo o dia e que eles tivessem liberdade para entrar e sair, nem todos os usuários conseguiam, de fato, ultrapassar as portas.

Muitos abrigados eram também usuários da rede de saúde mental. Alguns estavam no abrigo há mais de cinco anos e faziam uso de medicações psicotrópicas muito fortes. Percebemos que o dispositivo da assistência social era usado, de certo modo, para internação de usuários da rede de saúde.11 Ao mesmo tempo, ficou claro para nós que, como aponta Deleuze (2013) em sua definição da "sociedade de controle", as estratégias de captura do viver vão se tornando mais sofisticadas e, diferentemente da sociedade disciplinar (Foucault, 2014), os muros das instituições já não são necessários para o controle dos corpos. A captura agora se dá a partir de uma lógica bioquímica, mediante a medicalização da existência. Como nos disse um usuário, "é que a gente fica dopado aqui".

Por esse viés, como apontamos em recente trabalho sobre o sistema prisional de Pernambuco (Lima & Alvarenga Filho, 2018), um psiquiatra que neste trabalhava considerava que o seu papel na instituição era medicar os presos para evitar possíveis rebeliões. Como aponta Coimbra (1995), na época da ditadura civil-militar, diferentes práticas "psi" - psicólogos, psicanalistas ou psiquiatras - atuaram como "guardiães da ordem" daquele estado de exceção. Hoje, todavia, diferentes práticas "psi" ainda não continuariam a reforçar a ordem instituída em nome da proteção e do cuidado? Como problematiza Macerata (2010), há sempre uma linha tênue entre práticas de cuidado e práticas de controle.

Cena V: "Tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno"

A partir da perspectiva cartográfica, de ferramentas teórico-práticas da Análise Institucional, de contribuições da obra de Foucault, Deleuze e Guattari, bem como da revisão de literatura do que já havia sido discutido e produzido sobre o tema, começamos a construir estratégias de intervenção. Pensamos estas como produtoras de modos de existir. Ao mesmo tempo, buscávamos compreender a dinâmica dos poderes que regiam abrigo.

A cartografia como método implica na construção de mapas processuais e provisórios de determinados territórios existenciais. É importante frisarmos que não buscávamos encontrar a verdade sobre o funcionamento do abrigo ou mesmo transformar os encontros em "terapia em grupo". Como apontam Palma, Rodrigues e Moraes (2012, p. 626), a "tarefa do cartógrafo é dar voz para os afetos que pedem passagem".

A cartografia é uma maneira de olhar e de intervir micropoliticamente com o objetivo de produzir desvios nos modos de funcionamento instituídos. Para tanto, cartografar implica em colocarmos em análise a dinâmica de funcionamento do território, atentos aos acontecimentos que possam emergir, aos diagramas das relações de poder, aos efeitos das diferentes práticas discursivas e não discursivas. A experiência do encontro é a principal matéria-prima do trabalho cartográfico.

Por esse viés, fizemos um cronograma dos encontros no semestre, entendendo que estes deveriam ser norteados pelo exercício do cuidado, por práticas de acolhimento e escuta atenta. Definimos que cada encontro teria um tema disparador. A escolha dos temas se deram a partir de discussão entre os estagiários e o grupo de participantes. Era-lhes perguntado sempre o que eles gostariam de discutir e como viam a realização daqueles encontros: se achavam que estava sendo interessante para eles. Ou seja, os participantes eram convidados a fazer um exercício de análise do dispositivo grupo, avaliando sua permanência ou necessidade de mudança. A participação nos grupos era aberta, inclusive para quem passasse no local - como foi o caso de M., que apareceu no primeiro encontro e nunca mais - para certa frustração dos estagiários - retornou.

