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Psicologia para América Latina
versão On-line ISSN 1870-350X
Psicol. Am. Lat. n.14 México out. 2008
GÉNERO Y EQUIDAD SOCIAL
Gênero e violência contra a mulher: o perigoso jogo de poder e dominação
Género y Violencia Contra la Mujer: el peligroso juego del poder y la dominación
Maria de Fátima Araújo
Universidade Estadual Paulista (UNESP), Assis - São Paulo - (Brasil)
RESUMO
Este artigo aborda questões teóricas e práticas da violência contra a mulher tendo como recorte a abordagem de gênero. Inicialmente contextualiza os diferentes usos do conceito e as causas determinantes na compreensão do problema. Em seguida comenta alguns dados de pesquisa e, por fim, discute os dilemas e impasses vividos pelas mulheres agredidas diante da denúncia e impunidade dos agressores.
Palavras-chave: Violência contra a mulher, Violência de gênero, Abordagem de gênero.
RESUMEN
Este artículo aborda cuestiones teóricas y prácticas de la violencia contra la mujer, desde una perspectiva de abordaje de género. En principio contextualiza los diferentes usos del concepto y las causas determinantes para la comprensión del problema. A continuación comenta algunos datos sobre la investigación y finalmente discute los dilemas y el impasse vivido por mujeres agredidas ante la denuncia e impunidad de los agresores.
Palabras clave: Violencia contra la mujer, Violencia de género, Abordaje de género.
A violência contra a mulher continua sendo um grave problema social no Brasil e no mundo, apesar da luta feminista em torno da questão. Nunca se falou tanto nem se pesquisou tanto sobre o tema como nos últimos anos. Todavia, os avanços são poucos, embora, desde 1990, a Organização Mundial de Saúde já reconheça a violência contra a mulher como um problema de saúde pública que exige dos governantes políticas públicas mais eficientes no combate e prevenção do fenômeno. Além de causar sofrimento físico e psíquico à mulher & e conseqüentemente a seus filhos e família &, esse tipo de violência é também uma violação dos direitos humanos.
O conceito “violência contra a mulher” é freqüentemente utilizado como sinônimo de violência doméstica e violência de gênero. Mas apesar da sobreposição existente entre esses conceitos, há especificidades no uso dos mesmos como categorias analíticas.
No Brasil o termo começou a ser usado no final dos anos 70 e difundiu-se rapidamente em função das mobilizações feministas contra o assassinato de mulheres e impunidade dos agressores, freqüentemente os próprios maridos, comumente absolvidos em nome da “defesa da honra” (Grossi, 1998). Nos início dos anos 80 tais mobilizações se estenderam para a denúncia dos espancamentos e maus tratos conjugais, formas também muito comuns de violência contra a mulher. Com isso o termo passou a ser usado como sinônimo de violência doméstica em função da maior incidência deste tipo de violência ocorrer no espaço doméstico e/ou familiar (Azevedo, 1985).
Resultaram dessa luta a criação dos SOS Mulher e demais Serviços de Atendimento a Mulheres Vítimas de Violência, em geral vinculados a organizações não governamentais criadas por militantes feministas envolvidas na luta por políticas públicas voltadas para a mulher. Desses processos surgiram também o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, os Conselhos Estaduais e Municipais da Condição Feminina e as Delegacias de Defesa da Mulher, conquistas importantes no combate à violência contra a mulher.
A partir de 1990, com o desenvolvimento dos estudos de gênero, alguns autores passaram a utilizar “violência de gênero” como um conceito mais amplo que “violência contra a mulher” (Saffioti & Almeida,1995). Este conceito (violência de gênero) abrange não apenas as mulheres, mas também crianças e adolescentes, objeto da violência masculina, que no Brasil é constitutiva das relações de gênero. É também muito usado como sinônimo de violência conjugal, por englobar diferentes formas de violência envolvendo relações de gênero e poder, como a violência perpetrada pelo homem contra a mulher, a violência praticada pela mulher contra o homem, a violência entre mulheres e a violência entre homens (Araújo, 2004). Nesse sentido pode-se dizer que a violência contra a mulher é uma das principais formas de violência de gênero.
