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Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

     

 

"Dormindo com a inimiga": imaginário machista em tempos de Covid-19

 

"Sleeping with the Enemy": Male Chauvinism's Imaginary in COVID-19

 

"Durmiendo con la enemiga": imaginario machista en tiempos de Covid-19

 

 

Debora Ortolan Fernandes de OliveiraI; Tomiris Forner BarcelosII; Cristiane Helena Dias SimõesIII; Tânia Maria José Aiello-VaisbergIV

IDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), no Grupo de Pesquisa "Atenção Psicológica Clínica em Instituições: Prevenção e Intervenção", com financiamento de bolsa CNPq. Mestra em Psicologia pela PUC-Campinas. E-mail: deboraofoliveira@gmail.com
IIDoutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, no Grupo de Pesquisa "Atenção Psicológica Clínica em Instituições: Prevenção e Intervenção", com financiamento de bolsa CAPES. Mestra em Psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (Ipusp). E-mail: tomirisfb@gmail.com
IIIDoutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Mestra pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: cristianesimoes@hotmail.com
IVProfessora Livre Docente em Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (Ipusp). Orientadora do mestrado e doutorado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). E-mail: aiello.vaisberg@gmail.com

 

 


RESUMO

Fundamentando-se na Psicologia Psicanalítica Concreta, criada na América Latina a partir da articulação entre a Psicanálise e o pensamento dialético, este estudo objetiva investigar imaginários coletivos machistas sobre mulheres que estão em relacionamentos conjugais heterossexuais, no contexto do isolamento social decorrente da pandemia da covid-19, justificando-se pelo aumento expressivo de ocorrências de violência doméstica nesse período. Organizando-se ao redor da abordagem psicanalítica de memes sobre relações heterossexuais, a investigação permitiu a produção interpretativa de dois campos de sentido afetivo-emocional ou inconscientes intersubjetivos: "Game over" e "Dormindo com a inimiga". Tais campos revelam crenças de que o casamento tira a liberdade do homem casado, privando-o dos prazeres sexuais que mulheres, concebidas como bonecas eróticas, proporcionam aos solteiros, para colocá-lo sob o autoritarismo da esposa, que, fantasiada como figura maléfica, torna-se alvo de uma violência que se apresenta, nesse imaginário, como justificada e legítima.

Palavras-chave: Violência contra a mulher. Covid-19. Sofrimentos sociais. Machismo. Pesquisa psicanalítica.


ABSTRACT

Substantiated on the concrete psychoanalytic psychology, created in Latin America, based on the articulation between psychoanalysis and dialectical thinking, this study aims to investigate the male chauvinism's collective imaginary about women in a heterosexual conjugal relationships, in the context of the social isolation resulted from the pandemic of the COVID-19, justified by the significant increase in domestic violence occurrences during this period. It is organized around the psychoanalytic approach to heterosexual relationships' memes that enabled the recognition of two affective-emotional meaning fields, or intersubjective unconscious, socially prevailing: "Game over" and "Sleeping with the enemy", which reveal beliefs that marriage takes away men's freedom, depriving them of the sexual pleasures that women, conceived as erotic dolls, provide to singles, to place them under women's authoritarianism. Imaginatively conceived as a maleficent figure, women become targets of an aggressiveness that present, in this imaginary, as justified and legit.

Keywords: Violence against women. COVID-19. Social suffering. Sexism. Psychoanalytic method.


RESUMEN

Fundamentándose en la psicología psicoanalítica concreta, creada en América Latina a partir de la articulación entre psicoanálisis y pensamiento dialéctico, este estudio tiene como objetivo investigar imaginarios colectivos machistas sobre mujeres en relaciones conyugales heterosexuales, dentro del contexto del aislamiento social por la pandemia del covid-19, justificado por el aumento expresivo de casos de violencia doméstica en este período. Se organiza alrededor del abordaje psicoanalítico de memes sobre relaciones heterosexuales que permitió la producción interpretativa de dos campos de sentido afectivo-emocional o inconscientes intersubjetivos, socialmente vigentes: "Game over" y "Durmiendo con la enemiga", que revelan creencias de que el casamiento le quita libertad al hombre, privándote de los placeres sexuales que las mujeres, concebidas como muñecas eróticas, brindan a los solteros, para colocarlo bajo el autoritarismo de la mujer. Concebida imaginativamente como figura maléfica, la mujer se vuelve blanco de una agresividad que aparece, en este imaginario, como justificado y legítimo.

Palabras clave: Violencia contra la mujer. Covid-19. Sufrimientos sociales. Machismo. Investigación psicoanalítica.


