Pesquisas e Práticas Psicossociais
ISSN 1809-8908
Interrogando o dispositivo de segurança na judicialização da vida: notas biopolíticas
Questioning the safety features on the legalization of life: biopolitics notes
Cuestionando las características de seguridad sobre la legalización de la vida: biopolítica notas
Flávia Cristina Silveira LemosI; Dolores GalindoII; Renata Vilela RodriguesIII
IPsicóloga (Unesp). Mestre em Psicologia (UFPA). Doutora em História (Unesp). Professora de Psicologia Social, associada II (UFPA). Bolsista de produtividade em pesquisa - PQ2-CNPQ
IIPsicóloga (UFPE). Mestre e Doutora em Psicologia Social (PUC-SP). Professora de Psicologia Social (UFMT)
IIIPsicóloga (UFMT). Mestre em Estudos da Cultura Contemporânea (UFMT)
RESUMO
O presente artigo objetiva analisar práticas de judicialização da saúde na atualidade como um dos efeitos da biopolítica contemporânea. A gestão de riscos e perigos é colocada no centro das encomendas pelo direito à saúde e dispara uma inflação judicial como pedido de segurança. Problematizar essa racionalidade produtora de biocidadanias por uma bioletigimidade é uma preocupação neste ensaio teórico. O Estado Democrático de Direito nasce com a emergência de uma sociedade de direitos e a extensão da Medicina Social como balizas da política da vida, pautada no governo da saúde, em prol do aumento de capacidades e desempenhos. Assim, a biopolítica passa a ser modulada pela produção da autonomia e do ativismo dos sujeitos biológicos. Esses biocidadãos seriam demandantes do acesso à saúde, ao exercício de capacidades e à possibilidade de escolher formas de viver.
Palavras-chave: Saúde. Biopolítica. Judicialização. Subjetividade. Capacidade.
ABSTRACT
This article aims to examine legalization of health practices in the present as one of the effects of contemporary biopolitics. The management of risks and dangers is placed in the center of the orders for the right to health and triggers a judicial inflation as application security. Problematize this producer biocitizenships rationality by a biolegitimacy is a concern, this theoretical essay. The democratic state is born along with the emergence of a society of rights and the extension of social medicine as beacons of political life, based on the health government in support of capacity building and performance. Thus, biopolitics becomes modulated by the production of autonomy and activism of biological subjects. These would biocitizens plaintiffs access to health, exercise capacity and the ability to choose ways of living.
Keywords: Health. Biopolitics. Legalization. Subjectivity. Capacity.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo examinar la legalización de prácticas de salud en el presente como uno de los efectos de la biopolítica contemporánea. La gestión de los riesgos y peligros que se coloca en el centro de los pedidos para el derecho a la salud y provoca una inflación judicial como garantía de la aplicación. Problematizar estos biociudadanias productores racionalidad por un biolegitimidad es una preocupación, este ensayo teórico. El Estado democrático nace junto con la aparición de una sociedad de derechos y la extensión de la medicina social como faros de la vida política, basada en el gobierno de la salud en apoyo de la creación de capacidades y el rendimiento. Por lo tanto, la biopolítica se convierte modulados por la producción de la autonomía y el activismo de temas biológicos. Estos haría biociudadanos demandantes el acceso a la salud, la capacidad de ejercicio y la capacidad de elegir formas de vida.
Palabras clave: Salud. Biopolítica. La legalización. Subjetividad. Capacidad.
Apostas iniciais
Este artigo é um ensaio teórico e tem o objetivo de explicitar algumas interrogações a respeito da constituição do que poderia ser denominado legitimidade biológica, ou seja, biolegitimidade ou biodireito. Assim, busca-se afirmar o quanto o acesso à cidadania tem se configurado pelo direito à vida. O sujeito de direitos passou a ser um sujeito vivente, na sociedade empresarial, regulada por uma racionalidade biopolítica (Foucault, 1988; 1999; 2008a). A objetivação da cidadania biológica está vinculada à produção do Estado Democrático de Direito, funcionando pela racionalidade biopolítica, em um contexto neoliberal de governo das condutas.
