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Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

     

 

Psicossociologia com comunidades: abordagens sentipensantes como emergência na América Latina

 

Psychosociology with Communities: Sentipensantes Approaches as Urgency in Latin America

 

Psicosociología con comunidades: enfoques sentipensantes como emergencia en América Latina

 

 

Daniel Renaud CamargoI; Bárbara PelacaniII; Renata da Silva FariaIII; Claudia MirandaIV; Samira Lima da CostaV

IDoutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (Eicos) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: danielrenaud_22@hotmail.com
IIDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (Eicos) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: barbara.pelacani@gmail.com
IIIProfessora do Curso de Graduação em Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz). E-mail: renata.faria.ufrj@gmail.com
IVPós-doutorado (2018-2018) no Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (Eicos) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Membro do grupo de trabalho Afrodescendência e Propostas Contra-Hegemônicas (Clacso). E-mail: mirandaunirio@gmail.com
VProfessora do curso de graduação em Terapia Ocupacional e do Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (Eicos) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do GT de Psicologia Comunitária da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graudação em Psicologia (Anpepp). E-mail: biasam2000@gmail.com

 

 


RESUMO

No campo da Psicossociologia, defende-se a reorientação dos processos interventivos, bem como formulações psicossociológicas sentipensantes em consonância com as demandas da conjuntura atual. Por meio de revisão bibliográfica, o artigo tem por objetivo ensaiar perspectivas teóricas e conceituais a respeito dos percursos latino-americanos feitos por Maritza Montero, Maria Inácia D'Ávila Neto, Ignacio Martín-Baró, Paulo Freire e Orlando Fals Borda. Vislumbramos a proposição de um quadro no qual a Psicossociologia não seria uma ciência "de" comunidades, mas sim "com" comunidades, por se comprometer com a criação de conexões entre o individual-psicológico-singular-subjetivo com o coletivo-social-popular-político, de modo a abarcar as diferentes influências existentes nas interações comunitárias. Portanto, este trabalho se propõe a refletir sobre uma lógica contra-hegemônica e descolonizadora ao caminhar por trilhas suleadoras, sentipensantes e libertadoras. Nesse sentido, reforçamos que uma "Psicossociologia com comunidades" deve se empenhar em fortalecer os encontros e promover confluências, engendrando processos de produção coletiva de conhecimentos contextualizados e críticos sobre as realidades comunitárias.

Palavras-chave: Psicossociologia com comunidades. América Latina. Abordagens sentipensantes.


ABSTRACT

In the field of Psychosociology, it is advocated the reorientation of interventional processes, as well as psychosociological formulations in line with the demands of the current situation. Through bibliographic review, the article aims to rehearse theoretical and conceptual perspectives on the Latin American paths taken by Maritza Montero, Maria Inácia D'Ávila Neto, Ignacio Martín-Baró, Paulo Freire and Orlando Fals Borda. We envision the proposition of a framework in which Psychosociology would not be a science "of" communities, but "with" communities because it is committed to creating connections between the individual-psychological-singular-subjective with the collective-social-popular-political, in order to encompass the different influences existing in community interactions. Therefore, this work proposes to reflect on a counter-hegemonic and decolonizing logic when walking along suleadoras, sentipensantes and liberating trails. In this sense, we reinforce that a "Psychosociology with communities" must strive to strengthen the meetings and promote confluences, engendering processes of collective production of contextualized and critical knowledge about the community realities.

Keywords: Psychosociology with Communities. Latin America. Sentipensing approaches


RESUMEN

En el campo de la Psicosociología se aboga por la reorientación de los procesos intervencionistas, así como por formulaciones psicosociológicas acordes con las exigencias de la situación actual. A través de una revisión bibliográfica, el artículo pretende ensayar perspectivas teóricas y conceptuales sobre los caminos latinoamericanos tomados por Maritza Montero, Maria Inácia D'Ávila Neto, Ignacio Martín-Baró, Paulo Freire y Orlando Fals Borda. Visualizamos la propuesta de un marco donde la Psicosociología no sería una ciencia "de" comunidades, sino más bien "con" comunidades porque se compromete a crear conexiones entre lo individual-psicológico-singular-subjetivo con lo colectivo-social-popular-político, con el fin de abarcar las diferentes influencias existentes en las interacciones comunitarias. Por ello, este trabajo propone reflexionar sobre una lógica contrahegemónica y descolonizante al caminar por senderos suleadoras, sentipensantes y liberadores. En este sentido, reforzamos una "Psicosociología con comunidades" debe buscar fortalecer los encuentros y promover confluencias, engendrando procesos de producción colectiva de conocimiento contextualizado y crítico sobre las realidades comunitarias.

Palabras clave: Psicosociología con comunidades; América Latina; Enfoques sentipensantes.


 

 

Introdução

O presente trabalho1 tem como centralidade algumas inquietações no que tange à produção de conhecimento e às formas de se desenvolver os estudos psicossociais no contexto latino-americano, como é o caso do Brasil, além de analisar aspectos da ampliação de concepções teórico-metodológicas devido à importante apreensão feita por grupos situados na América Latina. Para tanto, propõe-se a dialogar com processos insurgentes identificando a possível relação entre o que os membros da comunidade acadêmica ensinam, o que aprendem, o que pesquisam e o que vivem, dentro e fora das Instituições de Ensino Superior (IES). Localizamo-nos no campo da Psicossociologia, considerando, sempre, os aportes das agendas em defesa das lutas por políticas de diversidade cultural, presente no temário Direitos Humanos (DDHH) da Organização das Nações Unidas. Por entendermos as urgências do tempo presente, posicionamo-nos a favor de maiores vínculos com contextos marcados pelas lutas por direitos.

Convém ressaltar o enfrentamento a ser feito, a partir de interfaces construídas em redes dialógicas que valorizem abordagens psicossociológicas inter e transdisciplinares. Estudos que tomam como base a interdisciplinaridade superam a visão de "somatória" de campos de saber e podem oferecer fluidez e perspectivas transversais incidindo na elaboração de análises psicossociológicas. Em linhas mais gerais, como define Montero (2009, p. 617), sugerimos ancoragens em "estratégias fortalecedoras de caráter libertador". Com isso, tensionamos as linhas imaginárias existentes nas concepções desenvolvidas pela comunidade acadêmica, entre pesquisadoras(es) e as diferentes experiências comunitárias dos grupos entendidos como "alvo", ou entre os saberes psi e os saberes de outros campos das ciências.

