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Psicologia para América Latina

 ISSN 1870-350X

     

 

PROCESOS CULTURALES EN AMÉRICA LATINA

 

Reflexões psicanalíticas sobre a língua, o estrangeiro e a intimidade em casos de surdez profunda

 

 

Gláucia Faria da Silva*

Universidade de São Paulo – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da experiência de atendimento clínico, em língua de sinais, de surdos profundos nascidos em famílias de ouvintes, construo a hipótese de que a pré–história desejante familiar não dá conta de construir um espaço identificatório consistente, na medida em que não é decodificada plenamente pelo sujeito. Este espaço identificatório permanece como um potencial, e então o surdo empreende uma busca faminta por sentido. Assim, refletiremos sobre o impacto precoce, multideterminado e paradoxal da vivência de ser estrangeiro para os surdos. Neste trabalho usarei a língua e a noção de eficácia fenomenalizante da fala como tema central, apresentando, então, um esboço de relação entre a noção de estrangeiro e a de intimidade.


ABSTRACT

Psychoanalytical reflections on language, foreignness and intimacy in cases of profound deafnessBased on my clinical service experience in sign language with profoundly deaf patients who were born in hearing families, I build the hypothesis in which the family desiring prehistory is not able to build a consistent identification space, as it is not fully decoded by the subject. This identification space remains potential, and then the deaf perform an avid search for sense. Therefore, we will reflect upon the precocious, multi–determined and paradoxical impact of living as a foreigner for the deaf. In this paper, I will use the language and the notion of phenomenological efficiency of speech as the central subject, presenting, then, an outline of the relationship between the notion of foreignness and intimacy.


RESUMEN

De la experiencia de la atención clínica, en la lengua de señales, de personas sordas profundas nacidas en familias de oyentes, construyo la hipótesis de que la pre–historia deseante familiar no es suficiente para construir un espacio identificatório consistente, en la medida que no es descifrado completamente por el sujeto. Sigue habiendo este espacio del identificatório como potencial, y entonces la persona sorda emprende una búsqueda por sentido. Así, reflejaremos en el precocious, multideterminado e paradójico impacto de la experiencia de ser extranjeros para la gente sorda. En este trabajo utilizaré la lengua y la noción de la eficacia fenomenalizante de hablar como tema central, presentando, entonces, un dibujo de relación entre la noción del extranjero y de la intimidad.


 

 

APRESENTAÇÃO

"Oir significa percibir los sonidos acústicos, escuchar es prestar atención a lo que se oye y está incluída la intencionalidad y el deseo. Y uno.... puede escuchar com todo el cuerpo"

Esta é uma frase dita por Maria Mercedes Woites, em um texto apresentado no Congresso "Surdez e Saúde Mental", em Buenos Aires (julho/2003).

Vários autores, principalmente freudianos e lacanianos destacam dois pontos fundamentais para a emergência do sujeito: o desejo da mãe e o discurso. O desejo da mãe pelo bebê é um elemento fundamental para a construção do eu.

Este desejo é veiculado de inúmeras maneiras, o discurso é uma delas, porém o discurso não é uma maneira qualquer. Assim como a noção de "ontem" ou de "hoje", a noção de "eu" também é um produto discursivo. Ser discursivo significa, nesta hipótese, ser radicalmente construção e um tipo de construção capaz de submergir unicamente quando existe um pacto social em que aquele sujeito desejante se crê uma pequena parte.

Em relação aos surdos, se discurso é fala desejante, podemos pensar que o discurso não pode ser ouvido (literalmente ouvir a fala, seu timbre e conteúdo), mas pode ser escutado (com todo corpo, através do desejo). No entanto, quando não ouvir afeta a linguagem como um todo, este fato produz marcas.

Consideramos que para surdos profundos, filhos de pais ouvintes, a língua de sinais será, na melhor das hipóteses, aprendida tardiamente e se dará basicamente através da intermediação de algum terceiro (em relação à família), terapeuta ou escola. Diferentemente da língua oral para sujeitos ouvintes, em que a aprendizagem da língua oral não é percebida como tarefa para os sujeitos, pois acontece por identificação. Franklin Goldgrub lança a hipótese de que o fato de ser uma língua aprendida "artificialmente" revestiria as línguas de sinais de "efeitos menos cruciais", poderíamos mesmo dizer estrangeira (em relação à língua materna – este qualificativo é significativo) para o sujeito.

O que são estes "efeitos menos cruciais"? Certamente estamos no campo da construção da subjetividade. Porém, de modo apenas aproximativo, pensamos no fato concreto de ser estrangeiro em outro país. Ao lado de uma incomensurável liberdade, vivenciamos, com o passar do tempo, o abandono e desamparo. Esta liberdade–desamparo tem a ver com a falta de amarras sócio–culturais representada pela língua em primeiro lugar. Chega o momento quase alucinatório em que só ouvimos o que nos lembra algo de nossa terra natal, as experiências de prazer ficam por um tempo restritas ao registro da língua materna. O lugar estrangeiro quer fazer marcas onde não foram gretados caminhos possíveis. Para a sobrevivência ser possível é necessário um recomeço, que no princípio é quase esquizofrênico. O lugar materno (país de origem) não perde sua força, o lugar estrangeiro não o substitui, o sujeito não possui mais um lar que o contenha todo. Vira ele próprio, claramente, estrangeiro onde quer que esteja. (ver Kristeva, J.; "Estrangeiros para nós mesmos"). Agora, como pensar uma vivência semelhante para o pequeno infans, que não teve qualquer registro significativo de língua materna estruturada?

