24Pasión y experiencias afectivo-sexuales en jóvenes portugueses 
Home Page  


Psicologia para América Latina

 ISSN 1870-350X

     

 

ARTIGOS

 

Metodologia de pesquisa em psicossociologia: Estudos sobre o campo religioso afro-brasileiro a partir dos estudos pós-coloniais

 

 

Sônia Regina Corrêa Lages1

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta uma reflexão sobre a necessidade de inserir o pensamento pós-colonial e os estudos subalternos na pesquisa em psicossociologia, justificada pela busca da consolidação de novas abordagens metodológicas que guiem a tradução das narrativas de auto-representação das minorias sociais. Ilustram essa discussão os textos de duas mulheres médiuns, filiadas à religião afro-brasileira da Umbanda a respeito das entidades do Preto-velho e da Pomba-gira. Tais narrativas mostram a inscrição das vozes subalternas, tanto na superação da história de opressão e marginalização sociocultural, como na denúncia dos mecanismos opressivos que construíram e constroem a condição subalterna.

Palavras-chave: estudos pós-coloniais, metodologia, psicossociologia, vozes subalternas, campo religioso afro-brasileiro.


RESUMEN

Se presenta una reflexión sobre la necesidad de insertar el pensamiento poscolonial y los estudios subalternos en la investigación en psicosociología, justificada por la búsqueda de la consolidación de nuevos abordajes metodológicos que guíen la traducción de las narrativas de autorepresentación de las minorías sociales. Ilustran esta discusión los textos de dos mujeres médiums, afiliadas a la religión afrobrasileña Umbanda, al respecto de las entidades Preto-velho y Pomba-gira. Tales narrativas muestran la inscripción de las voces subalternas, tanto en la superación de la historia de opresión y marginalización sociocultural, como en la denuncia de los mecanismos opresores que construyeron y construyen la condición subalterna.

Palabras clave: estudios poscoloniales, metodología, psicosociología, voces subalternas, campo religioso afrobrasileño.


ABSTRACT

This article presents a reflection about the necessity to insert post-colonial thought and subaltern studies in psycho-sociological researches, aiming to consolidate new methodological approaches that may guide the translation of self-representation narratives of social minorities. This discussion is exemplified by texts of two medium women, members of African-Brazilian religion Umbanda. Those texts deal with the spiritual entities "Preto-velho" and "Pomba-gira". Such narratives show the inscription of subaltern voices, both in overcoming the history of social-cultural oppression and marginalization and in denouncing oppressive mechanisms that built and build the subaltern condition.

Keywords: post-colonial studies, methodology, psycho-sociology, subaltern voices, african-Brazilian religious field


 

 

Introdução

Apesar do constante esforço da ciência em manter seu status de conhecimento único, fundado no dualismo reducionista que divide o mundo entre natural/artificial, observador/observado, natureza/cultura, mente/matéria, subjetivo/objetivo, uma outra ciência emergente tenta superar essas dicotomias. Essa tentativa de superação tem sua gênese no reconhecimento da diversidade epistemológica do mundo, que é também cultural e ontológica, e que se traduz em múltiplas concepções de ser e estar no mundo (Santos, 2008).

O contexto cultural, que enraíza esses debates, é calcado pelo descentramento do sujeito unificado que observa suas velhas identidades sendo fragmentadas e deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas, abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (Hall, 2001). Esse descentramento é fruto, e, ao mesmo tempo, ocasiona um intenso movimento que se refere aos processos que atuam numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações, provocando um distanciamento da ideia sociológica clássica de sociedade como um sistema bem delimitado.

Nesse panorama, ganha centralidade a diversidade cultural, tornando visível e dando voz a grupos sociais antes invisíveis e silenciosos, diante de um complexo aparato epistemológico e metodológico que designou a si mesmo a propriedade de falar, explicar e representar esses contingentes. São os estudos pós-coloniais no campo teórico das ciências humanas e sociais, que hoje propõem teorizações que possibilitam uma etnografia das expressões culturais contemporâneas. Tais estudos, questionando as bases clássicas das ciências sociais, exigem a reformulação das pesquisas nos campos das ciências humanas e sociais. Diante disto, cabe à psicossociologia responder ao desafio colocado por esses estudos na construção de uma episteme e metodologias que deem voz às populações que, até então, são interpretadas pela ciência moderna que detém o privilégio epistemológico e que "pressupõe que a ciência é feita no mundo, mas não é feita de mundo" (Santos, 2008, p. 138).