Defende-se uma ciência alinhada com a reinvenção conceitual em contextos nos quais a realidade experienciada converte-se em locus de semeaduras epistemológicas pertinentes e legítimas. Buscando rastros latino-americanos para esta ciência comprometida politicamente e engajada sócio-historicamente, apresentamos aspectos centrais dos estudos em Psicologia propostos por Maritza Montero (na Venezuela), Ignacio Martín-Baró (em El Salvador) e Maria Inácia D'Ávila Neto (no Brasil), em diálogo com apontamentos metodológicos para estudos sociais sugeridos por Paulo Freire (também do Brasil) e Orlando Fals Borda (da Colômbia).

Tanto Freire como Fals Borda estão presentes em diferentes reflexões sobre a pesquisa social, influenciando o pensamento de pesquisadoras(es) transdisciplinares, como é o caso de Martín-Baró, Maritza Montero e Maria Inácia D'Ávila Neto. Discutimos as possibilidades de encontro dessas contribuições com autoras e autores da atualmente chamada descolonização epistêmica, buscando aportes para uma Psicossociologia Latino-Americana, regional, descolonizada e descolonizadora. Ao assumirmos interfaces com os argumentos que produziram, o intuito é promovermos outras abordagens psicossociológicas, além de indagarmos nossas respectivas investigações.

Freire é situado como partícipe da construção de uma abordagem libertadora e uma consequente Filosofia da educação popular, comprometida com as singularidades dos setores mais empobrecidos. Ganha relevo a visão interventiva de Fals Borda, quando ele propõe uma Sociologia sentipensante para o enfrentamento das torres de marfim levantadas nas Ciências Sociais - como é o caso das IES -, algo que está para além do contexto colombiano.

Montero é importante referência no campo da Psicologia Comunitária com uma perspectiva política, dedicando-se a metodologias participativas, propondo a compreensão da realidade social a partir de uma perspectiva histórica, bem como trazendo o debate sobre a libertação das classes empobrecidas. D'Ávila Neto, por sua vez, investiu toda a sua vida na proposição de uma Psicossociologia a ser produzida junto com comunidades subjugadas e violentadas, entendendo a insuficiência das metodologias clássicas de pesquisa e intervenção social, inclinando-se, assim, aos projetos de estudos e ações participativas, fixando aí seu eixo para o sentido da Psicossociologia na América Latina.

O papel do psicólogo, para Martín-Baró (1996), inclui a avaliação de demandas percebidas ao longo da história das lutas por direitos. A análise de conjuntura, portanto, exigiria uma tomada de posição crítica, bem como um posicionamento a favor dos setores subjugados pelo capitalismo, enquanto o diálogo com Freire se desdobra em uma proposta de Psicologia da Libertação, observando os processos psíquicos à luz do seu enraizamento no contexto social.

O imperialismo e as mazelas do grande capital estão presentes nas obras de Freire e de Fals Borda, e também nas re-elaborações teórico-metodológicas do campo da Psicologia propostas por Montero, D'Ávila Neto e Martín-Baró. Portanto, tomamos essas autoras e autores como referências para pensar, reafirmar e propor psicossociologias ancoradas no contexto latino-americano e na pesquisa engajada politicamente.

Destacamos que, embora a Psicossociologia em muitos casos tenha se constituído em consonância com os Estudos de Comunidade,2 apresentamos aqui a abordagem da Psicossociologia Latino-Americana como uma ciência produzida com comunidades, como sugerem Costa, Alvarenga e Alvarenga (2008), por se comprometer com a criação de conexões entre o individual-psicológico-singular-subjetivo com o coletivo-social-popular-político, de modo a abarcar as diferentes influências existentes nas comunidades.

Desse modo, concordando com Pardo, Costa e Ramos (2019), este trabalho se propõe a refletir sobre uma lógica contra-hegemônica e descolonizadora da Psicossociologia. Ao elaborarmos nossos ensaios teóricos, seguimos Freire (1994) suleando em contraposição às narrativas hegemônicas ancoradas em visões conservadoras de sociedade. Importa enfatizar a opção pelo verbo "sulear", trazida pelo educador brasileiro em substituição ao verbo "nortear". Nesse processo de ruptura, indagamos o status quo, o que implica mudanças de percurso e outras formas de desenvolver a práxis interventiva na Psicossociologia. Uma abordagem sentipensante (Fals Borda, 2015), no campo da Sociologia Colombiana, só foi possível com imersões realizadas, em diálogo com interlocutoras(es) como María Cristina Salazar, Camilo Torres Restrepo, em múltiplos espaços, por fora das IES, conforme vimos, nos descaminhos político-epistemológicos, que se conectam com a experiência do coletivo La Rosca de Investigación y Acción Social.3

 

Bases para pensar e sentir junto com: Freire e Fals Borda

Na Colômbia, Orlando Fals Borda emergiu como herdeiro de um pensamento sociológico crítico, estando comprometido com os percursos de politização das populações mais vulneráveis do seu país e países do entorno. Sua formação inicial foi nos Estados Unidos, mas depois regressa à Colômbia e defende um pensamento regional próprio, crítico aos colonialismos intelectuais. Em 1959, participou, juntamente com Camilo Torres Restrepo (1929-1966), da idealização da Faculdade de Sociologia da Universidade Nacional da Colômbia (Bogotá). Pode-se afirmar que, apesar de sua importante proposição, já reconhecida em campos diversos, tem sido incluído de modo tímido nos estudos desenvolvidos no Brasil.

Longe da difusão de dogmas e de doutrinas e de uma relação de mera reprodução da voz dos sujeitos, Fals Borda preocupava-se pela reflexividade crítica resultante destes processos de mediação e interação com os grupos organizados de camponeses, operários, indígenas, negros, entre outros, que não deveriam ser exaltados sem contradições. A centralidade da práxis aparece assim como um elemento de destaque. (Bringel & Maldonado, 2016, p. 398).

