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Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

     

 

Psicologia e deficiência: afinando os sentidos para encontros com autismos

 

Psychology and Disability: Tuning Directions to Encounters with Autism

 

Psicología y discapacidad: instrucciones de sintonización para encuentros con autismo

 

 

Ana Claudia Lima MonteiroI; Angélica Glória MendonçaII

IDoutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestra em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
IIMestranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Pesquisa o cuidado e autismos em uma perspectiva que utiliza a Ciência no Feminismo e com autores da Ciência, Tecnologia e Sociedade

 

 


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo abordar as discussões atuais sobre o autismo em diálogo com as contribuições dos Estudos Feministas. Essa reflexão nos permite rearranjar o lugar da Psicologia e dos psicólogos, em relação a esse diagnóstico que vem sendo altamente distribuído, e pensar práticas que condizem com a experiência vivida pelos sujeitos. Este trabalho põe em cena reflexões trazidas pela experiência vivida em oficinas de corpo em grupo com crianças e adolescentes autistas no Serviço de Psicologia Aplicada na Universidade Federal Fluminense e a partir de uma experiência de cuidadora vivida por uma das autoras.

Palavras-chave: Gênero. Ciência. Corpo. Autismo. Deficiência.


ABSTRACT

This study aims to discuss the discourses knowledge built on autism today and reconstruct discourses from studies with feminist theorists. This reflection allows us to rearrange the place of psychology and psychologists in face of this highly distributed diagnosis and to think about practices that are consistent with the experience lived by the subjects. This work brings reflections brought from the experience lived in group body workshops with autistic children and adolescents at the Applied Psychology Service at the Fluminense Federal University and from a caregiver experience lived by the author herself.

Keywords: Gender. Science. Body. Autism. Deficiency.


RESUMEN

El objetivo de este estudio es discutir los discursos basados en el autismo actual y reconstruir los discursos de estudios con teóricas feministas. Esta reflexión nos permite reorganizar el lugar de la psicología y los psicólogos frente a este diagnóstico altamente distribuido y pensar en prácticas que sean consistentes con la experiencia vivida por los sujetos. Este trabajo trae reflexiones provenientes de la experiencia vivida en talleres grupales con niños y adolescentes autistas en el Servicio de Psicología Aplicada de la Universidad Federal Fluminense y de una experiencia de cuidadora vivida por la propia autora.

Palabras clave: Género. Ciencia. Cuerpo. Autismo. Discapacidad.


 

 

Introdução

O presente trabalho se baseia em um modo de pensar a possibilidade de criação de um corpo de psicóloga que habite o mundo de crianças e adolescentes que estão no espectro autista, de forma a aproximar-se deles a partir do seu modo de ser, deixando de lado classificações que estejam pautadas na falta que supostamente há nessas pessoas. O que está em jogo nesse modo de fazer ciência é uma outra maneira de compreender cada pessoa autista: trabalhando as potencialidades que cada um deles traz. Aqui há lugar para os afetos e para todas as maneiras que o indivíduo se coloque no mundo, minimizando os estereótipos que atrapalhem a relação do psicólogo com o paciente. Trabalhamos com um arcabouço teórico-metodológico que não se pauta no que está nos protocolos, não é, de maneira alguma, um trabalho de adestramento.

Durante esses anos em que tivemos a oportunidade de atuar com crianças e adolescentes autistas, percebemos duas pistas muito interessantes para realizar um trabalho conjunto e efetivo: criar um corpo perpassado pela sensibilidade de estar atenta ao outro e trabalhar o saber da experiência. Atuamos em um projeto de extensão sobre Psicologia e Deficiência desde 2015, vinculado à pesquisa Equilíbrio e Movimento. O projeto passou por muitas mudanças, culminando na proposta de atendimento às crianças e adolescentes autistas no Serviço de Psicologia Aplicada de nossa Universidade. Oferecemos, então, oficinas de sensibilização corporal a essas crianças e adolescentes na intenção de produzir conhecimento junto delas. Desde então, temos uma aposta de relação com essas pessoas, a partir de diversos disparadores corporais como música, objetos de textura, de pintura, tecidos, entre outros.

Em todos esses anos de trabalho com essas pessoas, percebemos que é preciso ter em mente que, para além de autistas, essas crianças e adolescentes são sujeitos que têm características próprias, como quaisquer outras. Não se trata de negar as especificidades, mas não apenas considerá-las. Se queremos fazer um trabalho que possa produzir efeitos na vida da pessoa e não somente no espaço restrito de 50 minutos de salinha fechada, é muito importante que exerçamos um trabalho em conjunto com as cuidadoras dessas crianças (uso aqui o substantivo no feminino, pois, na grande maioria das vezes em que estivemos com os acompanhantes das crianças, quem sempre as acompanhavam em todas as atividades eram as mães e, quando não elas, as avós). Precisamos aprender com a experiência dessas pessoas, trazer o retorno para elas de como estamos realizando o trabalho com seus filhos e escutar o que elas têm a dizer. Para isso, é necessário performar uma escuta ativa, na qual estejamos disponíveis a pesquisar junto o que as cuidadoras nos trazem, além de atentar-se para o que fazem de práticas cotidianas com eles e o que eles vêm buscar na rede de atendimento. O cuidado não deve ser o que eu, psicóloga, acho que é bom para o outro. Deve ser aberto para escutar o que o outro espera e pensado de maneira a alinhar isso com o que pretendemos fazer.

Nosso texto será composto por seis pequenos capítulos, nos quais será traçado um caminho metodológico para a compreensão, primeiro, da própria escrita deste texto e, segundo, da nossa prática no campo. Os dois capítulos iniciais têm o papel de introduzir o leitor a nossa prática de escrita e a nossa proposta metodológica, ou seja, a maneira como escolhemos pesquisar e divulgar nossas pesquisas. No primeiro capítulo, trazemos a proposta de construir nossos textos tendo em vista uma forma narrativa, de contar histórias, apostando na intrínseca relação entre a pesquisa e a vida, trazendo para o texto a maneira como afetamos e somos afetados pelo nosso trabalho. No segundo capítulo, apresentamos nosso método de pesquisa: o PesquisarCOM, proposto por Marcia Moraes e Alexandra Tsallis (2016), nesse capítulo enfatizamos a importância de construir um conhecimento que leve em conta as experiências dos pesquisados, suas vidas, suas apostas, suas maneiras de construir seu próprio mundo.

