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Psicologia para América Latina

 ISSN 1870-350X

     

 

Género y Equidad Social

Evaluación Psicológica como instrumento de acceso a la justicia en el contexto de la ley Maria da Penha (Ley 11.340/2006)

 

 

Madge PortoI; Maria Liliane Gomes dos SantosII; Manoel Felix Araripe LeiteII

I Universidade Federal do Acre - UFAC - (Brasil)
II Universidade Federal do Acre e Faculdade da Amazônia Ocidental - (Brasil)

 

 


Resumen

Este estudio es resultado de una encuesta cualitativa en Psicología, que tenía como reto inicial conocer los documentos producidos por psicólogos en el contexto de la Ley Maria da Penha, con base en la resolución nº 007/2003 Consejo Federal de Psicología – CFP. Al constatar la ausencia de documentos producidos por psicólogos en los procesos estudiados, y delante de la imposibilidad de realizar el  análisis pretendido, se ha optado por hacer el análisis de las sentencias producidas por los magistrados, en los cuales fue posible verificar un número representativo de absorbiciones que asociamos a la ausencia de instrumentos que posibilitasen la materialización de los crímenes, en especial de la violencia psicológica. Se destaca  por lo tanto, la no visibilidad de este recurso por parte de los operadores de Derecho, mientras instrumento importante, capaz de aportar informaciones y aclarar duda en los casos de violencia contra la mujer, bien como la evaluación psicológica como instrumento importante en el proceso de efetivación de la ley y del pleno acceso de las mujeres a la ciudadanía.

Palabras clave: Evaluación Psicológica, Violencia Domestica, Ley Maria da Penha, Derecho y Género.


Resumo

Este estudo é resultado de uma pesquisa qualitativa em Psicologia, que tinha como objetivo inicial conhecer os documentos produzidos por psicólogos no contexto da Lei Maria da Penha, com base na resolução nº 007/2003 Conselho Federal de Psicologia - CFP. Ao constatar a ausência de documentos produzidos por psicólogos nos processos estudados, e diante da impossibilidade de realizar a análise pretendida, optou-se por fazer a análise das sentenças produzidas pelos magistrados, nas quais foi possível verificar um número representativo de absolvições que associamos à ausência de instrumentos que possibilitassem a materialização dos crimes, em especial da violência psicológica. Destaca-se, portanto, a não visibilidade deste recurso por parte dos operadores do Direito, enquanto instrumento importante capaz de fornecer informações e esclarecer dúvidas nos casos de violência contra a mulher, bem como a avaliação psicológica como instrumento essencial no processo de efetivação da lei e do pleno acesso das mulheres à cidadania.

Palavras-chave: Avaliação Psicológica, Violência Doméstica, Lei Maria da Penha, Direito e Gênero.


Abstract

The present study is the result of qualitative research in psychology, the initial objective of which was to become familiar with documents produced by psychologists in the context of the Maria da Penha Law based on Resolution nº 007/2003 Federal Psychology Council. With the absence of documents produced by psychologist in state processes and the impossibility of performing the intended analysis, the option was made to perform an analysis of the sentences pronounced by judges, in which a representative number of acquittals were found, which we associate to the lack of instruments that enable the materialization of crimes, especially psychological violence. Thus, the non-visibility of this resource is evident among the operators of the law as an important instrument capable of providing information and clarifying questions in cases of violence against women as well as psychological evaluation as an important instrument in the process of enforcement of the law and the full access of women to civil rights.

Key words: Psychological Evaluation; Domestic Violence; Maria da Penha Law; Law; Gender.


