Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
O retrato de Dorian Gray: uma possível análise junguiana a partir do arquétipo do Puer aeternus
The picture of Dorian Gray: a possible Jungian analysis from the archetype of Puer aeternus
El retrato de Dorian Gray: una posible análisis junguiana a partir del arquetipo de Puer aeternus
Paulo Ferreira Bonfatti
Psicólogo clínico de orientação junguiana e professor do CESJF, possui o Título de Especialista em Psicologia Clínica outorgado pelo CRP 04, Especialista em Psicologia Junguiana pelo Instituto Junguiano do Rio de Janeiro, Especialista e Mestre em Ciência da Religião pela UFJF e Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-Rio
RESUMO
O objetivo deste artigo é contribuir para a compreensão da dinâmica psicológica de Dorian Gray, protagonista do romance O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, a partir da teoria junguiana. Na trama da obra, tenciona-se depreender esse personagem com base no conceito do arquétipo do Puer aeternus - entendido como o adulto que quer ser uma eterna criança, permanecendo para sempre jovem e não querendo crescer. Essa perspectiva considera que o arquétipo do Puer e suas manifestações podem ser vistos não só na Psicologia Clínica contemporânea como também em diversas outras expressões arquetípicas, como a Literatura. Na análise do drama desse personagem, perceber-se-á o caráter inescapável de seu fim trágico, considerando-o capturado por essa dinâmica psíquica do Puer aeternus ao tentar negar a passagem do tempo, o envelhecimento, o amadurecimento, os estabelecimentos de vínculos afetivos e suas relações com o mundo.
Palavras-chave: Psicologia junguiana. Puer aeternus. Dorian Gray. Literatura. Oscar Wilde.
ABSTRACT
The purpose of this article is to contribute to the understanding of the psychological dynamics of Dorian Gray, protagonist of Oscar Wilde 's novel The picture of Dorian Gray from Jungian theory. Within the plot of the work, it is intended to deduce this character from the concept of the archetype of Puer aeternus - understood as the adult who wants to be an eternal child, remaining forever young and not wanting to grow up. This perspective considers that the Puer archetype and its manifestations can be seen not only in contemporary clinical psychology but also in several other archetypal expressions such as literature. In the analysis of the drama of this character will be perceived as being inescapable from its tragic end, considering it captured by this psychic dynamics of Puer aeternus in trying to deny the passage of time, aging, maturation, establishments of affective bonds and their relations with the world.
Keywords: Jungian Psychology. Puer aeternus. Dorian Gray. Literature. Oscar Wilde.
RESUMEN
El propósito de este artículo es contribuir a la comprensión de la dinámica psicológica de Dorian Gray, protagonista de la novela de Oscar Wilde El retrato de Dorian Gray a partir de la teoría junguiana. Dentro de la trama de la obra, se pretende entender a este personaje a partir del concepto del arquetipo Puer aeternus, entendido como el adulto que quiere ser un niño eterno, permanecer siempre joven y no querer crecer. Esta perspectiva considera que el arquetipo de Puer y sus manifestaciones pueden verse no solo en la psicología clínica contemporánea, sino también en varias otras expresiones arquetípicas como la literatura. En el análisis del drama de este personaje se percibirá como ineludible de su trágico final, considerándolo capturado por esta dinámica psíquica de Puer aeternus al tratar de negar el paso del tiempo, el envejecimiento, la maduración, los establecimientos de vínculos afectivos y sus relaciones con el mundo.
Palabras clave: Psicología jungiana. Puer aeternus. Dorian Gray. Literatura. Oscar Wilde.
Introdução
Youth's like diamonds in the sun,
And diamonds are forever[...]
Forever young
I want to be forever young
Do you really want to live forever
Forever, and ever?
(Marian Gold, Bernhard Lloyd, Frank Mertens)
Conceito basilar na teoria junguiana, a concepção de arquétipos aponta que eles seriam padrões psíquicos herdados de estruturação, uma predisposição inerente para a elaboração de imagens paralelas, de estruturas semelhantes e universais da psique (Bonfatti, Nogueira, Telles & Souza, 2018).
Jung aponta que o arquétipo se manifesta em formatos semelhantes em diversos locais, períodos, culturas, sonhos e diversas outras expressões da psique - segundo ele, essas expressões seriam as imagens arquetípicas (Jung, 2000). A ideia de arquétipo remete a outro conceito junguiano, que é o de inconsciente coletivo - um substrato psíquico comum a toda a humanidade. Assim sendo, por essas características, a "[...] exploração do conceito de arquétipo e suas manifestações possui grande valor compreensivo não só na clínica, como também nas mitologias, na filosofia, nas religiões e na arte - espaços onde podemos encontrar suas manifestações [...]" (Bonfatti, Nogueira, Telles & Souza, 2018, p. 545).
Segundo Samuels, Shorter e Plaut (1988, p. 38), em tese, "[...] poderia existir qualquer número de arquétipos". Diante dessa incomensurabilidade de arquétipos, a proposta deste artigo é se dedicar a um específico: o arquétipo do Puer aeternus - o eterno jovem -, que, num dos aspectos multifacetados e peculiares de sua dinâmica psíquica, busca permanecer eternamente numa juvenilidade, objetivando, assim, evitar o crescimento.
Como arquétipo, a dinâmica do Puer aeternus pode ser encontrada em diversas instâncias. Na prática da clínica psicológica, por exemplo, o Puer pode ser observado em pessoas que procuram, incansável e literalmente, infindáveis cirurgias plásticas e tratamentos conhecidos como anti-aging, para uma possível paralisação do tempo em seus corpos. Isso sem considerar aqueles que não perduram e nem se aprofundam ou se comprometem nas relações afetivas, nos estudos ou em seus trabalhos, mantendo-se em situações de constante superficialidade e evitação de envolvimentos.
