Psicologia para América Latina
ISSN 1870-350X
Artículos
Discursos sobre a aprovação da união estável de homossexuais em um grupo de discussão virtual
Fabio Scorsolini-CominI,1, Laura Vilela e SouzaI,2 , Manoel Antônio dos SantosII,3
I Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil
RESUMO
O objetivo deste estudo foi compreender, a partir de uma abordagem construcionista social, de que modo os repertórios interpretativos sobre a união estável entre homossexuais são utilizados em uma rede social. Foram analisados os comentários dos participantes de um grupo de discussão de uma rede social, em resposta à notícia sobre o reconhecimento da extensão para casais homossexuais, da legislação que regula a união estável, publicada no dia 5 de maio de 2011. Nas conversas analisadas, notam-se dois movimentos distintos: a necessidade de uniformização do sentido de família sob a égide religiosa, heteronormativa e pautada na procriação; e a necessidade de abarcar as diferentes possibilidades de definição do que seria uma unidade familiar, o que inclui a efetivação da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Conhecer as repercussões éticas e políticas do uso desses repertórios, que não são neutros, pode ampliar o convite para que outras vozes possam ser cotejadas e trazidas à baila, a fim de que novos sentidos sejam reconhecidos em seu potencial transformador.
Palavras-chave: homossexualidade, gênero, família, construcionismo social.
RESUMEN
El objetivo de este estudio fue comprender, a partir de un abordaje socioconstruccionista, de qué manera los repertorios interpretativos sobre la unión estable entre homosexuales son utilizados en una red social. Fueron analizados los comentarios de los participantes de un grupo de discusión de una red social, en relación a la noticia de la aprobación de la ley que reconoce los matrimonios homosexuales, publicada el 5 de mayo de 2011. En las conversaciones analizadas, se observan dos movimientos distintos: la necesidad de estandarizar la noción de familia, bajo la égida religiosa, el discurso heteronormativo y la procreación; y la necesidad de abarcar las diferentes posibilidades de definición de lo que sería una unidad familiar, lo que incluye la realización de una unión estable entre personas del mismo sexo. Conocer las repercusiones éticas y políticas del uso de esos repertorios, que no son neutros, puede extender la invitación a otras voces, de modo que los significados sean reconocidos en su potencial transformador.
Palabras clave: homosexualidad, género, família, construccionismo social.
ABSTRACT
From a social constructionist approach, the objective of this study was to understand how the interpretative repertoires on the stable union of homosexuals are expressed in a social network. We analyzed the comments of participants in a group discussion of a social network, in response to news about the approval of the law that recognizes gay marriages, published on May 5, 2011. Two distinct movements were noted: the need to standardize the notion of family under the aegis of religion, heteronormative discourse and procreation, and the need to cover the different possibilities of understanding what a family unit is, which includes the realization of stable relationship between persons of the same sex. The possibility of listing the ethical and political implications of these repertoires were pointed out, repertoires that are not neutral, extending the invitation to other voices, so that the meanings are recognized in its transformative potential.
Keywords: homosexuality, gender, family, social constructionism.
As práticas discursivas sobre homossexualidade
Em cada um dos pontos do diálogo que se desenrola, existe uma multiplicidade inumerável, ilimitada de sentidos esquecidos, porém, num determinado ponto, no desenrolar do diálogo, ao sabor de sua evolução, eles serão rememorados e renascerão numa forma renovada (num contexto novo). Não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu nascimento (Bakhtin, 1979/1992, p. 414).
Embora diferentes sentidos sobre o que é considerado, atualmente, como homossexualidade possam ser reconhecidos no tempo longo da história (Spink & Medrado, 2000), a circunscrição de discursos que a reconheçam como uma possibilidade de união e de parentesco, ou seja, da construção de uma noção de família, tem sido incorporada à agenda contemporânea. Esse movimento decorre de diversas mudanças no cenário cultural, tais como a maior visibilidade dos movimentos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros) na mídia, a pressão da sociedade civil em torno do reconhecimento dos direitos dos cidadãos independentemente de suas escolhas afetivas e orientação sexual, bem como do entendimento de que a sexualidade repercute para além da esfera das intimidades, tornando-se uma questão social e que compete, portanto, à esfera pública.