 

 

Este estudo, inicialmente, pretendia conhecer os documentos produzidos por profissionais da Psicologia no contexto dos processos judiciais enquadrados na Lei 11.340/2006, chamada Lei Maria da Penha. Isso porque:

Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos adolescentes. (Brasil, 2006) (grifo nosso)  

Nesse contexto, entendemos que o profissional da psicologia é um dos integrantes da equipe de atendimento multiprofissional, mesmo a lei não fazendo essa referência diretamente. Esse entendimento se apóia em dois argumentos: a equipe chamada multiprofissional tanto no Sistema Único de Saúde - SUS quanto no Sistema Único da Assistência Social - SUAS contam com a participação de profissionais psicólogos; e a própria Lei 11.340/06 em seu artigo 7º defini, entre outros tipos de violência:

...II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; [...] (grifo nosso)

Nesse sentido, é pertinente a participação do/a psicólogo/a como parte da equipe, considerando que a Lei 4.119 de 27 de agosto de 1962 em seu artigo 13 refere que realizar um diagnóstico psicológico é função privativa de psicólogos/as (Brasil,1962). O que já ocorre nas Varas de Família. Dessa forma, considerou-se que seria importante analisar os documentos que estariam sendo produzidos pelos/as psicólogos/as no contexto da Lei Maria da Penha. Não havia ainda, no período estudado, a implantação do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, contudo, como a lei define a violência psicológica, tinha-se o entendimento que os documentos existiriam nos processos estudados. Considerou-se, para tal, que a violência psicológica para ser identificada ou certificada necessitaria da avaliação psicológica, que possibilitaria o diagnóstico psicológico.

Assim, decidiu-se por uma pesquisa documental realizada nos processos que julgavam situações de violência contra mulheres. Para realizar a coleta de dados foi utilizado um roteiro para pesquisa em fontes cartoriais – instrumento de coleta que tinha como objetivo responder questões relativas a vários projetos de pesquisa, já que trata-se de um estudo realizado por um grupo de pesquisa. O instrumento de coleta foi dividido em três partes: a primeira contendo dados sobre a aplicação de Medida Protetiva de Urgência, a segunda sobre os dados do processo criminal incluindo a cópia da sentença, onde havia os itens que investigavam a existência dos documentos produzidos por psicólogos e sua natureza, e a parte três contendo as informações relevantes sobre o possível uso do recurso, nos casos de condenação.

O instrumento passou por reformulações até que chegasse ao modelo ideal capaz de responder aos questionamentos propostos pelo grupo de pesquisa, a partir de uma aplicação piloto em três processos.

Fazem parte da amostra analisada 15 processos dos 1.945 enquadrados na Lei 11.340/06 no período de setembro de 2006 a agosto de 2007, em uma cidade da Região Norte do Brasil com mais de 300.000 habitantes. O critério para a participação na amostra era o processo ter sentença de mérito. Ao término do trabalho de campo foi feita a tabulação dos dados com a utilização do programa de computador Excel.

A base para a avaliação dos documentos produzidos pelos/as profissionais da Psicologia seria a resolução do Conselho Federal de Psicologia - CFP N.º 007/2003 (CFP, 2003)  que Institui o Manual de Elaboração de Documentos Escritos produzidos pelo psicólogo, decorrentes de avaliação psicológica e revoga a Resolução CFP º 17/2002.         

Contudo, durante a coleta de dados, não foi encontrado nenhum documento produzido por psicólogos/as. Dessa forma, não seria possível fazer a análise pretendida. Todavia, sendo este um estudo que faz parte de um projeto mais amplo, foi possível pensar sobre a avaliação psicológica por outro foco. Fazendo uma análise sobre as sentenças produzidas pelos magistrados/as observou-se uma relação entre a absolvição e a falta do exame de corpo de delito. Assim, optou-se por apresentar uma discussão sobre a ausência da avaliação psicológica que foi identificada no contexto da lei Maria da Penha e as conseqüências disso para a efetivação do acesso à cidadania para as mulheres vítimas de violência.        

Por fim, é importante destacar que a análise a ser apresentada é do ponto de vista da Psicologia, não há a pretensão de uma discussão que questione o mérito da ciência ou da técnica jurídica. Pretende-se avaliar, a partir do olhar da ciência psicológica, lacunas no processo de aplicação da lei que dificultam a promoção da cidadania das mulheres em situação de violência, considerando uma compreensão da situação da violência a partir de uma perspectiva de gênero (Fontes e Neves, 1992) ou uma noção de gênero (Schraiber et al, s/d), ou seja, entendendo as decisões e o discurso dos magistrados como uma produção social, construída num sistema que tem percepções distintas para os papéis de homem e mulher na sociedade e que essas diferenças podem ser percebidas ou podem estar invisibilizadas, naturalizadas para aqueles que aplicam a lei.  

