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CliniCAPS

versão On-line ISSN 1983-6007

CliniCAPS v.2 n.4 Belo Horizonte abr. 2008

 

ARTIGOS

 

Considerações sobre psicose e laço social: “o fora-do-discurso da psicose”

 

 

Cláudia Maria Generoso*

CERSAM Betim

 

 


RESUMO

O artigo visa discutir a idéia lacaniana sobre “o fora-do-discurso da psicose”, tecendo considerações sobre a relação da psicose com a possibilidade de laço social. Faz comentários em torno do conceito psicanalítico de laço social sustentado pela teoria dos discursos, bem como recorre à noção de sintoma do último ensino de Lacan que oferece maiores recursos para pensar a relação da psicose com o laço social.

Palavras-chave: Psicose, Laço social, Linguagem.


ABSTRACT

The article aims at to argue the lacaniana idea on “the one outside-of - the speech of the psychosis”, weaveeing considerações on the relation of the psychosis with the possibility of social bow. It makes commentaries in lathe of the psicanalítico concept of social bow supported by the theory of the speeches, as well as appeals to the notion of symptom of the last education of Lacan that offers to greaters resources to think the relation of the psychosis with the social bow.

Keywords: Psychosis, Social bow, Language.


 

 

A teoria freudiana sobre a cultura aponta que, na origem de qualquer cultura, há uma interdição do incesto. Freud, no texto Totem e Tabu (1913), recorre ao mito da horda primeva para desenvolver sua teoria sustentada pela lei do pai morto, ou seja, representado simbolicamente. Essa lei regula a entrada do sujeito na cultura, mediando as relações sociais. Percebe-se, com isso, uma estruturação da vida social a partir da função do pai como uma lei ordenadora do desejo incestuoso, conforme referendado pela teoria do Édipo.

Lacan parte das formulações freudianas sobre o Édipo, mas amplia esse conceito, referindo-se à constituição do sujeito através da linguagem e tecendo uma construção mais estrutural desse tema. Em suas primeiras formulações, Lacan demarca que o pai que exerce a função simbólica de interdição do incesto é representado pelo significante Nome-do-Pai, normalizando o sujeito no campo da linguagem. Essa estruturação sugere um princípio de organização das relações a partir de uma lei simbólica, que é universal e necessária, estabilizando, de certa forma, todo o campo da linguagem. Porém, o autor vai mais-além do Édipo, apontando para a existência de uma falha na transmissão do Nome-do-Pai, havendo algo que escapa ou não passa por esse significante ordenador da estrutura simbólica do sujeito.

Assim, em seu último ensino, iniciado nos anos 70, momento em que se debruça sobre a noção do real e do gozo, haverá uma mudança no conceito de significante que, se inicialmente era concebido como mortificador de gozo, nesse momento, será visto também como produtor de gozo. A partir daí, o autor desenvolve pontos teóricos que permitem chegar a uma elaboração, ao final de sua obra, segundo a qual há outra forma de ordenação da subjetividade que não passa pelo Nome-do-Pai, sendo assegurada por outros elementos que têm estrutura de sintoma, havendo também uma mudança no estatuto desse conceito. Conforme formula J.-A. Miller, nesse momento da teoria lacaniana, haverá uma mudança do estatuto do sintoma, estabelecendo-se uma equivalência entre sintoma e Nome-do-Pai, pois “o Nome-do-Pai, ele próprio, não é nada mais que um sintoma” (MILLER, 1998,p.105), uma vez que o sintoma, assim como o Nome-do-Pai, permitem uma operação de localização ou fixação de gozo.

Se, antes, a idéia de sintoma era vista como uma mensagem a ser decifrada, nesse outro momento, a ênfase será colocada na vertente do gozo do sintoma, aqui pensado como um modo ou uma fixação de gozo, como algo necessário que faz uma amarração ou uma conexão entre significante e gozo.

Considerando a estruturação do sujeito no mundo a partir das leis da linguagem, Lacan estabelece uma discussão sobre o laço social, referindo-se à teoria do discurso em seu ensino de 1969-1970, cujo momento é de elaboração do mais-além do Édipo. É importante lembrar que, ao longo de sua obra, o autor já se havia referido, por várias vezes, à idéia de discurso, mas é nesse momento que ele chega a dar uma maior formulação a esse conceito, enunciando, a partir de então, que há uma relação próxima entre o campo do saber e o gozo, chegando a afirmar que é a partir do registro do simbólico que surge a ordem do impossível, pois o significante produz o gozo, ou seja, institui uma relação com o real.