 

 

Introdução

Malgrado as profundas mudanças que têm transformado significativamente as condições concretas da vida social no mundo globalizado, podemos afirmar que segue produtiva e atual uma perspectiva de atuação e pesquisa denominada Psicologia Psicanalítica Concreta, referencial que, sob a pena do psicanalista José Bleger (1958/1988, 1963/2007), articulou a Psicanálise, pensada segundo um viés kleiniano e fairbainiano, com o materialismo dialético. Seguindo tanto as indicações daquele que considerou sempre como seu mestre, Pichon-Rivière (1988), bem como as críticas propositivas de Politzer (1928/2004), o autor realizou uma contribuição valiosa, que se firmou por meio do uso do método psicanalítico e da reelaboração da noção de inconsciente como dimensão que, antes de ser intrassubjetiva, nasce no âmbito intersubjetivo (Berenstein & Puget, 1997). Surge desse modo uma teoria que guarda profunda afinidade com posicionamento de autores que, a exemplo de Dussel (1998) e Maldonado-Torres (2008), têm defendido a libertação dos povos latino-americanos pela via da superação da colonialidade. Sendo assim, essa perspectiva segue mantendo uma potencialidade inspiradora para psicólogos/pesquisadores que se engajam na clínica de combate a sofrimentos sociais que, vinculando-se ao sexismo, ao racismo e ao classismo estruturais, adquirem contornos singulares em nosso continente. A atualidade da Psicologia Psicanalítica Concreta, bem como sua capacidade de compreender que o acontecer vincular ocorre de modo sempre inserido nas condições macrossociais, legitima nossa opção, na medida em que nela se harmonizam posicionamentos epistemológicos, ideológicos e éticos.

Há ainda que acrescentar que a Psicologia Psicanalítica Concreta, tal como desenvolvida em nosso país, mantém uma interlocução privilegiada com Winnicott, autor que se distancia da metapsicologia (Freud, 1915/1996), dando prioridade tanto ao vínculo como à interação com o meio ambiente, conforme o paradigma relacional (Greenberg & Mitchell, 1994). Parece-nos que com essa informação final sobre as bases do nosso referencial encontramo-nos em condições de esclarecer que adjetivamos a Psicologia Concreta que adotamos porque entendemos, com Carvalho (2020), que outros referenciais, não apenas o psicanalítico, podem aspirar a teorizações que recusem abstrações exageradas. Além disso, cabe lembrar que aquilo que autoriza e até mesmo demanda o uso do adjetivo psicanalítico, na nomeação de nosso referencial, é a manutenção do conceito de inconsciente, bem como o uso do método psicanalítico (Freud, 1912/1996).

Um dos aspectos mais importantes, da Psicologia Psicanalítica Concreta, repousa no reconhecimento de que os campos vinculares estão sempre inseridos em contextos macrossociais. Tal visão é rara na literatura psicanalítica propriamente dita, mas tem sido feita de modo produtivo por estudiosos dos sofrimentos sociais, como Kleinman, Das e Lock (1997), voltados ao estudo dos efeitos subjetivos de situações tais como guerra, tortura, homofobia e violência contra a mulher, entre outras. Outra aproximação frutífera é aquela que encontramos na Psicossociologia, cujo desenvolvimento testemunha o crescimento da consciência acerca da importância das condições sociais na vida afetivo-emocional do indivíduo e do grupo (Barus-Michel, Enriquez, & Levy, 2002).

Estudos recentes têm registrado um aumento dos índices de casos de violência doméstica em diversos países, que parece se correlacionar ao aumento da convivência familiar resultante do isolamento social adotado em função da covid-19 (ONU Mulheres, 2020). Trata-se de uma situação altamente complexa, em que se mesclam sofrimentos sociais de desamparo, humilhação e injustiça, derivados da pobreza, com angústias e medos ligados ao risco de morte, própria e dos próximos, que, combinando-se com o sexismo estrutural, tornam a convivência prolongada, em espaços habitacionais exíguos e desconfortáveis, um facilitador da violência contra a mulher. O Brasil não escapa, de modo algum, a essa tendência, de modo que os índices de violência, eventualmente letal, têm aumentado expressivamente (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020a, 2020b), apesar de ser provavelmente alta a subnotificação em função do enfrentamento de dificuldades maiores de denúncia desse tipo de ocorrência, bem como de busca de socorro, em função da própria pandemia (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020a, 2020b; Maranhão, 2020; Okabayashi, Tassara, Casaca, Falcão, & Bellini, 2020; Vieira, Garcia, & Maciel, 2020).