Minha hipótese é que a pré–história desejante, não dá conta de construir um espaço identificatório consistente, na medida em que não é decodificada plenamente pelo sujeito. Este espaço identificatório permanece como um potencial, e então o surdo empreende uma busca faminta por sentido. Uma característica, talvez, das construções de narrativas dos surdos para si mesmos é que são impregnadas de fatos vistos (imagens) costurados por significações imaginárias, por vezes quase alucinatórias e com características paranóicas, que dispõe de chances reduzidas de verificação ou confrontação.

 

SOBRE A LÍNGUA DE SINAIS

Acreditando que:

"A surdez em si não é o infortúnio; o infortúnio sobrevém com o colapso da comunicação e da linguagem (...) os reveses serão ao mesmo tempo lingüísticos, intelectuais, emocionais e culturais". 1

Acredito também que esse infortúnio pode ser parcialmente evitado. Penso que as línguas sinalizadas são a língua natural das pessoas surdas, que são línguas completas, apresentando uma modalidade de apresentação diferenciada, ou seja, viso–espacial ao invés de oral–auditiva.

No entanto, não podemos ser ingênuos e simplesmente propor que pais ouvintes aprendam e usem a libras com seus bebês surdos. Seria desconhecer o que é uma língua, o que significa aprender uma língua estrangeira, as condições familiares quando do diagnóstico de qualquer deficiência, o funcionamento de um grupo familiar. As questões familiares e lingüísticas são complexas e não estão no âmbito da "escolha" pessoal.

Em relação às características lingüísticas das línguas de sinais, Sacks (1989, pg 97 e seg) diz que a função gramatical é assumida não apenas pelos sinais "manuais", mas também pelo rosto, pelo espaço e pelo tempo. Discute a característica "cinemática" das línguas visuais, onde os usuários nativos não realizam uma narrativa linear e prosaica, mas montam cenas, fazem flashback e flashforward, compõe a narrativa mais como filme, movimento impossível de ser traduzido pelas línguas orais (pg 101). Desse modo, a significação do tempo e do espaço é formulada de modo singular nas línguas de sinais. O apoio visual constrói simultaneidades de modo diverso do apoio sonoro e lingüístico.

Ele conclui afirmando que as línguas de sinais são totalmente comparáveis em estrutura às línguas orais, são capazes de exprimir quaisquer abstrações com características próprias. Ele compara a expressão e composição da língua de sinais à voz dos surdos, uma vez que ela apresenta modulações, criações e uma força especial, pois é emitida pelo corpo. é uma forma de comunicação onde o usuário se apresenta de corpo e alma, com sua identidade humana única, ela é ao mesmo tempo complexa e transparente, sujeita inclusive a lapsos idênticos aos da língua oral (pg 89)

A iconicidade das línguas de sinais, longe de empobrecê–las, é uma característica utilizada em momentos precisos, onde os surdos ressaltam o mimetismo da língua para fins, por exemplo, poéticos, enquanto as propriedades formais permitem a expressão de conceitos e proposições abstratas.

Se as línguas de sinais podem ser tão eficientes, por quê encontramos tantos surdos nas condições que descrevi anteriormente?

Carlos Skliar, estudioso no assunto, comentando sobre a "comunicação total" 2, diz:

"Eles (surdos) não entendiam nem os signos nem as palavras orais, (...) tendiam a usar uma meia–língua mesclando duas línguas para sobreviver comunicativamente, mas não tinham a menor idéia sobre onde acabava uma linguagem e onde começava a outra".3

Essa descrição, segundo minhas experiências, diz respeito à grande maioria dos surdos. Entender que uma língua serve apenas para comunicação produz o assassinato da língua, a brutalidade de corpo sem sonho, como diz Fedida. Sabe–se que a imensa maioria das crianças e adultos surdos do Brasil atual tem enorme dificuldade de ler, escrever e interpretar um texto em português e mesmo viver e entender a sociedade em que vivemos. 4

A situação criada pela surdez, onde há um estrangeiro no seio da família, com potencialidade e necessidade de usar uma língua própria e inábil para apreender a estrutura da língua oral materna (quando filho de pais ouvintes) pode nos ajudar a refletir sobre as fronteiras que a língua é capaz de traçar para os sujeitos, dando–lhes a liberdade de serem estrangeiros.

 

INTRODUÇÃO

O caminho iniciado na aquisição da língua materna é estruturante para o psiquismo individual, também porque demarca uma fronteira que desenha o pertencimento do sujeito a uma família, a uma cidade (através dos sotaques) e a um país. O pertencimento familiar também é verificado pelas marcas corporais de parentesco, estes preservados no caso da surdez (não em casos de outras deficiências). O nome da criança e o fato da criança nomear seus genitores é uma marca fundante, esta sim inexistente no caso de surdos, quando os pais não reconhecem a nomeação gestual como significativa.5

Estas marcas são pedra fundamental, pois servem para demarcar e alojar em lugar próprio tanto os pais, quanto a criança, quanto toda a humanidade. Elemento significante, constituinte de amarras e demarcações. Para a criança surda, a aquisição da língua materna é empobrecida a ponto de não servir de ferramenta socializadora eficaz, a língua de sinais aparecerá tardiamente (normalmente após a primeira infância) e normalmente veiculada por sujeitos cuja relação afetiva com a criança se dá pelo viés profissional (não familiar). Quais serão os caminhos de enlace social, este subjetivante encontro com o outro, com o Outro e com os outros, possíveis para essas crianças?