Para pensar esse conjunto de práticas do biodireito, é crucial analisar que, parcialmente, a emergência do Estado Moderno se deu concomitantemente à da gestão da população em nome do cuidado com a vida e, em nome da proteção social, a partir da segunda metade do século XIX (Foucault, 2008a). A biopolítica é criada com base na preocupação em "designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana" (Foucault, 1988, p. 134).
Biopolítica e o direito à vida: saúde e cidadania
A vida como valor é efeito de um conjunto de práticas, baseadas na entrada da vida na história dos corpos enquanto espécie biológica. O governo da população se tornou um procedimento de fazer viver e deixar morrer, em que a saúde é uma racionalidade fundamental para o Estado Moderno. O contrato social é articulado à gestão calculada da vida, tanto pela probabilidade Estatística quanto por regras jurídicas, associadas à Medicina Social, para que se possa fazer viver e deixar morrer (Foucault, 1988).
O direito à saúde ganha destaque na legitimidade biológica, porque regula a expansão da Medicina Social, simultaneamente às práticas jurídicas de defesa da sociedade e para promover a segurança. Cuidar passou a ser uma obrigação do Estado Moderno e receber o cuidado em saúde, por exemplo, se tornou um direito do cidadão (Bobbio, 1992).
Os indicadores de gestão da vida ganham espaço no planejamento das políticas públicas e os aparatos nomeados de saúde se tornam um dispositivo que asseguraria supostamente o acesso aos direitos de tratamento, aos medicamentos, às cirurgias, aos seguros, às coberturas de internação - e há uma tendência em reivindicar a expansão desses direitos, em contrapartida, o Estado limita e cria filtros que são barreiras burocráticas ao acesso dessas coberturas (Scliar, 2007).
Ser livre é ter saúde e conseguir usar a autonomia jurídica em benefício do aumento da vida autônoma, mediada por tecnologias econômicas e políticas, como condição para a salvação da civilização (Sen, 2000). Os exames balizam a organização das práticas de saúde pela avaliação sistemática do controle de riscos e perigos na esfera da probabilidade de acontecimentos, tais como: adoecimento, necessidades de tratamentos específicos e ao acesso às cotas de cuidados de alta complexidade que operam em um campo tenso e delicado de práticas em jogo na formulação e execução de uma política pública de demandar tratamentos e cotas, no âmbito o acesso à seguridade social.
Os riscos na verdade não existem, são fenômenos criados pelas companhias de seguro. Os riscos são a objetivação de determinados acontecimentos: morte, acidente, ferimento, perda, acaso, sua regularidade, no tempo e no espaço. [...] As companhias de seguro e as políticas previdenciárias passam a dar o referencial para as perdas do sistema capitalista e financeiro e, nesse sentido, servem de modelo para as práticas de observação e as práticas judiciais. Os sistemas de observação abrem um campo de visibilidade no qual o que conta são as probabilidades, os cenários em que determinadas configurações e acontecimentos podem penetrar na ordem do cálculo racional. O risco é a colonização do futuro; ele labora as minúcias, os detalhes das configurações numéricas do passado e do presente. O delito, as violências, as depredações, as greves, as rebeliões, assim como o incêndio, o furacão, a avalancha e o desmoronamento entram na ordem do seguro. O crime que se tornara desvio agora é risco, não é mais construção única do jurídico nem das disciplinas. (Souza, 2006, p. 251)
Por isso, Castel (1987) assinalou o quanto a perícia ganhou relevância, nos encaminhamentos e triagens dos acontecimentos remetidos à lógica da saúde e à ampliação dos desempenhos, em inúmeras atividades cotidianas pela educação e por meio da assistência social compensatória de riscos e perigos. Afinal, o setor de perícia se tornou o centro regulatório da distribuição e negação de benefícios no âmbito do cuidado em saúde e da acessibilidade à seguridade social. Nesse sentido, este artigo visa a problematizar a constituição da figura da segurança, na cidadania biológica, considerando as tramas da objetivação da biopolítica, que é o controle da vida na dimensão da economia política neoliberal e do Estado Democrático de Direito.
