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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.2 São João del-Rei jun. 2021

 

Tropifagia: uma experiência de Psicossociologia do sul tropical

 

Tropifagia: an Experience of Psychosociology from the Tropical South

 

Tropifagia: una experiencia psicosociológica desde el sur tropical

 

 

Aline CarvalhoI; Thiago PondéII

IDoutoranda do programa de Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestra em Indústrias Criativas pela Universidade Paris 8. Formada em Estudos de Mídia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Gestora do Ponto de Cultura Oficina-Escola "As Mãos de Luz". Atualmente desenvolve uma metodologia integrada de educação, mobilização comunitária e autoconhecimento para jovens com o projeto Gaia Jovem. E-mail: aline.carvalho@ufrj.br
IIDoutorando em Cultura e Sociedade pelo Pós-Cultura na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Cultura e Sociedade pela UFBA. Bacharel em Filosofia pela UFBA. Atualmente pesquisa a vida e a obra do compositor baiano da Era do Rádio Humberto Porto. Cantor formado pela Escola Baiana de Canto Popular, com gravações, apresentações e shows de abertura ao lado de e para artistas como Jorge Mautner, Luiz Galvão (Novos Baianos), Gerônimo, Lenine, Saulo, entre outros, com os projetos Cena Tropifágica (2011-2017) e O Jardim de Humberto Porto. E-mail: comunicacao.ponde@gmail.com

 

 


RESUMO

A fim de contribuir para uma Psicossociologia que se proponha contra-hegemônica na América Latina, este artigo apresenta, por meio do conceito tropifagia - "comer o país tropical" -, uma metodologia psicossocial de produção criativa executada pela Cena Tropifágica: os intercâmbios culturais. Propondo a mediação sensível entre as diversidades a partir do processo de criação artística, essa metodologia se contrapõe à descontextualização cultural e política da produção de conhecimento para questionar a pretensa hegemonia da ciência moderna. Sob a perspectiva do conhecimento pós-moderno e aliada às formulações de uma ciência popular, o artigo evoca uma possível Psicossociologia do sul tropical: uma produção de conhecimento que se baseia na sensibilidade e desafia os pressupostos cartesianos da racionalidade, tendo como ponto comum justamente a diversidade de saberes e práticas como resistência.

Palavras-chave: Tropifagia. Psicossociologia. Sensibilidade. Conhecimento pós-moderno. América Latina.


ABSTRACT

In order to contribute to a counter-hegemonic Psychosociology from Latin America, this article presents, through the concept of tropifagia - "eating the tropical country" -, a psychosocial methodology of creative production performed by the Cena Tropifágica project: the cultural exchange. Proposing a sensitive mediation between diversities based on an artistic creation process, this methodology is opposed to the cultural and political decontextualization of knowledge production, in order to question the alleged hegemony of modern science. From the perspective of postmodern knowledge and combined with the formulations of a popular science, the article evoques a Psychosociology of the tropical south: a production of knowledge that is based on sensitivity and challenges the cartesian assumptions of rationality, having as common point precisely the diversity of knowledges and practices as resistance.

Keywords: Tropifagia. Psychosociology. Sensitivity. Postmodern knowledge. Latin America.


RESUMEN

Para contribuir a una Psicosociología que propone la contrahegemonía desde América Latina, este artículo presenta, a través del concepto de tropifagia - "comerse el país tropical" -, una metodología psicosocial de producción creativa llevada a cabo por la Cena Tropifágica: los intercambios culturales. Al proponer una mediación sensible entre las diversidades a partir del proceso de creación artística, esta metodología se opone a la descontextualización cultural y política de la producción de conocimiento para cuestionar la supuesta hegemonía de la ciencia moderna. Desde la perspectiva del conocimiento posmoderno y aliado a las formulaciones de una ciencia popular, el artículo evoca una posible Psicosociología del sur tropical: una producción de conocimiento que se basa en la sensibilidad y desafía los supuestos cartesianos de racionalidad, teniendo como punto común precisamente el diversidad de conocimientos y prácticas como resistencia.

Palabras clave: Tropifagia. Psicosociología. Sensibilidad. Conocimiento posmoderno América Latina.


 

 

1 Introdução

O termo tropifagia, de significado semântico comer (fagia) os trópicos (tropi), é o horizonte conceitual por meio do qual se costuram abordagens, reflexões e impulsos sob três interfaces temáticas: "o Brasil como símbolo; a dimensão criativa e filosófica da arte; e as diversas culturas humanas que nos compõem como país" (Pondé & Carvalho, 2020, p. 23). Tendo como suporte empírico a experiência da Cena Tropifágica,1 propõe-se uma metodologia psicossocial de produção e reflexão criativa - os intercâmbios culturais -, na qual a arte é agente de mediação sensível das diversidades, como ato de resistência e proposição de caminhos possíveis aos retrocessos epistêmicos e sociais na arena da atualidade brasileira.

Passado, presente e futuro se misturam em narrativas de Brasis possíveis que sempre estiveram em disputa. Em uma dimensão teórica e histórico-cultural, tropifagia é um conceito desdobrado do legado construído pela Antropofagia, pela Tropicália e pelo Cultura Viva. O conceito ora apresentado demarca um deslocamento histórico e epistemológico com relação ao acúmulo de debates suscitados por essas iniciativas nos últimos 100 anos, no sentido de contribuir na reflexão e na ação sobre a atual conjuntura do Brasil e do mundo.