No terceiro capítulo, falaremos brevemente acerca do campo conceitual que compõe os nossos estudos: a relação entre os autismos, a proposta do modelo social da deficiência e as considerações feministas acerca do tema. Nesse capítulo serão colocadas as bases de nossa aposta neste trabalho: a relação entre cuidado e mulheres. Como desdobramento desse capítulo, o próximo traz uma reflexão acerca da relação entre autonomia e interdependência, fundamental para pensar essas relações de cuidado. Nesse sentido, torna-se fundamental a reflexão acerca desse ideal de autonomia como forma de se descolar das relações de interdependência. Propomos pensar tal autonomia inserida nessas relações e não descolada delas.

Na parte final do texto, trazemos algumas experiências expressas em diários de campo, para enfatizar, no capítulo cinco, as relações de afeto e comunicação, fundamentais em nosso trabalho e, no capítulo seis, as questões trazidas pela experiência em atender duas adolescentes autistas completamente diferentes em uma mesma oficina. As tensões e impasses que isso gerou e, também, a riqueza em perceber o quanto as oficinas também operaram na construção dessa relação tão diversa, fazendo com que as próprias adolescentes pudessem se deparar com suas próprias diferenças.

Por fim, gostaríamos de salientar que este trabalho é escrito a quatro mãos, portanto, na maioria das vezes, usaremos o plural para nos denominar, mas, em alguns momentos, faz-se necessário o uso do singular, para que não se perca de vista que, em alguns momentos, apenas uma de nós pode relatar determinadas experiências. A escrita dos diários também foi feita apenas por uma das autoras, depois de sua participação nas oficinas e, portanto, contém seus afetos e experiências. Só podemos falar de escrita de oficinas ao considerar todas as alunas da extensão, a professora-coordenadora, os participantes das oficinas e suas cuidadoras como partes constituintes que criam um mundo muito localizado nesse processo.

Optamos por manter os participantes no anonimato, mesmo sabendo de todas as tensões geradas por essa aposta, principalmente, por se tratarem de crianças e adolescentes. Os diários de campo utilizados neste trabalho são escritas que incluem o pesquisador, pois entendemos que este não tem participação isenta naquilo que se propõe a estudar. Tais diários são importantes na constituição desta pesquisa, pois se entende que os encontros do dia a dia são fundamentais para a constituição de ciência.

 

Políticas de escrita e políticas de vida

No presente trabalho, a escrita é pensada como um exercício constante que tem importância no mundo, a partir da narração de histórias que não aparecem nos manuais de pesquisa em Psicologia. A narração também é entendida como intervenção no campo de pesquisa, pois ela é mediadora na transmissão de vivências. Apostar na diferença é ajudar as multiplicar as versões de mundo. Sobre a atuação da escrita no campo da narração, Moraes (2014, p. 134) nos traz que,

Sem dúvida, uma das formas de desfazer e refazer as fronteiras está nas narrativas que fazemos do nosso trabalho de campo. Ao narrarmos incluímos certas cenas, deixamos outras de fora. O que fica dentro de nossas narrativas ganha consistência, faz outros laços, se articula em outros domínios, outros textos. Narrar é, pois uma das formas de interferi.

Narrar é transformar nossa própria relação com aquilo que nos constitui (Monteiro, 2011) e performar outras formas de se estar no mundo. É interessante construir narrativas que alterem a realidade que estamos acostumados a escutar sobre o corpo do autista e não o delimitar apenas como uma definição. Uma das perguntas que pode ser tomada como guia geral da prática de escrita deste trabalho é a seguinte: "Como trazer a singularidade de um momento no qual o corpo se torna protagonista sem reduzir essa experiência a um número restrito de técnicas capazes de gerar essa autonomia?" (Monteiro, 2011, p. 194).

As formas tradicionais de se escrever sobre os sujeitos, sempre os nomeando como indivíduos que respondem de tal jeito por conta de variáveis sempre iguais, não permite o aparecimento de formas de se criar um corpo diferente daquilo que já se propõe inicialmente. Essa forma de pesquisar universalmente carrega em si o grande perigo de contar histórias únicas sobre pessoas e apagar do mundo toda uma forma de vida. Ao falar dos métodos padronizados de pesquisa acadêmica em Psicologia, Moraes e Tsallis (2016, p. 41) adicionam à nossa discussão:

Donna Haraway (1995) sublinha que a escrita acadêmica é, muitas vezes, marcada por um certo "olhar de deus", isto é, um estilo de pensamento que se apresenta como um olhar desencarnado, deslocalizado. Olhar que, de longe, de sobrevoo, se lança sobre o outro, colocado no lugar do seu objeto. Olhar que se pretende não mediado. Olhar que opera pela distância e pela separação: aqui o sujeito que conhece, com suas razões, lá o objeto a ser conhecido, ele próprio, na ignorância.

Esse olhar não localizado produz o que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie chama de perigo de uma história única, no vídeo apresentado por ela no Ted Talks (Adichie, 2009). O olhar não localizado, frequentemente performado na escrita acadêmica, não leva em consideração o sujeito pesquisado e apenas replica sobre ele o conhecimento já existente que se quer provar. Esse tipo de produção de uma única história, para a escritora, está intimamente ligado ao poder e pode estar relacionado ao que Chimamanda chama de Nkali, ou o desejo de ser maior do que o outro. Esse poder pode ter o terrível efeito de decidir sobre a história definitiva de uma pessoa, tomando fatos incompletos, de apenas uma versão de mundo, como os únicos fatos existentes. A consequência da história única é roubar a dignidade das pessoas, colocando falas sobre os sujeitos como mais importantes do que as suas próprias falas sobre si, acabando por nos fazer esquecer que todos somos escritores de nossas próprias histórias de vida. Por causa disso, a disseminação das várias versões de mundo existentes é fundamental.

Entendemos que "Só é possível conhecer a partir de algum lugar e a concepção de uma objetividade descorporificada não é senão uma falácia, uma falácia nada inocente" (Moraes & Tsallis, 2016, p. 43).

No encontro com os autismos, temos escutado várias histórias acerca da deficiência e sobre a formação de um corpo muito heterogêneo, que difere muito de criança para criança, de adolescente para adolescente. Narrações que reinventam possibilidades de compor vidas a partir de suas peculiaridades. Histórias que jamais poderíamos supor ou escrever se estivéssemos focadas no problema da falta do indivíduo autista. A partir desse encontro, podemos conhecer histórias de pessoas que aprenderam a ser afetadas ao longo da vida e, com elas, também nos articular e aprender a ter um corpo que se afeta, que se interessa verdadeiramente pelo outro.