O cálculo dos denominados fatores de risco foi construído pela epidemiologia, pela demografia, pela Geografia Política, pela promoção da saúde, pela Psicologia do Desenvolvimento, pela Estatística e Psiquiatria Preventiva Comunitária. Essas lógicas de medidas regulam o mercado de direito à saúde e cresce na mesma medida em que são reivindicados os cuidados variados, em nome da vida a ser mantida, promovida, garantida e defendida (Castel, 1987; Foucault, 1979).
O risco iatrogênico de usar um medicamento e de se submeter a um tratamento, o acesso a um exame específico, o custo de adotar um tipo de cuidado, o chamado investimento em patentes, as dimensões bioéticas das pesquisas em saúde, a denominada inovação tecnológica e as patentes de medicamentos, a educação compensatória e a prevenção de doenças variadas são diversas faces de uma complexa rede biopolítica contemporânea, pautada na oferta de segurança para fazer viver e proliferar a vida por meio de um conjunto de tecnologias políticas (Rose, 2013).
O imperativo de saúde, na sociedade contemporânea, é efeito de um dispositivo formado por amplo mercado, como uma religião do cuidado biomédico, adjacente ao recurso judicializante (Foucault, 2008b). A própria participação social opera pelo pedido de mais saúde e mais vida. As relações sociais e os processos de subjetividade vão ganhando nuances jurídicas e biológicas, no plano da cidadania biomédica (Ortega, 2004).
Já não há problema social que não seja tratado em termos de risco; higiene, saúde, poluição, inadaptação, delinquência. E a instituição da segurança social faz do seguro a própria forma da relação social. Movimento geral senão de normalização, pelo menos de normativação a partir da tecnologia do risco. Tal como não há norma que não seja social, não poderia existir norma isolada. Uma norma nunca se refere senão a uma outra norma da qual, por isso mesmo, depende. As normas comunicam entre si, de um nível ou de um espaço a outro, de acordo com uma espécie de lógica modular. Uma norma encontra o seu sentido numa oura norma: só uma norma pode dar valor normativa a outra norma. (Ewald, 1993, p. 106-107)
A busca rápida e, muitas vezes, em primeira instância, de ações no Poder Judiciário vem acontecendo, imanente à criação de subjetividades denunciantes, protegidas e vítimas de danos, em uma sociedade de segurança. A inflação jurídica anda junto com a abertura do mercado de saúde, mediada pelas regras do Estado Neoliberal.
Os critérios e regulamentações dos planos de saúde, do funcionamento das políticas sociais e das prioridades em atendimentos vinculadas às normas sociais, operam a gestão de riscos e perigos, em saúde e segurança. As práticas sociais contemporâneas têm forjado subjetividades que buscam a judicialização das tensões políticas, sociais, econômicas, culturais e subjetivas, em vez de pensarem e conversarem sob a égide dos desentendimentos (Foucault, 2008a; 2008b).
Capacidades, desempenhos e biopolítica: direitos e cidadania biológica
Castel (1987) salientava que cada vez mais a gestão de riscos seria pensada como aumento das oportunidades acessadas, por meio da intensificação dos desempenhos realizados e potencializados. O direito às oportunidades de trabalho, educação, saúde e assistência social funcionariam pelo vetor da performance, agenciado em nome da segurança e crescimento das capacidades produtivas.
Alargar a faixa de liberdade com a manutenção da segurança seria um imenso desafio para os países, nessa racionalidade. O sujeito de direito se torna também um sujeito econômico, de sorte que a soberania do Estado, em termos do Direito Público, se entrecruza com os interesses econômicos de homem empresário de si mesmo.