É a partir dessas reflexões que segue o presente texto, o de apresentar elementos que possam problematizar e apontar caminhos para a pesquisa em psicossociologia. O campo de análise é o das religiões afro-brasileiras, e particularmente aqui, o da Umbanda.

As narrativas que ilustram o presente texto são fragmentos de uma pesquisa realizada no doutorado da autora (Lages, 2008). A pesquisa foi realizada no terreiro de Umbanda Caboclo Pena Branca, na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais.

A metodologia de pesquisa fez uso da entrevista semi-estruturada e da análise do discurso como ferramenta de interpretação das narrativas, sendo que esta se apoia nos estudos culturais pós-coloniais, que enfatizam a necessidade de colocar em perspectiva os conhecimentos que foram desqualificados pela episteme colonialista.

 

A emergência dos estudos pós-coloniais

Os chamados estudos culturais pós-coloniais (Said, 1989; Spivak, 1993; Bhabha, 1996; Hall, 2003; Santos, 2008), que não possuem uma matriz teórica única, de uma forma geral, colocam em pauta a necessidade de desconstruir os modelos que dão centralidade à cultura nacional europeia. Estes modelos têm sido utilizados como referência na análise dos processos de transformações sociais ocorridos nos países ocidentais do sul, como naqueles denominados de orientais e se referem à urgência do reconhecimento que condições históricas e políticas vincularam a construção da alteridade ao regime colonial de subalternidade. Eles apontam que a superação da subalternidade exige que os signos utilizados pelo dominador, sejam despidos do olhar etnocêntrico com que foram construídos, de forma a denunciar as estigmatizações, historicamente engendradas, utilizadas para a negociação do poder, do reconhecimento social e da distribuição da riqueza acumulada pela sociedade.

Com o olhar sobre o campo etnográfico brasileiro, Carvalho (2001) diz que as ciências sociais, precisam responder aos desafios colocados pelos estudos culturais e inscrever as vozes anônimas ainda não inscritas no cânone, de dar visibilidade ao que foi silenciado ou interpretado de acordo com os modelos teóricos (europeus) que serviram de base para a análise dos estudos relacionados ao campo daquelas ciências. Trata-se de produzir gramáticas que possam ser utilizadas num caminho emancipatório das comunidades colocadas à margem do sistema.

Em sua avaliação crítica à recepção e reprodução dos saberes forjados nos países centrais e estendidos ao olhar etnográfico dos países periféricos, o autor retoma Derrida (1971) e argumenta que não foi colocado em questão o próprio olhar do dito "primitivo". Este foi considerado como sendo imediato, direto e irreflexivo.

A partir do momento que o ocidente construiu uma imagem diante do resto do mundo como sendo a única cultura capaz de realizar tal movimento de abertura e auto-desdobramento, o nativo só tem como argumentar sua alteridade a partir do modelo imposto por essa construção imperialista. Isto quer dizer que os antropólogos se depararam com a tarefa de terem que inscrever-se a si mesmos e seus nativos, naquelas formulações etnocêntricas. O projeto de universalizar a disciplina passou, então, a somar-se a um projeto neocolonial de ocidentalização do mundo (Carvalho, 2001).

Os debates contemporâneos que hoje atravessam todo o saber acadêmico diante de tal questão abarcam todas as suas disciplinas e consistem na tarefa de "descolonização das paisagens mentais, a qual implica uma revisão radical dos seus cânones, tanto teóricos como temáticos" (Spivak, citado en Carvalho, 2001).

