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Pesquisas e Práticas Psicossociais

 ISSN 1809-8908

     

 

A Psicologia no âmbito da Assistência Social: relato de experiência

 

The Psychology in the Field of Social Assistance: Experience Report

 

La Psicología en el campo de la Asistencia Social: informe de experiencia

 

 

Pedro Henrique Lima XimenesI; Maria Suely Alves CostaII

IPsicólogo. Especialista em Saúde Pública pela UniAmérica. E-mail: pedroximenesufc@gmail.com
IIProfessora do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: suelycosta@ufc.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho estrutura-se como discussão teórico-prática de estágio em Psicologia no campo da política de Assistência Social, especificamente nos Centros de Referência da Assistência Social - Cras e Creas, tendo como objetivo refletir sobre a presença da Psicologia no campo da Assistência Social por meio da prática no serviço público. A inserção no campo se baseou nas observações dos atendimentos realizados e nas visitas domiciliares. Verificaram-se alguns desafios, destacando-se o enfrentamento direto das violências, traduzido pelo acompanhamento às vítimas, e as dificuldades inerentes ao serviço público. Como conclusões, possibilitou a aproximação do estudante com o trabalho em Psicologia no âmbito da Assistência Social por meio da vivência das rotinas. No mais, percebeu-se um campo rico em experiências, ainda pouco explorado na literatura, e no qual a Psicologia se faz necessária e tem muito a contribuir desde sua perspectiva.

Palavras-chave: Prática. Psicologia. Assistência Social. Políticas públicas.


ABSTRACT

The present work is structured as a theoretical-practical discussion of an internship in Psychology in the field of Social Assistance policy, specifically in the Social Assistance Reference Centers - CRAS and CREAS. It aims to reflect on the presence of Psychology in the field of Social Assistance through practice in the public service. The insertion in the field was based on the observations of the services provided and home visits. There were some challenges, highlighting the direct confrontation of violence, translated by accompanying the victims, and the difficulties inherent to the public service. As conclusions it made possible the approximation with the work in Psychology through the experience of the routines. In addition, a field rich in experiences was perceived, still little explored in the literature, and in which Psychology is necessary and has much to contribute from its perspective.

Keywords: Practice. Psychology. Social assistance. Public policy.


RESUMEN

El presente trabajo está estructurado como una discusión teórico-práctica de pasantía en Psicología en el campo de la política de Asistencia Social, específicamente en los Centros de Referencia de Asistencia Social - Cras y Creas. Su objetivo es reflexionar sobre la presencia de la psicología en el campo de la asistencia social a través de la práctica en el servicio público. La inserción en el campo se basó en las observaciones de los servicios prestados y las visitas domiciliarias. Hubo algunos desafíos, destacando la confrontación directa de la violencia, traducida al acompañar a las víctimas, y las dificultades inherentes al servicio público. Como conclusiones posibilitó la aproximación con el trabajo en Psicología a través de la experiencia de las rutinas. Además, se percibió un campo rico en experiencias, aún poco explorado en la literatura, y en el que la psicología es necesaria y tiene mucho que aportar desde su perspectiva.

Palabras clave: Práctica. Psicología. Asistencia social. Políticas públicas.


 

 

Introdução

O estudo trata-se de uma discussão teórico-prática da experiência de estágio em Psicologia no campo das políticas públicas, mais especificamente no Centro de Referência da Assistência Social (Cras) e Centro de Referência Especializado da Assistência Social (Creas), sendo baseado nas vivências e práticas desempenhadas nessas duas instituições de operacionalização da Política Nacional de Assistência Social (Pnas), bem como na consulta e reflexão de referenciais teóricos pertinentes.

O campo de atuação na Assistência Social é uma vertente recente da Psicologia, embora com grande absorção de profissionais. Sua abertura foi possível graças à criação e regulamentação do Sistema Único da Assistência Social (Suas), mais especificamente por meio da Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Suas (NOB-RH/Suas), lançada no fim de 2006. Esse ato normativo previu e recomendou a contratação de psicólogos em diferentes equipamentos e serviços da rede socioassistencial, mas somente com a resolução n. 17, de junho de 2011, de autoria do Conselho Nacional de Assistência Social (Cnas), a equipe de referência passou a ter a obrigatoriedade de contar com o profissional de Psicologia. Tão nova quanto sua inserção são os desafios de construir um novo paradigma de prática.