Foucault (2008b) define governo como práticas concretas que estão sustentadas em determinadas racionalidades dinâmicas, heterogêneas e entrecruzadas; sendo singulares e constituindo acontecimentos em uma rede de relações móveis e múltiplas, em processos de deslocamento permanente, em recomposição perpétua. O governo de condutas funciona tal como uma arte de governar e não como atos apenas do Estado versus uma suposta unidade chamada sociedade civil organizada, como se ambos fossem entes universais.
Governar é de certa maneira regular práticas com táticas específicas, observando a melhor forma de agir e de modular o tempo, de organizar a intensidade das práticas e a produtividade dos corpos. Busca-se gerir a vida com foco no alcance de resultados esperados com o aumento de performances, em determinados contextos de complexidade. Uma nova categoria emerge nessa maneira de organizar a vida: a racionalidade da possibilidade de escolher, de conquistar autonomia e garanti-la por meio dos direitos e da modulação das capacidades de manter e fazer agir os potenciais, supostamente chamados de humanos a desenvolver e comercializar (Fassin, 2001).
Ser privado de melhorar as capacidades e/ou ser impedido de acessar direitos ligados ao governo da vida, com liberdade de negociação das práticas de cuidado da saúde, traz um campo de problemáticas, na biopolítica, designadas como dispositivo de segurança. Perder as capacidades se torna uma disfunção social, a qual impacta na economia, na política, na segurança, no mercado de interesses empresariais, nas decisões jurídicas, na limitação das liberdades e nos desenvolvimentos sociais e culturais (Castel, 1987; Foucault, 2008b). Desse modo, de acordo com Sen (2000), não haveria direito sem liberdade, e só poderia ocorrer aumento da produção e mobilidade do mercado pela gerência das capacidades ampliadas, no plano da biopolítica como gestão judicial pelo contrato do Estado Democrático de Direito.
O direito à saúde é relacionado às desigualdades sociais e econômicas, ao acesso à educação e alimentação, às condições de moradia, ao acesso a uma política de saneamento e segurança (Camargo Jr., 2007). Governar em nome da vida se torna, assim, uma biopolítica, organizada pela cidadania biológica, em uma política econômica da saúde como investimento e direito, simultaneamente.
No mercado empreendedor, observam-se populações ágeis, saudáveis, capazes de fazer escolhas e arcar com suas consequências, em um jogo ininterrupto de mediações do contrato social pelas regras jurídicas (Rose, 2011; Rose, 2013). Um dos efeitos dessas práticas é a judicialização da saúde, a qual passou a ocorrer, sistematicamente, no Brasil, nos últimos anos.
Para Scliar (2007), a saúde é produzida por um campo de garantias sem as quais não é possível promover cuidado ativo de si, constituído pelas políticas públicas, sendo integradas, intersetoriais e sustentadas por um eixo de equidade. Um aumento significativo de processos judiciais, em prol do acesso à saúde, é resultante do cálculo dos danos causados pela ausência da garantia da saúde, prevista como obrigação do Estado na Constituição Brasileira de 1988.
Nesse aspecto, a cidadania biológica é colocada em cena, por meio da biopolítica contemporânea, forjando subjetividades biocidadãs ativas na solicitação da política da vida. Em nome do que poderia ser designado como viver com qualidade, a partir das regras e valores estabelecidos pelo dispositivo de segurança, novas encomendas são criadas para promover um bem comum baseado no Estado Democrático de Direito, atrelado à busca da biopolítica enquanto segurança (Foucault, 2008b).
Na relação entre cidadania e Biologia, verificam-se investimentos de uma economia política neoliberal, amparada na lei e na ordem biojudicial (Foucault, 2008a; 2008b). Um dispositivo é forjado por leis, normas, documentos, equipamentos, saberes, técnicos, operadores do Direito, tecnologias, criação de casos, cálculos matemáticos, análise de custos e benefícios, gestão do território e das comunidades etc. (Foucault, 2004; 2008b).
