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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.2 São João del-Rei jun. 2021

 

Pichon-Rivière: uma "Psicossociologia latino-americana" para os tempos de hoje

 

Pichon-Rivière: a "Latin American Psychosociology" for today's times

 

Pichon-Rivière: una "Psicosociología latinoamericana" para los tiempos de hoy

 

 

Marta Maria OkamotoI; Emilia Estivalet BroideII; Maria Cristina Gonçalves VicentinIII

IPsicóloga e psicanalista. Mestra pelo Programa de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutoranda pelo mesmo programa, integra o NUPLIC - Núcleo de Estudos e Pesquisas Lógicas Institucionais e Coletivas da PUC-SP. Professora da graduação em Psicologia da Fundação Herminio Ometto (FHO), Araras-SP. E-mail: martamokamoto@gmail.com
IIPsicóloga e psicanalista. Mestra em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP), onde integra o Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política. E-mail: emilia_bro@uol.com.br
IIIDocente do Programa de Pós em Psicologia Social da Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), onde coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas Lógicas Institucionais e Coletivas. Mestra em Psicologia Social pela PUC-SP. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. E-mail: cristinavicentin@gmail.com

 

 


RESUMO

No cenário das crises sanitária (em função do coronavírus) e política brasileiras, de distanciamento físico e microfascismos cotidianos, é necessário reafirmar a potência do trabalho grupal. Neste texto, revisitamos a proposta das Teorias e Técnicas Operativas de Pichon-Rivière, reconhecendo sua emergência no contexto sociopolítico latino-americano de violências políticas e autoritarismos e sua pertinência como práxis psicossociológica, com potência de intervenção nestes tempos sombrios. Com base na revisão de literatura, revisitamos as principais formulações conceituais e metodológicas da Teoria e Técnica de Grupos Operativos. Fragmentos de uma recente experiência de grupo operativo com adolescentes imigrantes ou filhos de imigrantes na cidade São Paulo nos fazem reafirmar a potência grupal como produção do comum na heterogeneidade e como afirmação do coletivo em relação ao individualismo. Em tempos de sufocamento, restrição de liberdades, ataques às conquistas sociais, os grupos são e devem ser lugares de resistência.

Palavras-chave: Grupos operativos. Pichon-Rivière. Imigração. Adolescência.


ABSTRACT

In the current scene, in which the sanitary (due to the new coronavirus) and the Brazilian political crises are intertwined with physical distancing and daily micro fascisms, it is necessary to reaffirm the power of group work. We, herein, revisit the proposal of Pichon-Rivière's Operative Theories and Techniques, recognizing its emergence, in Latin American sociopolitical context, under political violence and authoritarianism, and its pertinence as psychosociological praxis, with power of intervention in current gloomy times. Based on a literature review, we have revisited the main conceptual and methodological formulations of the Theory and Technique of Operative Groups. Fragments of a recent experience of an operative group with immigrant adolescents or children of immigrants in the city of São Paulo make us reaffirm the group power as to the production of common ground in heterogeneity and as an affirmation of the collective over the individualism operating in a capitalistic and neoliberal social model. In times of suffocation, restriction of freedoms, attacks on social rights, groups are and should be places of resistance.

Keywords: Operative group. Pichon-Rivière. Immigration. Adolescence.


RESUMEN

En el escenario de la salud brasileña (por el coronavirus) y las crisis políticas, del desapego físico y los microfascismos cotidianos, es necesario reafirmar el poder del trabajo en grupo. En este texto, revisamos la propuesta de Teorías y Técnicas Operativas de Pichon-Rivière, reconociendo su emergencia en el contexto sociopolítico latinoamericano de violencia política y autoritarismo y su relevancia como praxis psicosociológica, con potencial de intervención en estos tiempos oscuros. A partir de la revisión de la literatura, revisamos las principales formulaciones conceptuales y metodológicas de la Teoría y Técnica de los Grupos Operativos. Fragmentos de una experiencia reciente de un grupo operativo con adolescentes inmigrantes o hijos de inmigrantes en la ciudad de São Paulo nos hacen reafirmar el poder grupal como una producción común en la heterogeneidad y como una afirmación del colectivo en relación al individualismo. En tiempos de asfixia, restricción de libertades, ataques a las conquistas sociales, los grupos son y deben ser lugares de resistencia.

Palabras clave: Grupos operativos. Pichon-Rivière. Inmigración. Adolescencia.


 

 

Introdução

Estamos em um contexto quase inimaginável no Brasil há pouco tempo: em meio a uma crise sanitária mundial - em função do coronavírus -, uma quarentena eterna, iniciada em março de 2020, e um (des)governo que entrega o que prometia desde a eleição: desprezo pela vida humana, negando a ciência e as evidências, sustentando um discurso fascista que justifica a morte por negligência estatal como um mal necessário, que atingiu a trágica marca de mais de 460 mil mortos pela covid-19 em 29 de maio de 2021.1

Neste cenário, é possível falarmos do trabalho grupal reafirmando sua potência? Quando os aglomerados, ajuntamentos, agrupamentos, encontros estão impedidos de se realizarem para evitar o contágio e especialmente limitados por quem se preocupa com a própria saúde e do outro; quando a vida passa a ser on-line para os que podem: aulas, reuniões, supervisões, atendimentos, shows, cinemas, teatro; quando o home office pode ser traduzido hoje por muito mais trabalho, alta produtividade, sem horário para acabar, disponibilidade ilimitada e solidão. Como podemos seguir sendo grupos, na ausência da presença dos corpos, buscando atabalhoadamente nos reconhecer na tela do computador ou na minitela do celular?

Nestes tempos sombrios, quando a questão central não é apenas a do debate ideológico (e suas tensões), mas, principalmente, a da produção de um regime afetivo de envenenamento da sociabilidade, de microfascismos cotidianos e de fomento de práticas autoritárias e intolerantes; tempos em que certo tipo de poder vigente visa a nos separar de nossa força, visa inculcar o medo e, sobretudo, promover a sensação de impotência, somos desafiados à experimentação de novas formas de organização, de auto-organização, de sociabilidade, de dissidência e de sustentação/produção do comum.