O narrador não é apenas alguém que escuta, ele participa atentamente e inscreve no território acadêmico os modos de compor com um mundo que conheceu por meio de vivências, para que assim fuja do conhecimento sem carne, descorporificado. Ele entende que o conhecimento localizado é aquele que emerge a partir de uma vida que existe na realidade que se apresenta cotidianamente, e que não pode ser encaixado em teorias ao bel prazer da figura do "psicólogo sabichão".

O que nos convoca a escrever sobre as maneiras de aguçar os sentidos para estar nos encontros com os indivíduos com autismo é uma vontade grande de pensar no cuidado. Essa noção de cuidado nos foi apresentada na graduação e nos conduziu a uma forma de enfrentamento da vida cotidiana que nos possibilitou estar na academia até os dias de hoje. Como mulheres responsáveis pelo cuidado de outra pessoa, ao cuidar majoritariamente sozinha, seja de uma mãe doente, seja de uma mãe demenciada ao final de sua vida, pudemos enxergar como o cuidado é colocado nas mãos das mulheres e como ele é pensado de maneira extremamente privativa, encerrado nas quatro paredes de uma casa, causando diversas dificuldades tanto na vida de quem é cuidado como na de quem cuida. Esse movimento que articulamos em nossa trajetória acadêmica, o lugar do cuidado em nossas vidas, fez ter fome de um aprofundamento cada vez maior nas noções de interdependência e de articulação de rede como ação fundamental para a subjetivação dos indivíduos no mundo, e foi esse corpo de psicóloga e cuidadora que nos trouxe até aqui.

Nossas experiências com os cuidados também nos possibilitaram compreender a importância de narrar as histórias, uma vez que, na escrita deste artigo, optamos por manter na escrita as experiências que nos movem, que nos fazem escrever e pesquisar. A escolha pela narrativa e pelos diários faz aparecer no texto essas trajetórias, muitas vezes, invisibilizadas em nome de um fazer desencarnado. Como política de escrita, apresentamos aqui nossas trajetórias e parte do que compõe nossos corpos de pesquisadoras.

 

Formas de pesquisar e de existir

Desde que começamos as oficinas, temos como iniciativa a proposta de colocar-nos a fazer junto com os autistas. Acreditamos que aqueles que estão conosco precisam aparecer não só no texto escrito sobre o trabalho, mas, também, na construção dos dispositivos que guiarão o trabalho. Fazer com, segundo Moraes e Tsallis (2016, p. 47), "[...] opera no sentido da localização do conhecimento, entendendo que dizer localização do conhecimento é afirmar que jamais se está sozinho no campo de pesquisa". Pesquisar-com significa afetar-se com o campo, pelo dispositivo, e assumir a responsabilidade política de estar construindo um mundo específico, a partir do campo que se cria. É estar se perguntando constantemente: ao pesquisar dessa forma, que mundo estou criando com as pessoas que estou pesquisando?

Entendemos que os fatos são feitos nos dispositivos de pesquisa que são criados e por meio das diversas maneiras que podem ser usados (Stengers, 1989). Por isso, os elementos que compõem esse dispositivo têm um papel fundamental.

No presente trabalho, entendemos a ciência como a capacidade de fazer boas perguntas. Nessa perspectiva, percebemos os sujeitos como aqueles que trazem as perguntas que ainda não fizemos, mas que serão feitas no próprio dispositivo de pesquisa. Apostamos em um dispositivo que faça com que a relação e o vínculo sejam interessantes a tal ponto que as perguntas possam ser refeitas no decorrer da pesquisa. Sobre isso, Despret (2011, p. 8) diz "[...] se 'contentar de deixar falar o material', sem procurar impor a ele uma resposta que não se submeta à obrigação, face à singularidade de seu objeto, de se abster de definir a priori aquilo do qual deveria ser capaz.

Para pesquisar com uma diversidade de pessoas, adotamos a perspectiva da Política Ontológica de Annemarie Mol (2008). Ela discorre sobre a realidade entendendo-a como multiplicidade. Usando a autora, podemos sugerir, no lugar do descobrimento de características do sujeito, as ações de intervenção e performance. Entender a realidade como performada é deslocar o lugar de objeto que é observado por vários pontos de vista diferentes (que prestam atenção em características diferentes da coisa única) para a concepção de versões do objeto. Mol (2008, p. 6) adiciona à discussão: "Em vez de atributos ou aspectos, são diferentes versões do objecto, versões que os instrumentos ajudam a performar [enact]. São objetos diferentes, embora relacionados entre si. São formas múltiplas da realidade - da realidade em si."

Pensar uma política ontológica é apostar na criação de versões do objeto. Significa reconhecer que as práticas efetuadas sobre a deficiência e sobre o autismo não são algo dado, mas sim performado, a partir de um tipo específico de relações e interesses.

Desse modo, o campo teórico-conceitual com o qual trabalhamos é aquele em que as realidades são performadas (enact), portanto, os dispositivos de oficina são um espaço de construção de um mundo no qual as experiências e peculiaridades das crianças e adolescentes autistas contam para a construção desse espaço. Dessa forma, os objetos, as alunas da extensão, cada uma delas, as crianças e adolescentes que participam, cada uma delas, a própria sala, os objetos na sala, as músicas tocadas, as atividades propostas, tudo isso compõe o dispositivo e deve ser levado em consideração. PesquisarCOM as crianças e adolescentes é também pesquisar com todos esses atores, incluindo aquelas que levam as crianças e adolescentes, ou seja, as cuidadoras.

 

A ciência da deficiência no feminino

Ao pensar em autismos, usaremos o modelo social da deficiência, pois ele nos ajuda a pensar como os autismos são constituídos na sociedade. Para começar a falar de autismos, é necessário antes contar sobre as concepções de deficiências que foram construídas historicamente e qual delas orienta o fazer deste trabalho. Segundo Débora Diniz (2007), até a metade do século XX, a deficiência era vista a partir da concepção biomédica, entendida como uma doença que poderia, em todos os casos, ser avaliada, tratada e reduzida. A maioria das pessoas que apresentava qualquer tipo de deficiência era segregada, muitas vezes, retirada do convívio com seus familiares. O tratamento pensado para todas as deficiências era de tentar aproximar os "indivíduos" ao máximo do funcionamento das pessoas não deficientes, ditas "normais". Aqui, a noção de corpo ideal/normal diz respeito a um corpo sem limites, produtivo e com capacidade intrínseca e absoluta de pensar e agir, independentemente de qualquer ajuda.