Entretanto, vale apontar que os índices da violência doméstica já eram altos, em nosso país, antes da pandemia (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019). Esse fenômeno tem justificado a realização de pesquisas em variadas áreas de conhecimento, aí incluída a Psicologia, que tem abordado a questão sob diferentes perspectivas, por exemplo, mapeando variáveis presentes em situações de homicídios conjugais (Martins-Borges, Girardi, & Lodetti, 2017) ou buscando caracterização psicossociológica dos envolvidos (Adames, Bonfíglio, & Becker, 2018). Fica claro que a violência conjugal é um fenômeno multideterminado, cuja compreensão deve levar em conta que determinantes psicológicos e sociais não podem ser dissociados.

A violência doméstica não é um problema isolado, mas algo que expressa e atualiza, no cotidiano, um fenômeno sistêmico, que se propaga em vários espaços sociais, vinculando-se ao fato de vivermos numa sociedade capitalista que é estruturalmente patriarcal e sexista (Bartky, 1990; Federici, 2019). Nela, todas as mulheres sofrem opressão, ainda que esta adquira feições diferentes em função de classe, raça e nível de instrução, entre outros determinantes. Federici (2019) considera que o capitalismo, como sistema econômico-social, baseado em processos de acumulação de capital e exploração da força de trabalho, é inerentemente sexista, porque o trabalho reprodutivo, realizado predominantemente por mulheres, é maximamente explorado e desvalorizado. Em linhas convergentes, Biroli (2018) salienta que, apesar da ocorrência de alguns avanços sociais, estamos ainda distantes da superação do patriarcado, que segue ditando práticas e manifestando-se em múltiplos espaços sociais. A autora o descreve como um conjunto de: "[...] padrões que implicam desvantagens para as mulheres e permitem aos homens dispor do corpo, do tempo, da energia de trabalho e da energia criativa destas" (Biroli, 2018, p. 11).

As mídias sociais tornaram-se importantes canais de interação social na contemporaneidade. No Brasil, essa comunicação se dá muito frequentemente mediante o uso de memes,5 que, veiculando diferentes experiências coletivas, em geral pela via do humor, figuram como uma forma de expressão cultural. No que tange especificamente à atual pandemia, memes e piadas têm ocupado espaço significativo nas redes sociais (FGV DAPP, 2020), sendo que uma expressiva parte desse material tematiza uma ligação entre isolamento social pela pandemia com depreciação da convivência conjugal, sob uma perspectiva machista. Trata-se de uma produção aparentemente volumosa que se presta à realização de pesquisas sobre relações de gênero e violência contra a mulher.

Expressões humorísticas, cuja compreensão gera desafios, foram pioneiramente estudadas por Freud (1905/1996, 1927/1996), no contexto de sua busca inicial por provar a existência de motivações inconscientes, que até hoje despertam o interesse de psicanalistas, como Coelho e Figueiredo (2018). Contudo, mesmo que caiba agradecer a Freud (1905/1996) a iniciativa de ter promovido o humor ao estatuto de fenômeno digno da atenção científica, escolhemos abordá-lo a partir das contribuições de Moreira (2019), que, focalizando o que denomina racismo recreativo, chama a atenção para um aspecto, bastante relevante do ponto de vista blegeriano, que consiste no fato de o humor depreciativo ocorrer sempre num contexto vincular ordenado por crenças e fantasias, conforme as quais existem dois tipos de seres humanos, os dotados de valor e merecedores de respeito e os inferiores e desprezíveis. Observamos, nesse tipo de manifestação, acatamento e submissão a normas meritocráticas prevalentes em sociedades patriarcais, racistas e classistas, na medida em que expressam violência contra grupos sociais oprimidos, contribuindo para a constelação de ambientes violentos. Segundo Moreira (2019), ofender por meio do humor torna-se uma forma sofisticada de racismo, já que não é reconhecido como tal por aqueles que o proferem. Assim, percebemos que a piada concretiza e assume preconceitos para, no mesmo movimento, operar sua negação, já que não se estaria falando a sério, estratégia pela qual se pretende desqualificar eventuais reações daqueles que são insultados.

Notamos que aquilo que Moreira (2019) percebe sensivelmente, no que diz respeito ao racismo, pode ser transposto para o estudo das piadas machistas, valendo lembrar que a comparação da condição feminina com a do negro tem sido destacada na literatura em diferentes momentos, tais como, por exemplo, nos estudos de Federici (2019) e Bartky (1990). Propomo-nos aqui nos inspirar em Moreira (2019), tendo em vista realizar um estudo empírico de memes sobre isolamento social e convivência conjugal, levando em conta contribuições de Winnicott (1971/1975), autor que, atendendo à exigência da Psicologia Psicanalítica Concreta de teorizar sempre em máxima proximidade do acontecer clínico, apresentou colaboração de grande valor sobre os efeitos danosos da submissão que compromete o amadurecimento pessoal.