Foi partindo de algumas hipóteses que percorri os textos base deste trabalho. Estas hipóteses estarão brevemente discutidas nos sub–itens a seguir.

A primeira pergunta é qual a língua que permite uma primeira subjetivação aos surdos? A hipótese, descrita no item "Linguagem e Simbolização", é que algo materno e simbolizante atravessa o sujeito surdo, permitindo um primeiro nível de organização subjetiva, algo da ordem de uma simbolização perceptiva, pensável a partir de textos como os de Scheller, Gadini, Ogden e Langer.

A segunda questão é quais as conseqüências da precária aquisição da língua oral por surdos? Nesse momento penso que algumas das características lingüísticas fundamentais para os sujeitos estejam vetadas para alguns surdos. Refiro–me à eficácia catártica da linguagem (Schneider) e à eficácia fenomenalizante da fala (Fedida e Figueiredo). Nesse sentido, penso que talvez exista uma perda na construção da noção de realidade e verdade. Essas questões são abordadas nos itens "Afeto e Linguagem", "Língua e Fala" e "O Lugar da Fala e do Estrangeiro".

A terceira e última questão é como a estrangeiridade radical vivida pelos surdos em relação a língua oral e à língua de sinais repercute na noção de intimidade. Essa idéia está em "Fala e Intimidade".

 

LINGUAGEM E SIMBOLIZAÇÃO

"(...) não tenho certeza de que o deficiente auditivo que tenha até adquirido linguagem verbal possa dela usufruir como um centro fixo em torno do qual os sentimentos vagos e percepções se cristalizam, como um foco para o pensamento. Talvez permaneça sempre o caráter de língua estrangeira" 6

Linguagem, constituição subjetiva e pensamento são temas inseparáveis em psicanálise. O que dizer da constituição subjetiva de pessoas com surdez bilateral profunda, filhas de pais ouvintes, que foram privadas por sua deficiência (e pelas conseqüências familiares e sociais daí advindas) temporária ou definitivamente da aquisição da estrutura de uma língua? Qual mecanismo permite a constituição de uma estrutura neurótica em sujeitos que poderíamos pensar que estariam aquém da linguagem materna? Aonde reside a eficácia da linguagem? Em seus aspectos significantes? Afetivos? Melodiosos? Em seu conteúdo e significado? Em seu aspecto de designação, comunicação, tradução? Como se dá a transmissão desses aspectos? Não seriam todos eles dependentes da estrutura auditiva mínima do receptor? O que, além (?) da linguagem, opera entre a mãe e seu bebê de forma subjetivante? Ou, de outro modo, quais outros mecanismos operam com função de linguagem na constituição subjetiva?

Scheller e contemporaneamente Eugenio Gadini, ressaltam as tonalidades afetivas operando como comunicação primordial, marcando experiências anteriores à constituição do Eu. Ogden é outro autor que, me parece, ressalta a simultaneidade de diferenciação e indiferenciação possibilitada nas experiências corporais primitivas, ressaltando ainda que um bebê tenderia a viver os objetos como sensações e não como coisas.

Langer (in Safra, G., A face estética do self, p. 109), com outro sentido, aponta a existência de uma semântica além dos limites discursivos:

(...) as abstrações feitas pelo ouvido e pelo olho – as formas de percepção direta – são nossos instrumentos mais primitivos de inteligência. (...) Nossos órgãos dos sentidos fazem abstrações habituais e inconscientes, no interesse dessa função "reificadora" subjacente ao reconhecimento ordinário de objetos, ao conhecimento de sinais, palavras, melodias, lugares e à possibilidade de classificar tais coisas no mundo externo, segundo sua espécie. Reconhecemos os elementos dessa análise sensória em todos os tipos de combinação; podemos usá–los imaginativamente, para conceber mudanças prováveis nas cenas familiares". (Langer, 1941, P.100)

Os materiais simbólicos dados aos nossos sentidos, as formas perceptivas fundamentais de Gestalten, (...) fornecem as abstrações elementares em cujos termos é entendida a experiência ordinária do sentido. Essa espécie de entendimento reflete–se diretamente no padrão de reação física, impulso e instinto. A ordem das formas perceptivas não poderá, então, constituir um possível princípio para a simbolização e, portanto, a concepção, a expressão e a apreensão da vida impulsiva, instintiva e senciente? Um simbolismo de luz e cor, ou de tom, não poderá ser formulativo dessa vida?" (Langer, 1941, P.105)

Esta longa citação de Langer atribui uma eficácia simbolizante, ainda que primitiva e inicial (e não por isso menos importante), advinda de outras fontes que não a fala e a língua. Aliás, a descrição nos faz pensar na possibilidade de uma apreensão do mundo pelo sujeito, sem focar a presença ou ausência do outro no processo. Interessa–me a abertura que esse pensamento permite. Ao longo deste texto defendo como imprescindível a presença do outro na constituição subjetiva. Não conheço Langer para além desta citação para saber sua opinião, mas por hora ficaremos com o que temos: uma abertura.