Essa descolonização solicita que o objeto seja auto-representado, que seja ele o autor de seu próprio texto, deixando a cargo do leitor lidar com o emaranhando de contradições e ambiguidades que falam tanto da reprodução como da superação dos pressupostos homogeneizantes, que tentam há séculos, tornar espelho do ocidente civilizado, os povos que foram colocados no lado sul da cartografia colonial.

E é nesse sentido, o de fazer com o que o texto do pesquisado altere os sistemas de representação que o fixa em espaços marginais, que consiste o desafio da pesquisa em psicossociologia. Sua metodologia deve proporcionar uma atitude e prática teórica que seja caracterizada pela emancipação do lugar do observado, no sentido de que ele possa narrar os eventos a partir de seu próprio ponto de vista.

 

A busca metodológica da voz subalterna

A psicossociologia, caracterizada pela complexidade de sua interdisciplinaridade e por uma trajetória um tanto conturbada, tanto pela construção de uma episteme que atenda suas necessidades como de metodologias que orientem sua prática, encontra-se mergulhada hoje num contexto de mudanças paradigmáticas que exigem dela novos reposicionamentos.

Isto quer dizer, que ela deve dar sua contribuição no sentido de construir novos conceitos e estratégias epistemológicas de complexidade e de interdisciplinaridade, que atenda à nova conjuntura sociocultural, se posicionando de forma crítica na agenda das lutas emancipatórias, anti-opressivas, descolonizando suas teorias e práticas, como coloca Spivak. Essa descolonização exige que seja colocado à amostra, como argumenta Carvalho (2001), a barbárie inerente e fundante dos textos monumentais do colonizador e aquela produzida pelos sujeitos em processo de descolonização: migrantes e exilados indianos, chicanos, africanos, asiáticos, etc., os quais acusam, na sua própria natureza híbrida, a barbárie-monumento que os antecedeu e inspirou. Ou seja,

do ponto de vista do texto cultural gerado ou enunciado diretamente pelos grupos sociais submetidos ao poder colonial (ou neocolonial), busca-se ressaltar sua capacidade cognitiva de devolver uma imagem do colonizador construída a partir da experiência do grupo dominado. É possível supor que o processo criativo, nesses casos, seja tão inconsciente e intuitivo quanto o experimentado pelos autores cúmplices com a ordem imperial. (Carvalho, 2001).

O autor chama atenção para o que os estudos pós-coloniais destacam: a busca por estratégias que desnudem os silêncios que foram impostos nas narrativas históricas dos povos dominados, contra sua vontade, pelos poderes opressores e que estes, tendo sido muito cruéis, fizeram com que fossem banidos da consciência. Essa atitude pode ser compreendida como uma das formas de continuar sobrevivendo diante das barbáries.

Mas isto não significa incapacidade de ação, alienação social, indiferença, esquecimento. A psicologia, pela própria natureza da disciplina, possui todo um aparato teórico e prático capaz de fazer suscitar dos escombros o lado adormecido da consciência humana.

Por sua vez, Santos (2008) diz que a ciência moderna não é a única forma de explicação da realidade e que não há razão científica para considerá-la melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da poesia ou da arte. Diz ele: "a razão por que privilegiamos hoje uma forma de conhecimento que assenta na previsão e no controle dos fenômenos nada tem de científico. É um juízo de valor" (p.139).

Se por um lado, essas transformações assolam o mundo das ciências, no contexto sociocultural outras ocorrem, inaugurando um novo sujeito. Recebe destaque aqui aquelas decorrentes do multiculturalismo, evidenciado pelo processo de globalização a partir da década de 80.

Juntamente com as tendências homogeneizantes da globalização, diz Hall (2003, p. 60), existe a "proliferação subalterna da diferença". No entanto, essa subalternidade, na linha do autor, não se enquadra no clássico binarismo iluminista tradição/modernidade. Não se trata da forma binária de diferença entre o que é absolutamente o mesmo e o que é absolutamente o "Outro".