A categoria do discurso permite dizer de uma certa estruturação da relação do sujeito em seu encontro com o campo do Outro e os efeitos que tem sobre ele esse encontro, organizando a utilização da linguagem entre as pessoas. Lacan refere-se ao discurso como sendo um campo definido, um campo já estruturado de um saber, fundado sobre a linguagem, composto de significantes que integram uma rede desse saber, que é uma

“estrutura necessária (...) que subsiste em certas relações fundamentais (...) instaurando um certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas. Não há necessidade destas para que nossa conduta, nossos atos, eventualmente, se inscrevam no âmbito de certos enunciados primordiais”. (LACAN, 1970b, p.11)

No Seminário 20 (1972/1973), Lacan retoma a idéia do discurso para dizer que ele deve ser considerado “como liame social, fundado sobre a linguagem”. Diz de um liame, ou seja, um laço, no sentido de apontar uma rede articulada de significantes, uma vez que:

“um significante como tal não se refere a nada, a não ser que se refira a um discurso, quer dizer, a um modo de funcionamento, a uma utilização da linguagem como liame. (...) um liame entre aqueles que falam” (LACAN, 1972-1973, p.43).

Nesse mesmo texto, prossegue, dizendo que em tudo que diz respeito à relação entre os seres humanos, que se caracteriza como coletividade, há algo que sempre escapa, introduzindo, mais uma vez, a dimensão do real, ou seja, “a relação sexual como impossível”. Porém, assinala algo que ordena essa relação que é o discurso. Ele diz:

que essa relação, essa relação sexual, na medida em que a coisa não vai, ela vai assim mesmo – graças a um certo número de convenções, de interdições, de inibições, que são efeitos da linguagem e só se devem tomar como deste estofo e deste registro”. (LACAN, 1972-73, p.46)

Nesse Seminário, Lacan designa o laço social como discurso, pois:

“o liame social só se instaura por ancorar-se na maneira pela qual a linguagem se situa e se imprime, se situa sobre aquilo que formiga, isto é, o ser falante” (LACAN, 1972/1973, p.74)

Essa discussão sobre os discursos faz referência a construir algo sobre uma falta, sobre aquilo onde “não há relação sexual”, pois a própria linguagem já aponta para algo que resta de não-articulável na cadeia significante, podendo esse resto circular pela linguagem. Nesse sentido, conforme pontua Miller, os discursos não passam de defesas contra o real, sendo uma defesa pela via do simbólico (MILLER, 1996,p.190-191). Isso leva a pensar que o laço social entre os seres humanos, ou seja, o discurso, que é o que organiza para eles a possibilidade de se falarem, só é possível de ser instituído a partir da subjetivação da perda através do simbólico, havendo com isso uma barreira de acesso ao gozo.

É importante esclarecer que o laço social não é equivalente à noção de sociedade. Nesse sentido, Miller, em seu seminário “Um esforço de poesia”, produz uma argumentação sobre a formulação lacaniana de laço social, apontando uma diferença entre este e a sociedade. Segundo ele,

a sociedade, é para cada um uma evidência, é o que faz que tenhamos confiança em um certo número de aparelhos dos quais não temos a menor idéia de seu funcionamento... É isso a sociedade: um sujeito suposto que suscita nossa confiança, enquanto que não temos a menor idéia como isso se mantém, como isso funciona. Temos confiança que isso vai se repetir, que isso vai se manter. (...) A sociedade, nós lhe fazemos ato de fé. É por isso que a sociedade é um conceito duvidoso (MILLER, 2003, p. 03).

Por outro lado, o laço social faz referência ao campo do Outro, onde “o sujeito não está sozinho com o seu Isso”, pois há sempre o campo do Outro de onde nasce o sujeito. Portanto, trata-se da relação do sujeito com o Outro. E Miller prossegue, dizendo:

o laço social não é equivalente à sociedade. (...) Porque falar de laço social muito mais que de sociedade, permite admitir que há vários tipos de laços sociais. E assim a promoção do conceito de laço social pluraliza o que nos fascina como o todo da sociedade”, pois a sociedade como tal é uma ilusão e o conceito de laço social vem esfacelar essa unidade ilusória, pluralizando (MILLER, 2003, p. 03).

Continuando seu raciocínio, ele diz que, para Lacan, o laço social refere-se a uma relação de dominação, em que há a articulação entre dois lugares, ou seja, a relação de dominante e dominado, o que leva a inferir que se trata de uma relação de apropriação realizada pelo sujeito. Assim, pode-se dizer de um modo de relação mais particularizada do sujeito com o Outro, estando “a sociedade fragmentada em vários laços sociais” (MILLER, 2003,p.4).