Quando se veem alteradas as condições de produção das grupalidades (como as do encontro presencial no círculo), faz-se necessário "criar grupo", "habitar o grupo" com um tipo de presença que faça suplência ao contato físico, ao toque, ao olho no olho. Nesse momento de visibilização e incremento do autoritarismo, da misoginia, do racismo estrutural e da violência de Estado no Brasil, revisitar e destacar a importância da trajetória latino-americana quanto ao grupal nos possibilita pensar e enfrentar este contexto de forma crítica, clínica e política.

De fato, a experiência latino-americana com o grupal é inspiradora, pois se forja e/ou se desdobra em contextos igualmente tensos e em meio a lutas contra a opressão política. Podemos citar como exemplos o trabalho de Martin Baró,2 em El Salvador; as experiências grupalistas argentinas ou brasileiras em meio à ditadura dos anos 1970 (cf. Coimbra, 1995). Interessa-nos destacar no presente trabalho a proposição de um campo original de pensamento forjado na Argentina por Enrique Pichon-Rivière (1907-1977), denominado por ele de Teoria e Técnica dos Grupos Operativos (Pichon-Rivière, 2005). "Estranho ponto de encruzilhada" e "orquestração peculiar" de diversas orientações (freudo-marxismo; materialismo histórico; escolas psicanalíticas, em particular as inglesas; escolas norte-americanas, mas também o trabalho dos filósofos Georges Politzer, Gaston Bachelard, dentre outros) que reuniu Pichon-Rivière e seus discípulos: José Bleger, Fernando Ulloa, Armando Bauleo, Gregorio Baremblitt. (Baremblitt, 1986, p. 14).

Tal ebulição catalisa para dentro das instituições e da formação psicanalítica na Argentina, com reflexos na América Latina, inquietações teórico-políticas mais abrangentes na forma da contestação da política autoritária e centralista do Estado, assim como das práticas psicanalíticas individualistas e cindidas do social (Barros, 2012). Isto é, naquele tempo, combatiam-se as hierarquias médico-hospitalares, o autoritarismo psiquiátrico-manicomial, a rígida hierarquia das Associações de Psicanálise, a verticalidade nos espaços educativos etc. Naquele período na Argentina, o destaque deve ser dado à experiência da fundação do grupo Plataforma, composto por 11 psicanalistas, que se formou como dissidência da Associação Psicanalítica Argentina.

Pichon-Rivière afirmava que era nas instituições, nas ruas, que a teoria psicanalítica tinha de estar, porque ela tinha muito a refletir e contribuir para o seu contexto. Tal crítica representou seu afastamento da teoria da psicanalista inglesa Melanie Klein, hegemônica à época na formação da International Psychoanalytical Association (IPA - principal órgão mundial de credenciamento e regulamentação da Psicanálise), e, consequentemente, seu afastamento do lugar de analista didata (Baremblitt, 1986).

Os Grupos Operativos foram transformadores, constituindo-se como um dispositivo-chave para o trabalho nos espaços públicos e oferecendo uma forte ancoragem para que os jovens profissionais pudessem denominar a si mesmos trabalhadores de saúde mental (Fernández, 2006). Tais ideias se difundiram por toda a América Latina e também no Brasil, formando profissionais de diversos campos, como saúde, educação, assistência social etc. A Psicossociologia latino-americana, desde Pichon-Rivière, será objeto aqui de uma "visita" em suas bases, de forma a colocar seus fundamentos em diálogo com as questões que abordamos atualmente na prática com grupos.

Para tanto, apresentaremos tais bases a partir de revisão de literatura, conforme pesquisa de mestrado de Okamoto (2017) e vinheta de prática grupal, desenvolvida pela mesma autora do mestrado (já no âmbito de pesquisa de doutoramento em Psicologia Social) em um contexto comunitário da cidade de São Paulo com grupo de adolescentes imigrantes ou filhos de imigrantes.

Nosso intuito neste artigo é apresentar as inquietações da práxis de Pichon-Rivière, mostrando como estas seguem atuais, como um farol que pode iluminar nossos caminhos na construção do campo grupal nestes tempos sombrios. Na elaboração pichoniana, há o reiterado convite ao gesto de compartilhar, construir junto entendimentos e saídas para os diferentes impasses colocados pela pergunta sobre como viver em um ambiente adverso, hostil e violento, mantendo-se criativo e plural, aberto ao devir de novas aprendizagens. Nesse movimento, sendo possível deslocar o individual e próprio para o coletivo, construindo um comum que difere do homogêneo, pois preserva singularidades e grupalidades de forma não excludentes.

Pichon-Rivière, quando refletiu sobre os grupos, pensou-os sempre como lugar onde se produz novas subjetividades no jogo permanente da experiência do vínculo entre os participantes. Ele pensou o grupo como produtor e produto de seu tempo, local privilegiado de encontro com o outro, onde é possível, por meio do olhar do outro, deslocar-se de posições dilemáticas (Pichon-Rivière, 2005). Nesse movimento do singular ao coletivo, de localização histórica, é possível entender-se como parte de um processo e inventar saídas para os impasses contemporâneos que são colocados, tanto em nível dos grupos quanto dos sujeitos.

As experimentações grupais aqui referidas nos mostram que exatamente neste contexto os grupos podem ser um lugar privilegiado, em que, a partir das trocas de experiências, do falar de si e escutar o outro, podem se tecer elementos sobre as redes em que se está inserido, assim como tecer outras redes.

 

Dos grupos operativos

Podemos dizer que nos Grupos Operativos a experiência de estar em grupo é radicalmente perder o que é próprio e singular para se entregar ao coletivo, ao mesmo tempo em que é impossível sair da experiência grupal sem que apareça o que é mais próprio e único de cada um.

Esse encontro entre o singular e o coletivo faz da experiência grupal e de sua reflexão um campo de potências e disputas entre o psíquico e o político, inventando, à maneira dos grupos, a criação do comum no encontro dos diferentes. Esse comum, contudo, não pressupõe subjetividades homogeneizadas; ao contrário, possibilita que o diverso se apresente para a construção de uma coletividade que não se separa da produção de singularidade.