Penso que Gadini, Ogden e Langer abrem caminho para pensar sobre uma "eficácia fenomenalizante" primordial, assentada sobre as sensações corporais e afetivas, que atingiria a possibilidade de fenomenalização do próprio corpo e do próprio eu. Ressaltar essa possibilidade faz sentido para meu trabalho. Na realidade, creio que essa poderia ser uma primeira hipótese para responder sobre a possibilidade de experiências primitivas e primordiais de diferenciação e indiferenciação, existência e inexistência (desejo), apoio ou desamparo, veiculadas através do contato corpo a corpo entre o bebê e sua mãe. Todos reconhecemos quando participamos de um toque que nos reconhece ou que nos apaga, que nos enriquece ou esvazia, prazeroso ou terrorífico.

Toque, sensações, afetos, rostos, cheiros, vibrações. Esses "retalhos" de afetos, palavras e sensações serão o caldo formador dos "rumores" da língua. Quando o sujeito é capturado pelo sistema da língua, esses rumores são recalcados, formando uma primeira noção de inconsciente, dando lugar ao sistema da língua, com suas regras e leis, pano de fundo automático sobre o qual se desdobrará a língua e a fala7. Como esses rumores se relacionam com o sistema da língua?

Contrariamente ao que afirmei, para a psicanálise e para a lingüista Viviane Veras o próprio corpo é já uma construção da linguagem. Ela coloca que a língua é afetiva e corporal, que através das nomeações a língua atravessa e recorta toda anatomia da criança. A anatomia é pura linguagem. Ela exemplifica com casos de crianças autistas e psicóticas cujo corpo não capturado pela linguagem não obedece à lei lingüística–social, mostrando que a vivência corporal como unidade é uma construção social complexa. Questões. No entanto, penso que há o corpo. O corpo sem sonho, o corpo nomeado e libidinizado, o corpo "em potencial". O corpo que poderá se transformar no estrangeiro inominável, mas também o corpo que poderá tentar traduzir–se com os parcos recursos que possuir.

Adiante discutiremos a eficácia fenomenalizante da fala. Então voltaremos a esta questão: esta é uma eficácia reflexiva, no sentido de fenomenalizar, a um só tempo e simultaneamente, os objetos para os sujeitos e o sujeito para si mesmo? Para além da fala (strictu sensu), teria o gesto e principalmente o toque corporal essa mesma eficácia de língua, comunicativa, simbolizante? Poderíamos atribuir essa eficácia ao afeto, em uma função de linguagem, via apoio corporal? Estas são questões pertinentes?

A heterogeneidade entre corpo e língua não é suficiente para construirmos uma oposição entre esses elementos. Inversamente, devemos manter a heterogeneidade e simultaneidade de experiências para melhor abarcar os fenômenos. Essa é a proposta de Monique Schneider em relação ao afeto e à linguagem.

 

AFETO E LINGUAGEM

A partir de uma leitura cuidadosa dos Estudos sobre a Histeria e outros artigos de Freud anteriores à Interpretação dos Sonhos, Monique Schneider realiza um estudo delicado e contundente. A questão norteadora da primeira parte do livro é: como pode o afeto patogênico se tornar fator terapêutico? Assim, se o estupor causa o traumatismo, a noção do excesso de afeto não explica o trauma. Parece que o que paralisa o sujeito é experimentar algo no escuro, tanto afetivo como representacional. O afeto impossível deve ser trazido à luz do dia antes de ser eliminado. (p.26/27). é a experiência de estrangulamento aquém e além do experimentado e do representável, de um afeto impossível que não viu a luz do dia que não poderá ser liquidado.

"Mas se a linguagem é ela própria um modo de descarga, ela não apenas "faz compreender", seu poder cavalga campos aparentemente heterogêneos. (...) O que deve ser a linguagem para que ela possa ser capaz não apenas de significar, mas de efetuar? A ancoragem no real não é fato da linguagem em geral, mas daquela que soube contatar uma função encantatória e poética".8

Na busca de resposta, a autora traça um paralelo entre essa "fala curativa" e a "fala catártica" descrita por Freud e Breuer, e continua questionando: seria ela (fala catártica = conjunção do discurso e do afeto) produto bastardo da eficácia terapêutica ou descoberta de um poder fundamental da fala? O que é a linguagem? Qual a sua essência? Quais são os limites da linguagem? Que deve ser para se dotar de poder semelhante ao da ação efetiva? Ela encontra em Rousseau a instauração de uma solidariedade primordial entre troca passional e função verbal (p.40). Para ele a origem da linguagem está "na vontade do ser afetado em afetar o outro".

Neste ponto, as idéias de Schneider tomam um caminho interessante. Na medida em que afeto e afetar o outro se tornam parte da linguagem da tragédia, da linguagem "apaixonada", onde o discurso bate com golpes redobrados dando uma outra emoção diferente da presença do próprio objeto, (...) acumulando o registro da excitação e sua exteriorização ab–reativa, a coincidência de ritmos entre os dois movimentos, fazendo bascular o espectador fora de sua posição de pura testemunha (p.41); uma idéia vai se construindo:

"(...) cai o mito da inocência infantil. Haveria em todo afeto um elemento explorável em conseqüência de sua encenação sempre possível, encenação evidentemente dependente da atitude do meio como espectador. O outro não figura, assim, apenas como simples testemunha encarregada de sancionar a demonstração emocional da criança, ele faz mais: confere um sentido exercendo ação decisiva sobre o desenvolvimento qualitativo da vida afetiva. A criança se verá infeliz, comediante, irresistivelmente engraçada, antes de ter tido a calma de procurar ser o que quer que seja (...) é a própria mensagem dessas manifestações que a criança encontra, de algum modo, pré–registrado antes que tenha de dar forma a algo. (...). Portanto, se o afeto como pura reação fisiológica é sempre diretamente isolável, pode se manifestar ao nível do vivido somente tomado na rede de relações com o outro".9

Para Schneider, é possível que a mediação da transcrição endereçada ao outro ressoe diretamente sobre esse processo fisiológico, servindo de substrato ao próprio afeto. Não há assim uma "expressão verdadeira do afeto", um simples desvelamento de um afeto escondido, mas a elaboração progressiva de um afeto repercutido por isto que em torno do sujeito faz ou não o papel de caixa de ressonância (p.49).

Esta é a base do pensamento da autora sobre o trauma. O trauma seria, portanto, a impossibilidade da vivência da dimensão teatral, abortando o processo emocional precisamente no momento em que, orientando–se para a mediação da expressão (que entendo como expressão verbal e expressão contida na "leitura" realizada pelo outro), estaria pronto a incitar um desenvolvimento que lhe permitisse entrar em posse de si mesmo. (p.50)

Esta descrição se parece muito com aquela feita por Torók, no texto "O cadáver saboroso"10 sobre o conceito de introjeção. Também neste conceito, a passagem "pelo" outro é o que permite, ou não, o movimento e a tradução da manifestação pulsional do sujeito.

A "saída" apontada por Schneider é que o dualismo afeto–linguagem deve ser substituído pela necessária passagem da impressão à expressão, tanto no plano da linguagem quanto do afeto, tal como ocorre na "linguagem originária" (p.42)

Parece, assim, que a ancoragem no real é uma qualidade da linguagem originária e ambas estão pressupostas na idéia de catarse, tal como está descrita, com sua função curativa, nos textos freudianos abordados por ela. Sua insistência é menos em uma certa combinação de linguagem e afeto do que na importância do outro como "significador" ou "possibilitador" da passagem entre impressão e expressão.


LÍNGUA E FALA

O texto de Luis Cláudio Figueiredo, Heidegger, língua e fala, retoma duas perspectivas conflitantes sobre a linguagem.

Uma delas toma a linguagem como complexo instrumento de representação de objetos por parte de um sujeito, como instrumento de expressão e de comunicação entre seres humanos, ou seja, pressupõe que sujeitos e suas experiências e os objetos destas experiências pré–existem a qualquer linguagem, sendo que esta funcionaria como articulação e vínculo entre os elementos envolvidos. A linguagem é assim concebida como objeto do conhecimento, instrumento dócil e prestativo a serviço dos falantes.

Em uma segunda perspectiva, assumida por Heidegger, a linguagem é tomada como meio universal da experiência, ou seja, a constituição linguageira do mundo é o solo de emergência de tudo que podemos encontrar e de tudo que pode nos afetar como sendo algo.

à semelhança do que chamamos acima de "sistema da língua", Figueiredo coloca a imagem dos jogos de linguagem para compreender o alcance desta ótica. Todos os jogos são constituídos de regras que, uma vez estabelecidas e pactuadas, devem ser respeitadas por todos e devem reger todas as ações dentro do jogo. Sua eficácia é a própria constituição das subjetividades e objetividades envolvidas no jogo. Por exemplo: uma vez que as regras do futebol não forem seguidas, não se estará jogando mal o futebol, simplesmente não se está jogando futebol algum. Assim, é na obediência às regras que se pode configurar um campo de forças que dá existência e sentido a todos os elementos daquele campo. "(...) não se existe senão no–mundo e na–língua". (p. 70)

Segundo o autor, observa–se uma transição do interesse de Heidegger da língua para a fala, com sua eficácia poética, ao longo de sua obra. Para este, tanto a fala tagarela e cotidiana, quanto a fala poética, bem como a própria língua em que se vive, estão muito pouco à disposição do sujeito. Figueiredo acompanha a idéia e batiza a FALA heideggeriana de "fala acontecimental" ou "fenomenalizante", e percorre um trajeto que se inicia da explicitação da diferença ontológica entre Ser e Ente.

Definindo em pouquíssimas palavras o Ser como o que dá sentido ao que se mostra e o Ente como aquilo que se mostra como sendo, ou seja, o que se deixa interpretar, podemos tentar acompanhar as críticas que Heidegger fará às idéias de metafísica, entendida como atividade humana que se caracteriza por ir além do Ente na direção do Ser, ou ainda, como a busca que dá sentido ao Ente, principalmente à metafísica platônica, afirmando que esta forma de compreender transforma o Ser como espécie de ente especial, superior e supremo. (idem, p. 72)

Heidegger defenderá a idéia do Ser como o irrepresentável. Nas palavras de Figueiredo, convém pensar o Ser como fundo sem fundo e os Entes como figuras:

"o fundo sobre o qual uma figura se destaca existe como puro envio e doação, ou seja, ele propicia que algo se configure, ele destina algo à configuração. No entanto, neste momento mesmo, o ser como puro envio se retrai: o que se mostra é a figura, o fundo se afasta de nós e se torna invisível. (...) Esta é a forma de pensarmos o ser como retraimento".11

O autor aproxima a idéia do Ser como fundo sem fundo da idéia do abismo e a postura de abertura e aproximação deste abismo com o afeto da angústia. No entanto, Heidegger denomina esta disposição afetiva de "manter o espírito aberto ao secreto" de serenidade.