O ato antropofágico de deglutir e regurgitar o outro, humano, simbolizado pelo prefixo antropo (do grego ánthropos); a postura estético-cultural com a qual a Tropicália se propôs a interagir com as questões sociopolíticas emergentes; e a política cultural viva e de base operada pelo programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura oferecem um terreno fértil para o ato tropifágico de ressignificar os trópicos sob uma óptica cultural e estética, continuando no século XXI as subversões operadas por agentes antropofágicos e tropicalistas.

Do ponto de vista acadêmico e global, o conceito tropifagia funda-se a partir do giro epistemológico iniciado com o chamado conhecimento pós-moderno (Santos, 1987), no qual preceitos da produção de conhecimento como neutralidade e distanciamento passam a ser intensamente questionados como únicos critérios de validade científica. Boaventura de Sousa Santos (1987) afirma que utiliza essa expressão pela falta de outra mais adequada. Partindo do diagnóstico de uma crise no paradigma dominante da produção de conhecimento, demarcado pela ciência moderna, Santos aponta um paradigma emergente que se contrapõe e amplia as diretrizes colocadas pelo método científico cartesiano. O que restou evidente após séculos de ciência moderna são o controle e a hegemonia discursiva exercidos pela Europa diante dos países historicamente colonizados.

Sabe-se hoje que produzir conhecimento imbrica posicionamentos epistemológicos geralmente interessados em uma finalidade política ou mercadológica, por exemplo. Produzir conhecimento incorre também em questões subjetivas dos agentes sociais que o produzem. Isso implica ainda em aspectos objetivos da realidade que muitas vezes não são relacionados, como a desigualdade social justificada pela meritocracia, para citar um caso. Sob essa perspectiva, o termo tropifagia aprofunda uma política conceitual situada na emancipação social e na afirmação de uma epistemologia própria do sul tropical. A esse respeito, defendemos que

há premissas inequívocas pelas quais se deve lutar continuamente no Brasil: os direitos humanos e fundamentais de populações e grupos sociais que aqui habitam, através da ampliação de serviços públicos vitais e um sistema tributário menos regressivo - com maior incidência sobre patrimônio e renda, e menor sobre produção e consumo; o exercício da cidadania e o fim dos arroubos do autoritarismo, fortalecendo nossa jovem e cambaleante democracia e o Estado laico, garantindo a liberdade de expressão e o respeito às diversas possibilidades de credo, de gênero e de orientação sexual e a preservação da Amazônia e do meio ambiente, sem o que não haverá mundo pelo qual se lutar. (Pondé & Carvalho, 2020, p. 27).

É partindo desse posicionamento que iniciamos a reflexão que aqui propomos. Antes de nos debruçarmos sobre o conceito tropifagia, convém, entretanto, contextualizar o debate sobre as chamadas Epistemologias do Sul (Santos & Meneses, 2010) e de uma ciência popular (Anzaldúa, 1999; Cusicanqui, 2020; Fals Borda, 2015; Freire, 1981; Montero, 2009) a fim de sugerir como a proposta tropifágica que pode vir a contribuir para uma Psicossociologia que se proponha crítica, comunitária e contra-hegemônica na América Latina (Campos, 2016; Martín-Baró, 1986; Freitas, 2002; Lane, 2002), a partir da experiência dos intercâmbios culturais: na possibilidade da criação artística como mediação sensível para o tensionamento e agregação das diferenças e aproximação entre diversidades.

 

2 Epistemologias em disputa

A palavra "epistemologia" tem origem no encontro do termo grego episteme (conhecimento) com o grego logia (estudo) - remetendo assim ao estudo do conhecimento e das formas de conhecer. Segundo o dicionário Michaelis Online, a epistemologia seria o "estudo crítico das premissas, das conclusões e dos métodos dos diferentes ramos do conhecimento científico, das teorias e das práticas", ou seja, uma "teoria da ciência" (Michaelis, 2015). Na Filosofia Grega, a partir de Platão, a epistemologia é o ramo que se dedica ao estudo do conhecimento com valor de verdade, em contraposição à doxa, a mera opinião.

Neste artigo, referimo-nos à epistemologia sob uma perspectiva dilatada, por meio de uma conjuntura pluriepistêmica pós-moderna. Partindo da premissa de que "toda experiência social produz e reproduz conhecimento", Boaventura de Sousa Santos define epistemologia como "toda noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido" (Santos & Meneses, 2010, p. 15). Nesse sentido, podemos dizer que estudar a produção de conhecimento nos convoca a olhar não apenas para aquilo que é reconhecido e legitimado como "saber científico", notadamente sob uma perspectiva ocidental e eurocêntrica, mas também aquilo que não é reconhecido pela "ciência oficial", bem como suas imbricações sociais.

Isso significa fazer uma crítica à descontextualização cultural e política da produção e consequente reprodução de conhecimento em nome de uma pretensa "universalidade" da ciência - como se as formas de conhecer o mundo e a aplicação dos saberes na prática se desse da mesma forma em qualquer lugar do globo, e qualquer desvio dessa norma seria em razão de um atraso local em relação à noção de desenvolvimento guiada pela perspectiva dos países do norte global. Santos e Meneses (2010) explicam que a epistemologia dominante fundamenta-se culturalmente numa visão cristã e ocidental do mundo, e politicamente sob a égide do capitalismo e do colonialismo, e que essa visão de mundo vem operando uma intervenção política, econômica e militar de apagamento das experiências sociais diversas, no sentido de uma homogeneização do mundo, configurando-se num verdadeiro "epistemicídio" (Santos & Meneses, 2010, p. 16).