Pensando a civilização contemporânea, percebem-se, cada vez mais, outras formas de ordenação social, regidas pelo princípio da utilidade direta, que é uma das conseqüências do sistema capitalista, cujo fundamento não se apoia mais só na teoria edipiana, o que coloca em evidência várias questões: queda dos ideais que regulavam as sociedades, bem como a descrença no Outro; declínio da posição paterna, gerando relações de intensa agressividade e violência; a globalização e a lógica do consumo insaciável que sustenta as relações das pessoas no mundo, tornando-as cada vez mais desreguladas.

Depara-se com o surgimento de novos sintomas que escapam à lógica freudiana das formações do inconsciente, rompendo, muitas vezes, com o laço social, tais como: toxicomania, anorexia, bulimia, gastos e dívidas compulsivos, etc. Antes mesmo do surgimento dos novos sintomas, a questão da psicose já aponta para a insuficiência da ordenação subjetiva a partir da norma edípica. Segundo Laurent (2000), referindo-se à psicose ao longo da civilização, “nunca na história os psicóticos estiveram tão à vontade. É uma das conseqüências do regime da descrença” (LAURENT, 2000,p.175).

Diante dessa descrença no Outro, “é preciso inventar-se a si mesmo”, e, dentro desse contexto, o psicótico é o autor de várias invenções frente ao Outro que não existe, ou seja, “inventa-se o que não está lá”, estando a noção de invenção intimamente ligada à idéia do Outro que não existe, conforme afirma Miller (MILLER, 2003,p.6,12).

Dessa forma, como pensar o campo da cultura a partir de outros princípios ordenadores que não passem pelo Nome-do-Pai? Como pensar o laço social a partir de outros referenciais que não impliquem a instauração de uma falta ou uma interdição a partir da lei simbólica e, portanto, como pensar a relação do psicótico com a linguagem?

Observam-se elaborações teóricas de vários leitores da obra de Lacan que comentam, a partir de seu ensino, que “o psicótico está dentro da linguagem, mas fora do discurso” 1. Considerando o discurso como equivalente ao laço social, tal como designado por Lacan, em seu Seminário 20, a formulação acima leva a pensar que o psicótico está fora do laço social. Porém, não se pode negar que os psicóticos falam e se comunicam, circulando pelos variados discursos estabelecidos, mas de que forma eles se posicionam no discurso?

Lacan, no texto O aturdito (1972), faz uma breve referência ao “fora-do-discurso da psicose”, bem como sobre “o dito esquizofrênico ao ser apanhado sem a ajuda de nenhum discurso estabelecido”, porém não desenvolve com maiores detalhes essas menções. É interessante notar que se trata de um texto que trabalha a noção da interpretação analítica, tomando o exemplo do “fora-do-discurso da psicose” para falar da interpretação no sentido oracular, porém não é um texto que tem como tema de investigação a psicose. Diante dessa rápida citação, a que “fora-do-discurso da psicose” o autor está se referindo ali? Está o psicótico radicalmente “fora do discurso” a todo o tempo, e com isso imerso num constante e ininterrupto sentimento de estranheza, “sozinho com o seu Isso”, ou se trata de índices que apontam para momentos de fora-do-discurso, que poderão permear qualquer estrutura subjetiva?

Fazendo alguns recortes de alguns textos de Lacan, que concernem ao tema da psicose e que trazem pontuações referentes ao discurso, em momentos anteriores à formulação da teoria dos discursos, a partir de 1969, observa-se que, já no Seminário 3 (1955-1956) ele faz referência à linguagem, apontando para uma falta de correspondência entre os objetos do mundo e os significados, não havendo aí uma relação de co-naturalidade entre a palavra e a coisa. O autor diz que:

o sistema da linguagem, em qualquer ponto em que vocês o apreendam, nunca se reduz a um indicador diretamente dirigido a um ponto da realidade, é toda a realidade que está abrangida pelo conjunto da rede de linguagem (LACAN, 1955-56, p.43).

Lançando essa característica da linguagem, o autor tece comentários sobre a relação do psicótico com a linguagem, e, mesmo sendo delirante, ele admite que há discurso. Ele diz:

Pois, seguramente, esses doentes falam a mesma linguagem que nós. Se não houvesse esse elemento, não saberíamos absolutamente nada deles. É, portanto, a economia do discurso, a relação da significação com a significação, a relação de seu discurso com o ordenamento comum do discurso, que nos permite distinguir que se trata do delírio (LACAN, 1955-56, p. 44).