Contanto, para chegar nesse patamar, foi necessário um percurso histórico de aproximação e apropriação desse campo, que caminhou ao lado das transformações da Psicologia como profissão no Brasil. Os primeiros registros encontrados na literatura, da presença da Psicologia no campo da Assistência Social, datam da década de 1970, com a presença de psicólogos em clínicas particulares, conveniadas com a Legião Brasileira de Assistência (LBA), de atendimento ao excepcional com retardo mental. A atuação se dava principalmente por meio de atendimentos clínicos e orientação vocacional. Percebe-se aí um primórdio do trabalho multidisciplinar em que a Psicologia está envolta (Oliveira & Oliveira, 2016).

Na década de 1980, ocorreu a aproximação da Psicologia com o campo da adolescência, por meio da antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), na qual os profissionais trabalhavam com jovens em situação de risco e conflito com a lei. No fim dessa década, houve a inserção no movimento da Associação de Pais e Amigos de Excepcionais (Apae). Um pouco mais a frente, nos anos 1990, registra-se a presença da profissão em outros campos, como o da deficiência e da velhice, atrelados sempre a Organizações não Governamentais (ONGs) e a igrejas. A partir do novo século, a Psicologia conquistou seu lugar de referência, com a operacionalização do campo da política pública de Assistência Social (Oliveira & Oliveira, 2016).

Inevitavelmente, nesse ínterim, produziu-se profundas rupturas e abertura de novas perspectivas no terreno das políticas públicas sociais, para constituir o que se entende hoje por Assistência Social. Foram operadas transformações no sentido de romper com um modelo clientelista em transição para um paradigma de proteção social e cidadania como direitos sociais, numa aproximação com a realidade brasileira. Todos os programas de transferência de renda e os serviços de proteção social criados nas últimas décadas traduziram a mudança sutil e precisa da necessidade ao campo do direito social (Abade, 2016). Em consequência, os saberes convocados a atuar nessa seara necessitaram acompanhar o percurso pela nova Assistência Social que surgiu.

A relação da Psicologia com o campo das questões sociais, e consequente adentramento nesses espaços, necessitou também de transformações na própria estrutura e perfil da profissão. Conforme discorre Yamamoto (2003), a Psicologia a partir da década de 1970 vivenciou a falência do seu modelo hegemônico e elitista de atuação, estreitando a sua demanda em função de repercussões econômicas no país. Além disso, menciona que as mudanças democráticas e sociais proporcionaram a abertura e expansão de campos de atuação, por exemplo, a saúde e a Assistência Social.

Nessa questão, deve-se refletir sobre a perspectiva do tratamento clínico, que norteou e gestou a Psicologia como ciência. Tal modelo, no entanto, foi simplesmente transposto para os mais variados contextos, sem a devida consideração da construção social das relações. Conforme apontam Yamamoto e Paiva (2010, p. 155), "a Psicologia constitui-se historicamente como uma atividade a serviço da classe dominante, e a entrada em campos como o da política social força-lhe a reaprender a fazer e pensar Psicologia". A partir disso, observa- se que se está diante de um campo em construção, na qual suas práticas são abertas às contribuições dos profissionais que a fazem cotidianamente.

No Brasil, alguns estudos recentes (Flor & Goto, 2015; Macêdo et al., 2018; Oliveira, Nascimento, Araújo, & Paiva, 2016) discorrem sobre o que vem sendo desenvolvido no âmbito do Suas. A partir da experiência de campo, elencaram o seguinte conjunto de categorias acerca das atividades de psicólogos em um Cras: visitas domiciliares/acompanhamento, busca ativa, acolhimento e atendimento individual, atividades socioeducativas, produção de documentos, registro de informações, encaminhamentos, articulação com a rede socioassistencial e intersetorial e orientações para membros da equipe. Outra forma de atuação é apresentada por Cordeiro (2017), que traz a experiência da realização da sala de espera em um Cras, conduzida por estagiários. Tal atividade objetivou prestar, além de informações sobre os serviços da unidade, um momento de acolhida grupal, permitindo, por exemplo, a expressão e atribuição de sentidos do cotidiano dos usuários com dinâmicas de palavras.

Quanto às dificuldades enfrentadas por esses profissionais, relata-se várias, dentre as quais: a falta de transporte exclusivo do equipamento, escassez de materiais, desarticulação da rede socioassistencial, dificuldade no trabalho em grupo, dependência da gestão municipal e local, baixo salário, carga horária, dúvidas em relação ao papel do psicólogo e sua diferença para o papel do assistente social (Flor & Goto, 2015; Macêdo et al., 2018). Além disso, outro desafio posto aos profissionais é a ausência de recursos metodológicos, técnicos e operacionais da Psicologia (Florentino & Melo, 2017).