Em uma perspectiva arquetípica, além da Psicologia Clínica, podemos observar o Puer na mitologia. Nesse sentido, James Hillman (1998e) procura identificar, compreender e problematizar as questões do Puer em diversas passagens com Ulisses, Dioniso, Cristo, Mercúrio, Átis, Eros, Horo, Faetonte, Édipo e tantos outros.
Também na arte, considerando-a como uma das formas de expressão psíquica (Jung, 1987), podemos, da mesma maneira, observar o tema do Puer se manifestando em diversas expressões, sendo estas, inclusive, objeto de reflexões psicológicas. Marie-Louise von Franz (1992), por exemplo, se dedica a analisar o Puer tanto no livro O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry (2009), quanto no de Bruno Goetz (1995), Das Reich ohne Raum - obra pouco conhecida no Brasil, cuja tradução de Franz é apresentada com o título O reino sem espaço. De forma análoga, podemos perceber o Puer no clássico personagem de Peter Pan que não queria crescer, morava na "Terra do Nunca" com os "meninos perdidos", não tinha sombra e sempre era alegre e aventureiro (Barrie, 2012). Também identificamos a manifestação desse arquétipo no personagem de Mozart, inconsequente e imaturo, mas extremamente criativo, diante de um senex (velho) e austero, prosaico e desimaginoso como o personagem de Salieri, no filme Amadeus, de Milos Forman (1984).
Acompanhando essa concepção das manifestações dos arquétipos em diversas instâncias, o que se pretende com este breve trabalho é tentar construir uma contribuição de uma possível compreensão da dinâmica psicológica junguiana de Dorian Gray, personagem principal da obra O retrato de Dorian Gray, publicada em 1890, único romance do escritor britânico do século XIX, Oscar Wilde (Wilde, 1969). Nesse sentido, tenciona-se compreender a psicologia de seu protagonista a partir do conceito do arquétipo do Puer aeternus - entendendo-o numa dinâmica psíquica que busca ser uma eterna criança, negando seu crescimento e buscando permanecer para sempre jovem. Nessa tentativa de compreensão do drama do personagem, entender-se-á que Dorian Gray não poderia escapar de seu fim trágico, haja vista a captura pela dinâmica arquetípica do Puer aeternus, ao tentar negar a passagem do tempo, o envelhecimento, o amadurecimento, os estabelecimentos de vínculos afetivos e seus relacionamentos com o mundo.
O arquétipo do Puer aeternus na Psicologia junguiana - breves comentários
Na Psicologia junguiana, encontramos diversas passagens que se dedicam ao Puer aeternus, o eterno jovem. São muitos os autores que citam e se dedicam ao tema e, sem querer esgotá-los, apontamos, ilustrativamente, alguns em que se podem depreender perspectivas distintas e complementares acerca do Puer.
Pieri (2002, p. 415) assevera que, para o ponto de vista redutivo, o Puer tem uma
dificuldade de separar-se dos lugares e figuras da origem e, portanto, pela dificuldade de existir no lugar em que o indivíduo já se encontra verdadeiramente, mas também por vivacidade e uma impaciência, que acaba por levar em direção a uma utopia abstrata, produzindo no indivíduo reiterados desejos de iniciar e jamais introduzindo-o em verdadeiro e próprio início.
Já do ponto de vista construtivo, o mesmo autor afirma que "[...] 'o eterno adolescente' indica, em sentido contrário, a verificação da verdadeira disponibilidade para o início e, portanto, a possibilidade de renovação" (Pieri, 2002, p. 415).
Samuels, Shorter e Plaut (1988) lembram também uma polaridade em que, por um lado, o Puer está ligado a uma perspectiva neurótica, idealista, com dificuldades de se estabelecer - sendo impaciente, imaginativo e desligado das origens. Por outro, pode estar "[...] em evolução perpétua, de se redimir pela inocência, de visualizar novos começos [...] um símbolo para a possibilidade de reconciliar opostos" (p. 181).
Encontramos no próprio Jung, já em Símbolos da Transformação (2017), o Puer sendo apresentado em diversas passagens associado à questão materna, que é uma constante em sua percepção, mas também como possibilidade de renovação e renascimento, como se pode observar em Mysterium Coniunctionis (2015). Ademais, em Tipos psicológicos (1991), é apresentado também como renascimento e restauração capaz de unir os opostos. Outrossim, em Os arquétipos e o inconsciente coletivo (2000), o percebemos na psicologia do arquétipo materno, da criança e do trickster. Em Resposta a Jó (1983), é visto como sempre mutável, não necessariamente, numa perspectiva de inconsciência, mas também como uma potencialidade e nascido da sabedoria. Conjuntamente, como Dionísio extático e agitado em Aspectos do drama contemporâneo (2012) ou como o espírito mercurius em Estudos alquímicos (2016).
Dois outros autores junguianos que também se dedicaram à questão do Puer aeternus foram Marie-Louise von Franz e James Hillman.
Franz, em sua obra Puer aeternus: a luta do adulto contra o paraíso da infância (1992), apresenta suas ideias a partir de uma série de 12 palestras no inverno entre 1959-1960 no C. G. Jung Institute de Zurique. Sua perspectiva é também de um Puer ligado à questão materna e se aproxima de um viés patológico que inviabiliza a autorrealização e degreda a personalidade Puer a uma concepção imatura e superficial em todas as instâncias da vida.