A piada, racista ou machista, visa humilhar e diminuir, em suma, oprimir, seja o negro, seja a mulher - e sempre a mulher negra. Mas aquele que, na condição de pertencente ao grupo opressor, enuncia o dizer humilhante, posicionando-se de modo superior, está comportando-se, de fato, de modo submisso às normas hierárquicas de raça e/ou às normas hierárquicas de gênero. Em outros termos, não está realizando seu potencial criador, mesmo que tenha sido capaz de juntar elementos díspares para provocar desconcerto momentâneo, dando a impressão de que teria articulado inteligentemente certas ideias. Essa é, aliás, a crença equivocada de humoristas que acreditam ter cumprido sua função quando provocam riso, mesmo quando insultam e humilham grupos oprimidos.

Mas o fato de o riso ser provocado não esgota a possibilidade de compreensão do que está em jogo numa certa manifestação humorística, tornando fundamental, na perspectiva da Psicologia Psicanalítica Concreta, o exame do sentido afetivo-emocional do meme à luz das condições sociais concretas em que ocorre. Esse sentido afetivo-emocional não pode ser determinado de antemão, sem que se examinem os campos vinculares, vale dizer, os inconscientes intersubjetivos, e os contextos macrossociais nos quais ocorrem. Desse modo, propomo-nos a abordar psicanaliticamente manifestações de humor sobre mulheres em relacionamentos conjugais heterossexuais em tempos de covid-19, que vêm circulando em mídias sociais. Visamos, desse modo, produzir conhecimento sobre imaginários coletivos que, constituindo-se como ambientes afetivo-emocionais habitados por indivíduos e grupos, podem tanto contribuir para a negação e banalização da violência como, ao contrário, favorecer superação de normas sociais machistas, classistas e racistas, de modo crítico e verdadeiramente criativo.

 

Estratégias metodológicas

Objetivando a produção de conhecimento sobre imaginários coletivos machistas sobre mulheres que estão em relacionamentos conjugais heterossexuais, no contexto do isolamento social decorrente da pandemia do covid-19, esta pesquisa apresenta-se como estudo qualitativo empírico com uso do método psicanalítico na perspectiva da Psicologia Psicanalítica Concreta (Bleger, 1963/2007). Inserindo-se num conjunto maior de investigações6 por meio das quais buscamos produzir conhecimentos compreensivos sobre sofrimentos emocionais socialmente determinados, este trabalho coloca o método psicanalítico a serviço da superação de condições concretas da vida social, que clamam por mudanças estruturais compatíveis com justiça, respeito e solidariedade.

Delimitamos a Psicologia Psicanalítica Concreta, perspectiva teórico-metodológica baseada em Bleger (1963/2007), leitor de Politzer (1928/2004), lembrando que esta corresponde a uma das vertentes que se incluem no paradigma relacional, que é aquele que teoriza acerca do material produzido pelo uso do método psicanalítico se valendo de conceitos e noções intersubjetivas e relacionais (Greenberg & Mitchel, 1994). Entretanto, importa salientar que a visão blegeriana difere de outras linhas por exigir que os campos vinculares sejam compreendidos como inevitavelmente inseridos em contextos sociais, uma vez que os fenômenos humanos ocorrem na esfera ontológica do ser social (Lukács, 1978), o que nos previne de reduzir o social ao familiar, como faz a maioria dos psicanalistas, mantendo-se distante da possibilidade de pensar de modo verdadeiramente concreto.

Na medida em que a Psicologia Psicanalítica Concreta abandona noções explicativas metapsicológicas, acaba por enfrentar a necessidade de propor conceitos que sejam compatíveis com a produção de conhecimento sobre sentidos afetivo-emocionais dos atos de seres humanos concretos. Firma-se, assim, sobre os conceitos de conduta, campo de sentido afetivo-emocional - sendo uma releitura da noção de inconsciente e imaginário coletivo. Trata-se de um trio conceitual que se faz coerente com o posicionamento de Pichon-Rivière (1988) de valorização da dimensão inerentemente vincular dos atos humanos. Vamos defini-los brevemente.