Nessa aposta, Pichon-Rivière constrói sua teoria dos Grupos Operativos. Ele acreditou na força dos coletivos e fez sua obra calcada na necessária e inevitável articulação entre o sujeito e o social, entre o paciente e sua família, entre os grupos e as instituições, entre as instituições e a política, enxergou que nesse movimento se reúnem as condições necessárias para as transformações sociais e políticas desejadas (Okamoto, 2017).

Esse "entre" significa que não basta que um corpo viva para que o sujeito exista, é necessário que o corpo do sujeito, esse batimento biológico, encontre consonância no laço social com o outro. Enfatiza em sua obra a concepção do sujeito agente, produtor e protagonista da história, configurado em sistemas vinculares e tramas mais complexas do que a Psicologia Social pensava naquele momento (Jasiner, 2003).

Partindo das relações sociais que foram internalizadas, configura-se o que Pichon-Rivière chamará de relações ecológicas, estruturas vinculares que incluem o sujeito, o objeto e suas mútuas inter-relações. A Psicologia clássica, que até então se praticava, dicotomizava indivíduo e sociedade, estudava-o isoladamente, o que fazia da Psicologia uma ciência abstrata e apartada de seu meio (Pichon-Rivière, 1988).

Ao pensar sobre a intrincada trama das relações que transcendem as subjetividades, tenta entender as condições que as produzem. Assim, questiona a Psicanálise, sua concepção de homem e de mundo, e o objeto de sua preocupação será os processos sociais e históricos, mantendo-se sempre fiel à preocupação que o acompanhava, desde a juventude, de pensar o homem localizado em um determinado contexto histórico e social.

Pichon-Rivière constrói sua original trajetória da Psicanálise à Psicologia Social, afirmando a inter-relação dialética homem e meio e a articulação entre dimensão psíquica e sistema social. Ele forja a noção de vínculo e das tramas vinculares como aquilo que sustenta/produz o processo de subjetivação que seria, portanto, indissociável das formações sócio-históricas (Pichon-Rivière, 1988).

Nesse caminho, Pichon-Rivière construirá um campo de saber de múltiplas referências (materialismo histórico, Psicanálise, Psicossociologia, surrealismo), na forma de uma epistemologia convergente (a espiral dialética), ampliando os referenciais disponíveis para pensar a subjetividade. Para ele, era importante que o campo operativo da Psicanálise não se reduzisse à própria disciplina, mas se fortalecesse no convívio de diferentes saberes e práticas, constituindo-se de forma transdisciplinar (Pichon-Rivière, 1988; 2005).

Os Grupos Operativos propunham "aprender a pensar", "romper estereótipos", "elaborar ansiedades frente à mudança", criando assim as condições para que palavras sufocadas tivessem lugar, ganhassem movimento e criassem novos sentidos para as práticas coletivas. O dispositivo Grupo Operativo emerge, então, como um organizador social de espaços de experiência, como espaço de mediação, de desideologização, de problematização e de trabalho na trama vincular para o enfrentamento das estereotipias e das situações dilemáticas. (Bauleo, 1983; Woronowski, 2003).

O Grupo Operativo se afirma como uma utopia política: é na aposta da construção grupal que se produzem processos de autonomização dos sujeitos, por meio de uma experiência de gestão coletiva das diferenças postas em jogo pela tarefa que se propõe comum (Woronowski, 2003). Os Grupos Operativos caracterizam-se por estarem centrados, de forma explícita, em uma tarefa, seja ela a aprendizagem, terapia, seja ela diagnóstico de dificuldades de uma organização profissional, grupos de criação etc. Sob essa tarefa subjaz outra, implícita, que aponta para a ruptura, por meio do esclarecimento das pautas estereotipadas que dificultam a aprendizagem e a comunicação.

A tarefa, objetivo ou finalidade do grupo tem a função de ser um elemento disparador do processo grupal, é o que dá o ponto de partida para que o trabalho grupal comece. O grupo faz uma reflexão sobre a tarefa, observando os alcances e os sentidos que esta tem para cada um (Bauleo, 1983).

A tarefa supõe trabalho, muitas vezes significa sofrimento, mas também prazer da criação; para se pôr em posição de trocas dentro do grupo, o sujeito precisa renunciar a uma imagem de si como totalidade para permitir que o outro adentre o seu mundo interno, tornando-se objeto de conhecimento do outro. Não por acaso, uma das questões com a qual Pichon-Rivière mais se deteve, ao pensar sua teoria dos grupos operativos, foi justamente o medo da mudança. Assim, segundo Pichon-Rivière, a tarefa consiste na elaboração de duas ansiedades básicas: medo da perda das estruturas existentes e medo do ataque na nova situação por considerar que não se tem os instrumentos para enfrentá-la. Essas duas ansiedades, coexistentes e cooperantes, configuram a situação básica de resistência à mudança (Pichon-Rivière, 2005).

Tal situação em um grupo deve ser superada no acontecer grupal, no qual acontecem três momentos dialéticos: tese, antítese e síntese, em um processo de esclarecimento que vai do explícito ao implícito. Para Pichon-Rivière (2005), a tarefa do grupo é transformar dilemas em problemas. Ele entende que a situação dilemática é confrontativa, paralisando a tarefa e funcionando como defesa à possibilidade de mudança. Ao trabalhar com os medos básicos, o coordenador explicita as formas de interação entre os membros do grupo, os modelos internos que orientam a ação do grupo, as fantasias, as formas de comunicação. Trabalha no sentido da resolução das contradições internas do grupo, reafirmando a tarefa. O que conduz o grupo, portanto, não é o coordenador, mas sim a tarefa. Ela é o referente em torno do qual todos os integrantes do grupo estão ligados.