Foucault (1988/1999), na década de 1970, destacava as relações existentes entre sexo e poder, afirmando que, se o sexo fosse reprimido e proibido de ser narrado, o fato de se falar dele já denotaria uma transgressão deliberada. Ao enunciar o sexo como categoria interdita, desordenar-se-ia a lei e antecipar-se-ia a liberdade futura. Esse argumento foucaultiano teve uma implicação direta nas pesquisas sobre a sexualidade e os comportamentos sexuais, na medida em que, ao falarmos das práticas sexuais, estaríamos adentrando um terreno obscuro e minado.
Para além de uma compreensão tipicamente biológica, da qual deriva uma interpretação religiosa, a homossexualidade tem sido construída como uma condição não mais patológica, ligada a distúrbios sexuais ou mentais (Dunker & Kyrillos Neto, 2010), o que vem repercutindo no modo como vem sendo concebida pela sociedade contemporânea (Dias, 2006).
Os movimentos homossexuais, que lutavam pela visibilidade das chamadas "minorias sexuais", ganharam cada vez mais espaço na agenda social com a disseminação da Aids, nas décadas de 1980 e 1990, além das mudanças culturais, que incidiram diretamente sobre a constituição desses grupos e sobre os comportamentos sexuais de um modo geral. Outra evidência dessas mudanças é a não transparência da orientação homoerótica em documentos oficiais e nas próprias releituras acerca do que é família e do que se concebe como sendo a sexualidade (Fine, Laterrasse & Zaouche-Gaudron, 1998; Moscheta, 2004; Mello, 2005; Vecho & Schneider, 2005; Uziel et al., 2006; Salomé, Espósito & Moraes, 2007; Santos, Brochado Júnior & Moscheta, 2007; Uziel, Cunha & Torres, 2007; Kerne & Silva, 2009; Farias, 2010; Scorsolini-Comin & Cecílio, 2011). É também notável o silenciamento sobre a questão da luta pela igualdade dos direitos de cidadania dos homossexuais por parte do legislativo brasileiro.
De acordo com Trevisan (2010), a maior movimentação da sociedade brasileira em torno das temáticas LGBT mostra não apenas um interesse pela inclusão desse público como uma audiência relevante no meio social, mas como uma forma de trazer ao centro uma discussão que sempre esteve à margem, inclusive em relação à produção do conhecimento científico. Nessa discussão, o Brasil vem sendo palco de recentes embates e redefinições acerca das temáticas LGBT, o que não é acompanhado pelo incremento em sua produção científica quando comparado com o contexto internacional. Amparados em uma ampla revisão dos últimos 30 anos, Vecho e Schneider (2005) destacaram que a maior parte dos estudos sobre a temática provém dos Estados Unidos, seguido pelo Reino Unido, Bélgica, Dinamarca, França e Canadá, sendo que o Brasil não é mencionado nesse corpo de literatura analisado, o que implica na necessidade de que mais estudos sejam conduzidos pelos grupos de pesquisa brasileiros, a exemplo do que pode ser vislumbrado em outros países.
Por outro lado, diferentes organizações têm promovido uma aproximação com a temática LGBT, inclusive no que se refere à formação de profissionais das áreas de saúde e ciências sociais, como é o caso do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2008), que publicou uma cartilha chamada Adoção: um direito de todos e todas. Nesse documento, a entidade que representa a categoria dos psicólogos no âmbito nacional discorre sobre a nova lei da adoção e de que modo esse dispositivo ainda não se mostra sensível à adoção por casais constituídos de indivíduos do mesmo sexo, priorizando uma descrição essencialista de família, que pressupõe o seu seio nuclear e a sua matriz fundados em uma unidade heterossexual.