Fals Borda trata de metodologias participativas, de ação popular e de ciência do povo desde uma perspectiva crítica à globalização, à destruição dos territórios, das culturas e das ecologias. Crítico a uma postura acadêmica que se pretende neutra e contribui para processos genocidas, propõe um cuidado com a relação investigativa que pode se tornar mercantil ou coisificada (Fals Borda, 2000). Para tanto, levanta a importância de se elaborar em conjunto com as comunidades as perguntas e o planejamento do estudo. Nessa perspectiva, traz a metodologia da Investigação-Ação Participante (IAP), que representa uma parte importante de sua vasta obra e reflete a "experiência coletiva de pesquisa ação, na qual o compromisso é uma condição, a práxis uma experimentação e a libertação uma redenção" (Bringel & Maldonado, 2016, p. 408). A IAP sugere a transformação social, estimular o poder e dignidade do povo e reforçar a confiança das pessoas na sua comunidade.

Fals Borda (2000) aponta que é necessário se desprender de jargões especializados com o fim de comunicar resultados com uma linguagem cotidiana acessível e compreensível; propõe que seja praticada a investigação coletiva com grupos locais, levando em conta a composição de classe. Sua práxis aponta para a necessidade da integração de disciplinas, caracterizando a importância de estudos trans e interdisciplinares; compreende que uma metodologia participativa é uma práxis que implica processos lentos de ajuste individual e cambio social, que buscam melhorar as condições locais, estimular o poder e a dignidade do povo, além de reforçar a autoconfiança das pessoas em suas comunidades.

O autor colombiano atuou em defesa de uma Sociologia da Libertação, por vislumbrar uma democracia substantiva e plural. A proposta também incluía a realização humana por meio de metas de organização política e social para promover a emancipação dos segmentos excluídos historicamente. No processo de luta e conscientização das classes exploradas, é importante reconhecer os elementos que foram acionados para unir a comunidade para defender seus interesses, com a recuperação da memória histórica e coletiva (Fals Borda, 1985, p. 139). Em suas experiências coletivas de reflexão e aplicação de estudo-ação na Colômbia, impulsiona o grupo La Rosca (Fals Borda, 2016, p. 781).

[...] os observadores-militantes começam com um compromisso sério e respeitoso com os povos que estudam e com o processo social em que estão imersos; dirigem sua atenção para as contradições do sistema para compreendê-las e manejá-las em estreita cooperação com os grupos chaves de base; tentam remexer o sistema e agitar taticamente para determinar suas áreas reais de tensão, provocar as instituições, destruir mitos e participar, juntamente com os grupos de base, nos choques inevitáveis; e devolvem a esses grupos, com maior claridade, e sistematizadas, ideias que receberam deles com confusão.

Nessa mesma linha de pensamento, Paulo Freire, o principal teórico da Educação Popular Latino-Americana, em Pedagogia do oprimido - obra desenvolvida em 1968 no Chile durante o exílio -, concebe o oprimido como sujeito histórico. Para Freire, quando o sujeito oprimido se posiciona diante das contradições e conflitos da sociedade capitalista, descobre as condições materiais para a transformação e consequente superação de injustiças.

Refletindo sobre a obra de Freire, Costa e Loureiro (2015, p. 75) pontuam que

Paulo Freire denuncia, do ponto de vista epistemológico, a supressão de saberes dessa população colonizada e espoliada, e valoriza esses saberes como condição da supressão das relações opressoras, contribuindo, efetivamente, para o desenvolvimento de uma epistemologia latino-americana.

Para Paulo Freire, na Pedagogia da Libertação, a autonomia só será possível a partir de um encontro que seja capaz de reconhecer - de forma crítica - tais contradições. Esse encontro ocorre não apenas na teoria, nem somente na prática, mas na práxis, na integração e reflexão como dois movimentos complementares e em permanente tensão. Quanto a isso, Freire (1981, p. 70) chama a atenção para o fato de que,

Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram fora de. Sempre estiveram dentro de. Dentro da estrutura que os transforma em "seres para outro". Sua solução, pois, não está em "integrar-se", em incorporar-se a essa estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se "seres para si".

Ao produzir a crítica ao processo de produção de conhecimento que perpetua e amplia as desigualdades, filia-se à Pedagogia da Libertação. Aponta a dialogicidade como prática de liberdade. Identifica ainda a amorosidade - a defesa radical da existência de si e do outro, nas diferenças e nas divergências - como uma condicionante da humanidade, necessária ao diálogo e à ação dialógica, o que para alguns críticos se aproxima mais da Teologia da Libertação, ainda que o faça em nome da Pedagogia.

Maria Ozaniza Silva (1991, p. 141) lembra que

Paulo Freire preconiza para sua proposta de educação libertadora, onde se insere a Pesquisa Participante, uma metodologia dialógica e conscientizadora que implica uma postura ativa dos homens, na investigação de sua temática, devendo verificar-se uma relação de simpatia e confiança mútua entre educador [ou psicólogo; ou pesquisador] e população.

Considerando, portanto, o inequívoco comprometimento social e político constante nas propostas metodológicas de Fals Borda e Freire, seguimos os rastros daqueles que, inspirados pelas mesmas provocações históricas, inclinam-se a (re)pensar investigações e intervenções no campo da Psicologia Latino-Americana, para, em seguida, discutirmos especificamente a Psicossociologia, desde essa perspectiva. No Caribe e na América Latina, é possível cartografar o legado da produção de Paulo Freire e compreender a capilaridade de suas ideias. Não é exagero afirmar que sua visão de mundo se consolida no percurso dialógico estabelecido com interlocutores(as) de distintos países, mulheres e homens da luta por libertação e por emancipação dos segmentos historicamente em desvantagem.