 

A Avaliação Psicológica no Brasil

A avaliação psicológica é um tema complexo, pois dentro da própria categoria é objeto de várias críticas apesar de ser uma intervenção específica e limitada aos psicólogos/as (No início ..., 2005).

Para Noronha (2006), a avaliação psicológica é uma atividade imprescindível ao profissional de psicologia, uma vez que a atuação pressupõe a realização prévia de um conhecimento do sujeito e do problema, de forma que as intervenções sejam procedentes e adequadas. A necessidade de uma reflexão sobre a formação em avaliação psicológica no Brasil é percebida por ela ao analisar as ementas de vários cursos de graduação, nas quais observa fragilidade da formação e necessidade de mudanças, pois associa esta realidade às dificuldades dos psicólogos/as adequarem instrumentos a diferentes campos profissionais, como também a falta de domínio técnico fundamental para o uso desse instrumento.

A psicologia vem contribuindo de modo significativo em casos judiciais, porém é identificada a necessidade de adaptação dos instrumentos e técnicas de investigação psicológica ao contexto forense, e uma preocupação com a forma dos documentos que serão produzidos pelos psicólogos dessa área, inclusive quanto à diferenciação do psicodiagnóstico no contexto clínico e no contexto judicial forense, considerando que a investigação psicológica neste último exige do profissional a familiarização com a terminologia jurídica, bem como o domínio  de conhecimentos específicos da área.(Noronha , 2006)     

Contudo, no contexto da violência contra a mulher, há uma lacuna importante com relação à avaliação psicológica observada por Cruz:

No prazo das diligências, foi requerida pela assistente de acusação a realização de um laudo psicológico a fim de verificar as seqüelas apresentadas pela vítima. Infelizmente, não há exame psicológico específico às vítimas de violência sexual na área criminal, conforme justificado nos autos, através dos serviços disponíveis no Foro Central de Porto Alegre. O laudo psicológico realizado, portanto, não serviu à finalidade devida. (Cruz, 2002, p. 184)

Apesar de essa lacuna específica existir, e de todas as críticas relativas à preparação técnica dos profissionais, a Psicologia apresenta um acúmulo teórico e técnico, enquanto Ciência e Profissão, para assumir a demanda colocada pela Lei 11.340/2006. Os/As psicólogos/as têm condições de apresentar um laudo com o fim de oferecer uma avaliação dos casos que forem necessários, embora não exista esse exame específico como a autora entende ou imagina que deveria existir. A Resolução 07/2003 (CFP, 2003) apresenta de forma detalhada os instrumentos que viabilizariam, por exemplo, a materialização da prova de possíveis seqüelas dos tipos de violência e em especial da violência psicológica nas vítimas.  

 

O exame pericial no contexto da lei Maria da Penha

Nos casos de violência contra a mulher encontramos uma realidade particular, pois, enquanto a Lei N.º 11.340/2006  tipifica o dano psíquico como forma de violência doméstica contra a mulher, de uma forma geral, os operadores do direito não concebem este tipo de ocorrência como violência, promovendo entraves desde o primeiro momento em que a mulher procura ajuda numa delegacia. Os policiais civis vêem a violência por três ângulos de responsabilidade: social, familiar e individual, os quais constituem elaborações resultantes de suas vivências, porém, em nenhum momento são citadas as formas de violência moral e psicológica que agora já estão previstas na Lei nº 11.340/06. (Anchieta e Galinkin, 2005)

A violência psicológica, a violência moral e a violência patrimonial não deixam marcas corporais, porém podem ser tão graves quanto as várias formas de agressão física que causam lesões e seqüelas corporais:

Há mulheres que, não obstante jamais terem sofrido violência física ou sexual, tiveram suas roupas ou seus objetos de maquiagem ou seus documentos rasgados, cortados, inutilizados. Trata-se de uma violência atroz, uma vez que se trata da destruição da própria identidade destas mulheres. Sua ferida de alma manifesta-se no corpo [...]. São levadas ao pronto socorro, saindo de lá com receita de calmante [...]. Um profissional psi faria um diagnóstico inteiramente distinto. (Saffioti, 2004, p.111)

As mulheres que sofrem violência psicológica acabam contando com um único recurso para comprovar a agressão, a avaliação de um profissional da psicologia, principalmente quando a violência é psicológica ou traz danos também psicológicos.

O exame psicológico possibilita a análise de seqüelas nas vítimas - o chamado transtorno de estresse pós-traumático e, em conjunto com o depoimento coerente da vítima e com outros elementos dos autos, pode ser prova fundamental na condenação de um delito sexual. (Cruz, 2002)

Assim, a ausência de documentos produzidos por psicólogos/as nos processos analisados provoca a necessidade de um debate sobre a ausência da avaliação psicológica no contexto da lei Maria da Penha e as conseqüências para a efetivação da lei e o pleno acesso das mulheres à justiça e a uma vida sem violência.  

 

O que revela a ausência dos laudos psicológicos

No decorrer da coleta dos dados não foi encontrado nenhum documento escrito produzido por psicólogo. Este resultado surpreendeu os/as pesquisadores/as, pois se tinha uma expectativa de encontrar tais documentos considerando que a lei define a violência psicológica. Nesse contexto, a análise se deteve às 15 sentenças dos processos participantes da amostra.

A ausência de documentos produzidos por psicólogos leva a crer que os instrumentos periciais oferecidos pela Psicologia ainda não são percebidos pelos magistrados como elemento importante que possa ser capaz de fornecer informações e esclarecer dúvidas nos casos de violência psicológica, moral ou mesmo como seqüelas das violências física, sexual ou patrimonial. Dessa forma, a lei prevê a violência psicológica como crime, mas não há a utilização, pelos operadores do direito, das formas de detectá-la, de provar que esta ocorreu. Nessa perspectiva desconsidera-se também o direito da vítima de ser ouvida por um psicólogo e contar com a participação deste na constatação de provas que pesem a seu favor. Para Mirin (2006), essa possibilidade de falar faz uma grande diferença na vida psíquica das mulheres, pois a partir desse momento elas ganham o olhar do outro. Há o reconhecimento pelo outro do sofrimento das mulheres com relação à questão da violência.

Por meio de técnicas e de procedimentos psicológicos com poder persuasório, juízes e tribunais poderão colher informações fidedignas e resultados seguros acerca dos fenômenos da sensação, da percepção, da memória, das tendências afetivas e dos fatores conscientes e inconscientes que integram o processo de constituição e interpretação da vida psíquica e do testemunho. (Hespanha, 1996, p. 93)

A cultura patriarcal deixou sua marca profunda nas relações de gênero, de modo que concepções machistas e não igualitárias continuam a dinamizar formas de discriminação da mulher e persuadir nas representações sociais de uma maneira geral. O senso comum, elemento que também define as representações sociais (Minayo, 1995), e que, nesse caso, apresenta que as mulheres terão garantias de sua cidadania caso se "comportem' dentro das referências do patriarcado, se destaca nessas sentenças. Esta observação torna preocupante o caráter da análise feita pelos operadores do direito por conta dos valores envolvidos nessa interpretação, como pode-se perceber a seguir:

[...] o comportamento da vítima em muito contribuiu para o evento, posto que admitiu que outro homem dormiu em sua casa, muito embora negue que tenha com ele mantido relacionamento sexual àquela época... (Sentença 04)

Esse tipo de interpretação apresenta, no discurso dos juízes, que a suposta infidelidade feminina justificaria a violência por parte do parceiro, elemento que a Lei 11.340/2006 não comporta, mas que continua presente na subjetividade daquele que julga. Ser mulher, portanto, ainda é um fator de discriminação que se reflete nas práticas sociais e institucionais, em especial no acesso à justiça, pois "... É possível afirmar que o caminho de uma decisão judicial pode variar de acordo com as concepções e ideologias dos operadores do direito (...)" (Cruz, 2002, p. 187). Caberia aqui a observação feita por Lopéz (2007) de que às vezes é mais interessante para o advogado conhecer a psicologia dos juízes que a psicologia de seus clientes, reconhecendo assim a influência da subjetividade nas práticas desses profissionais.  