Em sua tese, Abade (2016) traz na fala das psicólogas entrevistadas, que são operadoras de grupos do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (Paif), a escassez de recursos, como lanche e outros materiais para a execução das atividades, sendo necessário recorrer a outros setores, como saúde e educação. Exemplifica-se a presença de alguns problemas estruturais que permeiam a realidade da política pública socioassistencial. Por várias vezes, são impostas condições e problemáticas do cotidiano que vão além da capacidade resolutiva do psicólogo, o que aponta para a necessidade de mais estudos e reflexões sobre a atuação no Cras e Creas, as quais serão abordadas neste trabalho.

Em relação aos objetivos, propôs ampliar as reflexões acerca da presença da Psicologia na política pública de Assistência Social brasileira, captando a prática profissional na especificidade da Psicologia, a partir da imersão em um Cras e Creas do estado do Ceará. Por meio dela, foram levantados dados sobre as principais atividades exercidas e demandas abordadas nesses serviços. Também foi possível analisar criticamente alguns processos relacionados ao trabalho e a dinâmica desenvolvida nos equipamentos.

Devido à pouca produção de referenciais relativos à atuação do psicólogo na assistência, especialmente no Nordeste, o estudo mostra sua relevância ao trazer novos dados e problematizações que podem auxiliar os profissionais e estudantes a conhecerem esse campo de prática e produzirem práticas mais potentes. Espera-se que o trabalho ora apresentado possa lançar luz sobre uma potencial área de estágio na graduação.

A experiência de estágio na Assistência Social

A prática dos estágios compõem de forma obrigatória a formação dos futuros psicólogos. Dentre as várias oportunidades preferidas pelos alunos, estão as relacionadas à clínica e à saúde, mas é preciso ter atenção com outras áreas emergentes, como a social. No entendimento de Senra e Guzzo (2012), adentrar nessa esfera é relevante e uma ampliação necessária do campo profissional em direção às questões sociais. Pode-se falar, portanto, que há um movimento de novos estágios em Psicologia.

Na prática realizada e alvo deste trabalho, as atividades inicialmente ocorreram no Cras, acompanhadas pelo psicólogo da equipe de referência. Nesse serviço foram realizadas 1/3 da carga horária necessária, no entanto, por motivo de desligamento do profissional da instituição, o estágio foi redirecionado para o Creas, sendo acompanhado por uma nova profissional. Essa mudança permitiu uma visão mais ampla da rede de assistência, contemplando os níveis da proteção social básica e especial, bem como da presença e peculiaridades da função do psicólogo em diferentes complexidades. Ademais, mostrou-se como a rotatividade desses serviços influenciam o fluxo de atividades realizadas na rede.

A respeito dos equipamentos, localizam-se em Sobral, no Ceará, Nordeste do Brasil. Com bases nos dados do IBGE (https://cidades.ibge.gov.br, recuperado em 14 de junho, 2021) e do Atlas Brasil (http://atlasbrasil.org.br, recuperado em 3 de maio, 2020), a cidade fica na região noroeste do estado, tem população estimada para 2020 de 210.711 pessoas, PIB (2017) de R$ 4.455.731.000 e renda per capita (2017) de R$ 21.679,33. Tem o IDHM de 0,714 (2010), Índice de Gini 0,56 (2010), mortalidade infantil 6,44/mil nascidos vivos (2019) e salário médio mensal dos trabalhadores formais de 2 salários mínimos (2017). O município conta ainda com uma ampla oferta de serviços públicos à população, com uma rede de saúde, educação e assistência capilarizada.

O Cras em que ocorreu o estágio é um dos seis equipamentos de Sobral, situa- se na periferia e tem como público-alvo a população em situação de vulnerabilidade social e econômica dos bairros vizinhos. Referenciava cerca de 5.000 famílias, abrangendo uma população em torno de 30 mil pessoas em sua região, por meio do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), Cadastro Único para benefícios sociais (CadÚnico), Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) e outras ofertas. Realizava em torno de 400 atendimentos mensais à época.

Em relação ao Creas, o cenário é um pouco diferente, pois é o único existente na cidade de Sobral e responsável por cobrir as demandas urbanas e rurais. Fica localizado em um bairro com vários equipamentos públicos e acompanhava pessoas e famílias com vínculos fragilizados e direitos violados. A população referenciada é a de todo o município de Sobral e o volume de atendimentos era cerca de 300 por mês. Ambos os Centros são vínculos à Secretaria dos Direitos Humanos, Habitação e Assistência Social (Sedhas).