Ainda segundo a autora, surge o modelo social da deficiência que coloca em xeque as noções de normalidade, normatividade e corpo ideal. Esse último ganha um novo estatuto, tornando a diferença como algo que causa uma espécie de opressão dos indivíduos, "dentro" da sociedade e não algo que pressuponha um conserto ou correção. Agora, a dificuldade da pessoa com deficiência em estar apta ou não a realizar algo na sociedade diz muito mais sobre a maneira como a sociedade se coloca em relação à deficiência do que sobre uma falta específica e individualizada de alguém. Por consequência disso, surgem questões sobre acessibilidade e também outras formas de adaptação da pessoa com deficiência, como o funcionamento da cidade, por exemplo. Trazendo ainda questões sobre a acessibilidade e a participação ativa das pessoas com deficiência na vida social e econômica. Esse modelo surge com o intuito de se fazer intervenções no cenário social de modo que se ponha em xeque essa opressão. Além disso, é um movimento político, pois clama por direitos aos deficientes, e epistemológico, já que é contra a produção de artigos acadêmicos que tratem sobre o assunto sem a participação de pessoas com deficiência. Sobre isso, Mello e Nuernberg (2012, p. 638) asseveram: "O modelo social da deficiência é o pilar dos Estudos sobre Deficiência. Sua teoria configura-se, portanto, na crítica radical ao modelo médico, uma vez que esse está intimamente enraizado na 'teoria da tragédia pessoal como a narrativa cultural dominante [...]'".

Então, no fim da década de 1990 e início dos anos 2000, surge a segunda geração do Modelo Social da Deficiência, a partir da crítica feminista feita a esse modelo. A primeira pergunta feita pelo movimento feminista era discutir o que nossa sociedade faz com os corpos que não têm suas questões solucionadas somente com a acessibilidade. As filósofas feministas entram com a seguinte crítica ao modelo social da deficiência: nem todas as questões da deficiência são abarcadas pelo cenário social. Além disso, colocam em cena os pontos dos limites corporais e do cuidado. Esses pontos não são por acaso, visto que a segunda geração do modelo social de deficiência se constituía, sobretudo, por mulheres cuidadoras de pessoas com deficiência intelectual. Esse movimento nos convida a pensar sobre a nossa condição humana, tendo em vista que nem todos os corpos são iguais e, por isso, nem todos podem servir à produção. Sendo assim, o que fazer com esses corpos que precisam de cuidados?

Essa perspectiva de deficiência nos confronta com a nossa própria existência quando nos leva a refletir que todos nós, uma vez que, em algum momento, vamos experimentar a deficiência, seja ela qual for, pois é algo que está presente em nossa constituição como seres humanos. O que está em foco aqui é a questão do cuidado e da interdependência, uma vez que todos nós precisamos ser cuidados, ao menos na infância. Em nosso trabalho com crianças e adolescentes autistas, chama-nos a atenção também a presença dessas cuidadoras, em sua maioria mulheres. Nesse sentido, percebemos que nosso trabalho também não poderia existir sem que essas mulheres fossem responsáveis pelo cuidado das crianças e adolescentes atendidos por nós. Enfatizamos essa questão, mais uma vez, para que o cuidado seja considerado como ponto fundamental de nosso trabalho.

 

Autonomia e interdependência

Ao estudar sobre a deficiência, tendo como base filósofas feministas, deparamo-nos com certas peculiaridades da existência humana, as quais não havíamos ainda nos dado conta, por exemplo, o conceito de interdependência. Esse conceito foi construído por essas mulheres cuidadoras de pessoas com deficiência no debate sobre a expansão do modelo social da deficiência e ressalta que não são só estruturas sociais que oprimem a pessoa com deficiência, visto que existem pessoas que mesmo com todo o auxílio necessário ainda não vão conseguir atingir o ideal de autonomia. Autonomia essa pensada como a capacidade de fazer as coisas sem ajuda de outras pessoas. Aqui se trata majoritariamente de pessoas com algum tipo de comprometimento intelectual, que necessitam de cuidado integral por todo ou maior parte de seu dia. Para além da busca incessante de independência máxima, há de se considerar que existe dor, sofrimento e limites corporais. Não devemos ignorar essa dimensão do corpo e, assim, devemos enxergar o cuidado também como um objetivo de trabalho com essas pessoas. Chegamos à conclusão de que somos interdependentes uns dos outros ao longo da vida. Os registros alcançados a partir dessa versão de mundo podem variar muito e serem muito diferentes do que é comumente dito na vida de uma pessoa com deficiência. Sobre o cuidado e sua relação com a condição humana de interdependência, Mello e Nuernberg (2012, p. 643) afirmam que

Há, pois, uma proposição ética que se desdobra dessas reflexões: uma ética feminista do cuidado que transcende à questão da deficiência, que nos alerta a respeito de nossa condição de interdependência e que reconhece o valor do cuidado como uma necessidade humana, implicando uma mudança política fundamental em torno de fronteiras sociais e ideológicas para que sejam compatíveis com a noção de justiça e de direitos humanos.

Podemos entender a valorização da independência como uma crueldade para aqueles que, mesmo com as alterações na sociedade e no meio externo, não conseguem alcançá-la. A interdependência é um princípio que leva em consideração a necessidade de ajuda, os tipos de subjetividades existentes e os limites corporais de cada pessoa.

Somos dependentes nas fases mais variadas da vida, como na infância, na velhice ou nas experiências mais diversas de doenças. A partir desse ponto de vista, não se encaixam mais práticas de produções de subjetividades individualizadas. É claro que é importante que a criança autista, ou com qualquer outro diagnóstico, desenvolva as suas habilidades físicas, psicológicas e sociais, mas é preciso reconhecer as particularidades de cada uma delas e pensar a autonomia1 delas e a forma de cuidado para com essas crianças.

Queremos propor agora uma reflexão sobre a questão da autonomia, uma categoria da promoção de saúde apresentada no Estatuto da Pessoa com Deficiência. A lei brasileira da inclusão da pessoa com deficiência traz a questão da promoção de autonomia como ponto de objetivo da assistência social e da habilitação e reabilitação da pessoa com deficiência.