Hillman tem alguns trabalhos acerca da questão do Puer e seis deles foram coligidos no livro O livro do Puer: ensaios sobre o arquétipo do Puer aeternus (1998e). Antes da publicação desse livro de compilações, Hillman publicou "A grande mãe, seu filho, seu herói e o Puer", no livro organizado por Patricia Berry chamado Pais e mães: seis estudos sobre o fundamento arquetípico da psicologia da família (1979). Nesse artigo, Hillman escreve inicialmente uma "Apologia ao leitor", dizendo que decidiu publicá-lo antecipadamente a um outro livro seu, à época ainda em fase de elaboração,1 por uma "razão urgente". Para Hillman (1979, p. 98), essa urgência se configurou devido ao fato de que
A ideia do "complexo materno" ainda predomina na análise dos homens jovens. É ainda considerada o fundamento do "problema do Puer" e do "desenvolvimento do ego". Creio que se trata de um terrível engano, com conseqüências individuais e coletivas. Ver apenas neurose do complexo materno no fenômeno do Puer significa tornar o espírito doente e ignorar as oportunidades de movimento a que o espírito incita na psique coletiva através de sua incarnação [sic] nos homens dominados pelo Puer.
Vale ressaltar nessa passagem que Hillman não nega que possa haver a questão do complexo materno,2 mas sim que o Puer não ficaria circunscrito apenas a essa questão. Isso sem dizer que ele, ao apontar as potencialidades do Puer em outro texto, não nega a existência de um Puer negativo tão prejudicial quanto um Senex negativo (Hillman, 1998f). De mais a mais, esse autor também é pródigo em amplificar as possibilidades e potencialidades que o Puer tem além da questão materna (Hillman, 1998f).
De fato, o que se pode perceber é que, como todo arquétipo, há sempre uma miríade de ramificações. Com base nessas possibilidades se tentará propor algumas reflexões acerca do personagem Dorian Gray no romance de Wilde numa perspectiva do Puer.
A obra, o artista e o Puer
Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.
Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.
Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!
O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.
(Charles Baudelaire, O albatroz)
Em O retrato de Dorian Gray (Wilde, 1969), obra tantas vezes traduzida e produzida de forma fílmica,3 Dorian Gray é um homem belo e jovem de 20 anos que vivia na Inglaterra aristocrática e hedonista do século XIX e que teve o auge de sua beleza física imortalizada nas tintas de um quadro para o qual fora modelo. Diante de sua bela imagem gravada e imortalizada na tela, Dorian fica horrorizado com a ideia de envelhecer e perder o frescor e beleza de sua juventude registrada na eternidade pelo pintor. Tentando evitar o devir inexorável do envelhecimento, faz um ingênuo pacto para que a sua imagem retratada na tela envelheça enquanto Dorian não - permaneceria jovem e belo para sempre (Wilde, 1969).
Evidentemente, a perspectiva implacável que se apresentará é que esse arranjo enigmático para que o tempo não passe para seu corpo terá um preço penoso para sua alma. Uma cobrança que será traduzida numa dinâmica psíquica que emergirá a partir da própria Sombra - conceito junguiano compreendido como um lado desconhecido e muitas vezes aterrorizante da psique para o ego quando não assimilado (Pieri, 2002). "Todo indivíduo é acompanhado por uma sombra, e quanto menos ela estiver incorporada à sua vida consciente, tanto mais escura [perigosa] e espessa ela se tornará [...] isolada da consciência" (Jung, 1985, p. 75). Observa-se que, quando não há essa assimilação, a Sombra se torna autônoma, não é integrada e se manifesta patológica e destrutivamente na dinâmica psíquica. Esse evento psíquico, no direcionamento a ser proposto, ocorre com o protagonista do romance de Wilde.
Quando Dorian Gray se deparou com seu retrato pronto, disse:
- Que tristeza! - murmurou Dorian Gray, de olhos fixos na própria imagem. - Que tristeza! Ficarei velho, horrível, medonho. Mas este retrato continuará sempre jovem. Nunca será mais velho do que neste determinado dia de junho... Ah, se pudesse dar-se o contrário! Se eu permanecesse moço e o retrato envelhecesse! Para isso... para isso... eu daria tudo. É verdade; não há no mundo o que eu não desse. Daria minha própria alma! (Wilde, 1969, pp. 31-32)
A partir desse pacto, ainda por se revelar ao próprio Dorian, temos o desenrolar da história, pois, sequencialmente, Dorian apaixona-se rapidamente por Sibyl Vane, uma jovem artista que vira, numa noite, apresentando-se num pequeno e modesto teatro. Então lhe pede em casamento. A moça, de origem humilde, fica lisonjeada e encantada. Sua mãe e irmão preocupam-se com o imediatismo da proposta e com as diferenças sociais entre os dois. Dorian convida seus dois amigos, Basil e Lorde Henry Wotton, para assistir a uma das apresentações da moça, mas percebe que, indo além do véu da paixão, a moça não só representa muito mal naquela noite como também é uma péssima atriz. Dorian fica totalmente desapontado. Seus amigos, antes de irem embora, procuram consolá-lo salientando a beleza da jovem. Dorian vai até o camarim ao final daquela apresentação. Sibyl está feliz e diz-lhe que, daquele momento em diante, só viverá para o amor de Dorian e que não mais seguirá a vida de atriz. Todavia, Dorian não está mais apaixonado por Sibyl e assim a humilha e despreza. Vira-lhe as costas para nunca mais voltar, deixando-a abandonada, menosprezada, atônita e ferida (Wilde, 1969).