Em plena vigência da Lei Maria da Penha há magistrados julgando com parâmetro na lei nº 9.099/95 (Brasil, 1995), cujos crimes de violência doméstica são qualificados enquanto crimes de menor potencial ofensivo.

De outra parte, compulsando os autos verifica-se que a "ameaça" teria sido proferida no meio de uma discussão familiar, onde o clima de exaltação reinava entre os contendores (réu e vítima). A ameaça proferida no calor do litígio conjugal não caracteriza do crime, eis que não há seriedade na promessa do mal injusto, mormente quando o casal litigante encontrava-se com os ânimos exaltados. (Sentença 10)

Essa não observância das especificidades da lei 11.340/2006 e os princípios da presunção da inocência e de que na dúvida beneficia-se o acusado funcionam para beneficiar o réu, o que determina o grande número de absolvições. Todavia, a inexistência de exames periciais em favor da vítima, que pudessem funcionar como materialização do crime em questão, dentre outros agravantes percebidos na análise das sentenças, acaba por reproduzir um cenário de injustiça. O que vem confirmar o discurso adotado por Cruz (2002) ao afirmar que os casos de violência doméstica contra a mulher são tratados freqüentemente como exercício regular de direito pelos operadores do direito, cuja punição, muitas vezes, é aplicada em medidas inversamente proporcionais à gravidade dos fatos, devido ao seu contexto doméstico.

Nesse contexto, destaca-se a relação entre absolvição e a falta do laudo que poderia provar a materialidade  do crime. Nos casos estudados há uma maioria de absolvição nos crimes de lesão corporal e ameaça (dezessete absolvições, oito condenações e uma desistência)1 e o argumento recorrente é a necessidade de provar que houve a agressão física ou a ameaça, que se caracteriza como a intenção de perturbar, amedrontar, intimidar. É necessário que haja a prova de que a agressão trouxe conseqüências para a vítima, como alguma seqüela no corpo, no caso da lesão corporal. Contudo, no caso da ameaça é necessário que se prove que o acusado tinha a intenção de perturbar a tranqüilidade ou a liberdade:

[...] fica difícil convencer acerca da autoria atribuída ao acusado, pois existem enormes dúvidas se realmente ele agrediu a vítima ou apenas tentou se defender de suas agressões... (Sentença 09)

Quanto ao delito de violação de domicílio, não resta dúvida de que o acusado foi encontrado dentro da residência da vítima, mas em visível estado de embriaguez alcoólica, de modo que não havia em sua atitude a intenção velada de perturbar a tranqüilidade ou a liberdade individual de sua ex-companheira, inexistindo, portanto, o dolo específico. (Sentença 06)

Na sentença 06, o magistrado tem a prova que houve a violação do domicílio, mas esta é minimizada devido à embriaguez. Nesse momento, a intenção em perturbar, que daria a condição de crime, não é considerada e ainda, do foco do agressor e não da vítima, justifica que esta não teve sua tranqüilidade perturbada ou sua liberdade pessoal violada, mesmo tendo sua casa invadida. Há uma avaliação sobre o estado subjetivo da vítima feita pelo próprio juiz. Assim, o julgamento se apóia em concepções e valores onde o homem tem direitos sobre a mulher, o que justificaria o não respeito à privacidade, podendo invadir a casa dela e não existir uma avaliação da dimensão desta invasão para esta mulher e nem mesmo da intenção do homem em perturbá-la e amedrontá-la. A ação é naturalizada tendo com base as concepções dos papéis de homem e mulher numa cultura patriarcal.