Podemos dizer que se trata de uma guerra epistemológica, no sentido das "guerras bárbaras do contemporâneo", conforme evocado por Milton Campos: a reconfiguração, na atualidade, da antiga oposição entre "civilizados" e "bárbaros" e quais as implicações, reconfigurações e possíveis respostas em termos de contraguerras.2 A narrativa em termos de "invasões bárbaras" foi reforçada ao longo da história, em particular com o Iluminismo, e evoca uma oposição binária necessária à construção de grandes impérios. É interessante notar como essa oposição se sustenta ainda nos dias de hoje, por exemplo, com o resgate do termo "bárbaro" na imprensa norte-americana, após atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, para justificar o imperialismo ocidental em uma guerra na qual os bárbaros contemporâneos seriam os imigrantes, os colonizados, os subdesenvolvidos (Boletsi, 2017).

Por essa razão, a defesa de uma pluralidade epistemológica busca romper com o binarismo próprio do pensamento racional e cartesiano que embasou filosoficamente a constituição da ciência moderna. A vasta capacidade de produção de conhecimento humano não pode se resumir apenas à dicotomia de um saber validado pelo método civilizado versus saberes desconsiderados cientificamente por serem "bárbaros". Mais do que isso, trata-se de uma Ecologia de Sentidos (Campos, 2017) que leva a uma Ecologia de Saberes (Santos, 2007), apoiando a nossa forma de ler e lidar com o mundo contemporâneo sob uma visão complexa e sistêmica, como nos requerem os desafios atuais.

No final das contas, novas soluções trazem novos problemas, e há muito mais entre as diferentes concepções ideológicas e políticas do que uma obsoleta visão de mundo pode querer prever. Para perguntas do século XIX, respostas do século XXI: é para confundir a cabeça mesmo. (Pondé & Carvalho, 2020, p. 323)

A esse respeito, convém recorrer ao campo da Filosofia, mais especificamente à Epistemologia Social, um ramo filosófico que investiga a dimensão social e moral da aquisição de conhecimento e a formação de crenças racionais. Alguns autores têm formulado sobre a noção de "injustiça epistêmica" (Fricker, 2007), referente à exclusão da contribuição de determinados agentes à produção, disseminação e manutenção do conhecimento. Fricker alerta para as considerações sociopolíticas às quais aquele que produz conhecimento está sujeito e de que maneira as normas que concedem credibilidade a indivíduos ou grupos reproduzem estruturas de poder e, por isso, a injustiça epistêmica estaria precisamente na recusa em reconhecer tal autoridade racional acerca de determinado assunto (Guimarães Santos, 2017).

Dessa maneira, ignora-se - não por acaso - uma enorme gama de saberes, relações e formas de fazer que passam longe da maneira instaurada de lidar com o mundo sob o pensamento iluminista na construção do que ficou conhecido como Idade Moderna. Essa institucionalização do saber a partir de critérios de validade definidos pela ciência moderna exclui e dificulta o diálogo entre as diversas formas de conhecimento, operando assim uma "colonialidade do poder e saber" (Quijano, 2010). Em contraposição, temos visto nas últimas décadas uma crescente discussão em torno das chamadas "Epistemologias do Sul", que estabelece novas relações interepistemológicas remetendo a um sul metafórico: a diversidade de formas de conhecer o mundo, suprimidas pelas diferentes formas de dominação capitalista (Santos & Meneses, 2010).

Nessa linha de raciocínio, evocamos aqui o que Maritza Montero chamou de uma "episteme da relação", na qual "todo conhecimento é produzido em e por relações sociais" e, portanto, "a unidade essencial a partir da qual se produz o conhecimento não é o indivíduo [...] isolado, mas a relação entre seres" (Montero, 2010, p. 91). Nessa mesma direção, a Psicossociologia de comunidades que aqui evocamos, e sobre a qual falaremos mais à frente, propõe "conectar o individual-psicológico-singular-subjetivo ao coletivo-social-popular-político" (Camargo, Pelacani & Costa, 2020, p. 1). Ora, se foram as relações capitalistas, coloniais, cristãs e ocidentais que nos trouxeram até o atual estado da ciência moderna, cabe a nós, como atores sociais de nosso tempo histórico, repensar essas relações e disputar essa ciência pretensamente universal.

Há quem diga ainda que seria uma contradição se apropriar do termo "epistemologia", por ser esse um campo de estudos fundado na cultura dominante, sob o risco de ser invisibilizado ou apropriado. Para nós, inspira a provocação de Paulo Freire (1981) ao nos lembrar de que os chamados marginalizados jamais estiveram "fora de", pelo contrário, sempre estiveram dentro da mesma estrutura que os oprime e, portanto, a proposta das Epistemologias do Sul não seria exatamente a de integrar-se de forma acrítica nesse sistema científico - que suporia aceitar suas regras sem contestação -, mas em incorporar-se a essa estrutura opressora, no sentido de reconhecer seus inegáveis impactos sociopolíticos e, por isso mesmo, transformá-la (Freire, 1981).