Outro ponto a se destacar é que os principais territórios de atuação têm forte marca da violência urbana, especialmente homicídios. Em 2018, a cidade atingiu 60,49 assassinatos para cada 100 mil habitantes, um número considerado alto. Destes, 25,6% foram na região em que fica localizado o Cras no qual ocorreu o estágio (UGPPV, 2020). Tais informações escancaram a necessidade de políticas públicas sociais voltadas para a realidade particular e justificam a presença de unidades socioassistenciais em constante atividade nesses territórios.

A metodologia aplicada na produção do trabalho valeu-se de leituras que objetivaram entender o funcionamento da política pública de Assistência Social, bem como a presença do psicólogo nesse espaço, atreladas à reflexão das vivências produzidas durantes as atividades. As observações, conversas e intervenções na dimensão da prática foram igualmente úteis na aquisição de conhecimento, dados e experiências que proporcionaram a elaboração do artigo.

Como referencial teórico utilizado na prática de estágio e neste relato de experiência, contamos com conteúdos desenvolvidos pelo Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop) do Conselho Federal de Psicologia (CFP), como as Referências Técnicas para atuação do(a) psicólogo(a) no Cras/Suas (2007) e as Referências Técnicas para a Prática de Psicólogas(os) no Centro de Referência Especializado da Assistência Social - Creas (2013).

Também foi utilizado documentos oficiais e produções científicas recentes da área.

Um olhar da Psicologia e a rede de Assistência Social

Cras

O estágio ocorreu em dois espaços distintos do campo da Assistência Social, embora relacionados. O Cras e o Creas fazem parte do Suas, que visa garantir Proteção Social Básica e Proteção Social Especial para populações em situação de vulnerabilidade e/ou violação de direitos, ofertando serviços de básica, média e alta complexidades. De acordo com a Política Nacional de Assistência Social (2004, p. 35),

O Centro de Referência da Assistência Social - Cras - é uma unidade pública estatal de base territorial, localizado em áreas de vulnerabilidade social, que abrange um total de até 1.000 famílias/ano. Executa serviços de proteção social básica, organiza e coordena a rede de serviços socioassistenciais locais da política de assistência social.

Esse aparelho do estado prevê a atuação de pelo menos um psicólogo como membro da equipe de referência, de acordo com o porte do equipamento. As equipes têm diferentes composições, variando da atuação em: Cras Pequeno Porte I (2 técnicos de nível superior e 2 técnicos de nível médio) - referenciando o máximo de 2.500 famílias - até Metrópole (4 técnicos de nível superior e 4 técnicos de nível médio) - referenciando 5.000 famílias cada equipe (Ferreira, 2011, p. 30).

O Cras, portanto, tem base mais comunitária de atuação, estando mais próximo de seus usuários e oferta serviços como Grupos de Fortalecimento de Vínculos, inscrição em benefícios relacionados à transferência de renda - como o bolsa família -, emissão de declarações do CadÚnico para isenção de taxas, projetos de capacitação e inserção produtiva, e assim por diante. É um espaço que a comunidade deve ocupar, tendo suas portas abertas a parceiros, como escolas, associações e igrejas locais.

Creas

A respeito da rede de média complexidade, é composta de serviços que requerem maior atenção e acompanhamento sistematizado. No centro desse nível está o Creas. De acordo com a Lei n. 12.435/2011, art. 6º-C, § 2º,

O Creas é a unidade pública de abrangência e gestão municipal, estadual ou regional, destinada à prestação de serviços a indivíduos e famílias que se encontram em situação de risco pessoal ou social, por violação de direitos ou contingência, que demandam intervenções especializadas da proteção social especial.

A composição dos profissionais que atuam no Creas ocorre da seguinte forma: (i) Municípios com gestão inicial e básica - 1 coordenador, 1 assistente social, 1 psicólogo, 1 advogado, 1 auxiliar administrativo e 2 profissionais de nível médio ou superior (para abordagem dos usuários) - com capacidade de atendimento para 50 pessoas; e (ii) Municípios com gestão plena e estados com serviços regionais - 1 coordenador, 2 assistentes sociais, 2 psicólogos, 1 advogado, 2 auxiliares administrativos e 4 profissionais de nível médio ou superior (para abordagem dos usuários) - com capacidade de atendimento para 80 pessoas (Ferreira, 2011, p. 32).