Em O nascimento da biopolítica e em Segurança, território e população, Foucault (2008a; 2008b) demarca que a questão a ser gerida é a vida com segurança, em um meio ambiente específico e diante dos fluxos de circulação em um território, pois neste circulam não apenas pessoas e populações, mas produtos e informações, tecnologias e valores. Disciplinar esses circuitos e organizá-los demanda normas compartilhadas e negociadas em fóruns multilaterais, bilaterais, em segmentos com conselhos e representantes/delegados que vão efetuar a todo instante tomadas de decisão, nas políticas, em nome da suposta defesa social. Nesse aspecto, opera-se a governamentalidade pela ordem e lei, na busca interminável de mais segurança, sendo que esta é definida como um
[...] conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, como forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. (Foucault, 1979, pp. 291-292)
Efetiva-se o controle social das políticas públicas, por meio da presença em conselhos e conferências de direitos, a proposição de projetos de lei e a tentativa de criar uma formação, sustentada em biodiagnósticos relacionados à perícia técnica judicial. Castel (1987) salienta essa prática de avaliação, baseada em especialistas e técnicas de gestão de riscos, mediando decisões e encaminhamentos na esfera dos direitos e das compensações de danos e perdas sofridos por alguma falta de acesso às oportunidades de aumentar e modular capacidades produtivamente com rentabilidade, no mercado dos direitos. A busca da sociabilidade, pautada na saúde e pelo desempenho expandido no trabalho, na família e na educação, vem crescendo, em vários países, tendo ganhado dimensões gigantescas como um negócio altamente rentável no mercado da saúde e significativo na esfera profissional do Direito (Rose, 2013).
Os profissionais das mais variadas áreas, como os médicos sanitaristas, os psiquiatras da reforma, os trabalhadores sociais, os psicólogos e psicanalistas, pedagogos dos movimentos de base e educação popular, artistas, lideranças comunitárias, familiares e usuários da rede de saúde mental e coletiva, intersetorial e integrada, assumiram o compromisso de forjar outras maneiras de cuidar orientadas para os Direitos Humanos. Vale destacar que, no plano da ordem jurídica, incentiva-se a inflação jurídica como resposta à sociedade de lacunas nas coberturas dos direitos, implementados em políticas sociais e do acesso a estes, em diferentes territórios e por segmentos da população (Nunes, 2009).
Dessa maneira, Vianna e seus colaboradores (1999) apontam que as pessoas não só recorrem cada vez mais ao Judiciário, a fim de que se cumpram as leis, mas também há uma expansão da capacidade normativa do sistema jurídico, com a criação de leis que traduzam os interesses - individuais ou de grupos - em direitos. Estes armam o Judiciário, cada vez mais, de meios e modos para o exercício de uma intervenção na vida da população, inclusive em seu âmbito privado.
A equidade na justiça opera pela procura de compensações judiciais para grupos, definidos como vulneráveis, por exemplo. Nessas situações, encomenda-se uma política da vida, fundamentada no que vem sendo designado como reparação de danos. Um caso é o da avaliação dos danos à saúde em função de preconceitos sofridos e discriminações vividas. Essa reparação é agenciada por uma prática de judicialização, na atualidade, marcadamente por meio de uma perspectiva punitivista.
A busca por justiça pela via judicial tem configurado uma encomenda biopolítica, pautada em um dispositivo de segurança. As práticas jurídicas são propostas como uma suposta solução para reivindicar saúde e gerenciar os direitos, na esfera da relação entre norma e lei. A reivindicação de políticas sociais reparadoras de danos sofridos vem ganhando espaço na sociedade e grande incidência política.
A não garantia de acesso aos medicamentos e tratamentos, por exemplo, vem desembocando em lutas pela compensação de danos e faltas de acesso às oportunidades de desenvolver capacidades, de tratar perdas de desempenhos por variadas situações, avaliadas como incapacitantes por peritos da norma e gestores de riscos.