Podemos ampliar essa percepção e afirmar que a exemplaridade do itinerário realizado é também um traço desse legado. Em linhas mais gerais, o que herdamos de Freire está para além dos escritos e pode ser apreendido nas formas de atuar "com". A Educação Popular latino-americana deve ser interpretada a partir dessas características e, em Pedagogia do oprimido, concebe o oprimido como sujeito histórico. Quando se posiciona diante das contradições e conflitos da sociedade capitalista, é possível descobrir as condições materiais para a transformação - e consequente superação de injustiças. Com base na Pedagogia da Libertação, a autonomia só será possível a partir de um encontro que seja capaz de reconhecer criticamente esse quadro. Esse encontro se dá, efetivamente, na práxis, na integração e reflexão.

 

Os conceitos de crítica e libertação nos estudos psicossociais latino-americanos

a) Psicologia Política Latino-Americana: conversas com Martín-Baró

A defesa da Psicologia Política Latino-Americana, realizada por Ignacio Martín-Baró (1986, 1989), é um dos pontos em relevo para se compreender a história dos estudos psicossociais latino-americanos. "Nos perguntamos alguma vez seriamente como se veem os processos psicossociais desde a vertente do dominado, no lugar de vê-los desde a vertente do dominador?" (Martín-Baró, 1986. p. 12).

A noção de Psicologia da Libertação é uma corrente que partiu da América Latina e se tornou mundial (Montero, 2014). A literatura indica que o termo foi usado pela primeira vez pelo autor em 1976 em El Salvador e retrata especificidades relacionadas à opressão.

Martín-Baró (1996) revela seu entendimento da Psicologia a partir dos fundamentos materialistas e da lógica dialética e circunstância da atuação do psicólogo a partir e na realidade. Nesse sentido, ainda rompe com a falácia do materialismo mecanicista que associa a dimensão social à realidade imediata. Ao se deter sobre as características e circunstâncias da guerra ele a considera sob o crivo da divisão de classes, da exploração e da subjugação que avançam e penetram a história e a gênese do trabalho, da produção e da acumulação da riqueza. (Moreira & Guzzo, 2015, p. 575).

Martín-Baró (1986), ao insistir em uma Psicologia Política com práxis libertadora, apresenta densa crítica às linhas da Psicologia que sustentam discursos de neutralidade, universalidade e percursos a-históricos, características que acreditamos já terem sido superadas pela Psicossociologia. Da perspectiva política, partem alguns conceitos principais como alienação, ideologia, nacionalidade e trauma político. Por ser consciente de seus fundamentos, pensa processos societários de libertação e emancipação. Dar conta das realidades diversas possíveis é uma tarefa para ações que visem construir e reconhecer o poder popular a fim de combater a alienação. O político é estruturante do psicológico (Martín-Baró, 1989).

Nesse entendimento, a Psicossociologia rompe com a ordem social e constrói formas alternativas de viver, na qual a dimensão política considera a consequência das estruturas estabelecidas. O foco nos estudos psíquicos deve estar na libertação humana e na compreensão dos exercícios do poder. A Psicossociologia passa a pensar com os sujeitos por meio de processos que provoquem a consciência dos condicionantes sociopolíticos (Martín-Baró, 1989).

Nesse caminho, algumas vertentes da Psicologia contribuíram para o distanciamento entre a alienação pessoal e a opressão social, sugerindo que o sofrimento psíquico pudesse se produzir alheia à história social e ao contexto político, ignorando as relações de poder que as permeiam. A Psicologia da Libertação seria então uma tarefa latino-americana. Para tanto, Martín-Baró (1986) afirma que é necessária uma libertação da própria Psicologia, que somente chegará com uma práxis comprometida com os sofrimentos e esperanças com os sofrimentos e esperanças dos setores mais vulneráveis da América Latina.

Como é possível que nós, psicólogos latino-americanos, não fomos capazes de descobrir todo o rico potencial de virtudes nos nossos povos e que, consciente ou inconscientemente, voltamos nossos olhos para outros países e outras culturas na hora de definir objetivos e ideais? (Martín-Baró, 1986. p. 14).

Entende-se que tais temáticas exigem questionamentos acerca dos sustentáculos do campo dos estudos psicossociais e revelam como esses especialistas se colocaram mais ao sul, afastando-se dos estudos "de" comunidades e vislumbrando, de certo, uma abordagem "com" comunidades em territórios latino-americanos. O diálogo entre a Psicologia e as Ciências Sociais aparece nos escritos de Martín-Baró (1986) em diversos pontos, inclusive quando se alinha com Freire e Fals Borda, incluindo o conceito de conscientização como alternativa estratégica.

b) Montero e as interfaces com a perspectiva libertadora

Na Venezuela, Maritza Montero se tornou uma presença ativa e passou a ser situada como representante da Psicologia Social, com ênfase na superação da dependência em um nível individual e comunitário, com base nos princípios da libertação. Ao produzir teoria e prática na Psicologia Comunitária, expõe os temas de poder e fortalecimento, os tipos de liderança comunitária, suas influências e alternativas de resistências.

A autora apresenta importantes reflexões acerca das redes comunitárias e do trabalho psicossocial comunitário, visando à superação da exclusão social e à afirmação das identidades culturais como propostas para concretizar a transformação social das comunidades. O compromisso de Montero inclui desafiar o poder estabelecido por se colocar de forma contra-hegemônica na produção do saber-fazer em Psicologia. Maritza produz uma proposta que, como pretendia, "contribui significativamente com a transformação do mundo" (Montero, 2016, p. 299). São defendidos processos de construção coletiva do conhecimento, com destaque para o caráter ético e crítico na tomada de consciência. Seus argumentos partem de uma perspectiva inclusiva e consequentemente da possibilidade de reconhecer o outro afetado, relacionar-se em diálogo, exercitando uma práxis com todos os envolvidos no processo comunitário (Montero, 2014). A década de 1950 é marcada pela crescente produção de uma Sociologia comprometida e dirigida aos oprimidos, um movimento por dentro das Ciências Humanas. Com ênfase no sujeito ativo, que conduz os processos de transformação a partir da participação social, "A ideia é então trabalhar em, com e para as comunidades. Isto significa redefinir o objeto e o método, revisar a teoria, reestruturar o rol profissional dos e das profissionais da Psicologia" (Montero, 1994).