O documento Psicologia e diversidade sexual: desafios para uma sociedade de direitos, outra publicação do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2011), é uma que traz contribuições de diferentes psicólogos e pesquisadores de temáticas LGBT para pensar de que modo a diversidade sexual tem atravessado documentos oficiais e práticas profissionais e também educacionais. Convocando a audiência dos psicólogos para uma sensibilização em torno das questões da diversidade sexual, bem como se preocupando com a construção de referências que permitam balizar possíveis práticas nesse campo, tal entidade promove uma maior visibilidade da discussão, em contraposição ao movimento de psicopatologização que imperava nas práticas psicológicas até há pouco tempo vigentes.
Também o Ministério da Educação, por intermédio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, em parceria com a UNESCO, publicou o livro de Junqueira (2009) Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas, com o objetivo de conscientizar educadores, pais e profissionais da área de educação acerca não apenas do combate à homofobia, mas da necessidade de formar pessoas aptas a discutirem a diversidade em instâncias educacionais, como as escolas. Mais do que isso, compreende-se a escola também como um ambiente de socialização responsável por contribuir com o processo de garantir maior visibilidade das temáticas LGBT (Junqueira, 2009b; Louro, 2009). Dados do Censo Demográfico de 2010, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011), mostram que 60 mil casais do mesmo sexo moram juntos no Brasil. A região Sudeste é a que concentra o maior número de casais homossexuais, em torno de 32202. Em segundo lugar está à região Nordeste, com 12196, seguida das regiões Sul (8034), Centro-oeste (4141) e Norte (3429).
Em relação à homofobia no contexto brasileiro, há projetos de lei em tramitação que definem os crimes resultantes de discriminação por orientação sexual, gênero e identidade de gênero. Esses projetos têm "desencadeado um importante debate acerca do preconceito e discriminação contra a orientação sexual na sociedade brasileira, bem como acerca da liberdade de expressão e da democracia" (Moscheta, 2011, p. 1). Tais projetos têm possibilitado que outras temáticas LGBT ganhem espaço na mídia e sejam alvo das políticas públicas e de acesso à cidadania, como é a questão da união civil entre pessoas do mesmo sexo, que abordaremos a seguir.
A união civil entre pessoas do mesmo sexo no contexto brasileiro
igreja católica. No dia 17 de junho de 2011, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou, em decisão inédita, uma resolução em favor dos direitos dos homossexuais, reconhecendo a igualdade dos indivíduos sem distinção da orientação sexual.
No Brasil, no dia 5 de maio de 2011, em uma decisão unânime e histórica, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu as uniões estáveis de homossexuais. Na prática, isso significa que esses ministros entenderam que casais gays devem desfrutar de direitos semelhantes aos de pares heterossexuais, como pensões, aposentadorias e inclusão do(a) companheiro(a) em planos de saúde. Em outras palavras, tal decisão judicial autorizou não apenas as uniões civis homossexuais, mas também pleitos de pensão e herança.
Essa decisão repercutiu na mídia brasileira e também no âmbito internacional. Países como a Argentina se manifestaram em favor da aprovação da lei. No entanto, movimentos mais tradicionais e conservadores, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), manifestaram publicamente seu repúdio a tal decisão, uma vez que a igreja católica não reconhece que esse tipo de união possa se equiparar à família. Pelo menos ao conceito de família defendido pela igreja, que pressupõe um homem, uma mulher e sua prole, ou seja, que se fundamenta no consentimento matrimonial, na complementaridade "natural" e na reciprocidade entre um homem e uma mulher, abertos à procriação e educação dos filhos.
No dia 28 de junho de 2011, considerado o dia Internacional do Orgulho Gay e da Consciência Homossexual, ocorreu o primeiro casamento homoafetivo do Brasil, na cidade de Jacareí, SP. Amparado por decisão do juiz da 2ª Vara da Família e das Sucessões desse município. Os noivos estavam juntos havia oito anos e viviam em regime de união estável. Tal decisão foi tomada após parecer favorável do Ministério Público de São Paulo. Em termos legais, com o casamento os cônjuges ganham respaldo jurídico para o reconhecimento do direito à sucessão, para a constituição de patrimônio comum e para o acesso a direitos sociais, como a pensão por morte do cônjuge.