O Creas apresenta atuação em territórios mais amplos, o que torna necessário, amiúde, acionar a rede de serviços públicos da educação, saúde, assistência, bem como outros parceiros para melhor cobrir e atender às demandas. Entre os principais serviços acompanhados estão o de acolher e atender denúncias de violação de direitos, encaminhar para órgão competente as demandas que surgem, investigar por meio de visitas domiciliares as famílias e indivíduos violados, produzir relatórios para o sistema judiciário, promover campanhas educativas e outras atribuições.

Desenvolvimento das ações nos serviços públicos

Cras

Estar atuando na assistência social como estudante de Psicologia é antes de tudo um compromisso com a vida e com os que são privados de bens sociais. Como aponta a cartilha do Crepop-CFP/Cras, "Esta é a questão a ser aprofundada, o desafio a ser enfrentado por nós, profissionais da Psicologia, intervindo por meio da política da Assistência Social" (CFP, 2007, p. 11), ou seja, é ter um posicionamento político por meio do campo de atuação com uma parcela da população historicamente negligenciada.

A Psicologia como campo que sofreu transformação e orientou sua prática para as questões sociais, entendidas como o conjunto de problemáticas econômicas, políticas e sociais emergentes do capitalismo (Yamamoto, 2003), ampliou sua oportunidade de atuação e, de medida similar, seus desafios. Ao escolher a política pública, o psicólogo, antes de tudo, firma compromisso com o social e tem então a missão de encontrar e trabalhar com a subjetividade em meio a um sistema social desigual, pois, conforme Santos (2013, p. 48), "a problemática da desigualdade vai muito além da distribuição de renda, a despeito desta ser indispensável; reporta-se, assim, a uma dimensão subjetiva, sobretudo no modo como as pessoas, incluindo técnicos e usuários, se relacionam a partir disso". Estabelece-se um modo de lidar com a problemática social que dirá muito da efetividade da intervenção do Psicólogo nesse espaço paradoxal privilegiado de conflitos.

Considerando o pouco tempo tido nesse espaço e o fluxo de saída de servidores, algumas atividades, como a participação em grupos e estudo de caso ficaram somente como potencial, não sendo possível a sua concretização. A exemplo da Unidade Básica de Saúde (UBS), o Cras é a porta de entrada da Assistência Social, o que faz com que o fluxo de pessoas atendidas diariamente seja razoavelmente alto. Sempre era percebido pessoas circulando pelo espaço da instituição.

Entre as atividades realizadas, estava o acompanhamento aos atendimentos, o qual consistia na triagem e registro dos serviços que os usuários desejavam. Entre as principais demandas estavam: atualização do CadÚnico, emissão de declaração para tirar documentos e ter acesso a descontos na conta de energia, encaminhamentos para assuntos de moradia, e assim por diante. Tais observações vão ao encontro do que escreveu Macêdo et al. (2018), tendo o que os autores chamaram de atividades com caráter psicossocial, isto é, considerando como as questões sociais refletem-se nas condições subjetivas e de vida. Nesses momentos, era observado como funcionava o serviço, os instrumentais e as expressões e possíveis sentimentos das pessoas, na expectativa de flagrar ou pontuar algo em que fosse possível intervenção.

A outra modalidade de atividade realizada no Cras foi a de visita domiciliar, que consistia basicamente em ir às residências das famílias que recebiam o Bolsa Família e verificar advertências relacionadas às quebras de condicionalidades do programa, em especial a falta às aulas, sendo possível observar famílias que viviam em casas pobres e alugadas, localizadas em ruas e vielas sem pavimentação e/ou saneamento, nas quais se notava de imediato a condição de vulnerabilidade socioeconômica. As mães, quase em sua totalidade, justificavam as faltas como ocasionadas pelo adoecimento de seus filhos. A partir dessas visitas, eram produzidos relatórios, que tinham como destino o órgão responsável, que daria a última palavra sobre a suspensão/corte do benefício.

A dinâmica de um Cras traz consigo a tradução das normativas que prescrevem o trabalho que deve ser realizado de determinado modo, contudo, nem sempre as orientações técnicas são as mais adequadas para as populações. Nesse sentido, "devem, portanto, os profissionais de psicologia que atuam no Cras, estar atento às tensões entre Estado e sociedade civil, à funcionalidade do Cras e da Psicologia para a manutenção do modo de produção capitalista" (Macêdo et al., 2018).