O conceito de conduta corresponde a todos os atos e manifestações humanas que ocorrem na concretude da intersubjetividade e dos contextos macrossociais. Os atos humanos são inerentemente portadores de múltiplos sentidos, que as diferentes ciências humanas buscam compreender a partir de seus recortes teórico-metodológicos específicos. Por esse motivo, afirma Bleger (1963/2007) que as ciências humanas não se ocupam de diferentes objetos de estudo, tais como a mente, a sociedade e a cultura, mas compartilham o mesmo objeto, que são os atos dos seres humanos concretos, abordando-os a partir de suas perspectivas metodológicas específicas que geram diferentes compreensões. Assim, enquanto outras disciplinas humanas produzem conhecimento sobre sentidos econômicos, culturais, geopolíticos e históricos dos fenômenos humanos, a Psicologia se ocupa dos sentidos afetivos e emocionais das condutas, ou seja, dos atos humanos enquanto drama ou experiência vivida, articulando o registro das experiências vividas pelas pessoas às condições concretas da vida social.

O modo como buscamos investigar os sentidos afetivo-emocionais da conduta consiste em considerar que os atos humanos emergem em campos intersubjetivos macrossocialmente contextualizados. Dado que apenas uma parte extremamente reduzida da experiência vivida se apresenta de modo consciente, a cada momento, tais campos psicológicos são predominantemente não conscientes. Desse modo, devem ser concebidos, na perspectiva da Psicologia Psicanalítica Concreta, como inconscientes intersubjetivos, vivencialmente habitados por pessoalidades individuais e coletivas, conforme a tradição de pensamento da Psicanálise Vincular e da Psicanálise Rio-Platense (Bernstein & Puget, 1997; Pichon-Rivière, 1988).

Tanto conduta como campos de sentido afetivo-emocional são humanamente produzidos, o que nos permite elaborar conhecimento psicológico sem invocar entidades sobre-humanas nem elementos infra-humanos. A conduta é o ato em seu próprio acontecer, enquanto o campo é produzido pela conduta para se tornar, assim que constelado, ambiente humano a partir do qual novas condutas, transformadoras ou reprodutoras, emergem. Sendo assim, não existem diferenças ontológicas entre condutas e campos de sentido afetivo-emocional. Consequentemente, falamos em imaginário como campo e como conduta, dependendo do que estivermos destacando a cada momento.

Lembrando o objetivo do presente artigo, que corresponde à investigação de imaginários coletivos machistas sobre mulheres em relacionamentos heterossexuais em tempos de pandemia, passaremos, a seguir, a descrever os procedimentos investigativos, por meio dos quais operacionalizamos o uso do método psicanalítico na perspectiva da Psicologia Psicanalítica Concreta.

O procedimento investigativo de produção do material de pesquisa realizou-se pelo uso de memes sobre relações conjugais heterossexuais que circularam tanto em grupos mistos de WhatsApp, vale dizer compartilhados entre homens e mulheres, quanto em redes sociais como Instagram e Facebook, durante os meses de março e abril de 2020. Os 17 memes, aqui estudados, foram selecionados a partir de dois critérios psicanaliticamente relevantes para o objetivo desta pesquisa: a) por tematizarem manifestamente questões sobre mulheres que mantêm relacionamentos conjugais heterossexuais, na perspectiva de um narrador de sexo masculino; e b) por gerarem impactos afetivo-emocionais significativos entre as pesquisadoras.

O procedimento investigativo de interpretação do material de pesquisa deu-se pela abordagem dos memes em estado de atenção flutuante e associação livre de ideias. Adotando as palavras de ordem de Herrmann (1979), "deixar que surja", "tomar em consideração" e "completar a configuração dos sentidos emergentes", criamos/encontramos campos de sentido afetivo-emocional que correspondem ao inconsciente intersubjetivo com o qual trabalha a Psicologia Psicanalítica Concreta (Bleger, 1963/2007).

Por fim, dedicamo-nos à discussão, à qual chamamos de interlocuções reflexivas, etapa do desenvolvimento da pesquisa em que suspendemos o uso do método psicanalítico, vale dizer da associação livre e atenção flutuante, para retomarmos os resultados interpretativos, apresentados como campos de sentido afetivo-emocional. Buscamos, então, aprofundar nossa compreensão de modo reflexivo e estabelecendo interlocução com autores, psicanalíticos ou não.

 

Resultados interpretativos

A consideração psicanalítica do material permitiu a criação/encontro de dois campos de sentido afetivo-emocional, como resultados interpretativos, que denominamos "Game over" e "Dormindo com a inimiga".

O primeiro campo de sentido afetivo-emocional, nomeado como "Game over", organiza-se ao redor da crença de que o casamento seria a realização de um desejo feminino que traz prejuízo à qualidade de vida do homem. Emerge, a partir desse campo, um imaginário segundo o qual a vida de solteiro seria regida por múltiplos prazeres, entre os quais se destacariam os sexuais, e pela ausência de riscos, de responsabilidades e de limites. A Figura 1 apresenta um meme (M10) selecionado para auxiliar a compreensão desse campo.