Nesse sentido, para Montero (1994), a Psicologia Social Comunitária Latino-Americana pressupõe um fundo político, mas não no sentido estreito do partidarismo, mas no sentido da cidadania. O desenvolvimento comunitário supõe o fortalecimento da sociedade civil, com a conscientização de seus direitos e deveres cidadãos. Nesse sentido, os(as) pesquisadores(as) e psicólogos(as) entendem que são arautos da transformação e rompem com uma posição salvacionista e, muitas vezes, assistencialista. Mas aceitam seu papel, enfrentam as assimetrias de poder e assumem que podem trazer saberes que aportam às comunidades para a solução de problemas, assim como podem com elas aprender. A autora demarca com linhas firmes que o conhecimento comunitário não pode ser ignorado ou depreciado, mas sim incorporado nas ações emancipatórias. Nos pressupostos psicossociais comunitários de Montero, identificamos o destaque para o compromisso e a afetividade.

A indiferença e a chamada neutralidade não comprometida não conduzem à transformação social. É por essa razão que o estudo da afetividade e os modos como ela se expressa na prática são tão importantes na Psicologia Comunitária. Como pensar na participação comprometida e no compromisso participativo, nos efeitos da conscientização, sem considerar a emoção de perceber que é possível ver as coisas de outros ângulos, entender porque o que se acreditava essencial e imutável pode mudar, que tudo pode mudar, incluindo nós mesmos? Como ignorar a afetividade quando vemos as múltiplas obras de afeto no dia a dia do trabalho comunitário? (Montero, 2004. p. 134).

Montero (2006) destaca a importância de se reconhecer o cenário complexo que é trabalhar com comunidades e com o conhecimento popular. Na criação de uma rede dialógica entre especialistas e comunidades, está firmada a proposta de valorizar a construção do conhecimento a partir de uma perspectiva histórica alinhada com processos participativos que a autora realizou, pesquisou e escreveu por mais de três décadas.

Ponderando sobre os métodos da Psicologia Comunitária e da Psicologia Política, áreas de preferência de investigação e ação de Montero, a autora identifica que os casos dos métodos participativos vêm sendo aplicados para desideologização, desalienação, desnaturalização, como mobilização da consciência crítica. Relações dialógicas se estabelecem dessa forma, a fim de manter a igualdade entre quem investiga ou propõe uma intervenção e as pessoas que participam. Entendemos que o diálogo passa por processos de pergunta e resposta, expressa opiniões e contradições, além de chegar a acordos debatidos coletivamente. A visão metodológica de Maritza Montero inclui o diálogo estreito com Martín-Baró, Paulo Freire e Fals Borda, e nesse exercício a Psicologia passa a apresentar interfaces com aspectos políticos nos quais as perspectivas libertadora e comunitária dão o tom.

c) Metodologias para uma Psicossociologia participativa: Maria Inácia D'Ávila Neto

Maria Inácia D'Ávila Neto se graduou em Psicologia no Brasil e teve aqui também longas experiências docentes, tanto na Universidade de Brasília (UnB), onde iniciou a carreira, quanto na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde se aposentou e orientou pesquisas até a morte. Cursou mestrado, doutorado e, mais adiante, pós-doutorado na França.

Com essas marcas e protagonismo inconteste, D'Ávila Neto, como se pode atestar nos trabalhos recentes sobre sua presença no campo (Maciel & Souza, 2018), provocou a universidade do Brasil, no que concerne ao desafio de ampliar visões sobre interdisciplinaridade e a inaugurar outros locus de produção de conhecimento reunindo especialistas de diferentes disciplinas. As opções, em termos de colaboração interinstitucional, refletiram o peso que a diversidade humana merece. Em outras palavras, a produção que ajudou a impulsionar, como supervisora e orientadora, no referido programa de pós-graduação, faz parte da chave transcultural de Psicologia, no sentido dado por Muniz Sodré (2018, p. 9).

A perspectiva de produção de conhecimento no campo da Psicologia de D'Ávila Neto teve como realce a criação metodológica, como podemos identificar na adoção/criação de recursos diversos, para o melhor desenvolvimento do trabalho de campo. Nos anos 1980, a autora já apresentava importantes resultados de abordagens psicossociológicas que incluíam as imagens em vídeo. Sobre isso chama atenção o que D'Ávila Neto e Baptista (2007, p. 8) salientaram no trabalho "Páthos e o sujeito feminino: considerações sobre o processo de construção narrativa identitária de mulheres de grupos culturalmente minoritários":

A utilização do vídeo em nossa pesquisa no hospital permitiu-nos explorar e "registrar" o patêmico, expresso na necessidade dos membros do grupo em suscitar nos outros a empatia, através de narrativas carregadas de conotações afetivas e emocionais fortes, como uma espécie de teatro corporal ritual. A ideia que norteia isso é que o corpo das mulheres, em uma sociedade de raízes patriarcais como a nossa, é um ponto de convergência das estratégias de poder.

Com esse foco, a autora pretendeu chegar a um quadro de interações sociais interpessoais, a partir de contextos familiares e sociais. Descritores como feminismo, ecologia, desenvolvimento cultural, globalização, comunidades, deslocamentos e estudos sobre migração, indicam preocupações presentes em sua elaboração teórica e política. Ao mesmo tempo, importa destacar que sua apreensão singular envolvia as áreas da Sociologia, Antropologia, Geografia e Meio Ambiente. Consequentemente, o que vimos em suas pesquisas psicossociológicas foram resultados que impactaram o campo acadêmico, mas também as dinâmicas dos movimentos sociais e do campo do feminismo, em sentido amplo.