A expectativa é que a decisão do STF, histórica no Brasil, venha facilitar processos como a adoção por casais homoafetivos, em um movimento de reconhecimento progressivo da legitimidade desse arranjo familiar como uma unidade com os mesmos direitos que os casais heterossexuais, produzindo um significativo avanço nas questões relativas à construção da parentalidade (Futino & Martins, 2006; Rodriguez & Paiva, 2009). Na ocasião, foram analisados dois pedidos no julgamento do STF: um deles do então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, para que funcionários públicos homossexuais possam estender benefícios a seus parceiros, e outro, da Procuradoria-Geral da República, para admitir casais gays como "entidade familiar". A decisão do Supremo serve de suma norteadora a ser aplicada em outros tribunais do país para casos semelhantes.
Os discursos sociais construídos em torno da homossexualidade e da união homoafetiva circulam pelos âmbitos midiáticos, impressos ou não, além dos diferentes espaços discursivos relacionados ao meio social, à cultura, à educação, à saúde e às políticas públicas das quais somos parte e as quais também construímos coletivamente ao longo do tempo. No sentido de compreender de que modo esses discursos não estão apenas circulando ininterruptamente, mas oferecendo repertórios interpretativos para a produção de sentidos sobre a homossexualidade e a união civil entre homossexuais no Brasil, o objetivo deste estudo foi compreender os repertórios interpretativos sobre a união estável de homossexuais utilizados em um grupo de discussão virtual.
MÉTODO
Procedimento de construção do corpus de pesquisa e análise de dados
Foram coletados os comentários dos participantes de um grupo de discussão de uma rede social, em resposta à notícia, publicada em 5 de maio de 2011, sobre o reconhecimento, pelo STF, da extensão para os casais homossexuais da legislação que regula a união estável. A notícia, intitulada "Por unanimidade, Supremo reconhece união estável de homossexuais", foi escrita pelo jornalista Maurício Savarese e veiculada no site da UOL Notícias. Segundo informações da UOL, os grupos de discussão e comentários moderados, tais como o analisado neste estudo, só publicam as mensagens do público após avaliação de um profissional do portal de notícias. A moderação impede a publicação ou remove do ar mensagens que estão em desacordo com as regras de uso ou que contenham algum tipo de crime, previstos na página do servidor.
Para extração dos dados online, foi elaborado um formulário para a construção do banco de dados. A extração dos dados foi realizada um mês após a publicação da notícia no fórum de discussão. Inicialmente, todos os comentários disponíveis foram lidos em sua totalidade e transpostos para este banco. Posteriormente, os comentários foram agrupados em categorias temáticas de acordo com seu conteúdo. Desse modo, separamos os comentários em termos dos repertórios interpretativos utilizados, considerando-se os conteúdos de suas falas em torno do apoio ou não à decisão do STF. A análise dos dados foi respaldada no discurso construcionista social (Potter & Wetherell, 1987; Spink, 2004). Foram ressaltados os repertórios interpretativos utilizados no grupo de discussão virtual na produção de sentidos sobre a notícia publicada. Repertórios interpretativos são:
"As unidades de construção das práticas discursivas –o conjunto de termos, descrições, lugares-comuns e figuras de linguagem– que demarcam o rol de possibilidades de construções discursivas, tendo por parâmetros o contexto em que essas práticas são produzidas e os estilos gramaticais específicos" (Spink & Medrado, 2000, p. 47).
Por fim, os repertórios interpretativos foram analisados considerando-se seu contexto de produção na conversa entre os diferentes participantes da discussão online, ou seja, identificando em que medida as mensagens estavam respondendo diretamente à matéria ou a alguma opinião expressa por outros participantes na discussão. Esse movimento foi importante para compreender a qual argumento o participante estava respondendo e a quem o seu discurso era endereçado, ainda que todos os leitores fossem uma audiência.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Considerando o objetivo do presente estudo, emergiram da análise dos dados as seguintes categorias, assim nomeadas: (a) Por um conceito uno de família; (b) Em defesa da legitimidade de outros arranjos familiares; (c) Celebrando a audição de outros sentidos.