 

 

Podemos citar, ainda, como exemplo, a produção M13, que mostra uma foto de seis mulheres de máscaras, que vem sendo usada como medida de proteção durante a pandemia, em um sofá vermelho, todas sentadas com as pernas cruzadas, blusas decotadas, saias curtas e saltos finos e bem altos, sugerindo estarem em uma casa de prostituição, com um anúncio em cima dizendo: "Serviços essenciais seguirão funcionando". Outro exemplo de produção, que emerge do presente campo, apresenta a seguinte frase: "Dicas importantes: Se for SOLTEIRO: evite baladas, bares, happy hour, conhecer gente nova, contato, etc... Se for CASADO: não muda nada".

 

O segundo campo, intitulado "Dormindo com a inimiga", organiza-se ao redor da crença de que a mulher casada é um ser imotivadamente autoritário e violento. A Figura 2 apresenta M11 como expressão desse campo:

 

 

Em relação a outros memes que versam sobre o segundo campo, citamos como exemplo a produção M7, contendo um texto que diz: "Amigos! Hoje (22/03/2020), às 20h, vamos aplaudir os MARIDOS, que bravamente estão aturando suas esposas, em face das restrições impostas pelo coronavírus. Inclusive, muitos estão há mais de 24h em quase regime de internato em suas respectivas casas. Portanto, amanhã, 22/03/2020, às 20h, vamos aplaudir esses bravos guerreiros de nossas janelas, varandas, portões, por tamanho ato de bravura". Além da produção M9, que traz a seguinte frase: "Com o confinamento, comecei a entender o Big Brother. Esta semana, vou indicar minha mulher para o paredão".

Apresentamos no Quadro 1 os 17 memes estudados, conforme os campos a partir dos quais emergem; vale dizer, a partir do primeiro, do segundo ou conjuntamente a partir dos dois campos de sentido afetivo-emocional. É importante destacar que, por corresponder a uma resposta complexa em relação ao fenômeno estudado, cada meme pode emergir de mais de um campo, o que aconteceu, em nossa pesquisa, com quatro produções, conforme mostra o Quadro.

Esse material revela que estamos diante de um imaginário no qual a mulher é concebida como um ser nefasto e maléfico, ao colocar o homem casado em uma condição desvantajosa quando comparada à do homem solteiro, mas ao mesmo tempo sexualmente excitante e desejável. Desse modo, a figura feminina corresponderia ao que o psicanalista Fairbain (1952/1962) descreve como objetos maléficos excitantes, que provocam emoções conflitantes e penosas.

 

Interlocuções reflexivas

O primeiro campo de sentido afetivo-emocional, "Game over", revela que o casamento, concebido num plano imaginativo machista, prejudicaria o homem e beneficiaria a mulher. O mundo do solteiro é aqui fantasiado como uma espécie de paraíso que seria habitado por homens - na qualidade de seres humanos dotados de subjetividade -, mas nele também transitariam mulheres, concebidas como objetos sexuais despersonalizados, destituídos de volição própria, mas disponíveis para servir. Ao casar-se, o homem perderia acesso a esse mundo maravilhoso dos solteiros. Além disso, o casamento se revelaria ainda mais nefasto, na medida em que o homem teria caído no logro de acreditar que a esposa se manteria numa grande disponibilidade erótica, que teria sido acenada durante o namoro. Assim, as esposas seriam seres que, sem motivo aparente, se furtariam a manter relações sexuais com seus maridos.

Diante disso, percebemos que, quando a figura feminina é fantasiada fora do casamento, apresenta-se como disponível e sem necessidades próprias, sendo vista imaginativamente como brinquedo sexual, a ser usado pelo homem unicamente para seu próprio prazer. Nesse sentido, o homem não estaria procurando estabelecer uma relação com uma pessoa, mas sim em dispor de um objeto. Essa mulher corresponderia, portanto, a uma espécie de brinquedo erótico, sem vida própria. Deparamo-nos, portanto, com um movimento de despersonalização radical da mulher, que é, assim, atacada e desumanizada (Aiello-Vaisberg, 2017; Bartky, 1990).