Dentre os grupos com os quais manteve ligação, destacam-se os setores mais excluídos, afetados pela ausência de políticas sociais que se alinhassem com suas demandas. Por esse motivo, aproximou-se e se interessou fortemente pelas metodologias participativas, tecendo fortes críticas aos modelos clássicos de objetificação do sujeito pesquisado, em Ciências Sociais. Nesse sentido, buscando e inventando caminhos, desde o Brasil e a América Latina, tomou como referências e interlocuções autoras e autores da interdisciplinaridade, mais destacadamente aquelas(es) com fortes contribuições ao caráter descolonizador da produção de conhecimento, e à concepção de metodologias participativas; denunciando problemas nos métodos científicos utilizados na pesquisa social clássica, que definem como objetos de estudo comunidades desfavorecidas, oprimidas e dominadas. A questão central, colocada pela autora, se explicita em texto publicado em colaboração com Lages, quando apontam que o problema é

de que maneira os especialistas e pesquisadores representam a participação popular em suas pesquisas, motivados em promover o saber popular e suas práticas frente ao saber científico e teórico do poder dominador. Tais pesquisas, na grande maioria das vezes, partem do princípio de que existe uma cultura popular homogênea, um único saber que permeia determinado grupo ou comunidade e que se constituiria como o referencial e a voz de todos os indivíduos em suas reivindicações sociais e em seus projetos particulares de vida. Tal questão é complexa, a partir do momento em que surge outra visão através do saber popular que é fragmentado e, sendo assim, não se pode falar de uma conscientização e de uma emancipação que tenham um único sentido para todos. (D'Ávila Neto & Lages, 2008, p. 2).

Sobre as contribuições de D'Ávila Neto, Denise Jodelet (2018, p. 44) faz a seguinte análise:

[...] podemos descobrir, na obra de Maria Inácia D Ávila Neto, como que um sutil e estimulante mosaico de experiências e de teorizações, de linhas de pesquisa que tomara empréstimos da Psicanálise, da Sociologia, da Antropologia, da Psicologia Social, das Artes Visuais e do Ecodesenvolvimento. Esse mosaico, atuando em nome de uma Psicologia Social Holística, levará a uma verdadeira transdisciplinaridade, na prática científica e no ensino.

Pelo argumento da autora, companheira de jornada investigativa no contexto francês, entendemos alguns dos principais vetores de sua movimentação como pensadora do campo da Psicologia Social. Não obstante, e concordando com Jodelet, sua intervenção deve ser interpretada como inovadora, sobretudo por formalizar o desenvolvimento de novas metodologias para pesquisas-ações. A originalidade do trabalho se reconhece por fomentar as bases de uma verdadeira Psicossociologia ancorada em uma abordagem transdisciplinar:

[...] a designação de Psicossociologia refere-se a uma prática científica que se distingue do que entendemos geralmente por Psicologia Social. [...] a Psicossociologia se interessa pelos fenômenos globais, de um ponto de vista holístico. [...] aborda, à luz de processos psicológicos, fenômenos cujo estudo recai, geralmente, nas Ciências Sociais em virtude de sua escala e da maneira pela qual eles afetam a vida coletiva. (Jodelet, 2018, p. 49).

Vimos que, de um ponto de vista psicossociológico, encontra-se a inovação de processos investigativos alcançada ao longo de suas travessias pluridiversas, que foram possíveis pela escuta sensível de uma especialista comprometida com a formação de quadros para a demanda existente, indo além do contexto brasileiro.

Como a própria D'Ávila Neto escreveu anos depois, em colaboração com Maciel (2009, p. 245), seus estudos priorizaram "uma revisão das ideias a respeito da supremacia das tecnologias e saberes importados [] e uma escolha metodológica que [] deve se voltar para o qualitativo e incentivar todo tipo de pesquisa dita participativa".

 

Por uma Psicossociologia Latino-Americana "com" comunidades

Ao trazer os autores e as autoras aqui referenciadas(os), encontramos laços teóricos que se entreteceram ao longo da história, caminhos conceituais que foram construídos com braços dados e passos coletivos. Identificamos a integração de campos do conhecimento, com destaque às interfaces entre Educação, Psicologia e Sociologia, sempre com cunho ético-político. Tais percursos partem de um compromisso com as lutas populares latino-americanas; com uma reverência aos saberes comunitários; e uma proposta de participação social; bem como de uma busca pela libertação, adotando uma postura crítica, histórica e política, visando à transformação social.

O conceito de transformação pela participação social está presente em Paulo Freire (1981), ao propor perspectivas participantes para a construção de uma Pedagogia Libertadora e Conscientizadora, assim como também se coloca nos estudos e proposições de Maritza Montero (2009), para uma Psicologia Libertadora, e nos estudos de Maria Inácia D'Ávila Neto, ao tratar de uma Psicossociologia politicamente comprometida. Tal conceito também aparece em Martín-Baró (1989) em diálogo com Fals Borda, quando o autor afirma que o conhecimento práxico pode ser adquirido a partir da investigação participante e deve caminhar para uma busca pelo poder popular. Uma transformação que se esforce para tornar as sociedades latino-americanas mais justas. Assim, para tais autores, a participação conduz à ruptura com a relação assimétrica de submissão do sujeito oprimido visto como objeto pelo sistema dominante (Fals Borda, 1980; Freire, 1981; Martín-Baró, 1986, 1989). A partir daí, entendemos que para a Psicossociologia com comunidades desenvolver um novo conhecimento ela deve ter sua práxis enraizada na perspectiva das maiorias populares oprimidas, encarando as comunidades como comunidades históricas e clamando-as a participarem dos processos de transformação: e com isso passando a uma lógica de Psicossociologia com comunidades, no sentido de um fazer junto.

Sobre esse fazer junto, na óptica de pensar as investigações e intervenções comunitárias de forma coletiva-popular e descolonizadora, Freire e Fals Borda se destacam em suas colaborações por meio da Educação Popular e da abordagem de Investigación Acción Participativa (IAP), ou Pesquisa Participante. Nesse rumo é possível conceber os encontros com as comunidades estimulando-as a engajarem-se na resolução das problemáticas vivenciadas por elas, bem como assumindo suas leituras de mundo como pontes para atingir aquilo que Fals Borda entendia como uma Ciência Popular.

Sob essa mesma óptica, Fals Borda reflete a respeito das interseções entre a metodologia de Investigação-Ação Participativa (IAP) e a Educação Popular, afirmando que a noção de uma ciência comprometida com os anseios e demandas populares (Fals Borda, 1982, 1991) assinala uma postura de democratização do acesso e produção de conhecimentos - e que se orienta pela confluência de saberes populares e conhecimentos científicos rumo ao estabelecimento de uma ciência híbrida, produzida nos encontros das ciências acadêmicas e do senso comum (Fals Borda, 1982). Essa lógica, presente em Freire e em Fals Borda, e também em Martín-Baró, D'Ávila Neto e Montero, foi precursora da Educação Popular, bem como do Pensamento Crítico e Descolonial latino-americano, segundo Mota-Neto (2015).