Causas e compreensão do problema
A violência de gênero produz-se e reproduz-se nas relações de poder onde se entrelaçam as categorias de gênero, classe e raça/etnia. Expressa uma forma particular de violência global mediatizada pela ordem patriarcal, que delega aos homens o direito de dominar e controlar suas mulheres, podendo para isso usar a violência. Dentro dessa ótica, a ordem patriarcal é vista como um fator preponderante na produção da violência de gênero, uma vez que está na base das representações de gênero que legitimam a desigualdade e dominação masculina internalizadas por homens e mulheres.
A dominação masculina, segundo Bourdieu (1999), exerce uma "dominação simbólica" sobre todo o tecido social, corpos e mentes, discursos e práticas sociais e institucionais; (des)historiciza diferenças e naturaliza desigualdades entre homens e mulheres. Para Bourdieu a dominação masculina estrutura a percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida social.
Essa perspectiva teórica que vincula a opressão das mulheres ao sistema patriarcal foi, durante muito tempo, utilizada pelas feministas na análise da relação dominação-submissão feminina, porém, atualmente é criticada pelos estudos de gênero por sua tendência universalizante. A dominação masculina não pode ser vista como algo fechado, que se reproduz de modo idêntico. Há variações na forma como o poder patriarcal se institui e se legitima, assim como nas formas de resistência que as mulheres desenvolvem nos diferentes contextos.
A perspectiva de gênero desenvolvida por autoras feministas como Joan Scott (1995), Tereza de Lauretis (1987) e Judith Butler (2003) dentre outras, aponta um outro ângulo analítico para pensarmos a violência de gênero, não só sob a ótica da dominação masculina, mas também para além dela. Com isso “gênero” passou a ser usado como uma categoria mais ampla que ‘patriarcado” para compreender as relações de poder e violência. Passou também a substituir a categoria “mulher” em muitos estudos feministas (Piscitelli, 2002)
Scott (1995), no célebre artigo “Gênero : uma categoria útil de análise histórica”, sistematiza uma definição do conceito levando em conta suas três principais características: dimensão relacional, construção social das diferenças percebeidas entre os sexos e campo primordial onde o poder se articula. Neste texto, a autora, apoiada em uma leitura genealógica, historiciza o conceito e propõe o seu uso como categoria analítica e instrumento metodológico para entender como, ao longo da história, se produziram e legitimaram as construções de saber e poder sobre a diferença sexual. A relação entre gênero e poder é uma questão central na conceituação de Scott. Para desenvolvê-la, ela recorre à noção de poder de Foucault(1981), como um poder in fluxo (nem fixo nem localizado numa pessoa ou instituição) que se organiza segundo o “campo de forças”. Sob esta ótica é possível "desconstruir" verdades universais presentes nas hierarquias e desigualdades de gênero baseadas na diferença biológica.
Este novo ângulo analítico questiona a universalidade das categorias homem e mulher, associadas a construções binárias que associam poder e dominação ao masculino e obediência e submissão ao feminino. Se o gênero é relacional, não se pode admitir, no contexto das relações de gênero, um poder masculino absoluto. As mulheres também detêm parcelas de poder, embora desiguais e nem sempre suficientes para sustar a dominação ou a violência que sofrem. Desta forma, é possível pensarmos em diferentes possibilidades ou modos de subjetivação e singularização vivenciados por homens e mulheres.
Como diz Scott (1995), os homens e as mulheres reais nem sempre cumprem rigorosamente as prescrições de sua sociedade ou de suas categorias analíticas. Por isso, é preciso examinar as formas pelas quais as identidades generificadas são construídas e relacionar seus achados com toda uma série de atividades, organizações e representações sociais historicamente específicas.