Entendemos como fundamental reconhecer que a objetificação sexual consiste numa forma de opressão que prejudica significativamente a mulher. A partir da experiência proporcionada pela leitura do livro Peles negras, máscaras brancas, de Frantz Fanon (1952/2008), Bartky (1990) discorre sobre a necessidade de repensar as formas de opressão feminina. A seu ver, devemos considerar que a exploração econômica e a dominação política são, evidentemente, problemas altamente relevantes que, contudo, não nos devem cegar para a necessidade de reconhecer o fenômeno da exploração psicológica, que, além de causar sofrimento subjetivo, encontra-se a serviço da manutenção de hierarquias e padrões estruturados socialmente, por meio dos quais se mantém os privilégios dos dominadores. De acordo com a autora, a exploração psicológica da mulher seria formada pelo uso de estereótipos, pela dominação cultural e pela objetificação sexual. Essa última ocorreria quando partes do corpo ou funções sexuais são representadas como separadas da pessoalidade da mulher e tratadas como instrumentos, tornadas eróticas de modo e em momentos inadequados e desconfortáveis, ou ainda tratadas como se representassem a pessoa em sua totalidade, descrição que nos remete à mulher-brinquedo sexual que encontramos no campo "Game over".

Quando nos debruçamos sobre o segundo campo, "Dormindo com a inimiga", deparamo-nos com outra figura de mulher, que surge como um ser imotivadamente maléfico; vale dizer, como alguém que faria o mal como expressão de sua própria natureza, e não como resposta a alguma interação ou acontecimento. Não mais um objeto a ser prazerosamente usado, mas um ser cuja despersonalização se faz por outros caminhos, pelos quais a mulher é tomada, se levarmos em conta elementos da cultura, como uma bruxa, ou seja, transformada numa figura parcial, no sentido kleiniano do termo (Bleger, 1963/2007). A bruxa existe com o único fito de atormentar e fazer sofrer sua vítima, configurando-se, desse modo, como merecedora de todas as punições.

A nosso ver, as contribuições de Federici (2017) podem se revelar úteis se quisermos aprofundar nossa reflexão sobre essa clara associação entre a esposa e a bruxa insubmissa. A historiadora tem realizado pesquisas nas quais buscou resgatar aspectos, que foram ocultados na história europeia, que podem contribuir para uma melhor compreensão do fenômeno da opressão feminina no patriarcado capitalista. Entendendo que, durante os tempos medievais, a organização social, garantindo aos camponeses o acesso familiar a terra, permitia um viver comunal no qual a mulher conhecia uma condição de certa igualdade em relação ao homem. Essa organização foi se transformando paulatinamente à medida que os servos camponeses se tornaram trabalhadores assalariados em ambientes urbanos. Tal mudança gerou efeitos extremamente danosos para as mulheres, porque resultou numa separação bem-definida entre trabalho produtivo remunerado e trabalho reprodutivo - não remunerado. Assim, as mulheres, responsáveis pelo trabalho reprodutivo, viram-se em condição bastante próxima à dos negros escravizados, trabalhando em troca de alimento e abrigo.

Como vimos, os campos de sentido afetivo-emocional interpretados, a partir dos memes do período inicial da pandemia no Brasil, revelam como homens e mulheres são imaginados de modos bastante diferentes. Enquanto as mulheres seriam bonecas destinadas ao prazer erótico ou bruxas, os homens seriam automaticamente considerados humanos pelo simples fato de terem sido designados como masculinos, ou seja, fica garantida aos homens a humanidade que não é atribuída às mulheres. Ora, tanto a bruxa doméstica como a boneca erótica são vítimas de fenômenos de humilhação e despersonalização, já que nenhuma delas é vista como pessoa no sentido rigoroso da palavra.

Os memes, aqui estudados, anunciam também um descrédito nas relações sexuais e amorosas, já que estas parecem não levar a vivências criativas e dotadas de sentido. Discorrendo sobre a despersonalização, que advém da impossibilidade de se estabelecer um vínculo criador com o viver, Machado e Aiello-Vaisberg (2004) apontam para o sofrimento provocado na mulher por ela ser vista como objeto sexual, condição a partir da qual se deduz uma suposta inferioridade natural que explicaria toda e qualquer conduta desrespeitosa, na medida em que a mulher não seria total e plenamente humana.

Assim, as duas formas pelas quais as mulheres são representadas, nos memes estudados, são humilhantes e prescrevem condutas conforme o código vigente das relações heterossexuais, que impõem a submissão feminina (Biroli, 2018). Vale também lembrar que algo, que ofende e humilha um grupo social, sob o argumento de consistir em "simples brincadeira", não corresponde ao que realmente podemos considerar como conduta criativa e brincante. O que se veicula, por meio do meme, é uma agressão, sendo que aquele que agride parece se divertir e se impor, mas não faz mais do que repetir, de modo inconscientemente submisso, uma ou outra variação de algo que é sempre o mesmo, ou seja, as normas hierárquicas de gênero.