Ao voltar para casa, muito aborrecido por seu desapontamento com a idealização não correspondida por Sibyl, Dorian vai admirar seu retrato, em busca de uma espécie de autoconsolo, e fica impactado ao perceber que o quadro havia se alterado. Sutilmente, seu belo sorriso pintado não era mais o mesmo e apontava um traço de cinismo e maldade. Dorian assim entende, pela primeira vez, que o quadro refletia a parte sombria de sua alma. Para contornar tal situação, ele deveria desculpar-se com Sibyl e assim o quadro voltaria ao normal. Entretanto, era tarde demais: Sibyl, arrasada com o desprezo de Dorian, havia cometido suicídio. A partir de então, Dorian compreende que o pacto havia se concretizado e, ao tomar consciência de que seria eternamente imortal, jovem e belo, passa a viver tudo que lhe era ou não permitido moralmente. Começa a ter uma conduta fria e interesseira com todos à sua volta. Induz pessoas a atos desprezíveis e criminosos, ficando sempre impune, pois nunca é descoberto ou visto. Esfaqueia e assassina seu amigo Basil quando este descobre o que acontece entre Dorian e o quadro. Leva outro amigo ao suicídio após induzi-lo a desfazer-se do cadáver de Basil. Diante dessas atrocidades, nada acontece aparentemente a Dorian, pois apenas sua imagem no quadro se altera e registra suas monstruosidades, transformando-se paulatinamente numa figura aterrorizante (Wilde, 1969).
Dorian vai levando assim sua vida, e muitos anos se passam desde o sinistro pacto com o quadro. Somente aos 40 anos, bastante angustiado com o vazio e tédio de sua vida eterna, Dorian decide buscar a cura de sua alma sem sentido. Pretende levar uma vida melhor, sem magoar quem quer que seja e por isso não se aproveita de uma jovem e ingênua camponesa como sempre fizera com as pessoas. Refletindo sobre si mesmo, se dá conta de que sua soberba o levou àquela vida de perversidades. Atordoado, amaldiçoa sua beleza, sua mocidade eterna e seu pacto, pensando que sem eles sua vida seria outra bem melhor. O que mais o atormenta é a morte, mesmo em vida, da sua alma. Contrito com tudo o que se deparava de si mesmo, Dorian lembra-se de que havia escondido o quadro num quarto desocupado e fechado que fora de seu avô e no qual, há muitos anos, não entrava. Vai até esse quarto, olha o quadro depois de tanto tempo e grita de terror diante da horrífica imagem que estava registrada na tela. Apesar de suas tentativas de realizar boas intenções, o quadro não se alterara para melhor como esperava. Pior: a imagem era um terrível monstro que se apresentava vivo na pintura a gotejar sangue e cada vez mais horrendo (Wilde, 1969).
Então Dorian percebe claramente a realidade: somente por vaidade, mas não por verdadeira intencionalidade, ele não seduziu a camponesa. Ao mesmo tempo, sua hipocrisia colocou-lhe no rosto apenas uma máscara da bondade e compaixão. Ele sabia que o único registro e prova viva de suas ações, de seu vil caráter, de sua consciência, era o quadro. Então, resolve destruí-lo. E, com a mesma faca com que matara o artista que o pintara, trespassa o retrato e morre (Wilde, 1969).
Após essa brevíssima síntese do romance de Oscar Wilde, tentaremos examiná-lo à luz da Psicologia junguiana e, especialmente, a partir da dinâmica do Puer aeternus.
Como apontou-se anteriormente, são muitas as possíveis ramificações do Puer. Marie-Louise von Franz, em seu livro Puer aeternus: a luta do adulto contra o paraíso da infância, afirma que o problema central do Puer, na dinâmica individual, está relacionado à questão materna (Franz, 1992). No homem Puer, esse complexo cria uma dependência, fazendo-o permanecer eternamente numa dimensão infantil em que acaba superficializando todas as suas relações.
Segundo Franz (1992), arquetipicamente, a imagem da mãe perfeita, que tudo dá, sem nenhum defeito, assume os aspectos da Deusa Deméter dos Mistérios de Elêusis onde o Deus-criança era cultuado. Nas relações afetivas, cada vez que um homem tomado pelo Puer se apaixona por uma mulher e descobre que ela é um ser humano comum, a paixão desaparece e, inevitavelmente, procurará outra mulher para projetar a imagem buscada, repetindo sempre a mesma história. Sonha sempre com uma mulher maternal que o tomará nos seus braços e realizará todos os seus desejos (Franz, 1992).
Numa perspectiva junguiana (Jung, 1987), a criação artística está intimamente ligada à dinâmica psíquica do artista. Assim, a obra de um escritor "[...] diz respeito a seu próprio problema, pois, de outro modo, não haveria inspiração (Franz, 1992, p. 58). Em O retrato de Dorian Gray, Wilde sugere que criador e criatura estão vinculados a uma dinâmica materna.
Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde, ou Oscar Wilde, nasceu na Irlanda em 1854. Foi escritor, poeta e dramaturgo bem popular de sua época em Londres. Hoje ele é lembrado por suas peças e pelas circunstâncias de sua prisão numa Inglaterra que sofria forte influência vitoriana, que acabou causando direta ou indiretamente sua morte precoce (Schiffer, 2011).
Sua mãe, mesmo sendo esnobe, megalomaníaca, narcisista e andar pela casa como uma diva do teatro, era carinhosa e afetiva e sempre teve enorme influência em sua vida. Desejava ter uma filha e, mesmo sendo algo aceito na alta sociedade à época, curiosamente vestia o pequeno Oscar com roupas femininas (Schiffer, 2011). Já moço tornou-se gracioso e alto e, sendo excêntrico, atraiu a atenção de todos devido ao seu modo de falar e vestir como um Dândi. Quando foi para Oxford, criou um estilo sofisticado nas maneiras de se tratar; chamou tanto a atenção que logo passou a ser imitado. Falava e gesticulava afetadamente, era brilhante ao expor suas ideias e um gênio criativo na arte de escrever. No auge de sua carreira, em 1895, foi preso e condenado a dois anos por ser homossexual. Perdeu tudo e, enquanto cumpria pena, foi arrasado pela imprensa, abandonado pelos amigos; suas peças foram retiradas dos palcos; seus bens levados a leilão, e pior ainda: teve que lidar com a morte da mãe, que ele amava profundamente e à qual era bastante ligado. Mais tarde, sua mulher pediu separação e ele também perdeu o direito de educar seus filhos que, inclusive, mudaram de nome. Em 1900, com apenas 46 anos, morreu em Paris num autoexílio solitário com meningite, alcoolismo e sífilis (Schiffer, 2011).