No caso da violência contra a mulher ou violência de gênero, pode-se dizer que embora a dominação masculina seja um privilégio que a sociedade patriarcal concede aos homens, nem todos a utilizam da mesma maneira, assim como nem todas as mulheres se submetem igualmente a essa dominação. Se o poder se articula segundo o "campo de forças", e se homens e mulheres detêm parcelas de poder, embora de forma desigual, cada um lança mão das suas estratégias de poder, dominação e submissão (Araújo, 2008; Saffioti, 2001).
Portanto, pode-se dizer que a violência contra a mulher não é um fenômeno único e não acontece da mesma forma nos diferentes contextos; ela tem aspectos semelhantes mas também diferentes em função da singularidade dos sujeitos envolvidos. Apesar da presença comum do fator predominante & a desigualdade de poder nas relações de gênero - cada situação tem uma dinâmica própria, relacionada com os contextos específicos e as histórias de vida de seus protagonistas. Por isso, na análise e compreensão da violência contra a mulher é fundamental levar em conta esses aspectos universais e particulares de forma a apreender a diversidade do fenômeno.
Alguns dados de pesquisa
No mundo todo a maioria das pesquisas apontam para uma alta incidência da violência contra a mulher nas diferentes classes sociais, culturas e raças. Os números são alarmantes, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), nos países do continente americano as estatísticas mostram que uma em cada três mulheres é vítima da violência.
No entanto, sabe-se que essa forma de violência é difícil de ser aferida em números. As pesquisas variam muito em suas metodologias, controle e interpretação dos dados, o que dificulta a comparação entre elas, assim como a obtenção de uma visão geral da incidência do fenômeno na população. Muitas vezes ao compararmos dados de pesquisas encontramos porcentagens que revelam, por exemplo, um alto índice de violência contra a mulher em determinados países, quando, na verdade, os números significam apenas que nesses países existem melhores condições de registros e não propriamente um maior índice de violência em relações a outros que não contam com as mesmas condições.
No Brasil, as pesquisas existentes, apesar de numerosas, são insuficientes para traçar um perfil real e global do fenômeno. Sabe-se que a dimensão do problema é muito maior que a violência denunciada ou detectada pelas pesquisas. Os inúmeros estudos realizados nas últimas décadas, inegavelmente deram maior visibilidade ao problema, mas é impossível afirmar com precisão se a violência contra a mulher aumentou ou diminuiu.
De uma maneira geral, as pesquisas brasileiras apontam semelhanças quanto à caracterização do fenômeno, tipo de violência, perfil de vítimas e agressores e procedimentos relacionados à denúncia e punição (Camargo, Dagostin & Coutinho, 1991; Silva, 1992; Santos, Oliveira & Cabral, 1996; Suárez & Bandeira, 1999;Schraiber, D’Oliveira, Falcão & Figueiredo, 2005).
Pesquisa realizada por Araújo, Martins & Santos (2004) a partir da análise de 3.627 Boletins de Ocorrência de uma Delegacia de Defesa da Mulher, em uma cidade do interior do Estado de São Paulo, constatou a tendência encontrada em outras pesquisas, independente da região pesquisada. Segundo a mesma, as mulheres mais atingidas pela violência são as jovens, casadas e sem atividade remunerada (62% delas têm entre 21 e 40 anos e 57% são casadas). O trabalho remunerado potencialmente aumenta a margem de poder e negociação da mulher dentro da relação (ou da família), mas nem sempre ela faz uso desse poder. Há mulheres que ganham mais que seus maridos, sustentam a casa e, mesmo assim, continuam vítimas dos mais diferentes abusos físicos, psicológicos e/ou sexuais.
O espaço doméstico e familiar é, na grande maioria dos casos (60%), o lugar onde ocorrem as agressões e o agressor alguém que mantém ou manteve com a vítima uma relação de proximidade e intimidade - marido, companheiro e/ou namorado (46% de relações atuais e 23% de relações passadas).