Conservar–se no "aberto da abertura", habitar a "livre extensão" são as condições essenciais para que se proponham novas fenomenalizações, para que o acontecimento possa emergir como irrupção do real. O real aqui é destituído de qualquer representação, é o real sem imagens, que comparece apenas como irrupção no campo de uma espera e que exige uma resposta. Esta exigência é que nos propulsiona em direção à fala. Portanto, é a escuta do acontecimento que gera a fala poética como resposta.12

Esta fala nada representa, nem expressa a experiência subjetiva com o novo. A fala que responde ao acontecimento é que dará ao que emerge um ser, ou seja, esta fala terá função fenomenalizadora:

"para que ela (fala) possa ter esta eficácia é preciso que ela brote do fundo sem fundo, desde o abismo, desde o Ser irrepresentável. (...) Esta fala é a própria fala da língua. (...) nesta medida, a fala ela mesma, livre das amarras das intenções subjetivas e das tarefas de comunicação, será como acontecimento, imprevisível e incalculável. Somente a experiência com esta fala outra, proveniente da escuta do irrepresentável, terá poder de fazer outro aquele que for por ela colhido".13

Figueiredo então pergunta: em que medida esta fala está comprometida com a verdade? Entendo que a cada uma das visões de linguagem (ver p. 12) corresponde uma idéia sobre o que é a verdade. Na perspectiva da linguagem–representação, linguagem–instrumento, podemos entender a "verdade" de forma dualista, como correspondência e adequação, como representação adequada. Na perspectiva da linguagem como meio da experiência, estamos em contato com a eficácia fenomenalizante da fala, portanto utilizaremos a noção de verdade como aletheia, ou seja, uma noção de verdade que não se fixa na oposição verdadeiro versus falso, mas que se instaura num jogo de desvelamento e ocultação.

"A verdade como aletheia é o desvelamento do ente, o que permite que ele se mostre, o que propicia sua configuração desde o fundo sem fundo do ser". 14

Destas idéias sobre linguagem restam questões, muitas questões.

é a língua a principal perda do sujeito surdo. Por conta desta perda, várias outras vão se somar e através dela se configurar. Será que os sujeitos surdos não podem contar com a possibilidade catártica da linguagem? Será que o tipo de apreensão possível da língua oral pelos sujeitos surdos fica restrito a um tipo de uso "declarativo" (Schneider) ou como instrumento de representação de objetos (Figueiredo)? Será que, caso estas características se verifiquem, elas afetariam a constituição da subjetividade da pessoa surda? De que forma? Será que o sujeito surdo alcança apenas uma das dimensões da "verdade"? Apenas a verdade como dualismo, concreta, sem possibilidade de enigma e desvelamentos sucessivos?

 

O LUGAR DA LINGUAGEM E DO ESTRANGEIRO

Pierre Fédida tem dois lindos, complicados e complementares textos intitulados: "O sítio do estrangeiro" e "A vertical do estrangeiro"15. No primeiro artigo trata da língua e suas particularidades, para então chegar à situação analítica.

O objeto de reflexão na primeira parte do artigo é a língua em sua capacidade de dar visibilidade às coisas mesmas, desde aquele sítio denominado estrangeiro, sem familiaridade extremada, sem sentimentalismo, mas onde a ressonância do sentimento das coisas permite a mímesis e a criação (opostos a descrição racional), permite o ato poético de nomeação, de surgimento da língua no despertar de suas palavras. Por este resumo percebe–se que tanto a língua como as coisas mesmas ganham uma autonomia de ser vivente, ou seja, uma heterogeneidade e radical alteridade frente ao sujeito.

Assim, me parece frutífero pensar no texto de Fédida como uma proposição de uma intersubjetividade radical, que pressupõe não um animismo metafísico, mas uma alteridade e uma presença essencial de um ser humano falante partícipe desta relação com as coisas e com a língua.

Assim, no mesmo movimento em que dedica importância capital às coisas: "(...) é preciso encontrar o tempo de ver cada coisa pronunciando seu nome para escutá–lo aí se formar" (p.52); Fédida passa a falar de criação de ato poético (p.52), de transferência de qualidade (p.55) e, quase imperceptivelmente, passa a combinar (para então separar) língua de fala. Conforme entendo, língua é sistema comum, vivente, fundação e estrutura para além do sujeito singular e fala é a língua apropriada pelo sujeito, capturada pelo tempo, recriada ou assassinada por ele, o único lugar possível para se escutar o que se diz. Nesta leitura, língua e fala são completamente interdependentes.