O retrato de Dorian Gray é o único romance de Wilde (1969). Nele o autor dá forma e força a dois personagens: Dorian Gray, o Puer aeternus, e Lord Henry Wotton, o mais velho, cínico e que em nada crê - a enantiodromia que se apresenta como o Senex, o senil, o velho enrijecido a favor da eterna ausência de mudanças (Bernardi, 2008). O escritor concilia nos dois os aspectos opostos: de um lado, o paraíso das fantasias da infância; de outro, a vida sem essas fantasias e o sentimento de que a vida perdeu o seu valor sem elas, ou seja, a desilusão (Franz, 1992).
Segundo Franz, o Puer "[...] tem um medo terrível de se prender, de entrar no tempo e no espaço, totalmente, e ser o ser humano específico que ele é" (Franz, 1992, p. 11). Hillman também aponta que "O mundo horizontal, o contínuo do tempo/espaço, a que chamamos de 'realidade', não é seu mundo" (Hillman, 1998f, p. 38). Dorian teme a velhice, o tempo é o comprometimento com o viver a vida, comprometer é se prender (Franz, 1992). Ele se apaixona pelo quadro, inveja-o, gostaria de sê-lo, de ser para sempre jovem, não envelhecer. Diz que se matará antes disso acontecer. Venderia até sua alma para ser física e eternamente como o quadro no dia em que foi finalizado, ao passo que este envelheceria (Wilde, 1969).
Viu-se que antes de Dorian perceber que seu pacto havia sido consumado, apaixona-se por Sibyl Vane, mas não por ela e, sim, por seus papéis de atriz. Fica encantado com aquele amor ideal e artificial de uma personagem, mas, quando Sibyl revela não ser tão boa atriz e se propõe a não mais representar o amor, mas a vivê-lo com Dorian, ele se decepciona, sentindo que ela "[...] matou [o seu amor, que ela é] superficial e estúpida [e que, agora, não estimula nem sua] imaginação [ou sua] curiosidade. [Nas palavras de Dorian, ela havia arruinado o] romance da [sua] vida [...]" (Wilde, 1969, pp. 97-98). Diante dessa ruptura da imagem idealizada de amor, Dorian simplesmente despreza e abandona Sibyl, que acaba se suicidando por isso.
Franz aponta a dificuldade do Puer de estabelecer vínculos amorosos (Franz, 1992), pois Eros está preso a uma dinâmica psíquica materna e às projeções dessa mesma dinâmica. Sua facilidade de sair das relações, sem nenhuma "transição", é de se notar (Franz, 1992, p. 61), bem como sua instabilidade ligada à dificuldade de lidar com a anima (Franz, 1992) - aspecto feminino da personalidade masculina a que o Puer precisa se ater (Hillman, 1998f). Hillman, por sua vez, aponta que o Puer, em uma dinâmica narcísica, não tem "[...] nenhuma necessidade de relacionamento ou da mulher, a menos que seja alguma puella [menina] mágica ou alguma figura maternal que possa admiravelmente refletir" (Hillman, 1998f, p. 40) a si mesmo. O Puer é autossuficiente, já perfeito em si mesmo, sem precisar investir ou desenvolver. Em suas relações, ele é frio e distante (Hillman, 1998f).
Depois da morte de sua paixão que desconstruiu sua idealização, Dorian descobre que seu pacto com o retrato havia se concretizado. O quadro envelheceria, Dorian não. Sente-se eternamente belo e jovem e, como diz Wilde em seu texto,
O quadro seria para ele o mais mágico dos espelhos. Assim, como lhe revelara seu corpo, iria revelar-lhe a alma. E, quando sobre ele caísse o inverno, Dorian ainda estaria naquele ponto em que a primavera estremece à chegada do verão. Quando o sangue desaparece do rosto do retrato, ali deixando pálida máscara de giz, com olhos plúmbeos, ele ainda conservaria o encanto da adolescência. Não feneceria uma só flor de sua beleza. Não se enfraqueceria uma única pulsação de sua vida. Assim como os deuses da Grécia, ele seria forte, e ágil, e alegre. Que importa o que acontecesse à colorida imagem da tela? Ele estaria seguro. Era isso o importante. (Wilde, 1969, p. 116)
Sim, com seu pacto, Dorian seria um deus grego, imortal e nunca envelheceria. "Porque a eternidade é imutável, aquilo que é governado apenas pelo Puer não envelhece. Também não tem nenhuma face orgânica de maturação que mostre a mordida do tempo" (Hillman, 1998f, p. 41). Certa vez, numa perspectiva autoerótica (Hillman, 1998b) de uma "[...] Pueril imitação de Narciso, ele beijara, ou fingira beijar, os lábios pintados que agora tão cruelmente lhe sorriam [em seu retrato]" (Wilde, 1969, p. 115). A sombra é escondida nos pecados da tela, ela será ocultada e envelhecida, mas sempre teria vida, ao passo que Dorian seria eternamente jovem, belo e com "um frescor eterno" (Hillman, 1998f, p. 42). Nas palavras de Wilde (1969, p. 128): "O que os vermes eram para o cadáver, seus pecados seriam para a imagem pintada na tela. Arruinar-lhe-iam a beleza e lhe destruiriam a graça. Iriam profaná-la, tornando-a vergonhosa. E, no entanto, ela ainda viveria. Sempre teria vida".