 

3 Ciência popular e epistemologia latino-americana

No sentido da desconstrução da ciência moderna eurocêntrica como única forma de produção de conhecimento possível, convém aqui abordar as contribuições de autores e autoras latino-americanos que defendem uma ciência popular e crítica, a partir da relação entre teoria e prática.

Um dos principais pensadores (e realizadores) de uma Filosofia crítica da educação, o pedagogo brasileiro Paulo Freire, costuma ser mais reconhecido no exterior do que no próprio Brasil - fruto desse apagamento cultural que aqui denunciamos, uma vez que sua obra foi invisibilizada pela censura conservadora do regime civil-militar que operava (e em muitos aspectos ainda opera) no país, levando-o ao exílio. A provocação de Freire reside no que ele chamou de Pedagogia da Libertação (Freire, 1981), ao reconhecer a condição revolucionária dos chamados "oprimidos" como sujeitos históricos. Ao colocá-los nessa condição ativa, Freire defende que a libertação se dá precisamente na relação complementar entre teoria (tomar consciência da condição de opressão) e prática (operar ações no sentido de sua própria libertação) - ou seja, a práxis. Dessa forma, quando o sujeito em situação de opressão "se posiciona diante das contradições e conflitos da sociedade capitalista, descobre as condições materiais para a transformação, e consequente superação de injustiças" (Camargo, Pelacani, & Costa, 2020, p. 3).

Também na defesa de um movimento integrado entre reflexão e ação, outro importante nome na construção de uma ciência popular, crítica e ativa é o sociólogo colombiano Orlando Fals Borda. Compreendendo a produção de conhecimento como estratégia política, o autor defende uma ciência híbrida (Fals Borda, 1982) que se daria no diálogo entre os conhecimentos científicos e os saberes populares, no sentido da democratização não apenas do acesso, mas também da produção de conhecimento (Camargo et al., 2020). Indo além, Fals Borda (1991, p. 196) propõe uma Pesquisa-Ação Participante que rompe com a divisão sujeito-objeto a partir de uma ciência em diálogo com a vida e os saberes cotidianos das pessoas, considerando a "possibilidade existencial de transformar a relação de investigador e investigado [...] e a necessidade essencial de autonomia e identidade no exercício do contrapoder popular".

Acerca disso, cabe aqui evocar a socióloga boliviana Silvia Cusicanqui (2020), que propõe uma descolonização de práticas e discursos mediante o conceito de Ch'ixinakaxutxiwa. Inspirada pela teoria anarquista e nas cosmologias quéchua e aimará, Cusicanqui evoca a prática da tecelagem das mulheres bolivianas como algo por intermédio do qual se pode pensar, requalificando assim a atividade artesanal sob uma dimensão criativa. Ela critica autores pretensamente decoloniais em seus discursos, mas que em suas práticas acabam perpetuando uma postura colonial. Com isso, a autora e militante defende a dimensão do "fazer" como uma forma de produção de conhecimento tão importante quanto o "pensar" e o "escrever", rejeitando categorizações do que seria "melhor" ou "pior", rompendo com esse binarismo colonial ao defender a coexistência de contradições e incômodos, como uma característica intrínseca da vida (Enne, 2020a).

Nesse mesmo sentido de romper com binarismos, evocamos desta vez a feminista Gloria Anzaldúa, que em seu livro autobiográfico A Fronteira (1999) opera uma série de hibridismos como forma de provocação e resistência: mistura prosa e poesia ao relatar sua trajetória como acadêmica, mulher e chicana,3 trazendo as marcas da experiência fronteiriça entre o México e os Estados Unidos. Ao abordar a experiência de uma identidade de fronteira, dual, a autora chama a atenção para uma espécie de "guerra interior", uma condição psíquica permanentemente partida desses sujeitos. Com isso, denuncia a construção binária entre o "eu/nós" (civilizado, branco, ocidental) e o "outro" (bárbaro, mestiço, selvagem), que se encontra refletida no uso da língua como uma ferramenta de poder, controle e silenciamento das diferenças. E contra tal pureza dominadora, a autora defende uma "consciência mestiça" que rompe com o binarismo das nacionalidades - outro legado do pensamento colonial e da invenção do Estado-Nação - e propõe uma postura híbrida, de coexistência, como uma forma de resistência (Enne, 2020b).

Por fim, mas não menos importante, outra autora que defende o reconhecimento de uma ciência popular no sentido decolonial é a psicóloga venezuelana Maritza Montero. Assim como Cusicanqui e Anzaldúa, Montero evoca a autoimagem estereotipada do povo latino-americano e denuncia o

papel da ideologia e alienação na formação de uma "mentalidade dependente" e de menos-valia, pela qual se afirmam enquanto sujeitos "periféricos" (Sul), em relação ao "centro" do poder econômico global (Norte), sem questionarem o papel da dependência e a história de dominação das relações entre países do norte e do sul. (Costa, 2015, p. 275).

Por essa razão, a autora defende a importância de incentivar a criatividade individual e a memória coletiva por intermédio de uma Psicologia comprometida em operar um despertar de consciência das potências, desafios e, sobretudo, da necessidade de mudar (Montero, 2009). Assim, Montero se consagra uma das principais referências para a construção de uma Psicologia Política Comunitária na América Latina, como veremos a seguir.