Por um conceito uno de família
Nessa primeira categoria agrupamos os repertórios interpretativos em torno de um conceito de família delimitado pela dimensão biológica da procriação, que valida apenas o exercício da heterossexualidade como produtor de uma família, que estaria vinculada, acima de tudo, pela transmissão de características físicas e de papéis sociais de gênero. Prevalece a noção de família como unidade de reprodução, como se a continuidade da espécie só pudesse ser preservada com a impossibilidade de que os homossexuais se unissem, como apresentado na sequência: "Me avisem quando o STF obrigar a natureza a permitir que um 'casal' gay consiga ter filhos através do método natural (relação sexual). Essa eu quero ver!".
Anteriormente a esse fragmento, o participante clama pela liberdade de expressão, pedindo que seja respeitado em sua opinião contrária à lei. Para subsidiar esse apontamento, faz uso do discurso de tradição religiosa que remete à criação do homem por Deus, segundo o Gênesis (Deus criou o homem para a mulher e esta, para o homem).
STF, nos esclareça como vai ser daqui pra frente, eles(as) podem fazer a manifestação a favor da aprovação da lei e nós não podemos manifestar nossa liberdade de expressão, que Brasil é este de liberdade de expressão. Quando eles precisarem de células-tronco, que tentem produzir em laboratórios! Que Deus perdoe vocês que acabaram de aprovar uma lei que amordaça a família e o princípio da criação de Deus. Que vossos filhos e netos não venham a se envergonhar futuramente.
Nesse comentário publicado, a aprovação da união estável entre pessoas do mesmo sexo "amordaça a família", sugerindo um silenciamento de um ideal, no caso, seguindo o discurso heteronormativo que pressupõe o casamento não apenas como um enlace entre pessoas que desejam compartilhar um projeto de vida em comum, mas como uma garantia de perpetuação da espécie humana (procriação) e de manutenção da dimensão supostamente sagrada do relacionamento. Quaisquer arranjos familiares que não estivessem pautados nessa condição heteronormativa poderiam, então, ser questionados. Uma família ou um núcleo familiar composto por pessoas que podem se reproduzir "pelos meios naturais" poderia ser concebido como uma família? Um casal heterossexual e sem filhos seriam uma família? Um casal que adotasse um filho constituiria uma família? Um indivíduo sem qualquer vínculo amoroso com outro e que decide adotar uma criança, constituiria uma unidade familiar? É seguindo esses questionamentos possíveis que outro participante expressa a sua opinião: "Sou casado e optamos por não ter filhos. Casar-se é sinônimo de procriação? Melhor você rever os seus conceitos".
Desse modo, podemos notar uma uniformização da definição de família, mas uma definição que pode e deve ser restrita ao status quo vigente, ao que é normalizado, ao que é aceito de modo mais extensivo, ao que retoma o que é tradicional e não desviante. Tais opiniões podem ser vistas como argumentos em defesa de um posicionamento contrário ao trazido pela notícia e pelo conteúdo da decisão da suprema corte do país. Esse posicionamento claramente favorece a ilusão de que existe um sentido único e universal de família, como se os laços biológicos fossem o balizador das relações estabelecidas dentro e fora do seio familiar.
A rede social agrega repertórios interpretativos que se ligam na construção de saberes e de verdades que não podem ser silenciadas ou compartimentalizadas, mas que precisam ser discutidas, repensadas e expostas ao exercício crítico da reflexão ética. Essa postura exige um reposicionar-se, assumindo ou reassumindo posturas que possam favorecer práticas menos estereotipadas em diferentes áreas do conhecimento. O direito à defesa de determinadas verdades não deve ser questionado, mas sim a imposição de uma verdade absoluta, fomentando um discurso que uniformiza, congela e engessa, e não convida à mudança.