Por outro lado, apesar do interesse manifestado pelos participantes, nem sempre os estagiários conseguiam montar o grupo. Havia momentos em que nenhum usuário queria participar ou aqueles que participavam com mais frequência não estavam presentes no abrigo. Os estagiários costumavam tomar esse acontecimento como um sinal de que o estágio não estava "dando certo"; que o trabalho "não estava indo para frente". Mas, como buscamos trabalhar em supervisão, o que podíamos entender como "dar certo" ou "ir para frente" quando pensamos numa intervenção com uma população nômade, de rotina e temporalidade singulares?

Havia uma grande expectativa por parte dos estagiários. Cada um significava o estar no estágio de forma diferente, mas todos, de certo modo, tinham por horizonte a busca por um "sucesso" nas intervenções. Tal sucesso viria como uma espécie de desdobramento "natural" do trabalho e poderia ser visto, amiúde, na frequência e disposição dos usuários por participarem dos encontros. Esse acontecimento nos fez colocar em análise coletivamente o que esperávamos das intervenções e o que os encontros estavam produzindo em cada um de nós - estagiários e supervisor.

Pensamos que o exercício cartográfico exige de nós uma aprendizagem constante na forma de olhar. Como diz Couto (2016, p. 95), há muitas armadilhas no mundo, inclusive nossos modos de olhar foram capturados por determinadas formas que moldam o que e como enxergamos. Diz o autor que "quebrar as armadilhas do mundo é antes de mais nada quebrar as armadilhas que se converteu o nosso olhar". A perspetiva cartográfica nos convida a enxergar a potência existente nas microrrelações cotidianas; em práticas despretensiosas; em movimentos e processos que passam singelamente quase despercebidos. É preciso, fazendo referência à poesia de Drummond (1978), enxergamos a beleza das flores que rompem o asfalto.

Ao mesmo tempo, compreendemos que o desafio ético-político da Psicologia que praticamos (e acreditamos) pode ser resumida em trecho do escritor Ítalo Calvino (1990, p. 150), quando ele diz:

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.

Em nossas diferentes intervenções, buscamos reconhecer o que no "inferno" não é "inferno" e preservar e abrir espaço. O que buscávamos ao construir um estágio em Psicologia e Processos Comunitários no Rio de Janeiro? A partir do nosso encontro com os usuários do abrigo, preservar o que emergia como potência e abrir espaço para que, mesmo no meio do inferno, podermos conseguir driblar as forças e formas instituídas e produzir linhas de fuga, desvios, processos de singularização, práticas de resistência.

Intervir, então, implica num processo constante de aprendizagem quanto as nossas maneiras de olhar e a nossa capacidade de desnaturalizar o que está instituído e, por isso, aparentemente invisível ou, simplesmente, não produtor de estranhamentos.

Cena VI "Eu pensei em me jogar do viaduto"

Ainda não sabíamos, mas o encontro que fechou nossas atividades no abrigo no fim do período letivo de 2015 seria o último.12 Os usuários foram avisados com antecedência que durante o período de janeiro de 2016 não haveria atividades, mas que voltaríamos em fevereiro. Estagiários e supervisor estavam presentes. Apareceram muitos usuários e um dos temas daquele dia era discutirmos o que os encontros significaram para cada um de nós. Muitos estagiários demonstravam certa insatisfação com as intervenções, pois ainda não conseguiam ver "resultados" e tudo "parecia vago e solto demais".

Os participantes foram falando e apontando que aquele espaço de "bate-papo" era importante para eles, pois, como sempre enfatizavam, ninguém estava disposto a parar para ouvi-los. O grupo se fez então como um lugar de acolhimento e escuta daqueles que socialmente sempre foram marginalizados e subjugados. Cada encontro, cada conversa e troca de ideias, fazia nascer um pequeno mundo inventado; mundo onde cabia todos, do jeito que cada um ali sabia se fazer. Uma zona autônoma Temporária? (Bey, 2011). Talvez sim, talvez não.

Não havia cobranças sobre o que deviam ou não fazer; não havia imperativos morais sobre as maneiras mais "corretas" de viver. Havia trocas, problematizações, escuta atenta e não tentativas de interpretar ou analisar comportamentos à luz de arcabouços teóricos que mais engessam do que produzem movimento. Estávamos ali para preservar o que era potente e abrir espaço.