 

4 Psicossociologia de comunidades na América Latina

Para explicarmos a constituição do campo da Psicologia Social no Brasil, convém retomarmos algumas características sociais, políticas e históricas compartilhadas pelos países latino-americanos, como nos sugere Silvia Lane (2002). Tomemos, por exemplo, os processos de colonização que, em nome de riquezas materiais, desconsideraram valores éticos e estéticos de civilizações anteriores; também podemos citar a passagem de uma economia agropecuária para um modelo agroindustrial, levando a uma industrialização multinacional que gerou um crescimento desordenado dos centros urbanos e um estado de precarização das zonas rurais; ou ainda a fragilidade dos processos democráticos que justificaram golpes, ditaduras militares e corrupção institucionalizada como "marca" cultural da América Latina (Lane, 2002).

Esse legado cultural, racial e histórico fez da América Latina um campo fértil para o desenvolvimento de estudos da Psicologia Comunitária: psicólogos sociais de vários países, e outros profissionais e instituições do campo da saúde, educação e serviço social, começaram a realizar experiências militantes nos setores marginalizados das sociedades, em busca de novas abordagens relacionadas à realidade dos países subdesenvolvidos. Lane (2002) relata que, uma vez que as tendências dominantes na Psicologia Social estavam muito ligadas às dinâmicas socioculturais da Europa e dos Estados Unidos, começaram a ganhar espaço na cena da psicologia latino-americana temas como desigualdade social, democracia, consciência crítica e mobilização comunitária, bem como metodologias como a pesquisa-ação.

Nesse contexto, há uma denúncia importante à suposta neutralidade a-histórica da Psicologia, à qual o salvadorenho Ignacio Martín-Baró (1986), que além de psicólogo era também padre jesuíta, responde sugerindo uma Psicologia da Libertação. Ao propor uma Psicologia que integrasse consciência pessoal e sua dimensão social e coletiva, ele atenta para o "distanciamento entre a alienação pessoal e a opressão social, como se a patologia das pessoas estivesse alheia à história da sociedade, ignorando as relações de poder que as permeiam" (Camargo et al., 2020, p. 3).

Mais especificamente no Brasil, Regina Helena Freitas de Campos (2016) conta que a Psicologia nas décadas de 1930 e 1940 era realizada em instituições de saúde e educação, e se interessava em estudos sobre as particularidades do que seria uma dinâmica cultural brasileira, a partir do pensamento de autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Em um segundo momento, por volta dos anos 1950 e 1960, vemos a modernização das práticas institucionais e a criação dos primeiros cursos de formação em Psicologia. Já nas décadas de 1970 e 1980, a consolidação das ditaduras civil-militares no continente latino contribuiu para o pensamento crítico no campo e a valorização de autores brasileiros como Paulo Freire, contrapondo a uma certa passividade em relação aos conteúdos estrangeiros. Desde a década de 1990 e com a ampliação do processo de globalização, observamos uma ampliação do diálogo com tendências internacionais, propiciando maior institucionalização do setor, criação de novos cursos de pós-graduação com novas abordagens e métodos, além do significativo crescimento de práticas culturais e de impacto social (Campos, 2016).

Fruto dos impactos neoliberais dessa mesma globalização, vemos nos anos 2000 uma certa mercantilização da prática psicológica a serviço do capital em nome de uma pretensa atualização do mercado de trabalho, e também a consolidação de campos epistemológicos de resistência psicossocial em torno de um Sul Global. Embora não seja em sua origem um experimento do campo da Psicologia, é nesse contexto que se insere a proposta da tropifagia e seus intercâmbios culturais. Consideramos que um processo psicossocial de produção de conhecimento em rede pode encontrar desdobramentos interessantes, tendo a arte como agente de mediação coletiva, e é sobre essa proposta teórico-metodológica que falaremos a seguir.

 

5 Tropifagia: comendo o país tropical: um breve relato

Para adentrarmos no campo da tropifagia propriamente dito e apresentar os intercâmbios culturais como experiência psicossociológica, é importante situar o que foi a iniciativa da Cena Tropifágica (2011-2017), motor vivencial e fundador desse conceito. A Cena foi um espaço independente de experimentação criativa e de produção artística coletiva, constituída no decorrer de nossa atuação como membros do Circuito Universitário de Cultura e Arte (Cuca) da UNE. Imersos no contexto nacional do movimento estudantil, e após encontrar Gilberto Gil em 2010 para uma conversa sobre a 7ª Bienal da entidade, tivemos a ideia de compor um acervo artístico que revisitasse de modo propositivo o legado cultural e estético do Movimento Antropofágico e da Tropicália. Assim nasceu o acervo Comendo o país tropical (2012/2016), assinado por diversos criadores, e também a construção de um escopo metodológico de ação, depois aplicado com maior desenvoltura nos projetos Curto Circuito Sonoro4 (2016) e Bahias Intemporais5 (2016), dos quais a Cena foi um dos realizadores.

O processo criativo do acervo e especialmente do Curto Circuito foram excelentes laboratórios para uma percepção que ganhou substância no decorrer das execuções e nas reflexões posteriores disponíveis em livro de Pondé e Carvalho (2020): a potência da arte como agente de mediação entre sujeitos, por meio da ativação e disposição das sensibilidades. Neste ponto, é próximo e instigante rememorar o pensamento de Nise da Silveira (2017), ao afirmar o papel da criatividade como catalisadora de aproximação de opostos. Uma das premissas-chave desses processos criativos executados é que o campo da criação artística possibilita a produção de conhecimento sensível por intermédio do corpo. Isso se tornou o centro de irradiação para nosso desejo: forjar espaços de mediação entre sujeitos de diferentes recortes identitários e sociais, para a prática coletiva de arte, a fim de suscitar a mediação sensível entre as diversidades que compõem a cultura brasileira (Pondé & Carvalho, 2020).