O pensamento-ação da Teoria e Técnica dos Grupos Operativos, na esteira da noção de práxis, forja a genial noção de operatividade como grupo que trabalha (na conformação da tarefa que se faz o caminho) e se trabalha, porque não se separa a experiência problematizadora do aprender e do lidar com a tarefa em questão, da experiência de lidar com os conflitos resultantes da heterogeneidade dos diferentes saberes e posições que se colocam no grupo (muitas vezes de forma fragmentada e dispersa).

Quando se trabalha com um objeto, não somente ele está sendo modificado, mas também o sujeito. José Bleger, psicanalista e grupalista argentino, discípulo direto de Pichon-Rivière, afirmará que não é possível ir além das possibilidades reais do objeto e das possibilidades psicológicas do sujeito. Esse é o movimento da espiral dialética que rompe com as dissociações comuns entre teoria e a prática, ou entre quem sabe e quem faz. A práxis enriquece o ser humano e a tarefa, ultrapassa a dissociação entre ideologia e ação (Bleger, 1985).

Cada membro é uma parte do grupo e vem para este com inúmeros conteúdos que, ao se articularem com o conteúdo dos outros membros, compõem novas imagens, multiplicando cenas e sentidos do conteúdo de cada um no contexto grupal. O que permite tal movimento é a integração dos conteúdos trazidos por um membro qualquer (nesse momento o porta-voz), pela interpretação realizada pelo coordenador e pelo novo emergente que surge a partir da interpretação. Toda interpretação nesses grupos tem o caráter de hipótese acerca da fantasia grupal. Não é tomada como verdade, mas sim em termos de operatividade, na medida em que possibilita romper com os estereótipos.

O conceito de verticalidade, segundo Pichon-Rivière, estaria ligado à história pessoal do sujeito e o de horizontalidade ao processo atual que ocorre no aqui-agora com a totalidade dos membros do grupo. O emergente grupal mistura, articula ou torna mais híbridos os eixos da horizontalidade/verticalidade, do pessoal e do coletivo, do aqui-agora e do histórico, configurando-se como o acontecimento deste encontro: enunciação de uma palavra verdadeira, com uma dimensão analisadora, como a do porta-voz (Pichon-Rivière, 2005).

A função do coordenador é a de ajudar os membros do grupo a pensar, ele opera no campo das dificuldades da tarefa e na rede de comunicações, assinala situações manifestas e interpreta a causalidade subjacente. Trabalha conjuntamente com o observador, geralmente não participante, cuja função é recolher todo o material expresso verbal e pré-verbal do grupo, com o objetivo de oferecer subsídios ao coordenador, reajustando técnicas de condução (Pichon-Rivière, 2005).

Conhecer é possível, desejável e necessário. Ao interpretar o grupo, o coordenador sabe que essa interpretação não é desencarnada, ele tem um saber, mas deve ficar atento para que o fato de ter tal saber não deslize para a possessão do objeto de saber, para a totalização desse objeto (Woronowski, 2003).

Nesse sentido, há um claro efeito de descentramento do papel do coordenador. Ao abrir mão do lugar de liderança, ele adquire a função de ajudar na circulação desejante do coletivo. Não será ele o grande revelador do que acontece no grupo. Retira-se do lugar de desvelador de verdades para fazer pontuações interrogantes (Fernández, 2006).

São depositados, na figura do coordenador, tanto imagos parentais de cada membro como também as transferências institucionais. Ele é considerado muitas vezes pelo grupo como um legítimo representante institucional. O que se põe em jogo aí não são necessariamente os fantasmas edípicos, mas dimensões atuais dos conflitos institucionais (Fernández, 2006). Ao negar essa dimensão, o coordenador pode transformar o grupo em uma espécie de grupo-ilha, isolado do contexto social e institucional, descontextualizando-o. Ao exilar a política dos grupos, o coordenador pode familiarizar, edipianizar suas reivindicações e suas rebeliões (Fernández, 2006).

O coordenador, cuja figura tem de estar dissociada do líder, é quem ajuda os membros do grupo a pensar, abordando o obstáculo epistemológico configurado pelas ansiedades básicas. Ele opera no campo da dificuldade da tarefa e na rede de comunicações, seu instrumento é o assinalamento das situações manifestas e a interpretação das causas subjacentes a ela. O coordenador é um copensador, alguém cuja tarefa será pensar com o grupo acerca dos obstáculos que operam na relação dos integrantes entre si e com a tarefa.

O coordenador deve saber que o grupo não lhe pertence. Ele funda o grupo e, desde o início de seu trabalho, começa a separar-se dele, ou, em outros termos, a elaborar sua perda. E, assim sendo, possibilita que o grupo elabore essa mesma situação em relação à tarefa, trabalhando com seus limites e com a impossibilidade de uma apropriação permanente. O grupo não é proprietário do tema e não o esgotará; este terá que ser reelaborado constantemente, se quiserem saber mais sobre ele, recuperando, assim, uma historicidade. A coordenação é fundamental também para a leitura da latência grupal, dos emergentes que surgem e da manutenção do enquadre como espaço de funcionamento (Bauleo,1983).

Segundo Bleger (1984), o enquadramento do grupo operativo é uma indagação operativa. Tal indagação é composta pela observação atenta à sucessão dos acontecimentos, pela compreensão destes, de como eles se relacionam e, ainda, por incluir tal compreensão no momento da interpretação, no assinalamento.

A intervenção por parte do coordenador faz com que o grupo se movimente, tendo como efeito que este possa se observar e refletir sobre os acontecimentos. Há uma interação permanente entre observação, compreensão e ação. Se todo grupo tem uma tarefa, é necessário não só sua explicitação, bem como de todos os níveis que a envolve. Toda tarefa envolve diferentes níveis de extensão e intensidade do trabalho, o que exige diferentes formas de estruturação e de elaboração. Cabe ao coordenador trabalhar a relação do grupo com o tema específico, ou seja, estar atento ao vínculo entre o grupo e sua tarefa.