Ao pedir a fala, um dos participantes disse que para ele os poucos encontros dos quais participou valeram a pena. Ele estava em abstinência das drogas que utilizava. Desesperado, subiu em um viaduto e pensou em se jogar lá de cima. Mas algo aconteceu e ele desistiu de se jogar. "É que eu lembrei que um dia discutimos aqui que a vida vale a pena". A sua fala fez-se acontecimento em todos nós. Havia ali um efeito micropolítico dos encontros. Efeito esse que, se aquele participante não tivesse ido naquele dia e falado, jamais saberíamos que aconteceu. Em nossas apostas, não há como prever os resultados. Mas é preciso, também, reconhecer que vivemos num tempo de acelerações, produtor de ansiedades; tempo que não dá espaço para movimentos de ritmo mais singelos e singulares. O quanto o imperativo times is money, do tempo que nunca podemos perder, afeta nossas maneiras de pensar, nossos modos de existir e nossas intervenções?

Talvez a pressa por ver "grandes resultados" nos torne incapazes de enxergar microefeitos de nossas intervenções. Tais efeitos quase silenciosos de uma intervenção - mas não silenciados -, pequenos, mas que para uma vida podem ser gigantes são irrelevantes diante de nossa pressa por resultados imediatos. Como diz Barros (2016), "prezo a velocidade das tartarugas mais do que dos mísseis. Tenho em mim este atraso de nascença". Cultivar "atrasos" que nos permitam habitar movimentos singulares e com eles aprender outras temporalidades, outros modos de existir, foi uma das aprendizagens da experiência de estágio.

Quanto à instituição privada de ensino onde trabalhávamos, nosso projeto de estágio era apenas mais um projeto de estágio que deveria ser ofertado. Muitas mudanças estavam em curso na instituição. Dentre elas, cortar professores e diminuir tempo de hora-aula, sob a rubrica de inovar no ensino, para majorar margens de lucro. No contexto mercadológico da instituição, não era esperado que o estágio tivesse "sucesso" ou que "fracasse". Tanto faz. O importante era que fosse ofertado e que os estudantes tivessem sua carga horária.

Considerações finais: "Olha, o mar não tem cabelo onde possa segurar"

O fato de o participante não ter acabado com a própria vida não nos coloca no lugar de "salvadores", de heróis ou heroínas. Os encontros catalisaram afetos e forças que perpassaram, de modos diferentes, todos aqueles que viveram as experiências dos encontros. Ao mesmo tempo, é importante frisarmos que a aposta na experimentação, na potência dos acasos e inusitados que possam emergir nos encontros não significa que "vale tudo" ou que "qualquer coisa" serve. Quando Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho cantam que "olha, o mar não tem cabelo onde possa segurar"13, trata-se de um aviso. O mar é incontrolável, mas isso não significa que o pescador que nele se aventura está à deriva, sendo levado aleatoriamente para qualquer direção que a maré lhe impor. Não se trata de aleatoriedade, mas cultivar uma relação de atenção e cuidado em que navegar será sempre com o mar e nunca contra, para ou sobre o mar.

Pensamos o processo de intervir tal como o pescador que, atento e cuidadoso, vai para o mar usando a potência deste - a força dos ventos e da maré - a seu favor. Ele aprende com o mar, assim como nós aprendemos com as relações que construímos em nossas intervenções. O pescador não tem certeza se conseguirá seu peixe, sequer se voltará vivo. É tudo incerto, mas é na incerteza que navegamos e com ela vamos inventando mundos por meio da experimentação constante de outras maneiras de existir; outros modos de pensar/fazer intervenção.

Finalizamos este artigo sem a pretensão de nos colocarmos na posição daqueles que detêm a verdade ou, sequer, na condição de quem fez uma grande intervenção. Apenas compartilhamos uma experiência que vivemos e que em nós produziu efeitos. Nosso intuito foi o de compartilhar nossa experiência apostando na potência de contágio que esta possa ter.