CAPÍTULO VII: DO DIREITO À ASSISTÊNCIA SOCIAL

Art. 39. Os serviços, os programas, os projetos e os benefícios no âmbito da política pública de assistência social à pessoa com deficiência e sua família têm como objetivo a garantia da segurança de renda, da acolhida, da habilitação e da reabilitação, do desenvolvimento da autonomia e da convivência familiar e comunitária, para a promoção do acesso a direitos e da plena participação social. (Grifos nossos)

CAPÍTULO II: DO DIREITO À HABILITAÇÃO E À REABILITAÇÃO

Art. 14. O processo de habilitação e de reabilitação é um direito da pessoa com deficiência.

Parágrafo único. O processo de habilitação e de reabilitação tem por objetivo o desenvolvimento de potencialidades, talentos, habilidades e aptidões físicas, cognitivas, sensoriais, psicossociais, atitudinais, profissionais e artísticas que contribuam para a conquista da autonomia da pessoa com deficiência e de sua participação social em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas.

III - atuação permanente, integrada e articulada de políticas públicas que possibilitem a plena participação social da pessoa com deficiência. (Lei n. 13.146, 2015, grifos nossos)

É interessante pensarmos, conjuntamente com a lei, em uma autonomia como condição necessária para o acesso das pessoas com deficiência aos seus direitos e para a sua plena participação na vida social, além de meio que permita desenvolvimento de habilidades de diversas ordens, inclusive profissionais, se estendendo até as sociais e artísticas. Pensar a implementação dessa lei, que é tão recente, dialoga bastante com os estudos do modelo social da deficiência. Dessa forma, como a autonomia ocorre no caso da criança diagnosticada no diverso espectro autista? Como pensar um projeto de extensão de caráter público com oficinas que sejam capazes de contribuir de alguma forma para essa autonomia garantida por lei para essas crianças?

Para continuar nossa trajetória em busca da definição do conceito de autonomia neste trabalho, acredito ser necessário pensar em autismos, no plural. Entendemos que o que há são autismos, uma diversidade de corpos e afetos. Os autismos se apresentam em heterogeneidade, com vários traços que não são os mesmos de um indivíduo para o outro, que se inclui no Transtorno de Espectro Autista (TEA). Sobre a diversidade dos indivíduos que se encontram diagnosticados no TEA, a autista e projetista de instalações de manuseio de gado, Temple Grandin (2012, p. 42 tradução nossa), nos convoca a pensar: "Autismo é verdadeiramente um espectro contínuo. Não existe linha em preto em branco que divida o geek, o nerd, a pessoa esquisita socialmente e o autista médio individual."

Mesmo sem uma definição precisa acerca das causas dos autismos, o diagnóstico de crianças, cada vez mais novas, tem sido feito em grande escala. Isso tem levado muitas delas a frequentarem, na mais tenra infância, clínicas especializadas. Esse aumento de demanda por serviços ligados ao TEA nos chama a atenção e nos convoca a pensar e agir com essas crianças. Como proposta de ação, reafirmamos aqui a nossa aposta em construir um conhecimento acerca do tema que não limite a diversidade apresentada a apenas uma palavra: autismo.

Para a inauguração de uma autonomia articulada, é de fundamental importância a consideração do vínculo, sendo este mais do que a relação. "Tudo está relacionado, mas um vínculo é algo que se cria." (Stengers apud Dias, Borba, Vanzolini, Sztutman & Schavelzon, 2016). É a partir do vínculo criado na relação semanalmente construída com as crianças autistas que podemos começar a construir um conhecimento localizado acerca dos autismos. Ao vermos uma pessoa autista, não vemos apenas o seu autismo, não vemos apenas diagnósticos, sintomas, e afins, vemos uma pessoa composta por uma diversidade de encontros e de afetos.

 

Afeto e comunicação

Nesta parte do texto, iremos trazer partes de diários de campo, escritos por uma das autoras em sua experiência nas oficinas. Este primeiro trecho do diário será trazido para discutir um dos estereótipos acerca dos autistas: a ausência de afetos e de possibilidade de comunicação.

Primeirinha oficina deste semestre.

Cheguei e já tinha visto as mães sentadas na sala de espera do SPA. Ajeitei a sala espalhando algumas coisas sem muita ordem: as almofadonas de isopor, os colchonetes, os macarrões (será que alguém iria se apertar hoje?), os objetos com textura. C chegou e colocou as bolas e mais alguns objetos de textura. Pegamos as fichas e o tecido gostosinho vermelho na sala lá embaixo e voltamos. Subi enrolada no pano e quando entrei na sala o B já tomou ele de mim. Perguntei qual era seu nome. Nada aconteceu. Ai! O B, viu... A princípio muito quietinho, desconfiado, observando todo mundo deitado na grande almofada de isopor e coberto com o tecido vermelhinho. Depois foi mexendo com os objetos de textura, olhando pra gente de canto de olho. Ele me olhando de rabo de olho por debaixo de seus óculos e eu o olhando de ladinho por debaixo do meu. Achei que ainda não era hora de me aproximar.

Então comecei a interagir com o R, não sei se ele lembrava de mim da natação, mas brincou comigo com a bola, com o colchonete, com o macarrão. Ele interagiu com aproximadamente TODOS os objetos que colocamos no chão. E foram muitos. Depois começou a cantar alguma música que eu não conhecia. Todo mundo meio que já tinha ouvido essa música em algum lugar, mas ninguém reconheceu na hora.

E então teve o silêncio. Um silêncio tão grande na hora que eu fiquei até assustada! Não sei se porque nas oficinas anteriores tínhamos o time B/B/R super oralizados que faziam das oficinas um espaço onde produzíamos muito som, gritávamos, conversávamos, narrávamos histórias Não sei se porque meu nervosismo de primeiro dia estava dando sinal de vida e eu queria falar algo, trocar com alguém (ei, meninas, vocês também estão meio perdidas?), fazer as crianças enxergarem que eu estava tentando me comunicar com elas. Sei lá.

Sentei no chão e o R veio se arrastando pra perto. Deitei na almofadona de isopor também e ele se aconchegou em mim. Ficamos ali fazendo nada um tempinho.