Em defesa da legitimidade de outros arranjos familiares
Em contraposição a um conceito unívoco e inquestionável de família, outros repertórios interpretativos disponíveis retomam as diferentes possibilidades de produção de sentidos sobre uma unidade familiar. Em uma das falas selecionadas, amplia-se a tríade homem, mulher e filhos para outros arranjos não centrados no caráter reprodutivo ou religioso, mas em uma possibilidade de expressão do sentido de família.
"A família é uma instituição reconhecida juridicamente, através do casamento ou da união estável (entidade familiar). Agora também os homossexuais terão esse direito. Você está observando apenas um aspecto da coisa. Existem implicações jurídicas que beneficiarão os homossexuais, enquanto parte de uma entidade familiar. Você está vendo apenas o lado fisiológico. Existem casais homossexuais que adotam, outros que trazem filhos de relação heterossexual, existem outros que fazem inseminação artificial e alugam barriga, e assim por diante. Hoje a justiça reconhece até a entidade familiar formada por apenas UMA PESSOA [destaque do comentarista], para proteger os bens dessa pessoa de constrição judicial, quanto a bens de família. Quem tem apenas uma casa não pode tê-la penhorada, por ser considerado bem de família. Mas, se uma pessoa é sozinha, seria ela família? O judiciário diz que sim, graças a Deus...".
Assim, não é a quantidade ou o sexo das pessoas, nem mesmo a sua capacidade reprodutora que servem como critérios para se organizar o espaço familiar, mas outros sentidos outorgados, entre eles a transmissão do patrimônio, uma questão ligada ao discurso jurídico, ao ordenamento instituído pela Constituição Federal de 1988 e outros documentos legais e questões que competem às próprias transformações observadas na sociedade, as quais nem sempre são possíveis de serem analisadas sem um exame detalhado do que construímos como sociedade, família e afetividade. Ao desconstruir o que se reproduz socialmente como sendo família, abrimos a possibilidade de que novos sentidos sejam incorporados e discutidos, priorizando descrições que coloquem a família como um conceito passível de revisão e que nos convida a reflexões várias, muitas das quais sem uma resposta única. Abrir a possibilidade de considerar diferentes construções pode nos conduzir a uma apropriação de um conceito polissêmico de família, recuperando sentidos para além da mera soma de membros ou de suas funções nessa instituição.
A consideração de um casal homoafetivo como um núcleo familiar que possui uma organização própria, e uma descrição identitária própria que possui direitos e deveres, recoloca as pessoas em outras configurações possíveis de serem compreendidas sob uma mesma categoria. Um homem solteiro que vive sozinho e não possui filhos é, para efeitos legais e também para o censo demográfico, uma unidade familiar. Do mesmo modo, um casal sem filhos, seja homo ou heterossexual constitui uma unidade familiar. O mesmo processo ocorre em diferentes possibilidades de arranjos, com ou sem filhos, praticantes ou não de uma religião, favoráveis ou não à criação de diferentes categorias para expressar uma construção social que vai ser nomeada como família.
Assim, estaríamos tratando de um conceito plural, que suscitaria diferentes sentidos e posicionamentos, e não uma verdade absoluta que, ancorada sobre as balizas da heteronormatividade, da religião e da biologia, a construção e perpetuação de um sentido cristalizado e tido como imutável. A ilusão de um sentido único, tal como compreendida por Bakhtin (1979/1992), acabaria por favorecer a construção de práticas que remeteriam, do mesmo modo, à produção de uma única verdade, desconsiderando o fato de que o universo discursivo compartilhado pela coletividade está em constante revisão.
Celebrando a audição de outros sentidos
Outro eixo de análise elencado neste estudo recupera repertórios interpretativos favoráveis à decisão do STF e a celebram como uma possibilidade de apreensão da união homoafetiva como um direito a ser respeitado e não como uma condição a ser marginalizada, perseguida ou banida da cena social. O respeito aos direitos dos homossexuais não é apenas algo intrinsecamente relacionado ao espírito democrático e republicano, mas à possibilidade de não marginalização da sexualidade. Esse movimento pode ser compreendido a seguir:
"Viva! Que notícia maravilhosa! Parabéns ao Supremo, eu acompanhei todos os pronunciamentos e me emocionei. É o início de uma vitória para o caminho da igualdade total de direitos aos homossexuais. Emocionante saber que, depois de 37 anos de vida, finalmente estou sendo reconhecido como um cidadão quase pleno.... Meus direitos sendo reconhecidos, minha cidadania sendo agradecida, meu patriotismo sendo validado! Direitos iguais para todos os cidadãos! Felicidade e plenitude para todos nós! Lindo!".