 

Referências

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Recebido em: 1º/5/2019
Aprovado em: 19/9/2019

 

 

1 Fazemos referência à canção "Quereres", de autoria de Caetano Veloso.
2 Fazemos referência ao rap "Samba do fim do mundo", de autoria de Emicida.
3 Fazemos referência à letra da canção "Sampa", de autoria de Caetano Veloso.
4 No momento em que revisamos este manuscrito, o governador do estado e o prefeito do município do Rio de Janeiro discutiam estratégias para gerir a população de rua carioca. Novamente, a estratégia da internação compulsória volta a ser pensada (Jornal do Brasil, 2019).
5 No decorrer do estágio, realizamos uma revisão de literatura sobre Psicologia e população em situação de rua. Contudo, considerando as limitações de espaço para a publicação, optamos por não contextualizar em nosso manuscrito trabalhos já realizados sobre o tema.
6 Preferimos falar em "Psicologia e Processos Comunitários" a "Psicologia Social Comunitária" ou simplesmente "Psicologia Comunitária", pois, entendemos historicamente a "Psicologia Comunitária" não como um novo especialismo na Psicologia, mas como a tentativa, protagonizada por diferentes psicólogos e psicólogas, principalmente a partir da década de 1970, de aproximar a Psicologia dos movimentos e das lutas sociais. Pensamos, então, a "Psicologia Comunitária" como um importante acontecimento analisador da História recente da Psicologia no Brasil. Por outro lado, preferimos falar em Processos Comunitários, pois entendemos estes como práticas que, em determinado território, num dado momento histórico, produzem relações de solidariedade, companheirismo e aproximações entre diferentes para além da lógica competitiva, egoísta e individualista fabricada pela sociabilidade capitalista. Dessa forma, entendemos que comunitário só existe na construção de relações, não sendo algo da ordem do a-histórico e universal. Também não concordamos com a utilização do termo comunidade como sinônimo de pobreza e/ou miséria. Ou, ainda, como suposto eufemismo para se referir à favela. O termo favela fala das resistências históricas dos povos pretos que foram removidos do centro do Rio de Janeiro no fim do século XIX e início do século XX.
7 Compreendemos que as práticas de autogestão e autoanálise se complementam. A primeira refere-se à construção do grupo como protagonista de sua própria história, coordenador de seus movimentos, atento e crítico às linhas de força que o vão constituindo. A segunda implica na prática constante de interrogar os efeitos de nossas ações; de colocar em análise as forças cristalizadas em nós; enfim, de questionarmos os modos pelos quais atuamos, analisando as forças e afetos que nos perpassam.
8 As diferentes experiências vividas no transcorrer do estágio foram registradas em diário de campo.
9 Informações mais detalhadas desses processos podem ser encontradas em diferentes documentos produzidos pelo antigo Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas no Rio de Janeiro. Dentre os documentos, destacamos o Dossiê "megaeventos e violação de direitos humanos no Rio de Janeiro", disponível no site https://br.boell.org/sites/default/files/dossiecomiterio2015_-_portugues.pdf
10 Disponível no site http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=FxAMVK9SCSk>
11 Usuários que não tinham mais vínculos familiares ou que foram abandonados por suas famílias, e que possuíam problemas psiquiátricos que exigiam maiores cuidados, eram internados no abrigo. Periodicamente, o carro do dispositivo os levava para consultas no Caps do território. Tais usuários tinham muita dificuldade de interação, pois era visível o seu comprometimento em virtude das fortes doses de medicações como o Haloperidol. Eles pareciam "robôs".
12 No início de 2016, recebemos do vice-diretor do abrigo uma mensagem, via WhatsApp, nos avisando que não seria mais possível a continuação do estágio.
13 Referimo-nos à canção "Timoneiro" de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho.

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