No decorrer do artigo, o sítio do estrangeiro aparece como um sítio cigano, ora na língua, ora na escuta nascida do silêncio, ora nas mãos do poeta. Aparece como energia potencial, lugar, ferramenta. De fato, ele é o lugar da condição de eficácia fenomenalizante da fala, abordada tanto por Schneider quanto por Figueiredo. Assim, quando o autor fala do estrangeiro, o define como:

"o fundo de silêncio que as coisas solicitam na língua para se traduzir – para se tornar visíveis. (...) A visibilidade das coisas é menos da ordem da imagem que da impressão e da escritura. Ela é produzida por uma transferência de qualidades sensíveis que a fala torna possível através daquilo que escuta de si própria".16

Adiante, na parte dedicada à clínica, ele dirá: "ao evocar o sítio do estrangeiro, fazemos apelo (...) ao ato de escutar como recurso de linguagem próprio à fala nas palavras usuais da língua".17

Sempre localizei os surdos que atendi e convivi como estrangeiros, não em relação a mim mesma, mas como questão fundamental que perpassava seus sofrimentos. Pensar a eficácia da linguagem desde um sítio que me parece inacessível aos surdos me incomoda. Não pretendo fazer um levantamento de falhas travestidas como diferenças. No entanto, talvez caiba descrever que trabalhei com surdos que apresentavam sérias dificuldades de compreensão do português. Apresentavam dificuldades de compreender abstrações, de entender uma metáfora, de brincar com a língua. Riscar o nome escrito de uma criança ou adolescente surdo era uma ofensa. No tratamento não havia possibilidade de pensar contradições entre intenção e ação, entre intenção e reação do outro. Os próprios sinais eram pobremente utilizados, reinando uma lógica de exclusão: entre os conceitos implícitos nos pares verdade/mentira, bonito/feio, certo/errado não havia nada. Ou isso ou aquilo. Monolíticos também eram os efeitos dos sentimentos: se amo: beijo, namoro, transo; se odeio: inimigo, fim, bato, apanho. Os sintomas e defesas predominantes eram obsessivos e maníacos, actings e somatizações.

 

FALA E INTIMIDADE

Neste ponto posso dizer começo a questionar se o tema da intimidade, tão caro para mim há anos, é realmente um problema profícuo.

Intimidade para Fédida está mais para uma propriedade específica da língua e da função do analista e do poeta. Para Marion Minerbo18, no meu entender, ora intimidade quase se funde com a noção de transferência em Freud, ora parece remeter ao conceito de introjeção (Tórok).

Para mim, a intimidade aparecia na constatação de uma falta de intimidade dos surdos consigo próprios, quando mal reconheciam algo além do visível, que dirá de um mundo intrapsíquico. Entretanto, lendo o que tem produzido a psicanálise sobre as patologias contemporaneidade, observando meus pacientes atuais (ouvintes), penso se a falta de intimidade não deve ser remetida à constituição da subjetividade na atualidade. "Não observar as crianças, mas estar com elas, neste ponto começa a ficção" (Entrevista de Hirokazu Kore–eda, diretor do filme "Ninguém pode saber", na Folha de São Paulo, em 21/04/05). Esta frase e o filme citado fazem parecer que intimidade é a nova categoria de "ficção científica" da modernidade, não dos surdos.

Fedida, em "A vertical do estrangeiro"19, começa a construir uma sobreposição e interdependência entre o sítio do estrangeiro e a intimidade. Nos dois textos estudados, as primeiras frases parecem resumir o conteúdo a ser desenvolvido no artigo. Assim, temos na primeira página:

"A intimidade da sessão não evoca tanto a intimidade de uma relação humana quanto a existência pática da linguagem em contato com suas palavras, ali onde a visão se inverte como se ela viesse da própria fala".20

Ele começa dizendo que intimidade é um tema em desuso e um tema difícil para a psicanálise. O ofício do analista exige um cuidado, uma vigilância em relação aos recobrimentos que a presença do familiar não pode deixar de produzir. (p.66) Ele contrapõe essa vigilância ao testemunho contratransferencial que, de alguma forma, transgride a condição de linguagem do silêncio. Descrevendo, portanto, as bases do ofício psicanalítico, Fedida afirma: "pode–se afirmar que o estrangeiro garante o íntimo, e que qualquer familiarização do analista com seu paciente representa uma ameaça ao íntimo" (p.68).

O par estrangeiro/íntimo é todo tempo referido às bases de sustentação da psicanálise e à relação analista/paciente. Sob essa ótica, a interpretação é assim definida: "(...) interpretação – por excelência ato de manifestação do estrangeiro no coração do íntimo – é mudança de vista e abertura dos possíveis em um processo de historização". (p.73)

Quando leio esta linda afirmação, lembro–me de uma outra, de Julia Kristeva:

"(...) o futuro não está em querer integrar o estrangeiro e, sim, em respeitar sua singularidade. Isso só se tornará possível com base em nossa própria divisão, no reconhecimento do estrangeiro em mim mesmo". Por essa razão ela vê "a experiência psicanalítica como uma viagem na estranheza do outro e de si mesmo (...), pois permite a transformação daquilo que tem função de hostilidade (hostis – inimigo) em hospitalidade (hospes – hospedeiro)"21

Para falar de intimidade Minerbo, retoma a importância do outro na constituição subjetiva: "(...) o leão de Laís, estando afeito à própria ferocidade não lhe tem horror (...) por isso pode olhar com simpatia a ferocidade da criança. Não é que ele não a ache feroz: é que também é natural das crianças um tanto de ferocidade". Acho esta interpretação brilhante. Ela continua:

"Este estar afeito à própria ferocidade, ter afeição por sua ferocidade, é exatamente o que se entende por intimidade consigo próprio, ou melhor, com as próprias feições psíquicas. (...) "mas quem é o leão senão a própria Laís? Agora podemos falar de uma especularidade ativa. (...) sua função (do leão) não se restringe a refletir passivamente, mas a receber uma imagem, acolhê–la e devolvê–la revestida de uma espécie de película transparente, luminosa e quente de acolhimento e sim–patia (sentir com). é assim que Laís vai se conhecer, tornar–se íntima de si mesma no momento mesmo em que se torna íntima do leão. Intimidade é este momento de reflexão–calorosa–luminosa mútua que permite reconhecer–se no outro".22

Essa descrição de Minerbo diz o que diz Schneider (ver p.13) como condição de expressão do afeto, ou seja, o movimento de expressão é aquele movimento de tomar posse de si mesmo através de um encontro. Fédida coloca este encontro não na relação interpessoal, mas numa certa experiência de linguagem (que certamente implica na presença de um outro), onde a visão se inverte como se viesse da própria fala.