Retomando os dizeres de Lages (2013, p. 87), entendemos que esse percurso pode possibilitar, a partir de sua inserção na Psicossociologia, um caminho fértil para

dar sua contribuição no sentido de construir novos conceitos e estratégias epistemológicas de complexidade e de interdisciplinaridade, que atenda à nova conjuntura sociocultural, se posicionando de forma crítica na agenda das lutas emancipatórias, anti-opressivas, descolonizando suas teorias e práticas.

E assim recuperamos mais pistas para a costura de uma Psicossociologia com Comunidades capaz de se pensar de forma crítica, popular, sentipensante e descolonizadora.

Esses autores e autoras nos desafiam a pensar além, dando margem para questões como: onde estão os saberes populares nas universidades ocidentais? Como trazê-los para esta conversa, na produção desta Psicossociologia nossa, pautada, aterrada e enraizada em conhecimentos práxicos, interdisciplinar e interepistêmica?

 

Para descolonizar a Psicossociologia

A Psicossociologia tece seu olhar a partir das confluências de diferentes dimensões que compõem a realidade psicossocial comunitária. Posto isso, entendemos que uma Psicossociologia Suleante, Crítica, Descolonizadora e Sentipensante leva em conta contributos provenientes de uma Psicologia Crítica e Política, conforme defendida por Martín-Baró; a concepção de uma Sociologia Crítica e Sentipensante que nos é legada por Fals Borda; o método psicossocial presente na Pedagogia da Libertação de inspiração freiriana; o recurso político da mobilização comunitária proposto por Maritza Montero; e a metodologia criativa e participativa de D'Ávila Neto. Tais influências nos guiam a pensar tendo em mente princípios como a colaboração; a importância da participação comunitária; e a responsabilidade social e política dos sujeitos engajados nos processos de transformação da realidade.

Ao adotarmos lentes de aumento, podemos encontrar na obra de D'Ávila Neto, desde os seus primeiros estudos sobre a condição feminina, apreensões sobre processos relacionados com os mecanismos de subalternização do outro inventado - seja a partir dos patriarcados, seja a partir da colonialidade do poder, nos termos empregados por Aníbal Quijano (2005). Os estudos de D'Ávila Neto dão ênfase a alternativas de deslocamento para as narrativas de si, sendo esta uma conclusão possível com o apoio do recurso das imagens de vídeo. A longa relação com estudiosos e estudiosas da França a levou a construir em sua própria linha teórica um exercício contínuo de pensar a partir do contexto da América Latina. pois esteve inúmeras vezes em debates efervescentes - alguns a tornaram conhecida nesse campo - na construção de uma Psicossociologia contextualizada. A autora também defendeu a Psicossociologia como campo de conhecimentos em diálogo, tanto se negando ao habitual subjugo de uma área de conhecimento a outra quanto enfrentando a contínua subalternização dos conhecimentos brasileiros aos europeus. Refletindo acerca das produções contemporâneas, e sob orientação de D'Ávila Neto, Sônia Lages (2013, p. 87) - posicionando-se a partir do campo dos estudos pós-coloniais, ao nos apresentar alguns desdobramentos possíveis para uma Psicossociologia desde el Sur - enuncia que

A Psicossociologia, caracterizada pela complexidade de sua interdisciplinaridade e por uma trajetória um tanto conturbada, tanto pela construção de uma episteme que atenda suas necessidades como de metodologias que orientem sua prática, encontra-se mergulhada hoje num contexto de mudanças paradigmáticas que exigem dela novos reposicionamentos. [...] Isto quer dizer que ela deve dar sua contribuição no sentido de construir novos conceitos e estratégias epistemológicas de complexidade e de interdisciplinaridade, que atenda à nova conjuntura sociocultural, se posicionando de forma crítica na agenda das lutas emancipatórias, anti-opressivas, descolonizando suas teorias e práticas.

Ampliando e aprofundando o diálogo de enfrentamento às perspectivas colonizadoras dos saberes e das vidas latino-americanas, e considerando os saberes de comunidades locais tradicionais como ciências de resistência, Antônio Bispo dos Santos (2015) nos provoca a partir de três elementos, eixos de sua discussão. Ele sugere como pontos de reflexão: a) a noção de que toda pesquisa acadêmica precisa ter um objetivo resolutivo, proposto pela própria comunidade participante; b) a ideia de que o conhecimento acadêmico, ao se afastar do conhecimento popular e tradicional, se torna sintético e, portanto, menos útil à transformação social e à sustentação da vida; e c) a proposição de que, por estarem ao longo dos últimos cinco séculos sempre em resistência contra o colonizador, as comunidades tradicionais não poderiam assumir posição pós ou decolonial, mas seguir na posição contracolonial, ao passo que as universidades - estas sim - precisam assumir uma postura ativa de descolonização de si.

Com isso, concordando com Lages (2013), e ampliando a reflexão a partir das contribuições de Pardo, Costa e Ramos (2019), Carvalho, Costa e Ferreira (2019), Pardo, Ramos e Bastos (2019), entendemos a urgência de uma Psicossociologia que compreenda que a colonização subjuga os povos da América Latina (e do sul geopolítico global como um todo), e que por isso deve atuar desse lado da trincheira, contribuindo para processos de libertação e descolonização.

Ainda que a estrutura acadêmica nos desafie continuamente a estabelecer zonas confortáveis de reprodução de conhecimento, desde a segunda metade do século XX muitos pesquisadores e muitas pesquisadoras vêm insistindo na criação de novas formas de ver e produzir conhecimento, garantindo espaço transfronteiriço entre diferentes visões de mundo, investindo na garantia da multiplicidade de cosmovisões e da complexidade de seus entrelaçamentos, subjetividades e polifonias.