Em todo grupo emergem diferenças que determinam o surgimento de confrontos entre subgrupos. Sentimentos de perda, insegurança e incerteza, ligados às ansiedades básicas, fazem parte da vida grupal. As finalidades e os objetivos dos grupos operativos podem ser resumidos ao dizermos que sua atividade está centrada na mobilização de estruturas estereotipadas por causa do montante de ansiedade despertada por toda a mudança. No grupo operativo, o esclarecimento, e a comunicação na aprendizagem e na resolução de tarefas coincidem com a cura, criando assim um novo esquema referencial. A técnica desses grupos está centrada na tarefa, em que teoria e prática se resolvem em uma práxis permanente e concreta no "aqui e no agora" de cada campo assinalado (Pichon-Rivière, 2005).

Ao trabalhar com grupos de formação ou grupos de trabalhos, Pichon-Rivière sempre enfatizou a importância de trabalhar com grupos heterogêneos, com integrantes de diversas especialidades, que, para ele, é uma das leis básicas dos grupos operativos: os grupos são mais produtivos quanto mais heterogêneos forem seus participantes e mais homogênea for a dedicação à tarefa. (Pichon-Rivière, 2005). Dito de outro modo: o grupo operativo articula a máxima heterogeneidade em sua composição à máxima potência de produção do comum.

Uma das tarefas fundamentais do grupo operativo e de toda a investigação social é uma análise sistemática das contradições. Estas se expressam por meio de indivíduos ou de subgrupos que tendem a levar a tarefa a uma estéril situação dilemática, funcionando como defesa perante a possíveis mudanças. O grupo deve configurar um Esquema Conceitual e Referencial Operativo (Ecro) dialético, no qual as contradições referidas ao campo de trabalho possam ser resolvidas na própria tarefa grupal (Pichon-Rivière, 2005). O processo grupal é mais um campo tensional de forças, e são essas forças que serão o motor da dialética dos grupos. O que o moverá inicialmente é a tarefa como convocante, mas serão as representações imaginárias comuns (rede de identificações cruzadas, mitos grupais, ilusão etc.) que serão estruturantes (Del Cueto & Fernandez, 1985).

O Grupo Operativo é um grupo centrado na tarefa, que tem por finalidade aprender a pensar em termos da resolução das dificuldades criadas e manifestadas no campo grupal, e não no campo de cada um de seus integrantes, o que seria uma Psicanálise individual em grupo. Entretanto, também não está centrado exclusivamente no grupo, como nas concepções gestálticas, mas em cada aqui-agora-comigo na tarefa que se opera em duas dimensões, constituindo, de certa forma, uma síntese de todas as correntes. Consideramos o doente que enuncia um acontecimento como o porta-voz de si mesmo e das fantasias inconscientes do grupo. Nesse aspecto reside a diferença entre a técnica operativa e as demais técnicas grupais, já que as interpretações são feitas em dois tempos e em duas direções distintas (Pichon-Rivière, 2005).

Pichon-Rivière estará sempre ocupado em pensar como, a partir do social, os papéis distribuem-se sem que os atores tenham consciência do sentido da distribuição, e do que faz sentido na produção própria dos sujeitos (Woronowski, 2003). Para ele, em todos os grupos, há uma distribuição e uma assunção de papéis inconscientes entre seus membros, papéis que não são fixos, mas funcionais e rotativos.

Finalmente, cabe destacar que o grupo operativo será, para Pichon-Rivière, a primeira instância de ancoragem do cotidiano. Segundo ele, as relações cotidianas, os modelos internos tendem a se reproduzir nele. A técnica operativa confronta esses modelos internos em uma nova situação de interação e, ao analisar as condições de sua produção, permitem compreender as pautas sociais e internalizadas que geram e organizam as formas observáveis de interação. O pensamento e o conhecimento não são fatos individuais, mas produções sociais.

A central e vital importância que Pichon-Rivière deu à experiência, à possibilidade da reflexão e do diálogo constante com a teoria, ao movimento dialético que tanto defendeu ao longo da vida: teoria e prática conversam, se transformam, e, sobretudo, se reveem constantemente. Essa atitude de não fixação de lugares, dogmas teóricos, exige do coordenador de grupo a capacidade de suportar colocar suas crenças e valores sempre em questão, revendo-se, revisitando-se e permanecendo aberto ao que desconhece (Okamoto, 2017).

Finalmente, cabe lembrar que Enrique Pichon-Rivière nasceu na Suíça, filho de franceses, mas emigrou com os pais aos 3 anos de idade para o norte da Argentina, na província do Chaco, no começo do século XX, quando o governo local estava concedendo terras para projetos agrícolas como incentivo para o desenvolvimento da região. Nessa época, aquela região era predominantemente ocupada pelos indígenas da etnia guarani, objeto de preconceitos e discriminações. Pichon-Rivière e a família, capturados inicialmente por esse discurso, foram se diferenciando dele, construindo uma relação de forte respeito aos guaranis, de forma que o estranhamento se tornasse reflexão, produção, formas de aceitação desse outro sempre diferente. Na convivência com a população indígena, ele aprende a falar fluentemente o guarani, que se transforma em sua segunda língua. Anos mais tarde, ele fará referência a esse momento como uma rica experiência pessoal, de aprendizado e abertura. Ao longo de sua obra, a vivência e as reflexões sobre ser imigrante, o estar numa terra estranha à de origem, a vida tecida em um contexto cultural estrangeiro, o encontro e o choque de culturas distintas influenciaram decisivamente sua teoria, estando presente em muitos de seus escritos e em sua posição de não assujeitamento dos saberes locais e das experiências que realiza em seu país, relativamente à formação psicanalítica, desde o centro ou da Europa como centro. Seu interesse pelas ciências humanas é, em suas próprias palavras, a tentativa de resolver as contradições e os conflitos angustiantes entre duas culturas distantes, europeia e indígena, que a ele se incorporaram como dois modelos culturais opostos, nem sempre claramente discriminados (Okamoto, 2017; Busarello, Moretti, & Okamoto, 2019).

Com esse elemento pessoal e imediatamente coletivo da experiência de Pichon-Rivière, que podemos dizer contracolonial, afirmamos a potência da Teoria e Técnica dos Grupos Operativos como teoria e técnica latino-americana que se faz na experiência nômade de habitar fronteiras, de atravessar o estranhamento como parte do fazer grupal, mas principalmente de desmontar qualquer colonização no contexto grupal.