Depois voltei a trocar uns olhares tortos com o B enquanto ele estava apertando os isoporzinhos da almofada dele e eu os da minha. Eu dei um sorrisinho e ele deu um quase sorrisinho. Depois de algum tempo, P e R começaram a brincar de se enfiar no vaso gigante que tem na salinha. As meninas brincavam com eles de entrar, batucar, rolar, se cobrir completamente com o outro vaso nos pés. O B ficou achando muita graça e fiquei lá deitada fazendo nada, agora com ele. Quando ele via que eu o estava olhando, se cobria com o pano vermelho. E eu me "cobria" com os colchonetes. Ele foi tirando o pano e eu fui tirando os colchonetes também. Achei bonitinho. Daí o B foi brincar também com o vaso. Ficava se enfiando lá e o R e o P rindo muito, todos brincando juntos.

Quando a oficina acabou e os meninos saíram, o B ficou mais um pouquinho lá. Ele se enfiou no vaso e eu fiquei sentada no chão e com a cabeça deitada em cima do vaso que ele estava dentro e ele pegou minha mão e fez eu dar uns batuques de levinhos no vaso (eles estavam brincando assim com as meninas). Dei uma batucadinha. Depois ele pegou minha mão e fez eu ficar abraçadinha com o vaso, ficou com a mão em cima da minha. E soltou. E, ele dentro do vaso, achou meu rosto deitada do lado de fora e fez um carinho nele. Ficou um tempo fazendo carinho, depois colocou a mão em cima da minha de novo e me deu a mão. Ficamos de mãozinhas dadas e eu batucando o vaso bem devagarinho com a outra mão. Depois de uns três minutos, ele saiu de dentro do vaso. Eu dei um sorrisinho pra ele e ele, me olhou diretamente mesmo, nada de rabo de olho, e deu um sorrisão. Quando a mãe dele chegou na porta pra buscá-lo pensei "ah não!". Acho que até verbalizei isso! Quem tem coragem de falar de falta de afeto aí? Não é possível! Nessa oficina pude enxergar até uns dos meus que nem estavam aparecendo pude fazer nada, deitada, e aceitar que até isso é articulador de algo. Quanto aprendizado que venham as próximas. (Diário de Campo: 9 de abril de 2018)

Ao falar de autismo, frequentemente é possível que se pense em falta de emoção ou afeto e, ao estar nas oficinas com as crianças e adolescentes durante todos esses anos, pude ver, desde o começo, essa falsa ideia cair por terra. Em uma dessas oficinas, tive o transbordamento de alegria em conhecer o B, uma criança tão amorosa e tão especial que não podia deixar de aparecer na minha escrita de forma alguma. Este diário que trago como forma de contar um pouco sobre o conhecimento que viemos construindo juntos ao longo das oficinas foi uma das muitas vezes que os autistas acrescentaram aspectos inesperados ao meu multiverso. Favret-Saada (2005, p. 160) nos diz, sobre a afetação, a importância de deixar-se afetar como que para um etnógrafo.

Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível.

Se assumimos o risco de que o conhecimento que temos acerca do autismo até hoje não abarca todas as versões de pessoas autistas existentes no mundo, podemos construir um novo panorama para a Psicologia afirmando que existe, sim, afeto e emoções variáveis e muito bem explicitadas nas vidas dessas pessoas. Aqui, a questão antes desinteressante e não produtora de mundo chamada "será que existem mesmo emoções dentro desses indivíduos ou eles são estruturados em uma falta gigantesca?" gira então para outra muito mais articuladora de possibilidades que é: "estamos conseguindo nos colocar no campo de forma a conseguir perceber os afetos existentes nessas pessoas?" Ou ainda: "como podemos propor um trabalho de cuidado em Psicologia entendendo o tipo específico de emoção que essa pessoa me transmite?" O trabalho do psicólogo pautado nessas duas últimas questões deve ser um trabalho intencionado e voltado para a forma com que esses indivíduos se mostram no campo. Sobre as emoções, Temple Grandin (2005, p. 62, tradução nossa) acrescenta a seguinte pergunta que pode ser um alvo de reflexão do nosso trabalho: "Eu sinto a emoção do amor, mas não é da mesma forma que a maioria das pessoas neurotípicas. Isso significa que meu amor é menos valioso do que o que as outras pessoas sentem?" O que estamos fazendo com as emoções presentes nos autismos quando dizemos que elas não existem? E que consequência esse tipo de afirmação pode ter na vida dessas pessoas?

Afetar-se é além de pensar no que acontece em determinada pesquisa, pensar também de que forma determinada pesquisa realiza esses acontecimentos na própria pesquisa. A experimentação entra aqui como aposta de trabalho que nos convoca a um fazer e refazer diário, que implica justamente na aceitação que as teorias acerca da deficiência e, sobretudo, sobre o autismo não estão finalizadas. Como escreve Despret (2011), "Trata-se bem de experimentar". "E se eu tentasse isto?" Cada etapa da obra é uma questão endereçada às coisas que vão entrar em sua composição: "o que me propões? Que limites me impões? Que surpresas me reservas?"

No início da pesquisa, éramos tomadas por uma grande inquietação sobre qual era o papel que exercíamos com as crianças autistas e como elas poderiam corresponder àquilo que propúnhamos. Daqui de onde estamos hoje, olhando os relatos atuais, ficamos orgulhosas de perceber que estamos criando um corpo que consegue reconhecer o não saber diante de cada criança e a nossa disponibilidade de aprender o que fazer com cada acontecimento, sem desespero. Não é preciso ensiná-los a se afetarem, pois já se afetam. Não é preciso ensiná-los a se comunicarem, pois se comunicam bem demais. Precisamos criar estratégias que sejam interessantes o suficiente para captar e criar essa interação entre nós.

Com os autismos que temos convivido, podemos dizer que o que ficou mais presente no aprendizado é que necessitamos saber operar além do registro da linguagem. Com essas crianças e adolescentes, vivenciamos outras formas de comunicação para além da verbal. Comunicamo-nos de muitas maneiras em nossas oficinas, por meio das danças, dos olhares, do toque, das brincadeiras, dos saltos, das práticas de subir em cima da mesa ou de fazer barulho, fechar armário, das organizações de brinquedos que precedem o encerramento de oficinas ou do balançar de pezinhos ritmados. Temple Grandin (2009, p. 22, tradução nossa) diz: "As palavras escritas eram muito abstratas para eu lembrar, mas eu podia lembrar laboriosamente os cerca de cinquenta sons fonéticos e algumas regras." Pode-se dizer que alguém que grava exatamente os sons presentes em nossa fala não está se comunicando? Estamos nos atentando para outras formas de comunicação existentes ou apenas dizendo que não servem ou não são boas o suficiente para nossa vida cotidiana? São perguntas que precisam ser consideradas se tivermos a real intenção de estudar a comunicação nos autismos. É necessário criar um corpo, diariamente, para aprender a nos comunicar com eles.