A saúde e o Direito vão ganhando dimensões de segurança e defesa da sociedade, no fazer viver e deixar morrer. Recorrer ao Poder Judiciário e ao saber médico-psicológico, a fim de modular tensões e reivindicar direitos à vida, traz uma oferta anterior da promessa de seguridade frustrada de acesso às políticas públicas. O ressentimento de não ter garantido um direito à saúde e um cuidado com a vida promove mais judicialização e encomenda de compensação discriminatória pela equidade jurídica como pauta de movimentos sociais.
A biopolítica se efetua basicamente na relação entre gestão da saúde e governo da vida, na entrada do valor de viver cada vez mais tempo e com uma perspectiva de acessos variados às gerações de direitos prometidas pelos efeitos das revoluções francesa, inglesa e norte-americana. As promessas republicanas e liberais da igualdade, da fraternidade e da liberdade vão sendo moduladas pela emergência da política da vida, na História.
A economia neoliberal passa a ser gerida na era dos direitos pelo governo da saúde como busca permanente de um estado que parece se distanciar, na medida em que vai sendo definido como bem-estar, como qualidade de vida e como investimento, em uma dívida infinda de mais saúde e mais acesso a tudo que esse direito pode propiciar.
Santos (1996) ressalta como o protagonismo do Judiciário, nas democracias contemporâneas, não é recente. Estamos tratando em termos de soberania jurídica, nesse caso (Foucault, 1979). Santos (1996) declara que a diferença do comportamento dos tribunais, no passado, era o alto grau de conservadorismo e de suas intervenções ocorrerem pontualmente.
O atual protagonismo jurídico aponta para uma inflação do direito, na sociedade, alçando à vida como direito uma judicialização da política e da economia em nome da gestão da saúde e da governamentalidade da vida. Prado Filho (2012) pondera que a justiça deixa de ser litígio entre indivíduos para ser problema de manutenção de soberania pela regulação do Poder Judiciário e da Biologia, na História.
Santos (1996) assinala como o Estado Democrático de Direito realiza um controle sobre todos e sobre cada um, de modo a aumentar o governo de sujeitos de direitos que são seres viventes. Dessa forma, não só há uma intervenção na maneira de estar vivo, mas também há uma intervenção que dita como se deve viver (Foucault, 1999).
O Estado apenas é um regulador como uma realidade compósita e plural, e não uma entidade abstrata organizada somente pelo contrato social de soberania; apesar desse arcabouço, possibilita definições do Direito Público para mediar relações entre Estado e sociedade. Nesse sentido, o governo é uma prática a delimitar regras de um jogo negociadas de forma permanente por todos os que integram a sociedade.
De alguma maneira, implica movimentos, posições e estratégias relacionais, móveis e históricas, sempre tensas e de resistência, com tentativas de submissão frustradas, já que opera por meio de forças com forças, forças contra forças, forças em composição com outras e em deslocamentos ininterruptos (Foucault, 2008b).
No caso específico da biopolítica e da judicialização, estas vão sendo agenciadas no plano dos contratos de empresariamento da vida, que se tornam cada vez mais recorrentes, na medida em que somos incentivados a contratar e a estabelecer cláusulas para os chamados empreendimentos cotidianos. A democratização do Poder Judiciário significa também sua ampliação cada vez mais capilarizada e disciplinar (Vianna et al., 1999).
A forma jurídica geral que garantia um sistema de direitos em princípio igualitários era sustentada por esses mecanismos miúdos, cotidianos e físicos, por todos esses sistemas de micropoder essencialmente inigualitários e assimétricos que constituem as disciplinas. [...] Aparentemente, as disciplinas não constituem nada mais que um infradireito. Parecem prolongar, até um nível infinitesimal das existências singulares, as formas gerais definidas pelo direito [...]. (Foucault, 1999, p. 183)
A aprovação da Lei nº 9.099, em 26 de setembro de 1995, a qual permitiu criar órgãos jurídicos para instrumentalizar o acesso à Justiça - os Juizados Especiais Cíveis e Criminais -, aproximando supostamente a sociedade da lei, desencadeia um efeito judicializante desmedido (Vianna et al., 1999). Ou seja, reclamar por justiça parece simplesmente reduzir qualquer luta ao denuncismo e ao pedido de endurecimento penal.