A possibilidade de publicização de um assunto que no decurso de séculos foi considerado "pecado", "erro", "desvio" ou "transtorno", acaba por convidar que as pessoas LGBT a compartilharem suas histórias de vida em relatos pontuados por esperança e entusiasmo cidadão. Os depoimentos também contemplam as transformações que almejam ou esperam a partir da conquista desse marco legal, com possíveis desdobramentos em termos das políticas públicas. Trata-se, na perspectiva de análise dos repertórios interpretativos, de se reconhecer como alguém que pode ter acesso à cidadania e ao respeito pelos seus direitos. Embora essa possibilidade seja festejada, o reconhecimento dessa cidadania ainda não é completo, é "quase pleno", justamente por suscitar posicionamentos contrários e que ainda não reconhecem como cidadãs as pessoas que se unem a outras do mesmo sexo ou que não admitem ver nessa união um sinônimo de família.
Por fim, tendo em vista o embate entre os discursos legais, os religiosos, os homofóbicos, heteronormativos ou pró-LGBT, podemos refletir sobre o comentário de outro participante que registrou: "O amor venceu". Em lógicas que se chocam, ora destacando o critério da procriação, ora remetendo-se à criação do homem por Deus, ora levantando a bandeira de movimentos que não mais se propõem a estar à margem, há que se polemizar em que medida o marco decisório deflagra o início do levantamento de outras bandeiras, como a questão da democracia e das políticas públicas. Não basta compreendermos os posicionamentos e nos filiarmos a um ou outro discurso, segundo nossas crenças ou convicções; é importante reconhecer quais práticas éticas e políticas se corporificam nesses discursos e que limites e possibilidades eles promovem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O profissional de Psicologia precisa estar atento às repercussões éticas e políticas dos diferentes posicionamentos assumidos diante de uma questão que não mais se situa na dimensão íntima da família. O amor e o afeto são construções discursivas alternativas para a compreensão das implicações dos posicionamentos aqui discutidos. O afeto, a família, a religião e Deus podem ser bandeiras construtoras de identidades, assim como podem balizar um discurso unívoco e cristalizado que, ao invés de convidar para o diálogo, tende a esvair-se em justificativas do porquê não podem ou não querem entrar em contato.
Entendendo a linguagem como não sendo neutra, a legitimação jurídica da união estável entre pessoas do mesmo sexo no Brasil pode e deve suscitar que outros movimentos também possam lutar pelos seus direitos, e que mais assuntos, até então interditos, possam ser publicizados e se tornem insumos de reflexões não apenas pelo Judiciário, mas por toda a sociedade, no âmbito dos fóruns online das redes sociais ou em outros canais de comunicação e interlocução. Mesmo que seja um assunto ainda polêmico, há que se pensar nas audiências que são convidadas para o debate, por exemplo, em uma rede social que é construída a partir uma notícia que é endereçada a um determinado público, em um determinado contexto de produção. Assim, quem efetivamente lê a notícia e resolve comentá-la, acaba por já se posicionar como quem, de algum modo, está relacionado à temática e que quer expressar a sua opinião a respeito, quer seja favorável, contra ou indiferente.
Por esse movimento, os posicionamentos devem ser compreendidos em sua não neutralidade e em seu caráter social, tornando o desafio de problematizá-los ainda mais complexa. Abrimos, ao final desse percurso, um convite para que outras vozes possam ser cotejadas e trazidas à baila, a fim de que os sentidos não possam ser amordaçados, mas justamente amplificados e reconhecidos em seu potencial transformador.
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