 

Experiência social

Quando a gente começou a conversar sobre a R, plim! Ela chegou. Começou a contar as histórias bíblicas de Ruth e a da multiplicação do azeite para a viúva. Parecia animada em contar mas, toda vez que esquecia algum detalhe como o nome de algum profeta ou o que é que a viúva pediu aos vizinhos, se embolava e acabava mudando de assunto. Falou do congresso, da mãe, de Deus, das histórias, tudo-junto-ao-mesmo-tempo e então respirou fundo. Disse que sentia muita falta do colégio e que só começou a se dar conta disso agora. Que a vida dela era um eterno UFF/casa/igreja e que gostava da UFF e da igreja, mas que queria fazer mais alguma coisa, pois gostava muito de rua. Ela sentou com a gente. Ficamos perguntando sobre o porquê dela ter escolhido essas histórias e ela diz que gosta porque por mais que a pessoa não tenha nada, Deus salva a vida da pessoa e faz ela feliz. E que por isso não vê a hora de conhecer o céu. Acho que ela se identifica muito com as histórias por conta da falta de alguma coisa que as personagens apresentam e que ela deve ter ouvido de si ao longo da vida. Acho que poderíamos trabalhar o inverso, de alguma maneira mexer na potência que habita esse corpinho e que é capaz de mover sua existência aqui mesmo, no plano terrestre.

A B chegou. Meteu o rosto na porta e viu que alguma coisa já estava rolando ali. Quem era aquele povo todo sentado conversando, meu deus? Não éramos só nós três e sua mãe semana passada? Ela não quis entrar na sala e ficou insatisfeita, lá fora. A T saiu pra falar com ela. Depois a T pediu pra que eu fosse, pela familiaridade do meu rosto que já tinha estado com ela na outra semana. E então fui lá. A mãe dela entrou na sala e deixou a filha com a gente lá no corredor. A princípio ela estava muito agitada mesmo, mas não falava de ir embora. Andava pra lá e pra cá, dramatizando consigo mesma as falas do Chaves. Não se voltava pra gente. Íamos mais para perto dela, falávamos alguma coisa, nada acontecia. De vez em quando ela se aproximava da sala, eu ia pertinho como quem a acompanharia caso ela fizesse a menor menção a entrar na sala, mas logo que eu chegava mais perto, ela voltava correndo pro outro lado. Falei que estava tendo música lá dentro da sala, ela chegou pertinho de mim, segurou na minha mão, olhou nos meus olhos e disse, tranquilona "tá bom, legal". Acho tão interessante a forma que ela se coloca com seriedade e sinceridade, sem rodeios, sem abrir espaço para argumentação do outro. A menina é a personificação da assertividade! Como é que não tem controle da fala?... Então a forma que encontramos para interagir com a B foi entrar no seu mundo divertido e vivenciá-lo com ela. Soltávamos os bordões do Chaves nas pausas entre as duas personagens que ela interpretava. A comunicação se deu rapidinho. Ela passou a se voltar para gente e, ao invés de falar bordões soltos, falava alguns que permitiam a entrada de outra personagem na história. Captamos sua deixa e a aproveitamos. .. . Pensei em chamar as meninas que estavam lá dentro com a R para, uma de cada vez ir lá fora e se apresentar a B para que ela conhecesse os outros rostos que estavam lá dentro da sala, enquanto eu alternava e ficava com a R a T trocou comigo.

Voltei pra sala com a R e ela e as meninas estavam com bexigas na mão, brincando de alguma coisa. Quer dizer, as meninas estavam com bolas na mão. Ela não. R começou a procurar o vídeo de uma música na internet para ela cantar pra gente. Cantou uma música evangélica romântica, volume dezoito. Encostada na parede. Eu e as meninas dançávamos com a bolinha devagarinho, depois exageradamente, depois ludicamente, mas ela parecia mais interessada na cantoria mesmo. Teve uma hora que ela começou um dançarzinho maroto enquanto cantava e eu e A fomos para o lado dela, em frente a parede, tomando o modo dela de dançar como quem quisesse dançar junto. Ela parou, saiu da linha que os nossos corpos estavam formando e voltou a ficar na nossa frente. Me pareceu um pouco como apresentação de colégio, sei lá. Meio que um "me olha enquanto eu tô fazendo tal coisa" ou um "um só faz e os outros observam". Acabo sentindo muito isso com ela, não vejo muita abertura para atividades em conjunto mas, sim, atividades que ela faça sozinha ou que observe que nós façamos, separadamente. Não sei porque me senti dessa maneira e se é uma sensação acho que não deve ser ignorada.

Daí a B entrou na sala. A B entra grande, expansiva, um turbilhão de movimentos-palavras-afobação-GRITO, eu ainda servindo de bailarina suavemente enquanto a R cantava, agora baixinho. Toda a atenção foi voltada para a brincadeira de Chaves da B, quem seria qual personagem da série e a R com os olhos enraizados na tela do celular, cantando e depois falando sobre porque gostava de cantar aquela música. Entre a cantoria de uma e as falas da outra fiquei meio tonta. Os assuntos eram totalmente desconectados. Todo mundo já tinha escolhido seus personagens e ela ainda não... Senti que ela estava meio incomodada pela abrupta mudança no ambiente, mas como os olhos estavam todos voltados para ela esperando a sua importante escolha para que a brincadeira pudesse começar, perguntei quem é que ela queria ser. Ela deu de ombros e disse que "todo mundo gostava de Chaves, foi uma época boa", todo mundo seguiu perguntando e ela disse que queria ser a Dona Florinda. E a partir daqui ficou na parede o tempo inteiro. Começamos a brincar de se direcionar umas às outras apenas usando nossos nomes dos personagens e, quando alguém fez menção em invocar a Dona Florinda, a R pede, feito mãe, "não me coloca no meio disso não!" A A interage com ela (ela era o Professor Girafales) e ela faz pouco caso. A B inunda nossos corpos com sua explosão e quando vemos estamos todas correndo pela sala brincando de pique-pega. O olhar aterrorizado da R na parede atraiu alguém a perguntá-la se não queria brincar. Não queria. [...] Então a R quis ir embora. Alguém acompanhou ela até a porta. A interação com as duas ali até aconteceu, enquanto passava pela palavra, pela narrativa da história, quando o foco migra para a dramatização isso parece não ocorrer mais. Continuamos ali na nossa vila, vivendo nossa brincadeira de personagens mexicanos até um pouquinho depois da hora. A B se animou com a ideia da festa de aniversário. Só foi embora quando a mãe dela se levantou. Terminei a oficina me sentindo assustadoramente bem. (Diário de Campo: 31/10/2017)