Na esteira dessa discussão, ressalta- se fazer a política acontecer com o povo e para o povo, uma vez que a mera aplicação de serviços a públicos prioritários pode significar a simples reprodução do status quo. Silva e Corgozinho (2011, p. 19) refletem destacando que

Cabe ao profissional de Psicologia auxiliar e colaborar com a comunidade, buscando, juntamente com os usuários, estabelecer os objetivos prioritários, visando desde o início à participação destes, pois são eles os sujeitos capazes de colocar em prática ações que possibilitem a melhoria de seu bem-estar psicossocial.

O caminhar pelas ruas da cidade em contato direto, olho a olho com a população, permitiu sentir as tensões cotidianas e como as normatizações das políticas sociais falham em captar as demandas de cada grupo social. Fica explícito também as contradições que perpassam o Cras e, consequentemente, o fazer do psicólogo, cabendo a esse profissional reconhecer seu posicionamento ético-político, atuando com compromisso na produção de bem- estar psicossocial (Oliveira et al., 2016).

Creas

As próximas apresentações que se seguem tratarão das práticas realizadas no Creas. O acompanhamento dos atendimentos foi a primeira atividade na qual se teve contato com o público externo

e. consistiu em, com a profissional psicóloga, acolher a demanda trazida pelos usuários e a partir desta tomar os procedimentos necessários e competentes ao Creas. Na medida do possível, foram feitas pontuações para complementar o entendimento dos casos, de modo que não atrapalhasse a condução, nem entrasse por vias indesejáveis.

As demandas atendidas pelo Creas são as mais variadas possíveis, incluindo- se entre elas: abuso sexual, trabalho infantil, abandono, negligência familiar, violência contra a mulher, violência contra o idoso, violência contra pessoa com deficiência, afastamento do convívio familiar, entre outras. Uma demanda muito recorrente foi a de abuso sexual infantil, e mesmo não havendo contato direto com as vítimas, gerava angústia a possibilidade de ter de se deparar diretamente com tal situação. Na escuta de familiares, foi perceptível a dor que é carregada em ter um ente querido violentado. Nesse contexto,

Acolher e escutar as situações de abuso sexual relatadas por crianças, adolescentes e seus familiares, constitui-se um grande desafio ao exercício profissional do psicólogo que trabalha no Creas, visto que, no momento da intervenção, o profissional se depara com sentimentos de raiva, fascínio, inquietação, perplexidade e outros conteúdos que poderão vir à tona durante o atendimento ou acompanhamento do caso. (Florentino, 2014, p. 64).

Ter a difícil tarefa de trabalhar com crianças abusadas e tentar extrair alguma comunicação sobre o ocorrido é talvez a missão mais complexa de ser desenvolvida no âmbito desse serviço.

Após a abertura da ocorrência no atendimento, é preciso investigar in loco a denúncia. O principal meio de acompanhamento das situações de violência que o Creas oferta assistência é a visita domiciliar. Diferentemente do Cras, a ida até a moradia da família/indivíduo violada(o), busca verificar a veracidade e saber como está a situação, ofertar acolhimento e escuta ativa, saber da necessidade de cada caso e tomar outras atitudes, como encaminhamento para outro setor da rede. O acompanhamento é a melhor forma encontrada pelo serviço para a defesa dos direitos das vítimas.

Cabe destacar que a articulação com os serviços das diversas redes é uma peça fundamental na atuação do Creas. A comunicação entre os diversos parceiros busca ofertar um atendimento integral, considerando as várias facetas da vida de um indivíduo, para que se possa cessar a violação e encontrar caminhos que não são possíveis de serem trilhados só. É necessário a cooperação em prol do usuário.

As principais instituições que formam a rede são, no âmbito da assistência: Cras, Centro Pop, Abrigo para menores; na educação: escolas e creches; na saúde: unidades básicas, Centro de Atenção Psicossocial (Caps), (Caps-Ad), hospitais; em outros âmbitos: Ministério Público, Conselho Tutelar, Centro de Referência da Mulher, Delegacia da Mulher, clínica-escolas, Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), além das próprias secretarias municipais. Organizações filantrópicas, como abrigos e casas de recuperação, também são acionadas.