Para Hillman (1998b, p. 149), o corpo do Puer é um corpo sem feridas, sem cicatrizes, puro, imaculado, sem danos e, consequentemente, sem nenhum tipo de iniciação ou, muito menos, "[...] decomposição de partes decadentes [...]".
Ser ferido é ser mortal e, de acordo, ainda, com Hillman (1998bpp. 147-148),
O homem puer, psiquicamente falando, esconde sua ferida, uma vez que ela revela o segredo que enfraquece essa forma de consciência [...] a ferida é a nossa mortalidade [...]. A limitação através da ferida leva [...] à consciência [...]. Essa conscientização mortal, ou conscientização do morrer, pode curar a ferida, pois a ferida não é mais tão necessária. Nesse sentido, uma ferida é a cura da consciência do puer e, à medida que a cura ocorre, o curador ferido pode começar a constelar-se.
Todavia, tudo aponta que Dorian não vivencia, toma consciência, permite ou considera suas feridas. Ele não tem nenhuma cicatriz em seu corpo, mas suas feridas estão perpetuamente abertas e ignoradas no quadro. Seu corpo permanece eternamente imaculado e sua imagem pintada na tela que é entregue aos vermes da alma.
Dorian tinha tudo do seu modo e sob seu controle, ou pelo menos achava que tinha. No entanto, entrar em contato com o processo de crescimento psicológico, chamado por Jung (1986) de individuação, acarreta um sofrimento, pois somos roubados da capacidade de organizar nossa vida de acordo com nossa vontade (Franz, 1992). Dorian recusou dar curso da individuação em sua vida e isolou o quadro, escondendo-o: "O Puer aeternus tenta o tempo todo manter-se à margem da vida, não se entrega, para não ser surpreendido por situações desagradáveis" (Franz, 1992, p. 136), ou mesmo por não querer se prender a nada. De acordo também com Hillman, o Puer não se atém ao "tempo, espaço e causalidade" (1998c, p. 173) e Dorian, com seu pacto, vive justamente nessa dimensão.
Dorian guardou o quadro numa sala onde deveria esconder o curioso segredo de sua vida e ocultar sua alma aos olhos do mundo e de si mesmo. O texto diz que
[...] fazia mais de quatro anos que ali não entrava. Usara-a, a princípio, como sala de brinquedo, em criança, e depois como sala de estudo. Era um aposento grande, bem proporcionado, construído especialmente pelo último Lord Kelso [avô de Dorian] para ser usado por seu neto. Ao qual, devido à sua estranha semelhança com a mãe, e por outras razões, ele sempre odiara e desejara conservar a distância. Pareceu a Dorian que pouco tinha mudado [...] onde ele tantas vezes se escondera em criança [...], como se lembrava bem de tudo isso! Cada momento de sua infância solitária lhe voltou à lembrança. Reviu a pureza de sua vida de adolescente [...] onde deveria esconder o retrato. (Wilde, 1969, p. 131)
Essa passagem do romance nos remete a pontos bastante significativos sobre a formação da personalidade de Dorian: sua mãe, diz o livro, era linda, romântica, extraordinária, como todas as mulheres da família, ao passo que "[...] os homens eram uns coitados [...]" (Wilde, 1969, p. 40). Todos se apaixonavam por ela, mas preferiu um rapaz pobre, o qual seu pai, o avô de Dorian, não aceitou de modo algum, a ponto de mandar matá-lo meses depois. A filha grávida, viúva e desamparada, voltou para a casa do pai, mas ela nunca mais lhe dirigiu a palavra e, um ano depois, morreu, deixando Dorian ainda bebê, recém-nascido no meio da dor e filho do amor e da morte. Foi criado por um velho empedernido e abastado que o via como lembrança viva do ódio que sentia pela filha (Wilde, 1969).
Franz fala das "crianças negligenciadas", os órfãos de camadas altas "[...] que tiveram todas as carências, exceto dinheiro." (Franz, 1992, p. 45). Que crescem rapidamente, mas em que podemos ver suas expressões falsamente amadurecidas. Não elaboraram suas "[...] ilusões infantis, mas apenas as reprimiram [conjuntamente ao] desejo de ter uma mãe que as amassem" (Franz, 1992, p. 46) as acompanham para sempre.
A história do nascimento e da infância de Dorian é pungente e significativa, e a questão materna é uma, não a única, das chaves de leitura plausível. Ele poderia esconder o quadro em qualquer lugar de sua mansão herdada do avô, mas escolheu justamente sua sala da infância, onde ficava isolado e escondido do mundo de forma atemporal. Lá, ele tudo podia, no meio de seus brinquedos e fantasias. Lá era poderoso e invencível, lá era a sua Pasárgada (Bandeira, 2007), lá era o paraíso e lá deixou o seu retrato pintado.
O Puer vive na fantasia e, para se entregar à realidade, terá desilusões e, no fim de tudo, encontrará a morte. Se o ego aceitar a vida, também aceitará a morte no sentido mais profundo da palavra e é isso que o Puer não deseja. "Ele se recusa a aceitar que é mortal e é por isso que recusa a realidade, pois esta lhe traz a consciência de sua impotência e finitude." (Franz, 1992, p. 178).