Considerando a teoria winnicottiana do amadurecimento humano, deparamo-nos com uma importante contribuição para pensar a questão do humor. Para esse psicanalista, o ser humano é dotado de uma tendência inata ao amadurecimento, que o encaminha rumo à realização de sua singularidade e potencial criativo, mesmo quando vive em ambientes sociais que não podem ser considerados suficientemente bons. A realização do potencial criativo pessoal equivale, na Antropologia winnicottiana, ao desenvolvimento da capacidade de brincar, fenômeno que não concebe em termos meramente comportamentais, e sim como posicionamento criativo diante da realidade (Winnicott, 1971/1975). Assim, o brincar, quando verdadeiramente ligado ao potencial criativo, favorece a existência pessoal em bases genuínas e autênticas. Tal existir implica o estabelecimento de relação com a realidade, a partir de um estado experiencial - incompatível com a opressão passivamente aceita -, no qual a pessoa se sinta viva, real e capaz de gestualidade espontânea transformadora de si e do mundo. Portanto, o brincar é, como posicionamento existencial, inerentemente oposto ao submeter-se.

No entanto, o estudo empírico, que realizamos, corrobora, na área das relações de gênero, o mesmo tipo de jogo constatado por Moreira (2019) em sua abordagem do racismo recreativo. Convergimos, portanto, com o autor, no sentido do reconhecimento de que o humor pode ser usado como meio de opressão e ao mesmo tempo contribuir para a negação e banalização do fato. Por serem colocadas como brincadeiras, tanto as piadas como os memes, dificultam a defesa da vítima, que poderá ser facilmente tachada como conservadora, mal-humorada, destituída de senso de humor e até mesmo pouco compreensiva. Na mesma linha, piadas machistas podem servir como forma de manutenção das relações hierárquicas de gênero, contribuindo para criar ambientes psicológicos que favorecem a violência contra a mulher, seja esta verbal, psicológica ou física.

O contexto de pandemia desnuda as desigualdades de condições existenciais e a perversidade dos sistemas de opressão de raça, gênero, classe e geração, lembrando que estas não são abstratas e se estabelecem diretamente sobre pessoas concretas, causando sofrimentos profundos (Almeida, 2020). O contexto de isolamento social, apesar de promovido como medida sanitária, parece ter agravado a violência, que já era motivo de grande preocupação e apreensão das mulheres, nas relações de âmbito público e privado, especialmente no Brasil. Destarte, reconhecemos que esse imaginário machista, em que a mulher é figura de modo duplo, como objeto sexual despersonalizado e como um ser maléfico que impede o homem de ter uma vida de qualidade, parece incentivar ainda mais a violência doméstica neste contexto de pandemia.

Finalizando, destacamos que, como conduta, as manifestações de humor devem ser empiricamente examinadas, levando-se em conta tanto o seu sentido afetivo-emocional, tal como pode ser compreendido mediante o uso do método psicanalítico, bem como os contextos macrossociais em que ocorrem. Subscrever teorias gerais sobre esse fenômeno, sem respaldo em pesquisas empíricas, parece-nos uma escolha equivocada que não contribuirá para a produção de conhecimento relevante do ponto de vista ético-político. Concluímos que o estudo do imaginário coletivo, a partir das memes que abordamos, revela como, apesar dos avanços sociais já alcançados, no que tange às desigualdades de gênero, ainda não chegamos a uma condição de vida na qual a humilhação não seja fonte de riso e formas verdadeiramente brincantes de humor harmonizem-se com o respeito incondicional ao ser humano.

 

Referências

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Recebido em: 11/9/2020
Aprovado em: 04/05/2021

 

 

1 O termo que batiza o nosso objeto de estudo foi originalmente cunhado por Richard Dawkins (2007), concebido como uma unidade de replicação, que carrega uma informação, buscando uma noção geral do devir da cultura. Os memes podem ser expressos por objetos bastante diferentes, indo desde ideias até mesmo moda, entre outros.
2 Estas têm sido desenvolvidas no Grupo de Pesquisa "Atenção Psicológica Clínica em Instituições: Prevenção e Intervenção", na linha de pesquisa de Psicologia Clínica Social, na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. O presente grupo de pesquisa conta com financiamento CNPq e Capes.
3 Nota. Encontramo-nos diante de um material relativamente homogêneo, na medida em que emerge a partir de dois campos de sentido afetivo-emocional que, como veremos, são variações sobre o mesmo tema, sendo que ambos versam sobre como a mulher e o casamento perturbariam a vida masculina.

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