Para tanto, propomos diálogos com Paulo Freire, Fals Borda, Martín-Baró, Maritza Montero e Maria Inácia D'Ávila Neto, referências basilares do movimento latino-americano da libertação nos campos da Educação, da Sociologia, da Psicologia Social, da Psicologia Política e da Psicossociologia - respectivamente. Para estas(es) autoras(es), as populações oprimidas carregam a intrínseca potência de desafiar as estruturas para a libertação, tendo como horizonte a formulação de um projeto social contra-hegemônico latino-americano, que perpasse campos de estudo e rompa com barreiras disciplinares. Suas obras nos impulsionam a conhecer as lutas de setores insurgentes, a ouvir suas histórias, conhecer suas dores e contextos, vivenciar suas angústias e alegrias para, junto com eles, pensar a transformação da realidade desafiadora.

Assim, localizamos algumas pistas sobre outras metodologias participativas, colaborativas, populares e descolonizadoras, que convoquem as comunidades a participarem, interagirem, mobilizarem-se, engajarem-se e se comprometerem. Com isso, entendemos que a descolonização da Psicossociologia abarca, entre outras coisas, a opção por abordagens que estimulem o protagonismo das comunidades e o reconhecimento de sua enunciação, incluindo seus diferentes saberes, suas memórias e trajetórias. Por tudo isso, chamamos a atenção para a centralidade do tema da descolonização da Psicossociologia, sendo esse um processo marcado por complexidades e que pode ser pautado em alianças acordadas com as bases, com os movimentos sociais, com os grupos em situação de vulnerabilidade. Um processo marcado por dinâmicas contra-hegemônicas, que partam "de baixo para cima". Além dos aspectos metodológicos, o caminho pela descolonização das Ciências Humanas e Sociais também passa pelo combate dos traumas coloniais, pelo questionamento e enfrentamento das diferentes formas de injustiças. Inclui o reconhecimento da diversidade, das ancestralidades, dos modos de vida tradicionais e exige posicionamentos a favor da transformação da sociedade. Passa, antes de tudo, por uma transformação dos centros que as produzem, como é o caso das instituições de ensino superior. Será estratégico um compromisso com a reformulação de suas regras, espaços, referências, teorias e métodos, bem como da incorporação de novos públicos, saberes e visões de mundo.

Podemos recuperar as ideias de Orlando Fals Borda (Cendales, Torres, & Torres, 2006) quando problematiza a função social das universidades, destacando que tais centros produtores do conhecimento devem atuar junto ao povo, no sentido de extrapolar seus muros e torres de marfim em busca do contato com a realidade popular para refletir-atuar-transformar os contextos locais, ajudando as comunidades na resolução de problemáticas e questões internas.

 

À guisa de conclusão

Conforme exposto anteriormente, a Psicossociologia de comunidades pauta-se a partir da constatação da complexidade das realidades psicossociais comunitárias, entendendo a necessidade de integrar diferentes campos do conhecimento para se aproximar da compreensão dessas dinâmicas complexas. Mas isso não basta. Como uma ciência ocidental, que teve seu florescimento na França, a Psicossociologia está, originariamente, ao norte, o que incide nas questões centrais nela privilegiadas. Por outra parte, ao chegar ao solo latino-americano, tal campo se depara com problemáticas outras, muitas das quais decorrentes do empreendimento colonial. Nasce, portanto, outra percepção da Psicossociologia, sendo esta gerada a partir das demandas do território.

Com isso nos deparamos com a urgência de incorporar especialistas que dedicaram suas vidas a confrontar tais problemáticas do sul global, incluindo as injustiças, desigualdades, opressões e traumas das populações de um continente transformado em o outro da colonização. Entre tais referenciais, apostamos nas contribuições de: Martín-Baró e Maritza Montero, com as apropriações da Psicologia Crítica e Política; a Sociologia Crítica e Sentipensante de Orlando Fals Borda; a Pedagogia da Libertação de Paulo Freire; e a reivindicação de uma Psicossociologia Latino-Americana e Brasileira, como defendia D'Ávila Neto. Esses(as) profissionais e estudiosos(as) concordam com a emergência de libertação dos oprimidos, e da construção de um projeto social contra-hegemônico capaz de ir além das limitações disciplinares.

Ao tomarmos como parâmetro as insurgências epistemológicas, em função das mudanças do tempo presente, encontramos justificativa para agregarmos as multiplicidades das apostas realizadas no contexto em questão. A interação com o pensamento de D'Ávila Neto, Monteiro, Freire, Fals Borda e Martín-Baró nos leva a assumir que uma Psicossociologia de Comunidades, que se coloca como crítica, sentipensante, descolonizadora e libertadora, alinha-se com uma perspectiva de coautoria e, se assim pudermos considerar, pode ser redefinida mais como "Psicossociologia com Comunidades", e/ou de base comunitária. Além disso, entendemos que as experiências educativas populares se colocam alinhadas para a construção de práxis coletivas, também, no âmbito da pesquisa participante.

Essa abordagem pode ser histórica e com capilaridade, já que estratos diversos que se organizam são representados como detentores das condições primordiais para impulsionar processos revolucionários, tendo caráter político por abarcar as relações de poder que invadem os ambientes comunitários. Ao mesmo tempo, reforçamos que pesquisas marcadas por outros atravessamentos impulsionam uma escuta sensível nos territórios subjugados e esse giro ganha centralidade para uma reavaliação do campo da Psicossociologia, diante das demandas que brotam dos territórios vítimas de desumanização. Com isso, reforçamos que uma "Psicossociologia com comunidades" deve empenhar-se para fortalecer os encontros e promover confluências, engendrando processos de produção coletiva de conhecimentos contextualizados e críticos sobre as realidades comunitárias.

 

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Recebido em: 1º/12/2020
Aceito em: 1º/5/2021

 

 

1 Este estudo compõe a pesquisa "Memórias, territórios e ocupações: os possíveis da universidade pluriepistêmica", registrado na Plataforma Brasil, CAAE 22698019.0.0000.5582.
2 Estudos de Comunidade (EC) - escola de Antropologia estadunidense da primeira metade do século XX.
3 Criado na década de 1970, trata-se de um coletivo definido como exemplo de uma "pesquisa ativa" e um "estudo ação".

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