Sob esse ponto, especificamente, é importante relatar como se deu o processo de execução do projeto Curto Circuito Sonoro para apontar esse aspecto mediador da arte e seus desdobramentos na prática. O projeto envolveu três oficinas simultâneas: voz, percussão e mash-up, uma semana por mês, durante três meses, com cerca de 20 alunos a cada ciclo. No processo de escolha dos inscritos, o aspecto da diversidade foi central para a seleção das oficinas. Selecionamos desde jovens do projeto social Axé, artistas de classe média, moradores do subúrbio soteropolitano, até adultos acima de 50 anos. Dois jovens com transtorno do espectro autista (TEA) também foram escolhidos.

A primeira etapa das oficinas envolveu jogos e dinâmicas teatrais e de palhaçaria. Curioso observar que esse estímulo inicial objetivou desconstruir traços de timidez, reserva e introspecção apresentados, suscitados pela diferenciação social entre os participantes, desenvolvidos como comportamento defensivo quanto ao juízo dos demais. Dentre os princípios do teatro e da palhaçaria é relevante apontar que nos sujeitos que se dispõem à experiência sensível ocorre uma propensão maior ao relaxamento dos sentimentos e uma vontade de agregação a outros sujeitos igualmente dispostos. A fruição da sensibilidade e a possibilidade de experimentar estados corporais potencializados e alterados sugere uma momentânea suspensão do juízo, que se desdobra em aproximações humanas genuínas e agregações sociais de maior diversidade, objetivo primordial da experiência da Cena Tropifágica. No cotidiano da sociedade, essas agregações são mais espontâneas entre sujeitos com experiências sociais e recortes identitários de maior proximidade.

Um dos jogos que facilitou aproximações, após dinâmica de exaustão corporal, propunha toques entre mãos e troca de olhares. Pequenas resistências de início aconteceram, entretanto, no decorrer do tempo, foi possível observar um maior relaxamento e entrega dos participantes para uma troca artística e sensível, que possibilitou fruições menos defensivas e julgadoras e mais orgânicas e curiosas, no sentido do conhecimento e da aceitação de si, para uma conexão e experiência com os outros.

 

 

5.1 Linha histórica e estética do conceito tropifagia

Fazendo uma digressão e invocando a tradição que inspirou o surgimento do conceito tropifagia, a antropofagia demarcou um primeiro movimento mais robusto de proposição conceitual contra-hegemônica em torno de uma identidade cultural nacional. Ciente da condição colonial histórica do Brasil e do quão violenta a colonização se constituiu perante os povos originários deste território, a antropofagia demarcou simbolicamente a resistência dos indígenas a partir do exercício canibal de deglutir e devorar o estrangeiro - colonizador - para absorver suas características e manifestá-las de modo reapropriado - com atributos locais.

O ato de devoração antropofágica tem íntima conexão com a negação do pretenso conhecimento desenhado pela ciência europeia moderna e com a emergência de culturas humanas à margem dos cânones epistemológicos universalizantes. O saber científico foi um dos instrumentos que se configurou como modo de poder do colonizador sobre o colonizado, principalmente por fixar na escritura a imagem do colonizado - indígena - como inferior, bárbaro/selvagem, como feito por Pero Vaz de Caminha (2019) na carta de "achamento" do Brasil - que marca o início da Colonização -, enviada para o rei de Portugal nos primeiros momentos de chegada da frota portuguesa. O saber científico moderno, em consonância com o projeto colonial efetivado no Brasil a partir do século XVI, foi responsável pela invisibilização da diversidade cultural brasileira e pela adoção de um modelo europeu hegemônico de desenvolvimento e progresso.

No sentido da tradição antropofágica anunciada, é vital destacar as primeiras orações que abrem o Manifesto da Poesia Pau-Brasil para apontar a base filosófica na qual está localizada o conceito tropifagia: "a poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos" (Andrade, 1970, p. 5). Situar a poesia nos fatos e ressaltar a existência fática da estética, como faz Oswald de Andrade, e conforme entendemos e desdobramos a partir dessas premissas, é reposicionar esse campo da Filosofia, a estética, e atribuir-lhe validade e valor para a produção de conhecimento acerca de uma dada realidade empírica. Nesse sentido, a proposta aqui colocada é a proposição de um procedimento filosófico e, por conseguinte, epistemológico, no qual a estética e, mais especificamente, a sensibilidade assumam uma intrínseca condição de linguagem e código dos sujeitos para o ato e a produção de conhecimento.

Na história da Filosofia, a estética (do grego aisthesis - sensação, faculdade dos sentidos) teve seu fundamento - o sensível - subjugado, ora tratado como dispositivo de falseamento da verdade e de contemplação da beleza por Platão, ora como mero dispositivo do juízo de gosto por filósofos como Kant. O antagonismo antigo inteligível/sensível demarca um binarismo originário que relegou ao segundo a exclusão de suas possibilidades de conhecimento na epistemologia tradicional. Para ir além desse binarismo, recorremos ao que Boaventura de Sousa Santos (1987) nomeia de conhecimento pós-moderno, cujas premissas interessam particularmente ao campo tropifágico: "todo conhecimento é local e total" (p. 46) e "todo conhecimento é autoconhecimento" (p. 50). Essas premissas abrem caminhos para sugerir outros saberes fundados na sensibilidade, o que encontra ressonância, por exemplo, no pensamento inaugural de Nietzsche (1992, p. 141) de que na estética (aisthesis) "a existência e o mundo aparecem eternamente justificados".