Uma das possibilidades de transformação do Puer é o trabalho, sem o qual ele não cruza a fronteira entre a fantasia e a ação (Franz, 1992). Mas os deuses não trabalham e isso é insuportável para o Puer. Dorian vivia das rendas de uma grande herança que recebera e nunca precisou lutar por nada, pois também já tinha tudo. E, percebendo sua imortalidade, começa a experimentar de tudo sem a nada se apegar ou se prender. De tempos em tempos, interessou-se por tapetes, coleções, religiões, teorias, perfumes, música, joias, bordados... Na descrição do autor: "Tinha a extraordinária faculdade de absorver [...] por aquilo a que se dedicasse" (Wilde, 1969, p. 147). Ia como um beija-flor, experimentando flores aqui e ali, e, como um bom Puer, não se prendia a nada, pois tudo lhe causava enfado e impaciência (Franz, 1992). Hillman (1998c) observa que o Puer está sempre interessado numa novidade e tem um descaso com a normalidade (1998c), o que torna essa sensibilidade do Puer algo pseudopsicológico, sem alma. Segundo esse autor, essa
[...] atitude do puer mostra [, superficialmente, um] ponto de vista estético: o mundo como imagens belas ou como vasto cenário. A vida se torna literatura, aventura do intelecto ou da ciência, da religião ou da ação, mas sempre irrefletida e não-relacionada e, portanto, não-psicológica. [...] com fome oral e fantasias infantis de onipotência [...]. (Hillman, 1998f, p. 41)
Assim, o Puer muitas vezes inspira, transborda, cria, imagina e, por isso, voa como o altaneiro e belo albatroz (Baudelaire, 2012) na imensidão do espaço de possibilidades sem se deter a nenhum pedaço de terra firme. Todavia, quando lhe é inevitável pousar na enfadonha tangibilidade do dia a dia, torna-se um espírito claudicante sobre a terra (Hillman, 1998b).
Apontou-se que um dos problemas do Puer é a sua relação com a sombra - um lado obscuro da personalidade -, pois ela se apresenta agressiva e destrutiva quando não assimilada (Franz, 1992). Dorian começa a ver o irmão de Sibyl em todos os lugares com o intuito de matá-lo. Enquanto isso, cada vez mais, o quadro vai se transformando em algo terrível e assustador, tornando sua vida insuportável.
Dorian diz no livro: "O infeliz camponês que morreu está melhor do que eu. Não tenho medo da morte" (Wilde, 1969, p. 219). E, mais adiante, também afirma:
Eu gostaria de poder amar, exclamou Dorian Gray, com profunda tristeza na voz - mas parece que perdi a capacidade de sentir paixão e esqueci o desejo. Estou por demais concentrado em mim mesmo. Minha própria personalidade tornou-se um fardo para mim. Quero escapar, fugir, esquecer. (Wilde, 1969, p. 220)
Aqui, Eros foi novamente negligenciado, a vida de Dorian é a vida do Puer. É "[...] a criança que existe na pessoa adulta [, é ela a] fonte de sofrimento; é a parte que sofre, pois a parte adulta pode aceitar a vida como ela é [...]" (Franz, 1992, p. 86), não sofre tanto. E como Lord Henry Wotton diz: "De que adianta a um homem ganhar o mundo, se viver a perder a [...] própria alma?" (Wilde, 1969, p. 230). Nada pesava a consciência de Dorian, mas, diz o texto: "A morte viva de sua alma era o que o perturbava" (Wilde, 1969, p. 237).
Assim, Dorian começava a pensar que a morte seria um alívio. Todavia, por outro lado, a morte para o Puer "[...] não importa, porque o puer dá a sensação de que pode voltar outra hora, começar de novo [...] preso num estado atemporal, inocente dos anos que passam, em desacordo com o tempo. Seu vagar é [...] sem ligações, não como uma odisseia da experiência" (Hillman, 1998f, pp. 38-39).
Assim, ao final, o texto relata que Dorian, já não suportando mais, "Mataria o passado e, depois que este morresse, ele estaria livre. Mataria aquela monstruosa vida da alma; sem suas hediondas advertências, conheceria a paz. Apanhou a arma [uma faca] e apunhalou várias vezes a tela" (Wilde, 1969, p. 239).
E o texto continua descrevendo a última cena do romance:
Quando [os empregados] entraram, viram, dependurado na parede; um magnífico retrato do patrão, tal qual o haviam visto da última vez, em todo o esplendor de sua mocidade e beleza. Caído no chão estava um morto, em traje de noite, com uma faca soterrada no coração. Murcho, enrugado; rosto repulsivo. Somente depois de lhe examinaram os anéis, foi que o reconheceram. (Wilde, 1969, p. 240)
Hillman (1998d, p. 195) observa que, muitas vezes, o Puer "[...] aparece como estilo específico de adolescência prolongada, chegando até os quarenta anos - e às vezes terminando com a morte". Porém, segundo ainda esse autor, a morte para o puer "[...] torna-se não mais terror, mas conforto natural e bem acolhido [...]" (Hillman, 1998a, p. 77) e uma possível autodestruição ocorre porque lhe falta reflexão psíquica, lidando com a morte como uma busca de cura (1998a).
Hillman (1998a) aponta também o aspecto do Puer, da eterna e esperançosa possibilidade de mudança e transformação - uma criança é sempre uma promessa. Von Franz (1992, p. 313), do mesmo modo, afirma que o Puer representa uma "[...] possibilidade de renovação criativa, de uma primeira conscientização do self, mas, por causa de uma certa fraqueza do ego e uma diferenciação insuficiente ou falha da anima, essas figuras de Puer tornam um passaporte para a morte, para a loucura ou para ambas".
A morte de Dorian, que aponta um suicídio, remete-nos a outra obra de Hillman, Suicídio e alma (1993), em que a questão não é a busca de um juízo ético de valor contra ou a favor do suicídio, mas sim o que ele significa para a alma humana, para a psique.