A nossa experiência com autismos é recheada de tanta multiplicidade que seria muito empobrecedor resumir a complexa experiência de socialização de indivíduos que se encontram no espectro autista a uma pura falta de laço com o outro. A oficina que aconteceu em 2017 com duas adolescentes muito diferentes pode nos levar a muitas reflexões sobre o tema. Se partirmos de uma prática que confia na possibilidade da socialização de autistas, os resultados são caminhos muito mistos. Nesse caso, tínhamos em nossa oficina a adolescente R, com características muito adultas em sua fala e em sua postura, e a B, que estava em outro polo, infantilizada e com um discurso que remete diretamente a um programa de televisão infantil. Haveria socialização entre nós e elas? Interagiriam elas entre si? A confirmação dessas duas perguntas se deu muito rapidamente ao longo de nossa oficina. R estabeleceu um contato muito profundo conosco, pesquisadoras, contando situações íntimas de sua vida. B se relacionou conosco por meio das brincadeiras e conversas que perpassam os caminhos das personagens do Chaves, era nesse discurso linguístico que ela estava se inserindo. Com a B, a aposta de nosso trabalho foi de se sensibilizar para interagir com ela da maneira que a adolescente aparece para nós. Aqui não cabe juízo de valor em seu discurso. Houve discurso. Troca. Risos. Houve experiência social, e isso é inegável. A partir do encontro de duas personalidades tão diferentes na oficina, reforçamos a nossa concepção de que o que há são autismos. A relação que as duas meninas estabeleceram naquele dispositivo foi de certo desencontro, não pelo autismo fazer com que fosse impossível que houvesse relação, mas porque daquela maneira que todos nós nos dispúnhamos no ambiente a articulação possível para a R foi de fuga, a brincadeira de corrida era muito infantil para ela.

Com autismos, precisamos pensar os dispositivos um a um e procurar criar espaços que promovam contato quando possível e, quando não, permitir o não contato, aceitando-o como parte importante da pesquisa, pois é parte da vida das pessoas. Se tomamos esse acontecimento específico como um completo limitador da vida de R em experienciar a socialização, desconsideramos todo o primeiro acontecimento que vivenciamos na oficina e, pior, fechamos as portas para quaisquer outras tentativas de interação social da adolescente.

Em seu vídeo Minha experiência com autismo, Grandin (2008) fala um pouco dos códigos gestuais subentendidos de socialização que os autistas muitas vezes não conhecem. Esses códigos sociais seriam a "maneira correta" de agir socialmente, ou seja, a maneira que a sociedade espera que os indivíduos ajam para que os aceite e os inclua ativamente. A palestrante conta que muitas pessoas autistas têm dificuldade para enxergar e ouvir ao mesmo tempo, então, olhar nos olhos das pessoas muitas vezes dificulta entender o que ela está dizendo. Quando alguém que se encontra no espectro autista e não o olha nos olhos não significa que não está prestando atenção no que você está dizendo, muito pelo contrário, pode estar tentando ouvi-lo melhor.

Dessa forma, podemos reforçar o que dissemos no início de nosso texto, os nossos encontros com os autismos nos possibilitaram compreender que não há indiferença dos autistas em relação às coisas e pessoas que os cercam, ao contrário, eles podem estar muito mais atentos e sensíveis a isso, de tal maneira que precisam "poupar" determinados estímulos para se atentar a outros. Portanto, as interações sociais passam também pela capacidade das pessoas de se tornarem sensíveis a essas diferentes formas de se relacionar, levando em consideração a diversidade dos próprios sujeitos. Mais uma vez, trata-se de construir espaços de interdependência e cuidado que caibam mais e mais pessoas diversas.

 

Considerações finais

Ao nos debruçar no trabalho com os autistas, notamos que as definições dadas sobre eles pelos grandes livros caem por terra. Ao realizar este trabalho, percebemos os afetos existentes nessas crianças e adolescentes ao interagirmos com elas. Desmitificar essas caracterizações incompletas é importante para a Psicologia porque é importante para esses sujeitos. Construir essas narrativas com as crianças e adolescentes autistas nos mostra que existem muitas possibilidades de performar o cuidado, levando em consideração as peculiaridades de cada um. Uma ciência que se importa verdadeiramente com o outro tem de estar disposta a atentar-se para sua capacidade de diferir. As perguntas e problemas apresentados sobre a questão do autismo não se encerram aqui. Para entendermos como o autismo funciona em cada sujeito, é necessário estar com eles, construir um campo afetivo em que os vínculos e o inter-esse aconteça. Ao nos atentarmos para os autismos, como marcamos em nosso texto, um caminho se abre para descobrir as potencialidades desses sujeitos em detrimento de suas dificuldades. Não queremos afirmar aqui que as diferenças não existem, estas são parte integrante de nossas vidas, é justamente por isso que apostamos nessa proximidade, na possibilidade de estarmos juntos compondo um campo de coafetação que leva em conta as especificidades de cada criança e de cada adolescente que se dispõe a estar conosco nessa caminhada de pesquisa. Nesse sentido, a construção do cuidado e da interdependência é essencial para o nosso trabalho, assim como a possibilidade de estarmos atentos aos vínculos gerados e nutridos nos espaços das oficinas. Por último, gostaríamos de retornar à questão das cuidadoras, uma vez que, sem elas, este trabalho não seria possível. Às mulheres que cuidam, gostaríamos de deixar aqui o nosso agradecimento e a nossa solidariedade. Construir um mundo em que seja possível a criação de cada vez mais espaços de cuidado e interação cria a possibilidade de ampliar as redes dessas cuidadoras que se encontram, tantas vezes, solitárias nesse trabalho.

 

Referências

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Recebido em: 26/9/2019
Aceito em: 13/8/2020

 

 

1 A noção de autonomia que trabalhamos não busca um ideal para que todas as pessoas alcancem, é muito mais um guia de projeto terapêutico singular que varia de pessoa e pessoa e que pode contar com diversas ações que buscam sempre a relação dos indivíduos com o mundo da melhor forma possível.

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