O giro para a produção de conhecimento pós-moderno, amparado por outros requisitos epistemológicos que não apenas a racionalidade cartesiana, foi possível e ampliado a partir do marco teórico e epistemológico da noção de cultura. Desde então, não só o pressuposto da universalidade deixou de ser regra estrita no campo das humanidades, como o conhecimento passou a ter um caráter também empírico e localizado. Para fins de compreensão epistemológica da proposta da tropifagia, qual seria mais precisamente o produto de conhecimento do sensível? O autoconhecimento e o reconhecimento da alteridade. Ao evocar a lei antropofágica presente no manifesto antropófago, "só me interessa o que não é meu" (Andrade, 1970, p. 13), pode-se notar um apontamento deixado por Oswald de Andrade (1970) com relação à consciência e a afirmação das diversidades, além do interesse - e da curiosidade - que deveria instigar os sujeitos na relação com a alteridade. No ensaio "Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial", o pensador brasileiro responsável pelo Movimento Antropofágico aponta a alteridade como "um dos sinais remanescentes da cultura matriarcal" (Andrade, 1970, p. 141) no Brasil.

Essa relação com a alteridade não abrange uma inclinação necessariamente positiva da moral, um modo gentil de tratar o outro. Antes, é uma tendência de oposição, parte de um comportamento tanto atroz quanto generoso, de maior nuance e intensidade. De acordo com Oswald (1970), uma solidariedade mais genuína é encontrada na reminiscência dessa cultura matriarcal, em contraposição ao patriarcado - a cultura ocidental secular e cristã - e seu individualismo exacerbado.

Tendo em vista o vasto campo da diversidade cultural brasileira, a tropifagia evoca a tradição antropofágica em diálogo com o horizonte do conhecimento pós-moderno - oposto ao saber estritamente racional e à cultura científica moderna e universal. Dessa maneira, a tropifagia tem por perspectiva, de modo interligado, a produção de conhecimento por meio da sensibilidade, no qual a racionalidade opera como um dispositivo de (auto)cuidado dos sujeitos, uma espécie de anteparo para os possíveis excessos da sensibilidade, além de horizonte de reflexão para transformação consciente de hábitos e comportamentos.

Adotando práticas artísticas nas quais se propõem mediações sensíveis entre sujeitos, os processos criativos tropifágicos articulam-se a fluxos e movências das identidades culturais, que não são rígidas ou imutáveis, segundo Boaventura de Sousa Santos (1993). O que se pretende é a vivência empírica da alteridade, ou melhor, uma experiência efêmera e transitória de interidentidade, pela pulsão pré-representacional do sensível e da prática artística. O autor utiliza o termo interidentidade para referir-se às configurações identitárias complexas, aplicando-o especificamente ao contexto colonial e a distintos posicionamentos geopolíticos ocupados pelos portugueses na estrutura da colonização. Neste texto que desenvolvemos, a ideia de interidentidade remete a essas configurações identitárias complexas e à possibilidade de deslocamento transitório e movência das identidades culturais mediante o dispositivo da sensibilidade e da prática artística.

A esse processo damos o nome de intercâmbios culturais (Pondé & Carvalho, 2020): um exercício de agregação e tensionamento das diferenças, que dispara a desestabilização e transformação de sujeitos, por meio da experimentação de sensações provocadas pela prática artística. Dessa maneira, a intenção dos intercâmbios culturais é fazer o sujeito "ampliar o juízo autorreferenciado, e abraçar a diferença como realidade extensiva e contínua da vida" (Pondé & Carvalho, 2020, p. 166).

É nessa direção que podemos falar em um exercício de Psicossociologia contra-hegemônica. Esse processo coloca os sujeitos diante de questionamentos sobre si mesmos e o mundo circundante, deslocando-os de uma zona de percepção ordinária e confrontando-os com privilégios, dores, potências, carências, etc., para que se operem processos de tomada de consciência que se traduzam em lutas por mudanças na estrutura social hegemônica.

 

6 Considerações finais

Após termos caminhado sobre os preceitos da epistemologia como campo de disputa e sua herança colonial, a consolidação de uma forma de produção de conhecimento psicossocial fundada no contexto social, cultural e político da América Latina e as contribuições da tradição antropofágica para o desenvolvimento da proposta teórico-metodológica da tropifagia, pode ser útil retomar certos pontos e fazer algumas costuras.

Importante pontuar a delicada situação que se vive no Brasil com o golpe de 2016 e as eleições de 2018 e de que forma sua situação irradia preocupação nos vizinhos latinos com os rumos sociopolíticos da região. A última eleição presidencial do país conduziu ao mais alto cargo de representação popular uma agenda acentuadamente conservadora e ultraliberal, além de fortalecer grupos sociais de extrema direita pautados por valores retrógrados e contrários aos direitos humanos e fundamentais. Essa atual conjuntura política abre possibilidade para o agravamento de retrocessos epistêmicos, colocando as universidades federais brasileiras numa posição de trincheira de resistência: como espaço de institucionalidade pública e de produção de conhecimento que se posiciona na direção de se contrapor aos excessos discursivos e normativos e de realizar debates qualificados acerca dos pilares necessários para uma sociedade que se pretende democrática.