 

Uma experiência grupal

O sociólogo francês Alan Tarrius (2007), pensando à sua maneira uma Sociologia nômade a propósito das redes criadas entre imigrantes no sul da França, principalmente econômicas, afirma o potencial do vínculo estabelecido a partir das carências e impotências produzidas pelo Estado francês. Onde o Estado falha, associam-se agentes inesperados e tráfegos intensos, com protagonistas criando novas culturas, novas formas de vida e novos modos de relação desenhando uma paisagem surpreendente, inventando novas formas de viver aqui, ali, acolá, criando uma nova forma de nomadismo. Não podendo integrar-se a uma sociedade fechada e excludente, criam-se redes que se medem por sua capacidade circulatória, seu critério é atravessar mundos, onde imperam normas e regras opostas, conferindo uma identidade nômade a quem se arrisca transitar por elas.

Nessa reflexão de Tarrius (2007) não estará uma pista de por onde os grupos podem transitar num Estado que diariamente vai se mostrando mais totalitário e controlador? Não serão nos grupos e na articulação entre sujeitos e nas possibilidades de criação de redes laterais ao status quo entre grupos que encontraremos um caminho de enfrentamento possível, especialmente neste contexto brasileiro, de modulações totalitárias e mortíferas da gestão da vida?

Nessa perspectiva, de construção de redes, de espaços de convívio e conversa de um cotidiano em comum, aparentemente despretensiosos, mas que buscam a construção de vínculos, é que apresentamos um recorte de um Grupo Operativo. Esse grupo foi realizado, em um tempo imediatamente pré-pandêmico, com adolescentes imigrantes em uma instituição religiosa que oferece um espaço de convivência para os imigrantes latino-americanos, mais especificamente bolivianos, que vivem e trabalham em um bairro central da cidade de São Paulo. Essa instituição oferece cursos de português, informática e grupos de convivência para crianças e adolescentes, e é dela que parte a demanda pela criação de um grupo específico de conversa com os adolescentes imigrantes, tendo em vista a preocupação com o que se chamou de "aumento" do uso de drogas ditas ilícitas por parte dos adolescentes.

Nesse bairro, há grande concentração de imigrantes bolivianos que vêm em busca de melhores condições de vida, trabalhando predominantemente nas oficinas de costura. O fluxo migratório de bolivianos para o trabalho informal em oficinas de costura na cidade de São Paulo ganha visibilidade a partir dos anos 1990, pouco tempo depois da Lei de Anistia, que visava regularizar os imigrantes sem documentação, associado à crise econômica boliviana na década de 1980 causada pela recessão e por desastres naturais. Os fluxos migratórios bolivianos são formados, principalmente, por jovens com baixas qualificações, ex-trabalhadores de minas e fábricas (Freitas, 2012). A inserção das famílias dos adolescentes do grupo trabalhado, em sua totalidade, acontece por meio do trabalho nas oficinas de costura; os pais estão em situação regular e os adolescentes frequentam a escola, ajudando nas horas vagas a aumentar a produção nessas oficinas.

O grupo acontecia todas as semanas em dia e horário fixos, seu enquadre era aberto, isso significava que a qualquer momento seus participantes podiam sair e novos entrar. O grupo aberto revelou-se inclusivo a todos os adolescentes em deslocamento. Aqueles que estavam há mais tempo no grupo e/ou no novo país acolhiam os novos integrantes, em um exercício de enfrentamento à repetição de situações de exclusão no novo país; situações essas que motivaram muitas vezes a escolha por imigrar.

A escolha pelo grupo aberto recaiu sobre o olhar para essa condição imigrante, para a transitoriedade, pelo vai e vem, pelo desejo de ir ou pela necessidade de ficar, para que grupalmente fosse possível acolher os que chegavam e suportar os que partiam, seja porque retornavam para o país de origem, seja porque não conseguiam mais participar por diferentes motivos: ajudar os pais no trabalho, cuidar dos irmãos menores, dificuldade de estar no grupo.

Oferecemos um espaço de conversa para os adolescentes de 12 a 15 anos com a presença de uma coordenadora e uma observadora. Após alguns encontros a direção da instituição pediu que "o grupo de conversa com as psicólogas" tivesse um "nome". Queriam apresentar a experiência para fora dos muros institucionais.

Essa solicitação fez com que o grupo tivesse que novamente voltar a sua tarefa. O que faziam ali toda semana falando sobre as variadas coisas da vida e o acontecer grupal. Como no movimento livre associativo, que a Psicanálise propõe, o inconsciente se manifestou levado pelo som das palavras na brincadeira adolescente. Nas inúmeras sugestões de nomeação escritas no quadro em branco, ideias atuais e coisas da vida apareciam em colunas diferentes. O grupo na indecisão sobre a melhor escolha na qual todos se reconheceriam.

Eis que um dos adolescentes, que acabara de chegar ao grupo, vindo da rua trazendo o frescor do fora da instituição, pergunta: "Por que não juntar estas duas ideias?" - presentes nas duas colunas: Grupo de ideias e coisas da vida. Sentimos todos, indistintamente, que ele trouxe também o alívio geral para uma missão que parecia impossível de ser realizada. Aqui a nomeação trouxe as palavras que nos ajudaram na construção coletiva da tarefa de delinear, circunscrever da melhor maneira o que fazíamos ali, o nome traduz o acontecimento.

A nomeação é um ato que introduz um antes e um depois no grupo, ressignificando o que até então era realizado, servindo de condição-suporte para a desalienação dos sujeitos e, ao mesmo tempo, criando condições de laço coletivo. Esse trabalho já vinha se constituindo, mas o ato de nomear convoca novamente o grupo para a tarefa, reafirmando os vínculos estabelecidos no agir coletivo. Rearranjam-se os lugares e funções.