A experiência da morte, diz Hillman (1993, p. 78), "[...] é necessária para separarmo-nos do fluxo coletivo da vida e descobrirmos a individualidade", e isso requer coragem. À medida que a individualidade cresce, cresce também a realidade da morte. A análise, o crescimento ou a individuação defrontam-se sempre com a morte, com qualquer tipo de morte e só a psique pode afirmar que sentido tem cada um desses tipos de morte.
Para Hillman (1993), experiência da morte é um requisito para a vida psíquica e a crise suicida é uma das maneiras de se experimentar a morte. Assim, devemos considerar o suicídio como uma tentativa de transformação da psique - uma tentativa de se concretizar no corpo aquilo que deveria ser simbolizado.
Em Dorian, o suicídio é uma tentativa literalizada de mudar de uma esfera psíquica para outra por meio da morte. Ela aparece a fim de dar lugar a uma transformação rápida, radical e concreta. A alma de Dorian lhe pedia para ser realizada e o único caminho possível que restou, diante de tantos medos de crescer e viver, foi o suicídio.
Vivo ou semivivo, Dorian era o eterno Puer, com medo de morrer e de se transformar. E, morrendo, buscou a tentativa de realização de sua alma.
Considerações finais
Reduzir uma obra de arte a uma perspectiva psicológica é um homicídio da alma e, certamente, não foi essa a intenção. Ademais, sabe-se que as possibilidades de análises psicológicas de uma obra literária são múltiplas, e buscar compreender o romance de Oscar Wilde à luz da teoria junguiana a partir do Puer aeternus é apenas mais uma. Assim sendo, não se tem a pretensão de esgotar nem a obra e, muito menos, a questão do Puer.
Tendo isso claro, o esforço empreendido de conduzir o leitor a essa possibilidade de análise objetivou trazer as também multiformes dificuldades e potencialidades do Puer. Apontou-se desde a possibilidade de renascimento, transformação, criatividade, renovação, união de opostos, reinvenção, recusa a tudo que seja ligado ao status quo estabelecido pelo senex até a permanência numa dinâmica materna, infantil, incestuosa, narcísica, nostálgica, incorruptível, imaculada, atemporal, autodestrutiva, amoral, transitória, autoerótica e vulnerável.
O que se vislumbrou como possibilidade analítica aqui presente foi que Dorian não conseguiu realizar e transcender simbolicamente sua transformação psíquica por meio das potencialidades "positivas" do Puer. Ao contrário disso, literalizou sua transformação e crescimento que fora tanto tempo negados e abarcados por uma dinâmica "negativa" ou patológica do Puer.
Por outro lado, diante dos incontornáveis acontecimentos apresentados no enredo do romance, o fim trágico do protagonista aponta aspectos significativos, pois sugere ser sua morte literalizada como saída única e plausível na busca de transformação de uma vida atemporal e terrível que não levava ao contato com sua sombra e, muito menos, ao seu crescimento psicológico.
Espera-se que esta tentativa de compreensão tenha aberto ao leitor não só horizontes para o diálogo entre a arte literária e a Psicologia junguiana, bem como uma maior possibilidade de entendimento da dinâmica do Puer - aspecto arquetípico e tão comum em nossa sociedade contemporânea.
Referências
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Recebido em: 7/8/2019
Aprovado em: 17/10/2019
1 Nesse artigo publicado inicialmente no livro organizado por Patrícia Berry (1979), Hillman não deixa claro qual livro futuro seria esse. Em seu O Livro do Puer: ensaios sobre o arquétipo do Puer aeternus.(1998e), no qual reencontramos o mesmo artigo com o mesmo título "A grande mãe, seu filho, seu herói e o Puer", não há nenhuma menção à publicação feita ao livro organizado por Berry.
2 Mesmo porque, em outros textos, Hillman (1998a, 1998f) aponta a possibilidade da questão materna presente à dinâmica psíquica do Puer, apesar de achar que não se deve seguir apenas "esse modo de pensar" (1998d, p. 186).
3 Segundo Toffoli (2013, p. 2), além de diversas versões para o teatro, desde 1910, foram produzidas dezenove adaptações para o cinema. "Em 1910, Dorian Grays Portræt foi dirigida pelo russo Axel Strøm; em 1913 por Phillips Smalley; em 1916, uma adaptação feita por Rowland Talbot foi dirigida por Fred W Durrant; em 1917 Das Bildnis de Dorian Gray foi dirigida por Richard Oswald; em 1918 Az Élet királya´ foi dirigida por Alfréd Deésy; em 1945 foi a famosa adaptação dirigida por Albert Lewin; em 1969 a Televisa produziu a telenovela El Retrato de Dorian Gray, dirigida por Ernesto Alonso; em 1970 Dorian Gray, filme conhecido como The Evils of Dorian Gray or The Secret of Dorian Gray, foi dirigido por Massimo Dallamano; em 1973 Glenn Jordan dirigiu uma versão feita para a televisão; em 1976 outra adaptação para a televisão foi dirigida por John Gorrie; em 1977 Le Portrait de Dorian Gray foi dirigida por Pierre Boutron; em 1983 outra versão para televisão intitulada The Sins of Dorian Gray foi dirigida por Tony Maylam; em 2001 Dorian, conhecida como Pact with the Devil, foi dirigida por Allan A Goldstein; em 2004 uma adaptação foi dirigida por Brendan Dougherty Russo e no mesmo ano por David Rosenbaum; em 2006 por Duncan Roy; em 2007 por Jon Cunningham; em 2009 por Jonathan Courtemanche e a última em 2009 por Oliver Parker".