Tomando de empréstimo de Derrida, o termo différance, Hall o utiliza para descrever este processo, afirmando que as estratégias de différance não são capazes de inaugurar formas totalmente distintas de vida, elas impedem que qualquer sistema se estabilize em uma totalidade inteiramente saturada. Essas estratégias:

Surgem nos vazios e aporias, que constituem sítios potenciais de resistência, intervenção e tradução. Nesses interstícios, existe a possibilidade de um conjunto disseminado de modernidades vernáculas. Culturalmente, elas não podem conter a maré da tecno-modernidade ocidentalizante. Entretanto, continuam a modular, desviar e "traduzir" seus imperativos a partir da base (Hall, 2003, p. 61).

As estratégias de différance produzem um novo tipo de localismo, que não é autossuficiente, mas que surge dentro do global sem ser dele um simulacro. Esse localismo não é um mero resíduo do passado, é algo novo "a sombra que acompanha a globalização: o que é deixado de lado pelo fluxo panorâmico da globalização, mas retorna para perturbar e transtornar seus estabelecimentos culturais" (Hall, 2003, p. 61).

O que decorre disto é a formação de uma relação dialógica mais ampla dos indivíduos e coletivos uns com os outros integrando uma cultura sempre mais mista, traduzida, o que fica bem evidenciado nas diásporas multiculturais e em outras comunidades minoritárias e mistas do mundo pós-colonial. Esse processo recebe é denominado de hibridismo cultural e do qual Hall define, a partir de Bhabha:

Não é simplesmente apropriação ou adaptação; é um processo através do qual se demanda das culturas uma revisão de seus próprios sistemas de referência, normas e valores, pelo distanciamento de suas regras habituais ou "inerentes" de transformação. Ambivalência e antagonismo acompanham cada ato de tradução cultural, pois o negociar com "diferença do outro" revela uma insuficiência radical de nossos próprios sistemas de significação (Bhabha, 1997, citado en Hall, 2003, p. 75).

Esse conceito produz uma nova lógica, importante para as pesquisas em psicossociologia e que se refere ao fato da inadequação das teorias e métodos que consideram as comunidades como ansiosas por manterem suas tradições e saberes locais. Estes, se algum dia existiram, de forma isenta aos fortes processos migratórios que formaram a nação brasileira desde o período de sua colonização, não mais podem ser considerados como se fossem construídos a partir de si mesmos à revelia do permanente fluxo migratório, tecnológico, turístico, comunicacional, midiático e dos processos histórico-sócios-culturais, pelos quais são atravessados.

Essa lógica multicultural, híbrida, interdependente, libera os indivíduos de seus vínculos com as comunidades originárias predispondo-os a uma constante abertura para com os projetos, valores, saberes de outros espaços culturais.

Diante disto, podemos afirmar que o Brasil, enquanto nação nasceu de forma híbrida a partir dos mais diferentes fluxos migratórios que se dispersaram pelo seu território e se misturaram com a população nativa indígena. Esses fluxos continuam hoje, de forma diferenciada, recebendo migrantes de forma mais incipiente da América Latina, e mais especificamente caracterizado pelos intensos movimentos dentro do próprio país.

A proposta então é que esse hibridismo venha à tona nas pesquisas acadêmicas que revelem tanto os quadros de significações que foram internalizados como possam inscrever o que há de inusitado, genuíno e criativo nas narrativas dos grupos sociais que foram e são oprimidos pelos poderes hegemônicos.

A emergência de uma ciência que coloca o objeto como sujeito e o observador na observação, como disse Santos, devem, pois, guiar o trabalho dos pesquisadores no campo da psicossociologia, possibilitando uma resposta ao desafio de Carvalho, de construir uma metodologia pós-colonial e anti-imperialista.

 

Ilustrando o rompimento dos silêncios nas narrativas

A Umbanda é uma religião afro-brasileira caracterizada pelo sincretismo (possui elementos religiosos kardecistas, católicos, indígenas) e pela possessão. A principal característica da religião é a ausência de um princípio organizador escrito e explícito, capaz de dividir o campo entre a ala dos autênticos –nós– e o grupo dos inautênticos ou os "outros" (Brumana & Martinez, 1991). Tem centralidade nesse campo religioso, os espíritos do Preto e da Preta-Velha, o do Caboclo e o da Criança, que ocupam o lado direito da Umbanda, o dos espíritos iluminados; e aqueles representantes da marginalidade social brasileira, que ocupam o lado esquerdo, denominado Quimbanda, os Exus e as Pomba-giras (que representam os malandros, homicidas, bandidos e prostitutas).