Observa-se que, nesse texto, Lacan refere-se ao discurso comum e ao discurso delirante, não havendo uma maior elaboração da teoria do discurso nesse momento de sua obra.

No texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1958), Lacan diz que a estruturação do sujeito (psicose ou neurose) depende do que se desenrola no Outro, referindo-se que a forma de articulação que se dá no campo do Outro será estruturada por um discurso, formulando, em seguida, que o inconsciente é o discurso do Outro. Sendo o inconsciente colocado como discurso do Outro, isso já indica uma dificuldade do psicótico nesse campo, pois a relação estabelecida por ele é de exterioridade e estranheza, dificultando a subjetivação do discurso do Outro.

Já nas formulações finais de seu ensino, conforme referido por Miller, Lacan estabelece outro estatuto à noção de sintoma, apontando uma relação do sujeito com a linguagem de forma a ter que inventar o Outro que não existe, valendo-se da psicose para exemplificar as variadas e inéditas formas de invenção que os psicóticos necessitam fazer. No contexto da psicose, a invenção, que é a construção de uma função original e diversificada diante daquilo que não existe, adquire maior propriedade, pois o psicótico testemunha essa inexistência, e, se se pode dizer, “sem o recurso a nenhum discurso estabelecido”, tendo que inventar uma função ou uma relação inédita (MILLER, 2003,p.13).

Assim, é importante pensar a relação do psicótico com a linguagem e, portanto, com o discurso, pois, se a posição do psicótico em relação ao discurso for de exterioridade, não se pode esquecer, também, que ele tem contato com os variados discursos estabelecidos do mundo, havendo aí uma possibilidade de ele se valer dos discursos como parceiros. Tendo o discurso uma função de sustentação da fala do sujeito, propiciando uma referência que poderá conferir um sentido e um acordo sobre o uso dos termos entre os que falam, a entrada do psicótico em algum discurso, mesmo que seja de forma particular, poderá propiciar uma solução mais promissora e razoável. Pode-se observar soluções mais bem-sucedidas de psicóticos célebres, tais como Joyce e Rousseau, que inventaram uma relação mais viável e com importantes efeitos sobre o social.

Considerando o laço social como uma possibilidade de parceria em que o psicótico poderá se alojar, é possível levantar a hipótese de que o psicótico poderá circular, ou se inserir, em algum discurso a partir da construção ou invenção de uma ficção particular, em que ele estabelecerá um meio de regulação do gozo, surgindo com isso a possibilidade de construção de alguma forma de laço social. Talvez essa hipótese seja mais possível de ser sustentada a partir das considerações teóricas do final do ensino de Lacan, quando ele especifica que há outras formas de ordenação da subjetividade que não passam pelo Nome-do-Pai, dando ênfase ao novo estatuto do sintoma como um elemento que poderá fazer essa ordenação. Os pontos teóricos desse momento permitem fazer considerações sobre uma articulação entre o sintoma e a necessidade de inventar ou construir algo diante da ruína do Outro, ou diante do fora-do-discurso. Assim, esses pontos podem possibilitar pensar o discurso, ou seja, o laço social na psicose, pois, como sugere Miller, “o laço social é o sintoma” (MILLER, 2003,p.130).

Essas questões se colocam no dia-a-dia da prática clínica com psicóticos, seja em consultórios ou instituições que acolhem tais casos, pois é comum encontrar psicóticos que demandam um reconhecimento ou um lugar possível no social, buscando estabelecer algum laço com os discursos estabelecidos por meio dos quais possam se alojar, sejam os discursos religioso, médico, universitário, jurídico, artístico etc.

 

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1 Conforme algumas notas retiradas dos autores: a) Miller diz: “É bem difícil constituir a psicose em laço social, ela não produz laço social (...) a psicose está basicamente fora do discurso” (Lacan Elucidado, 1981, p. 45). B) Laurent diz, referindo-se ao texto Psicose e Debilidade, “o psicótico se define como fora do discurso enquanto o débil se define entre dois discursos” (Versões da Clínica Psicanalítica, 1995, p. 171).
* Psicóloga clínica e do CERSAM Betim, Supervisora de estágio em residência terapêutica de Betim. Mestrado em Psicologia/Estudos Psicanalíticos – UFMG. Especialização em Saúde Mental pela PUC/MG e ESMIG. Professora de prática supervisionada em saúde mental pela PUC-Betim. Av. Brasil, 1831 sala 1011, Funcionários, Belo Horizonte - MG. CEP 30140-901. E-mail: claudiageneroso@bol.com.br

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