Apesar da potencialidade desses apoios, é preciso atenção por parte dos técnicos para essa prática não se tornar nociva para os próprios usuários, utilizando-se demasiado do referenciamento. É preciso realizar tudo aquilo que pode se concretizar no Creas, pois os sujeitos, além de terem sofrido com a violação e não cumprimento dos direitos, correm o risco de sofrer outra violência, dessa vez provocada pelo itinerário que sofrem no Sistema de Garantias de Direito (SGD), sendo encaminhados de um lado para o outro sem conseguir a atenção necessária a suas causas (CFP, 2013, p. 33).

Na prática do estágio, foram encontradas atividades que a princípio parecem ser somente administrativas, mas que se tornaram importantes, por ser também parte do ofício profissional e dimensão presente em todo trabalho: preenchimento de folha de notificação, acompanhamento da elaboração de relatório para outros órgãos, manutenção das etiquetas de prontuários, por exemplo, formaram parte dos serviços prestados.

A saída a campo foi outra necessidade apresentada pela realidade do serviço para seus estagiários. A execução de campanhas temáticas para a prevenção de violências foi uma experiência importante, na qual houve participação, ocorrendo a distribuição de panfletos informativos e conversa com a população sobre a prevenção ao abuso sexual infantil. Realizada em uma rodoviária, a campanha mobilizou todos profissionais e estagiários, esclarecendo e dialogando com as pessoas sobre a importância da identificação e denúncia de situações abusivas.

No embalo dessa temática, foi realizado o acompanhamento de outra profissional, em palestra realizada em um Cras da cidade. No caminhar, tem-se visto que a Psicologia é convocada nesses ambientes como aquele saber que tem a oferecer algo em especial. Trata-se, aqui, de fornecer uma percepção empática para com a alteridade manifestada nos fenômenos psicossociais, que é a manifestação da presença comprometida com a dinâmica social que a cerca.

Percebe-se que em toda oportunidade que um profissional psicólogo tem de palestrar, cria-se um momento de realizar a diferença e contribuir para as pessoas perceberem de forma ampliada a sua realidade. Isso realiza-se pelo exercício do seu papel crítico e ético-político de compromisso com a superação das desigualdades sociais. Sua atuação deve ser no intuito de esclarecer os determinantes econômicos e sociais, conduzindo as pessoas ao caminho de sua superação, pelo exercício da cidadania consciente (Macêdo et al., 2018).

Como última experiência vivida no Creas, a confraternização do grupo de idosos foi o encontro com um espaço coletivo de expressão e vínculos. Embora em um clima mais festivo, foi importante sentir como as pessoas se implicam nos assuntos abordados e são mobilizadas a falar de temas que as tocam. Foi observado também a forma que a profissional e residentes conduziam o grupo, de forma que o fluxo das interações não transgredisse a ética da atuação.

 

Considerações finais

A atividade de estágio na Assistência Social foi sem dúvidas um celeiro de aprendizados, sentimentos, reflexões e (in)conclusões. Percebeu-se que a Psicologia está conquistando seu espaço e presente de forma crítica na resposta às demandas sociais. A identidade e as práticas do profissional de Psicologia ainda estão em construção e constante aperfeiçoamento. Constatou-se também que as atividades desenvolvidas são, em geral, equivalentes àquelas já descritas na literatura, como a realização de grupos, acolhimento, visita domiciliar etc. Quanto às demandas, os equipamentos, em função da complexidade da sua proteção, apresentaram uma ampla variedade, que contemplou de atualizações cadastrais a busca ativa por vítimas de violência.

Na Assistência, o psicólogo ocupa o lugar de técnico, mas sua atuação deve ir além disso, encontrando as contradições e tensões próprias a esse campo (Senra & Guzzo, 2012). A princípio, vem o imaginário desse profissional como alguém que tem uma sala e oferta serviço de psicoterapia, o que é barrado pela legislação. A realidade é outra, o que se encontra é um profissional que tem as mesmas competências de outro, mas é necessário indagar o que faz o psicólogo para preservar a sua especificidade.

Ao remeter-se à temática da particularidade de cada saber, é preciso ter em conta o papel da interdisciplinaridade e sua importância para a constituição da atuação nos equipamentos socioassistenciais. Em sua pesquisa sobre a atuação de psicólogos na assistência, Duarte e Areosa (2020, p. 157) mostraram que esse é um desejo dos profissionais, com o intuito, por exemplo, de promover "reuniões, discussões e atendimentos conjuntos, entre psicólogo e assistente social". Contudo, também constataram que há falta de recursos para a sua concretização, o que se percebeu de certo modo neste trabalho.