O alcance da eficácia da fala é um conceito escorregadio. Penso ter encontrado a falha dessa eficácia no trabalho clínico com surdos. Estranho é que nunca deixei de mergulhar no mundo que me era apresentado, a eficácia da fala fenomenalizante se fazia presente em mim, mas essa fala não ressoava nos pacientes. Ver–se escutado era a primeira grande surpresa para os surdos. Ver sua fala apropriada por mim e devolvida era uma violência, uma perseguição muitas vezes. Escutar–se... não sei o quanto acontecia. Será que me colocava como representante dos ouvintes? Talvez, pois eu era estrangeira no mundo dos surdos e isso era claro para todos nós. Fiquei na escuta do "corpo sem sonho"? Ultrapassei os limites das abstrações possíveis de serem compreendidas? Talvez. Penso hoje que esse lugar tão radicalmente estrangeiro representado pelo analista–ouvinte beirava a impossibilidade, não só para os surdos, mas também para as famílias. Penso também que pude ajudá–los a enriquecer a compreensão das vivências cotidianas (o que não é absolutamente específico para surdos), tentando minimizar os efeitos traumáticos das experiências vividas como radicalmente solitárias, na medida em que a presença do outro não podia ser aproveitada e compartilhada.

Ainda sobre a eficácia da fala: penso que dela resulta a experiência da espessura da realidade vivida, porque compartilhada, e por isso, revivida e assimilada.

O surdo tem estilhaços de língua, estilhaços de uma língua explodida, com cacos furando partes do corpo, retalhando pedaços de vivência, provocando amadurecimentos precoces e restritos. Cacos de língua com funções comunicativas, designativas, descritivas, que não atingem o cerne do sujeito, que assassina a própria língua enquanto instância subjetivante.

Qual a eficácia da fala que nasce da apropriação da língua, dessa língua não apenas estrangeira, mas clandestina?

Qual o lugar que a língua de sinais poderá ocupar?

 

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Endereço para correspondência
Gláucia Faria da Silva
E-mail: glaufaria@osite.com.br

 

*Mestranda do Programa de Psicologia Social
1Oliver Sacks, Vendo Vozes, Companhia das Letras, São Paulo, 1998.
2Comunicação total é proposta educacional que propõe o uso concomitante de sinais, escrita, fala e quaisquer recursos disponíveis visando a comunicação. Skliar, C., 1997 (p.43/44).
3SKLIAR, C.; em conferência proferida no Seminário: Desafios e Possibilidades na Educação Bilíngüe para surdos, Rio de Janeiro, 1997
4Na pré–escola onde trabalhei a faxineira era surda, órfã (morava na escola), sabia ler pouco e por vezes substituía as professoras. Ela foi ler uma história infantil para as crianças e parou na segunda linha do texto: encontrou o pronome "dela" e não o compreendeu. Não há pronomes, artigos ou preposições na libras.
5Na pré–escola, grande número de mães se queixava da dor de nunca ter ouvido seu bebê as chamarem de "mãe". Outras mães mantinham a crença (de várias maneiras) de não serem amadas por seus bebês, pois eles nunca olhavam quando elas falavam.
6Vera Regina Fonseca (org.); Surdez e Deficiência Auditiva, Casa do Psicólogo, 2001 (pg 50)
7(Viviane Veras, palestra proferida em 06/05/2005 no Cogeae–PUC/SP)
8Monique Schneider, Afeto e Linguagem nos primeiros escritos de Freud, Ed. Escuta, 1993, p.29
9Idem, p.41
10Abraham, N. & Torók, M., Doença do Luto e Fantasia do cadáver saboroso, in A casca e o núcleo, Ed. Escuta, 1995.
11Luis Cláudio Figueiredo, Heidegger, língua e fala, in Psicanálise e Universidade, 3, p. 72.
12Idem, p.73–74.
13Idem, p. 74.
14Idem, p. 75.
15Pierre Fédida, Nome, Figura e Memória – A linguagem na Situação Psicanalítica, Ed. Escuta, 1991.
16Pierre Fédida, O Sítio do Estrangeiro, in Nome, Figura e Memória – A linguagem na Situação Psicanalítica, Ed. Escuta, 1991, p.56.
17Idem, p.61
18Marion Minerbo, Intimidade e Formas de Intimidade: da escuta à teorização
19Pierre Fédida, A vertical do Estrangeiro, in Nome, Figura e Memória – A linguagem na Situação Psicanalítica, Ed. Escuta, 1991.
20Idem, p. 65
21Kristeva, in KOLTAI, Caterina; Política e Psicanálise, Ed. Escuta, São Paulo, 2000.
22 Marion Minerbo, Intimidade e Formas de Intimidade: da escuta à teorização, p.235/236

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