Os Pretos-velhos são entidades representantes dos pretos e escravos no Brasil. Se apresentam no terreiro com o corpo curvado pela idade, falam errado, fumam um cachimbo. São vistos pelos médiuns e fiéis umbandistas como bondosos, paternais, amigos, evocando um estereótipo da aceitação passiva do sistema escravocrata (Ortiz, 1999). Na leitura de Ortiz, o negro para se fazer reconhecer socialmente, não tem outra alternativa senão a de aceitar a única imagem positiva que a sociedade lhe oferece: a humildade. Aos maus tratos recebidos do senhor de engenho, o negro responde com compreensão. Segundo esse autor é "graças a esta malícia dos fracos, que ele se vê recompensado pelo Senhor Deus" (Ortiz, 1999, p. 74). O autor continua, dizendo que como a memória coletiva umbandista coincide com os valores dominantes da sociedade brasileira, ela somente conserva os elementos que estão em harmonia com esta mesma sociedade. O modelo da Umbanda seria, pois, a própria sociedade brasileira, racionalizada e moralizada. (Ortiz, 1999, p. 74).

Birman (1982) também vê na imagem do Preto-velho uma articulação entre a condição de um ex-escravo e a capacidade deste personagem de ser bondoso e generoso. Através desse comportamento, diz a autora, a imagem dos Pretos-velhos é construída atualizando as seguintes oposições: a bondade e a generosidade dos humildes, em oposição ao egoísmo daqueles que estão na posição de senhores e brancos. Neste contexto, os papéis sociais são invertidos, "colocando os humildes como os mais fiéis depositários da ordem, da moral, da sabedoria e dos bons sentimentos que cimentam as relações entre os homens" (p. 27).

Mas a partir da proposta de Carvalho (2001), guiada pelos estudos culturais, a imagem do Preto-velho na Umbanda pode ser ampliada e adquirir outros significados. Vamos ouvir a médium, chamada aqui de Tereza, 70 anos, chefe de terreiro, falar a respeito do Preto-velho:

O Preto-velho que trabalha comigo, ele foi médico homeopata em Roma, na época de Nero. Ele conta sobre a vida dele, que depois encarnou como um filho do Rei no Congo na África, ele era filho de um rei lá, mas naquela época eles roubavam os escravos para o Brasil. Ele veio num navio negreiro, foi escravo na Bahia cortando cana, ele chama Tio Antônio, ele foi escravo, morreu novo porque ele trabalhava com uma corrente no pé amarrado numa pedra. Ele era filho de rei na África, ele conta assim, numa determinada passagem da via dele. Você vê, ele foi médico em Roma na época de Nero, por isso que ele fala assim. Os espíritos vão adquirindo as forças deles, a luz, e eles vão reencarnando.

Tereza exalta o passado cosmopolita e glorioso do Preto-velho que incorpora. Sua bondade, seu cuidado com as pessoas vem da profissão que ele exercia como médico em Roma, atendendo Nero, o rei de Roma.

Ela exalta sua linhagem nobre, negra, quando diz que numa outra vida ele era filho de um rei na África. Atenta, ainda, que o jeito de falar do Preto-velho, se deve ao fato dele ser estrangeiro. São dificuldades com a língua, nada tem a ver com o analfabetismo. Ressalta, pois uma cultura anterior, uma língua anterior, valorizada e falada na África.

A narrativa de Tereza recupera a história dos negros no Brasil lhes dando uma origem digna: ele era um trabalhador e era reconhecido socialmente. A ligação que ela faz do negro com os reis, pode ser compreendida como um empreendimento de caráter simbólico, o de lhe conferir realeza e não num sentido simplificado e concreto, como se referindo ao status social. Ao mesmo tempo, ela denuncia os mecanismos opressivos que fizeram que ele adquirisse a condição subalterna. Fala do roubo dos escravos na África, diz que ele morreu jovem, cortando cana e sua morte prematura está relacionada com a maneira com que ele trabalhava, amarrado com uma corrente nos pés.