A violência física é a mais freqüente ou pelo menos a mais denunciada (58% no total, sendo 32% com lesão corporal). A violência psicológica aparece com 36% e a sexual com 6% entre os BO’s pesquisados.
Os motivos da agressão são os mais variados. Em 69% dos casos resulta de discussões motivadas por ciúme, ameaça de separação, problemas de dinheiro, questões relacionadas aos filhos, etc. Alcoolismo, distúrbio mental e desemprego também aparecem como motivos, mas em menor incidência. O fator realmente preponderante é a relação de poder que o homem tem sobre a mulher e que lhe dá o “direito” de agredi-la por qualquer motivo.
Os dados levantados nesta pesquisa não só comprovam a gravidade e complexidade do fenômeno, como também apontam para a diversidade de estratégias que as mulheres utilizam para lidar com a violência. Algumas delas reagem à agressão que sofrem, denunciam seus agressores e buscam ajuda para sair da relação abusiva em que vivem. Outras se submetem passivamente e vivem anos e anos sob a situação de violência na esperança de que um dia o companheiro mude e cessem as agressões. O problema é que, com o tempo, a violência se banaliza e passa a ser vista como natural. A exposição continuada à situação de violência anula a auto-estima e a capacidade de pensar e reagir. E a esperança de mudança vai dando lugar ao conformismo.
Porque essas mulheres permanecem na relação abusiva ?
A ideologia de gênero é um dos principais fatores que levam as mulheres a permanecerem em uma relação abusiva. Muitas delas internalizam a dominação masculina como algo natural e não conseguem romper com a situação de violência e opressão em que vivem.
Além da ideologia de gênero outros motivos também são freqüentes, tais como: a dependência emocional e econômica, a valorização da família e idealização do amor e do casamento, a preocupação com os filhos, o medo da perda e do desamparo diante da necessidade de enfrentar a vida sozinha, principalmente quando a mulher não conta com nenhum apoio social e familiar.
Algumas mulheres relutam em denunciar seus agressores por receio de que a violência aumente, o que acontece com bastante freqüência, pois a impunidade prevalece mesmo após a denúncia. Pelas leis brasileiras, a violência contra a mulher é considerada um crime de "menor potencial ofensivo" e está sujeita a penalidades que não ultrapassam um ano de detenção. Desde 1995, com a Lei 9.099, o julgamento de tais crimes foi transferido para os Juizados Especiais com o objetivo de agilizar a punição dos agressores e dar maior proteção à mulher. No entanto, isso não aconteceu. O que houve foi uma flexibilização da responsabilização do agressor com adoção de penas alternativas, que, muitas vezes, restringe-se à doação de uma cesta básica para uma instituição de caridade. Com isso, na grande maioria dos casos, a denúncia resulta apenas em um pequeno constrangimento para o agressor que, após o julgamento, volta para casa com a vítima e continua com o comportamento abusivo. Contraditoriamente, essa lei acabou contribuindo para a impunidade e banalização da violência contra a mulher, inclusive desestimulando a denúncia. Espera-se que essa situação mude com a Lei Maria da Penha (Lei 11.340), sancionada em agosto de 2006, que estabeleceu procedimentos mais rigorosos para “coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”,dentre eles o afastamento do agressor do lar e maior proteção às vítimas.
Sabemos que muitas mulheres denunciam seus companheiros apenas para intimidá-lo, depois retiram a queixa e não levam adiante o processo que poderia resultar em uma punição. Mas mesmo assim, é importante fazer a denúncia. Ela é um momento de ruptura em que a mulher se desloca da condição de opressão/submissão, admite que sofre violência e precisa de ajuda. Pode significar também um primeiro passo para o seu “empoderamento” e mudança da relação. Por isso, é fundamental que por ocasião da denúncia ela tenha um bom acolhimento e seja devidamente orientada sobre seus direitos e necessidade de buscar apoio social, familiar, jurídico e psicológico para sair da situação de violência.
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Endereço para correspondência
Maria de Fátima Araújo
E-mail: fatimaraujo@uol.com.br