Questionar o lugar de um saber em um espaço pode ser considerado por muitos algo irrelevante, mas a práxis da Psicologia mostra que é a partir daí que emergem mobilizações para a saída de um lugar de conforto. Qual o lugar da Psicologia aqui? O que um psicólogo faz em lugar como esse? Pondera-se que seja o lugar da diferença, de fazer diferente diante de tantas práticas retrógradas e estereotipadas. É preciso tornar a subjetividade visível diante de tantos números.

Torna-se importante assumir um compromisso ético-político da profissão, que não pode ser descolado da constituição histórica que a tornou possível. Nesse sentido, é preciso ultrapassar a atuação na qual a Psicologia se ergueu e "pensar numa atuação que seja transformadora, que se proponha combater os excessos da desigualdade, que possa produzir fissuras nas iniquidades reforçadas pela política" (Yamamoto & Oliveira, 2010).

Não sendo possível empenhar-se solitariamente nessa empreitada, recorre-se ao trabalho interdisciplinar ou multidisciplinar, de modo interativo e contributivo em mão dupla. Na Assistência, assim como em outros campos, o trabalho e o contato com profissionais distintos é uma realidade constante, que permite o exercício da alteridade entre distintos saberes. A composição com múltiplos profissionais, deve ter como intenção, de acordo com Botarelli (2008, p. 16), a "construção de uma proposta ético-política e profissional que não fragmente o sujeito usuário". Poder entrar em contato com pessoas reais que sofrem - não as pessoas de artigos e casos clínicos - foi uma experiência que colaborou com o desenvolvimento de potencialidades e da formação como psicólogo. A partir do estágio, percebeu-se que as discussões acadêmicas, muitas vezes, se afastam da realidade. Fala-se de sujeitos, de práticas críticas e de compromisso com o social, mas parece que é algo distante, que não nos diz respeito como categoria.

O profissional de Psicologia tem um papel privilegiado a partir do seu campo de conhecimento. Em concordância com Botarelli (2008, p. 17), defende-se que ele "poderia engendrar uma ação efetiva em termos de transformação social e, guardada sua especificidade, pode promover competência ético-política, tendo capacidade de favorecer a participação dos sujeitos usuários da atenção básica". Significa, portanto, superar burocracias e ir ao encontro do acolhimento do sofrimento ético-político.

O estágio mostrou os conflitos e tensões existentes no cotidiano. São pressões, prazos e ordens que precisam ser cumpridas a tempo, que desconsideram outras obrigações que também exigem execução. Há instituições que fiscalizam o trabalho e pedem o cumprimento das metas. Verificou-se que é preciso aperfeiçoamento. Novas formas de avaliação, melhor comunicação, o entendimento da particularidade das demandas e a flexibilidade quanto às questões de transporte são pontos que, se repensados, poderiam contribuir para a otimização e qualidade do serviço.

A imersão no serviço público, nos carros de prefeitura, nas ruas da cidade, na casa dos moradores propiciou o acesso à história, conflitos e contextos que escapam às salas de aula. Onde na academia se poderia falar sobre fulano de tal que sofreu isso ou aquilo? Sugere-se que chances de inserção como essas devam ser mais incentivadas na graduação, pois há muito a oferecer a professores e estudantes. É preciso se apropriar da cidade na qual se vive e ocupa.

O envolvimento com o serviço público traz consigo características específicas, como o trabalho em condições adversas - por exemplo, o temor de ser assaltado ou agredido em pleno exercício da função pública. Não imune a isso, foi necessário encarar alguns receios, como a violência. Não é novidade para ninguém o temor social que é sentido no cotidiano pelas ruas do país, mas tê-lo de encarar de perto, olho no olho, foi um ato de encarar a si próprio. Dessa forma, avalia-se que alguns cenários não podem ser mudados sozinhos, mas podem ser enfrentados de forma suportável.

De modo geral, a experiência foi de aprendizado sobre a política, as relações de trabalho - que em alguns casos podem ser danosas -, as vivências de território - que permitiram desbravar a pobreza da periferia -, e o lócus no qual sociedade e Estado se encontram para a efetivação de direitos e o exercício da cidadania. O estágio foi encerrado com a sensação do início de longo caminho de aprendizagem e contribuição para as políticas públicas, com o desejo de ocupar o espaço do serviço público e construir coletivamente um lugar no qual a Psicologia se faz necessária, e mostre sua efetividade na promoção e valorização de toda e qualquer forma de vida humana.

 

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Recebido em: 9/6/2020
Aceito em: 22/11/2021

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