A grupalidade e a adolescência sempre pareceram ser elementos indissociáveis, quase sinônimos do que chamamos a experiência adolescente, não foi o caso aqui... relatos de isolamento, fins de semana solitários, vida dentro da família intensificada estão presentes nas coisas da vida que foram compartilhadas no grupo. Quanto às ideias atuais... estas apareceram marcadas pelo discurso/sonho familiar de retorno à Bolívia; "sentirei falta dos meus amigos"; "fico dividida, quero ir e quero ficar"; "se a situação econômica piorar, vamos embora"; "todos os dias minha mãe diz querer voltar".

Os adolescentes e suas famílias ansiavam pela construção de novos laços e oportunidades no novo país, tendo como desafios revisar e elaborar formas de viver os "novos contextos". Vivendo entre cá e lá, entre duas culturas, estão diante do desafio de reconstrução de uma narrativa que os localize em sua história familiar e na história da comunidade em que vivem (Rosa, 2016). Como aponta Rosa (2010), à semelhança do imigrante, a experiência adolescente também coloca o sujeito entre dois lugares, entre cá e lá. Entre o corpo infantil e um novo e desconhecido corpo que ganha contornos à medida que novos sentidos são atribuídos à sexualidade. Entre o lugar construído em família e um lugar de inscrição própria, singular no campo social.

A experiência adolescente requer, assim, que o sujeito transponha os umbrais da família, lançando-se à construção de outro lugar de pertencimento que não o familiar, parental. Essa passagem da cena familiar à cena social somente poderá se dar caso ele não seja "apagado" como sujeito, invisibilizado por seus semelhantes. Ou seja, caso a comunidade em que vive possa lhe ofertar um lugar de reconhecimento e de pertencimento subjetivos.

No grupo nomeado, por todos, Ideias Atuais e Coisas da Vida, a vida é aqui quase desde sempre, tendo chegado ao Brasil muito pequenos, guardam poucas ou nenhuma lembrança do lugar de origem; para alguns poucos, a possibilidade de reviver a vida no lugar de origem nas viagens de férias, a língua materna surge no discurso grupal como esquecida, ainda que conversem em casa na maior parte em espanhol.

Surpresa e vergonha são os afetos predominantes quando são convocados a auxiliar na tradução de um membro recém-chegado, vergonha que é marca do desajeitamento adolescente ou vergonha de serem estrangeiros quando parecem tão adaptados com seu português fluente? Desejo de terem nascido no Brasil, talvez ilusão de que assim não haveria esse estranhamento de não saber exatamente quem se é.

A coordenadora era chamada de tia, professora, até o momento que o nome próprio surge como lugar de referência. Na função de observador surge a escrevinhadora, aquela que não vai interpretar o grupo, mas sim aquela que ao testemunhar e escrever a história diz do grupo, a relata ao fim de todos os encontros, fazendo da palavra escrita registro simbólico, permanência, marca indelével do vivido. E o grupo será o lugar de acolhida e pertencimento, momento de suspensão do fluxo da vida imigrante, do lá nem cá para ser aqui e agora.

Foi na plena ocupação das funções de coordenação do grupo que compreendemos que ali éramos os que facilitariam que o desejo circulasse para que o grupo construísse o seu percurso, coube a ela não impor entendimentos, interpretações, mas sim ser um facilitador para que o grupo construa seus próprios sentidos e saídas para seus impasses. Para tanto, o posicionamento ético e político da coordenação foi central, não ser indutora, ser provocadora diante da produção coletiva, e se posicionar de tal forma que o produto construído ali pertence ao grupo, sujeito de seu processo.

A coordenação será aquela que interroga... Sobre a semana, a escola, as coisas da vida, sobre o que fazemos ali, sobre o que não sabemos. Será no desejo inicial que o grupo exista onde ele não existe que a coordenação teve seu lugar fundante.

Em outro encontro do grupo, cujo tema recaiu sobre o lugar de origem, de nascimento, a maior parte do grupo sabia dizer o país, a região, quase nenhum a cidade. Como tarefa para o grupo seguinte, perguntar aos pais: Onde nasci? Munidos de mapas, a coordenação acompanha no grupo seguinte uma viagem cartográfica pela Bolívia e Argentina, as grandes cidades, o campo, as províncias com nomes estranhos, quem eram vizinhos de local de nascimento, "como a Bolívia é fria", "é um país tropical?" O tema da imigração nos coloca dentro da problemática dos deslocamentos no contemporâneo. Para além do sentido que a física dá que é ir de um ponto ao outro, o deslocamento traz em si a ideia da passagem, da inevitável mudança de lugar/posição, ganhando para muitos imigrantes o sentido simbólico de "sem lugar", "fora de lugar", do sentir-se "deslocado".

Se ampliamos nossa lente sobre esse tema, deparamo-nos com uma questão que diz respeito a todos nós, o quanto o tema da imigração, do estrangeiro nos coloca também diante da necessidade de nos deslocarmos de uma posição de ilusório conforto, com o que é conhecido, para a abertura para o que nos é estranho.

A experiência do deslocamento diz respeito a todos: os imigrantes, refugiados, porque saem de seus lugares de origem; nós, porque para enfrentarmos esse encontro com o outro em sua diferença, muitas vezes radical, temos de nos deslocar de uma posição subjetiva já estabelecida. Tal experiência exige que nos movimentemos na relação de forma a construir novos referenciais de inclusão, fraternidade e empatia, também saindo de nossos lugares originais, construindo novas formas de subjetivação, mais coletivas, mais solidárias.

Do contrário, reproduziremos o que o historiador norte-americano Richard Sennett (2015) descreve como a perversão da ideia de fraternidade na experiência comum moderna, a fraternidade serve à exclusão dos forasteiros, desconhecidos, dessemelhantes, estreitando os limites da experiência comunal, afirmando quem deve ou não ser incluído, abandonando-se a ideia de solidariedade. "A fraternidade se tornou empatia para um grupo selecionado de pessoas, aliada à rejeição daqueles que não estão dentro do círculo local" (Sennett, 2015, p. 256).