Roubo, no sentido de tirar de alguém a identidade, a dignidade, os laços com as origens, com suas tradições. E, é interessante porque a morte do negro não foi devido a uma tortura física. Ele morreu porque estava amarrado a uma corrente. Ela denuncia a violência psíquica, a miséria humana no sentido ontológico. Sua narrativa inscreve no texto a questão da liberdade.

Quanto à entidade da Pomba-gira, ela é considerada como pertencendo à Quimbanda, o lado sombrio da Umbanda e que agrega os espíritos que ainda não alcançaram iluminação. Essa entidade é representada como sendo o espírito de uma mulher que em vida passada teria sido uma prostituta, de baixos princípios morais, empenhada em conquistar os homens com suas proezas sexuais.

Apesar do estereótipo da prostituta e do temor que ela causa às pessoas que frequentam o espaço religioso, a presença da Pomba-gira é uma constante nos terreiros e seus serviços muito solicitados, principalmente aqueles que dizem respeito à vida amorosa e à esfera da sexualidade. Comenta Prandi (1996, p. 141) que "estudar os cultos da Pomba-gira permite-nos entender algo das aspirações e frustrações de largas parcelas da população que estão muito distantes de um código de ética e moralidade embasado em valores da tradição ocidental cristã".

Diz ainda o autor, que Dona Pomba-gira pode ser encontrada nos espaços não religiosos da cultura brasileira: nas novelas de televisão, no cinema, na música popular, nas conversas do dia-a-dia. De fato, parece que a Pomba-gira é das faces inconfessas do Brasil, como aponta Prandi, que camuflada pela mídia e pelas empresas que tentam vender seus produtos invade as bancas de revistas, as propagandas, as novelas, os grupos de pagode, exibindo mulheres praticamente nuas, com olhares sensuais e provocadores, beirando em muitos momentos, a pornografia.

Mas se são essas as representações da entidade, não é assim que ela é vista por Tainá, médium, 35 anos. Diz ela, que a Pomba-gira é um espírito de força e a contrapõe, de forma radical, à concepção que a igreja cristã tem da mulher:

A força da Pomba-gira vem de Deus que criou a mulher. Quando você aprende sobre Deus, você aprende a falar "pai", a gente não fala "mãe". Você não fala "mãe nossa de cada dia seja feita a sua vontade", então você já aprende errado, aprende que Deus é um homem, não aprende que Deus é uma mulher. É questão de conceito, tem muito conceito errado.

É possível verificar no texto de Tainá a denúncia, o confronto e a superação dos atributos destinados às mulheres pelo poder patriarcal social e religioso. Sua fala é altamente transgressora, pois ela filia uma prostituta diretamente a Deus e deixa clara a sua visão de que a educação é veiculadora da opressão: "a gente aprende". Contesta, firmemente, que "tem muito conceito errado". Aprendizagem e conceitos dizem respeito aos processos de socialização promovidos pelas instituições e organizações que buscam a manutenção padronizada dos papéis sociais e a hierarquia social através do status. E, ainda:

No fundo eu acho que toda mulher deveria ser uma prostituta. Que prostituta para mim é o nome mais lindo que deveria receber uma mulher acompanhada do nome de mulher, mãe e prostituta. Embora ele seja um título dado num sentido pejorativo. Mas no meu entender não deveria ser.

O muro que separa a maternidade do desejo sexual tem um outro sentido no dito de Tainá. Por detrás de seu texto está seu entendimento de que isto é "um título dado num sentido pejorativo", demonstrando que apesar do esforço patriarcal de fazer permanecer o muro, ela o desconstrói em suas avaliações. O que o discurso oficial separa, ela junta, superando os binômios criados pelos modelos eurocêntrico etnocêntrico –mulher mãe e mulher prostituta. Mais adiante ela diz que prostituta significa sensualidade:

A gente chama a Pomba-gira, ela ajuda a gente a se enfeitar, a se sentir bonita, a se preparar para fazer amor com o homem da gente. Ela põe fogo e pimenta no casal. Qualquer mulher pode fazer isto, as casadas, as solteiras.