Diante desses textos escritos ou ratificados pelos magistrados em suas sentenças, algumas questões se destacam. A materialização do crime ainda é pensada exclusivamente do ponto de vista físico, ou seja, de provar que houve conseqüências da violência no corpo desconsiderando a violência psicológica, patrimonial e moral que própria Lei 11.340/2006 define no Art. 7º.

Para comprovação, pelo menos da violência psicológica, seriam necessários laudos/relatórios ou perícias que permitissem identificar os efeitos da agressão psicológica, através, por exemplo, da avaliação psicológica ou identificação do estresse pós-traumático (Porto e Costa, 2005; Cruz, 2002, Carpenito, 1999) que poderiam materializar as conseqüências das agressões psicológicas e da violência patrimonial, além das possíveis conseqüências psicológicas das lesões físicas leves e das ameaças. Isso porque, a cotidiana submissão às agressões verbais e/ou físicas mesmo leves, ao longo do tempo, pode trazer seqüelas graves de ordem emocional – e frequentemente trazem - como somatizações, depressão e até suicídio (Porto, 2002, D'Oliveira e Schraiber, 2000). As marcas da alma são de uma ordem diferente das marcas do corpo (Saffioti, 2004) e para serem identificadas precisam ser percebidas em suas peculiaridades e não enquadradas nos modelos já estabelecidos.              

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atuar frente à violência contra as mulheres exige entender e desconstruir os valores culturais e as representações que a sustentam, caso contrário, os esforços para o acesso efetivo à cidadania serão reduzidos a uma política remediativa que age depois da consumação da violência (Mirim, 2006).

É urgente a necessidade de pensar uma formar de julgar considerando as mulheres como sujeitos de direito. Não é mais aceitável que as mulheres fiquem sem justo julgamento porque os entendimentos da lei, ou as técnicas jurídicas em sua aplicação destituem as mulheres de sua cidadania por minimizarem as ações de violência quando cometidas no âmbito doméstico, principalmente quando se têm recursos técnicos para oportunizar às mulheres agredidas formas de promover a materialização da prova do crime; uma lei que oferece o entendimento do crime como de características específicas, precisando ser assim compreendido; e, por fim, uma Constituição que assegura igualdade e divisão das responsabilidades perante a família.

O laudo ou relatório psicológico assim como o parecer psicológico poderiam trazer uma importante contribuição para o acesso à justiça e à cidadania das mulheres nos crimes objeto da Lei Maria da Penha. A materialização da violência psicológica, considerada pelas mulheres em muitos casos, mais agressivas e de seqüelas mais profundas (Saffioti, 2004), é um desafio para o Poder Judiciário. Será necessário afastar-se do senso comum de que as questões da subjetividade são de entendimento pessoal e com significados pré-estabelecidos por uma cultura patriarcal. Faz-se necessário a abertura de um diálogo do Poder Judiciário com a Psicologia de forma a se promover a efetividade da lei Maria da Penha.            

Além da implantação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com as equipes multiprofissionais organizadas e treinadas, será necessária a percepção das violências psicológica, moral e patrimonial como crimes que marcam as mulheres em suas subjetividades. Dessa forma, precisam ser visibilizados a partir dos instrumentos oferecidos pela Psicologia. Sem uma construção coletiva, e não restrita apenas ao Poder Judiciário e à Psicologia, não será possível estabelecer as novas referências necessárias para a efetivação da Lei 11.340/2006. Há que se estabelecer formas para materializar as provas dos crimes previstos na Lei e a Psicologia oferece o instrumental necessário e suficiente para tal. Assim, a Psicologia pode promover sua contribuição para o estabelecimento da efetiva cidadania das mulheres tendo seus direitos de pessoa humana assegurados.  

 

REFERÊNCIAS

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1 Vale esclarecer que apesar da análise se restringir a apenas 15 processos com sentença de mérito, há 17 vítimas, pois em alguns processos existiam mais de uma vítima, e 26 situações diferentes julgadas.

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