Finalmente, vale assinalar que nesta experiência considerou-se o contexto social ao qual a coordenação pertence, também afetada e perpassada pelas inúmeras vicissitudes de um contexto sociopolítico que se apresenta progressivamente adverso. O desafio para a coordenação, nessa perspectiva, é se apropriar do que a afeta como um instrumento a mais para auxiliar o grupo a reconhecer em si os efeitos incômodos de tal contexto e encontrar suas resoluções. Transformando, como dizia Pichon-Rivière, dilemas em problemas.

 

Considerações finais

Os Grupos Operativos podem ser pensados como alternativa de organização desalienante dos sujeitos ao mundo que propõe o individualismo, ou o fanatismo que faz "massa", como forma de existência? Ou eles estariam apenas compensando uma falta de comunicação e de relação, oferecendo um modelo de interação? Regina Benevides de Barros, no artigo "Clínica Grupal" (1996), chama a atenção para certo modo de subjetivação que se engendra pela interiorização dos conflitos, que captura o desejo na falta, esterilizando sua potência criadora dos grupos. A autora alerta que esse é o risco das práticas grupais quando são pensadas na óptica individualista e/ou redentoras.

Para não incorrer nesse risco que Barros (1996) coloca que é necessário ter presente que nada do que é coletivo é homogêneo, uma vez que o coletivo pode dar lugar às singularidades, e não às impedindo de serem vistas e ouvidas. O grupo forma linhas que produzem campos de saber, redes de poder compondo e recompondo territórios, produzindo sujeitos e objetos. O grupo assume seu papel de intermediador entre o indivíduo e a sociedade, contém nele as características do indivíduo, indiviso, particular, e por outro lado as da sociedade, com sua ideia de todo, de universal (Barros, 1996).

Assim como Barros (1996), entendemos que singularizar está no domínio da ruptura, da afirmação da potência, do escape em relação ao que está naturalizado, separado de seus movimentos de produção. Singularizar é inventar, criar outros modos de existência que não sobrecodifiquem as experiências. À medida que os grupos foram se tornando destinos de massificação ou homogeneização, eles perderam sua principal potência, que é a de produzir singularidades, modos de subjetivação com força necessária para a transformação. Nessa perspectiva, os grupos abandonaram sua posição de lugar com potencial revolucionário e questionador do que é afirmado como dado ou natural, para se transformarem em lugares que reforçam o instituído. E, sem dúvida, contribuem para isso as práticas psi colonizadoras e colonizantes que carregam em si práticas modelares e adaptativas, com uma formação de viés positivista, em que conceitos como neutralidade, objetividade, cientificidade e tecnicismo acabam por ser hegemônicos, em que homem e sociedade são apresentados como naturais, abstratos, e não produzidos historicamente (Coimbra, 1995).

Na posição de grupalistas, nos encontramos tomadas pela angústia de quais serão os destinos das grupalidades, esse dispositivo tão caro é necessário à manutenção da construção do comum.

Em parte da história da Psicossociologia latino-americana, reencontramos os pilares éticos do acontecimento grupal na figura de Pichon-Rivière e sua teoria dos Grupos Operativos, revisitamos conceitos fundamentais que devem sustentar nossa prática, seja presencial, seja on-line. Nos encontros virtuais, encontramos a mesma disposição para a tarefa e a mesma resistência para executá-la, o desejo do encontro e as dificuldades de vivenciá-lo com todos os seus conflitos, o lugar do coordenador, central para interpretar as dificuldades do grupo e fazer-se desnecessário para que o grupo seja sujeito de sua história e construa seu caminho.

Em tempos de sufocamento, restrição de liberdades, ataques às conquistas sociais, os grupos são e devem ser lugares de resistência. Vivemos tempos complexos, tempos de isolamento físico, mas, importante pensar, não de isolamento social. Pensar os grupos hoje, portanto, representa uma atitude política, um levante! "Levantar-se é jogar longe o fardo que pesava sobre nossos ombros e entravava o movimento" (Didi-Huberman, 2016, p. 49).

Revisitar o trabalho grupal por meio de Pichon-Rivière, então, é gesto, é levante! Possibilita-nos jogar longe o fardo que nos imobiliza na ausência dos coletivos em círculo, e nos lança às conexões virtuais, grupais, inventivas, solidárias e transformadoras. Herdeiras da transmissão de Pichon-Rivière, que pensou as urgências de sua época, aceitamos os desafios de nosso tempo nos grupos on-line, na práxis coletiva em isolamento físico, buscando novas formas de fundar o comum criando trama, laços de afeto, possibilitando que a palavra possa ser dita e encontre no grupal ressonâncias e possibilidades de iluminar caminhos, atravessar desertos.

 

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Recebido em: 15/10/2020
Aceito em: 8/6/2021

 

 

1 Número fornecido por um consórcio de veículos de imprensa, tal iniciativa ocorre em resposta às atitudes do governo Jair Bolsonaro (sem partido), que ameaçou sonegar dados, atrasou boletins sobre a doença, tirou informações do ar, com interrupção da divulgação dos totais de casos e mortes, divulgando dados conflitantes. Recuperado de https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/05/29/brasil-registra-1971-novas-mortes-por-covid-em-24-horas-e-vitimas-passam-de-460-mil.ghtml.
2 A guerra civil em El Salvador, o menor dos países centro-americanos, terminou oficialmente em 1992, com o Acordo de Esquipulas, mas deixou um imenso rastro de sangue. Estimativas falam em mais de 50 mil mortos em duas décadas de conflito. E foi a partir desse cenário de violência que o jesuíta espanhol Ignácio Martín-Baró criou uma nova forma de praticar a Psicologia. A brutal desigualdade o levou a conhecer as comunidades pobres e a entender que um processo terapêutico só faria sentido se considerasse as condições específicas de cada indivíduo em seu meio social. Foi assim que ele criou a Psicologia da Libertação, que se tornou uma referência teórica no continente latino-americano. Martín-Baró foi assassinado em El Salvador em 1989. Recuperado de https://www.ip.usp.br/site/noticia/a-influencia-de-ignacio-martin-baro-na-psicologia-latino-americana/.

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