Mais precisamente no campo da Psicossociologia, interessa-nos questionar de que forma podemos honrar o acúmulo conceitual que nos apoiou a chegar ao atual estágio da consciência humana; sem, no entanto, cair no risco da cristalização da produção de conhecimento a partir somente de modelos teórico-metodológicos que não mais correspondem à realidade social que o próprio campo nos revela. O que está em debate é a disputa epistemológica entre uma Psicologia Social de origem positivista, mais preocupada em se afirmar como ciência do que realizar algum tipo de transformação social e, por outro lado, a investigação de fenômenos psicossociais em suas dimensões micro e macropolíticas por meio de novas abordagens teóricas e metodológicas.

No caso da tropifagia, há uma intrínseca contiguidade entre Psicossociologia e arte, de ativação do campo da sensibilidade e do autoconhecimento que a prática artística suscita, e do processo de relação social que é próprio da Psicossociologia. Nesse sentido, a experiência relatada do projeto Curto Circuito Sonoro pode ser entendida no contexto do Sul Global, e mais precisamente do Brasil, onde é fundamental essa experiência de aproximação das diversidades para fins de transformação social.

A Psicossociologia com a qual nos alinhamos busca estar junto a movimentos populares e a serviço dessas populações, contribuindo para se organizarem politicamente. Refutamos, no entanto, o papel de protagonismo que cabe a quem pertence a uma determinada comunidade. Inspira-nos, nessa missão, a inspiração freiriana do "compromisso político explícito com a libertação dos setores populares e com o resgate do seu papel como agentes sociais e históricos" (Freitas, 2002, p. 58).

O que sugerimos é a apropriação da epistemologia dominante para sua ressignificação em novas formas de conhecimento almejando horizontes pluriepistêmicos, assim como a antropofagia pressupõe a devoração e a apropriação do outro para afirmação da diversidade cultural local. Os intercâmbios culturais conjugam a "episteme da relação" de Maritza Montero (2010), mencionada anteriormente. Por essa razão falamos de "Psicossociologias do Sul tropical": uma produção de conhecimento que se baseia na sensibilidade e desafia os pressupostos cartesianos da racionalidade, tendo como ponto comum justamente a diversidade de saberes e práticas.

Para os que porventura queiram desautorizar essa empreitada por julgá-la muito distante da nossa realidade objetiva atual, lembramos que "utopia não significa aquilo que é impossível [...], mas sim um não lugar [...] aquilo que ainda não tem lugar na nossa sociedade [...] [e que] nos move para a construção do lugar" (Fernandes, 2019, p. 49). Em O espírito da utopia, Ernst Bloch explica que, em uma perspectiva cognitiva, a utopia seria precisamente o que possibilita a associação entre sonho e a restauração dessa vontade na realidade (citado por Fernandes, 2019). Assim sendo, entre o saudosismo dos tempos que ficaram para trás e não voltam mais, e a rejeição das formas presentes às quais estamos submetidos, existe sempre a capacidade de criação de futuros possíveis.

 

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Recebido em: 31/10/2020
Aceito em: 12/5/2021

 

 

1 A Cena Tropifágica foi um projeto em rede que construiu, por meio da metodologia de intercâmbios culturais, o acervo artístico de multilinguagem Comendo o país tropical (2012/2016). O acervo contém cinco fonogramas, quatro pílulas audiovisuais, três fotografias e três poesias, assinado por criadores como o tropicalista Jorge Mautner, Luiz Galvão (Novos Baianos), Edson Big, Mariella Santiago, Hebert Sobral, entre outros. A Cena Tropifágica foi ainda a correalizadora dos projetos Curto Circuito Sonoro (2016) e Bahias Intemporais (2016), iniciativas nas quais foi também aplicada a metodologia de intercâmbios culturais.
2 Conforme comunicação oral feita pelo professor Milton N. Campos no contexto da disciplina "Estudos Avançados em Psicossociologia Crítica, Comunicação e Redes", com o tema "As guerras e contraguerras bárbaras do contemporâneo", nos dias 18/8, 28/8, 8/9, 15/9, 22/9, 29/9, 13/10, 20/10 e 27/10 do ano de 2020, no Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social da UFRJ.
3 "Chicano" ou "chicana" é uma autoafirmação identitária de descendentes de mexicanos nascidos nos Estados Unidos. Também se refere a um movimento literário de fronteira que reflete essa dupla identidade cultural, do qual Anzaldúa faz parte.
4 Projeto de formação e criação em música que ocorreu no Teatro Castro Alves (TCA), em 2016, com foco em oficinas colaborativas de três linguagens musicais e mostras artísticas com 105 participantes, durante três meses de execução. Projeto aprovado pelo edital Agitação Cultural/2016 e executado com recursos do Fundo de Cultura do Estado da Bahia.
5 Plataforma artística de criação e difusão de trabalhos artísticos autorais em multilinguagem, em Salvador e Vitória da Conquista, apresentada em 2016, com foco na temática e poética baiana, referências históricas e embrionárias da cultura brasileira. Projeto aprovado pelo edital Agitação Cultural/2016 e executado com recursos do Fundo de Cultura do Estado da Bahia.

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