A luta pela vida e pela defesa desta passou a ser um assunto do Direito e da democracia, com o aumento indiscriminado de encomendas por justiça, medida por tribunais da lei e da norma permanentes, em um clamor pela lei e ordem, pela prisão e pelo recrudescimento penal, em nome da vida. Os discursos de proteção/prevenção andam lado a lado com discursos e práticas que preveem penas mais duras. É o encarceramento em nome da proteção e em nome da vida.
As demandas por direitos são realizadas juntamente no plano da economia política e das racionalidades governamentais que essas práticas de gestão da conduta mobilizam, em termos de impacto econômico e político mundial, nos Estados governamentalizados e em contextos neoliberais, nos quais os Direitos Humanos figuram em um plano do Estado de Direito soberano, em arranjos sobrepostos e articulados com a economia política neoliberal (Foucault, 2008b).
Assim, os chamados indicadores de crime, de cultura, de saúde, de educação, de habitação, de emprego, de saneamento básico, de acesso à cidade e ao transporte são maneiras de governar condutas em nome da baliza entre liberdade e segurança de uma sociedade neoliberal e democrática, as quais operam por meio da governamentalidade.
Considerações finais
As forças reativas entram em cena e são mais solicitadas, com proeminência pela racionalidade da segurança, a qual amplia a judicialização, de sorte que a biocidadania é um dos seus efeitos. O litígio pelo jogo de normas e leis, mediado pela política da vida e pelo empresariamento das relações, despontencializa a trama das tensões e da diferença como possibilidade de existência.
A mercantilização da vida e da saúde faz parte do cálculo de custos e benefícios neoliberais, em que a política como dissidência e complexidade é esvaziada. O tempo é acelerado, na economia política dos investimentos da saúde como dívida, e os corpos entram em um controle social pelo regramento da vida como direito e da saúde como disputa judicial.
Nesse cenário, uma das encomendas mais reivindicadas é a criação de mais e mais leis e mais punição. Acredita-se que uma proliferação legalista e punitiva dará conta de aplacar o trágico da existência e amenizar a tensão das relações afirmativas. É como se lutar pela liberdade fora do esquadro da lei produzisse medo e um pânico social cada vez mais alimentado pela encomenda de mais e mais direitos, de mais regulação securitária.
Enquanto os sistemas jurídicos qualificam os sujeitos de direito, segundo normas universais, as disciplinas caracterizam, classificam, especializam; distribuem ao longo de uma escala, repartem em torno de uma norma, hierarquizam os indivíduos em relação uns aos outros, e, levando ao limite, desqualificam e invalidam. (Foucault, 1999, p. 183)
Apenas as populações consideradas vulneráveis receberão políticas compensatórias atreladas aos indicadores de equidade social e de justiça caracterizados por cotas e níveis de pobreza diferenciados. Os governantes e os governados negociam, avaliam e definem juntos, por diversos acordos, discussões, concessões recíprocas, transações e agendas construídas, as maneiras de serem governados, por quem serão e como serão, de que modo o serão e ainda até quando e em que medida.
O Poder Judiciário parece converter-se em uma espécie de possibilidade inicial e única, para a qual convergem todas as preocupações sociais. A judicialização é um acontecimento, o qual se manifesta na ascensão das democracias representativa e participativa, embora de modo heterogêneo em ambas.
Foucault (1999) já havia assinalado que a guerra é a política continuada por outros meios e que, quando estamos supostamente em paz, não estamos de fato, porque há jogos de poder-saber e de governamentalidade permanentes que não cessam nunca.
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Recebido em: 4/9/2018
Aprovado em: 11/10/2019