Ela novamente convida as mulheres, independentemente de seu estado civil a experimentarem sua sensualidade através de um ritual que beneficia sua autoestima e sua vaidade. Exaltando o amor entre os casais, ela convoca o que a sociedade cristã-patriarcal expulsa das relações.

 

Considerações finais

A pesquisa em psicossociologia, disciplina que incorpora as concepções teórico-metodológicas das ciências sociais críticas, tem como desafio contemporâneo a integração nos debates sobre as mudanças paradigmáticas que reposicionam o pesquisador tanto no contexto da pesquisa como diante do objeto.

Essas transformações indagam a implicação do pesquisador que desenvolve o seu trabalho de acordo com os pressupostos próprios dos condicionamentos históricos, culturais, políticos e econômicos, do qual faz parte, desconsiderando, na maioria das vezes, os contextos culturais diferentes, particulares, uma vez que pressupõe tendências e processos de índole universal.

Este fato tem sido discutido pelas teorizações presentes nos estudos culturais e subalternos, que chamam atenção para a necessidade de uma critica ao processo de produção do conhecimento cientifico das nações periféricas, que reproduziriam a lógica binária dos colonizadores e dos neo-colonizadores, que separam o ocidente do resto do mundo, desqualificando os conhecimentos dos espaços colonizados, denominando-os de primitivos.

O campo religioso das religiões afro-brasileiras sofreu essa determinação eurocêntrica que acabou se estendendo à psicologia que quase ignorando tal campo de estudos, quando o faz, é considerando a possessão de forma patológica. No entanto, a Umbanda e o Candomblé são ricos em possibilidades emancipatórias, seja de gênero, raça, etnia, orientação sexual, dentre outros. Nas narrativas apresentadas, Preto-velho é um rei, um sábio que trata da saúde das pessoas e a Pomba-gira uma mulher que integra desejo sexual e maternidade. Ambas as entidades, na perspectiva da médium, superam o lugar marginal que lhes foram destinados na sociedade brasileira.

A perspectiva que se propõe, pois, é a de construção de um conhecimento, que orientado pelo pensamento dos estudos culturais pós-coloniais, possa construir novas práticas em pesquisa, que favoreçam a denúncia do engendramento da opressão sociocultural, assim como das possibilidades de sua superação.

 

Referências

Bhabha, H. (1996). Culture's in-between. In: S. Hall & P. du Gay (Orgs.). Questions of cultural identity (pp. 53-60). London: Sage Publications.         [ Links ]

Birman, P. (1982). Laços que unem: ritual, família e poder na Umbanda. Religião e Sociedade, 8, 21-28.         [ Links ]

Brumana, F. G., & Martínez, E. G. (1991). Marginália sagrada. São Paulo: Editora UNICAMP.         [ Links ]

Carvalho, J. J. (2001). O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horizontes Antropológicos, 7(15), 107-147.         [ Links ]

Derrida, J. (1971). A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Hall, S. (2003). Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG.         [ Links ]

Lages, S. R. C. (2008). Mulheres na encruzilhada. Encontros e desencontros no discurso de mulheres possuídas pela entidade da Pomba-gira Cigana na Umbanda. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, UFRJ, Rio de Janeiro.         [ Links ]

Ortiz, R. (1999). A morte branca do feiticeiro negro. São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Prandi, R. (1996). Herdeiros do Axé. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Said, E. (1989). Representing the colonized: Anthropology's interlocutors. Critical Inquiry, 15(2), 205-225.         [ Links ]

Santos, B. de S. (2008). A gramática do tempo: Para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez.         [ Links ]

Spivak, G. (1993). Can the subaltern speak? In: P. Williams & L. Chrisman (Eds.). Colonial discourse and post-colonial theory: A reader (pp. 66-111). Hemel Hemsptead: Harvester Wheatsheaf.         [ Links ]

 

1 sonialages@ig.com.br