Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
ISSN 1983-8220
ARTIGOS
O abandono psicanalítico do realismo psicológico
The psychoanalitic abandonment of psychological realism
Roberto Calazans*; Renata Viana Gomide
Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, MG
RESUMO
Neste artigo abordaremos como S. Freud, ao se encarregar da clínica da histeria, se vê levado a abandonar o realismo psicológico de suas primeiras elaborações. Para tal, abordaremos em primeiro lugar o conceito de realismo psicológico a partir da obra do epistemólogo Robert Blanché. Em seguida faremos um breve percurso na obra de Freud para apontar como ele abandona as concepções realistas em prol de uma busca da origem dos problemas psíquicos da histeria no conceito de fantasma. Por fim especificaremos a partir de duas passagens do seminário de Lacan sobre a relação de objeto a importância do fantasma para pensarmos as tentativas atuais de reduzir a clínica psicanalítica a novas formas de realismo psicológico.
Palavras-chave: psicanálise; realismo psicológico; histeria.
ABSTRACT
In this article we approach the way in which S. Freud was impelled to abandon the psychological realism when approaching the treatment of the hysteria. The concept of psychological realism according to epistemologist Robert Blanché is discussed. Next, we describe how Freud abandons the realistic conceptions on behalf of a search for the origin of hysteria in the concept of fantasy (Phantasie). Finally, we stress the importance of the concept of fantasy, according to J. Lacan's Seminar on object-relationship, in order to avoid current attempts of reducing the psychoanalytic view to new forms of psychological realism.
Keywords: psychoanalysis; psychological realism; hysteria.
A histeria tem sido alvo da pretensa objetivação da psiquiatria biológica em sua tentativa de desacreditá-la. Seu diagnóstico é tradicionalmente baseado nos sintomas que lhe são atribuídos. De fato, a histeria desorienta por apresentar sintomas contraditórios: riso e choro, depressão e euforia, hiperestesia e anestesia, convulsões e paralisia, etc. Daí os nomes diversos que a histeria recebeu: dissociações (Pierre Janet), desdobramento (alter ego), dupla consciência, clivagem do ego, simulação (Babinski), teatralismo, fabulação inconsciente, mitomania. (Julien, 2002, p. 170) Os sinônimos se multiplicam há quase dois séculos, a ponto do CID-10 (1992) e do DSM-IV (1994) terem abolido de sua nomenclatura os termos neurose e histeria, substituindo por "transtornos dissociativos e somatoformes". (Julien, 2002, p. 170)
Ora nomeando a histeria de formas diversas devido a seus sintomas antagônicos, ora a excluindo de seu campo de estudo, a perspectiva é a mesma: a tentativa de diagnosticar a histeria baseando-se meramente em seus sintomas. Consideramos que qualquer abordagem que utilize tal procedimento fundamenta-se no realismo psicológico, e trata a histeria de forma reducionista e cientificista, pura afirmação de um fenomenismo sem o pensamento que o acompanha.
Por essa razão apresentaremos nesse artigo como Freud, em sua consideração sobre a histeria, se afasta progressivamente do realismo psicológico. Freud passa de uma consideração do trauma como um evento de realidade que geraria a sintomatologia histeria para uma proposição sobre o papel do fantasma1 na constituição do sintoma. Por isso, em um primeiro momento traçaremos conceitualmente o que é o realismo psicológico para em seguida apresentar como Freud o abandona. Em seguida, demonstraremos como Freud pensa histeria como um posicionamento subjetivo a partir da noção de fantasma. A conclusão que podemos extrair desse percurso é que Freud se coloca antinomicamente ao pensamento psiquiátrico biológico. Isso não apenas por capricho, mas por não ter seguido uma posição teórica que desconsidera que trabalhar com problemas psíquicos é, em primeiro lugar, trabalhar com um sujeito.
Realismo Psicológico
Realismo psicológico é uma expressão crítica de Robert Blanché (1935) para designar a tentativa de objetivar o psiquismo, como se este seguisse determinadas leis tal como a realidade física. A crítica do autor não incide sobre a subordinação do sujeito a esta ou aquela realidade, sejam elas físicas ou psíquicas, e sim sobre o conceito de realidade. Blanché demonstra que esse termo não tem um sentido unívoco.
Segundo Blanché, poder-se-ia pensar que falar de realidade seria falar de fatos, e que um fato seria algo independente de qualquer interpretação, não necessitando de nenhuma operação de pensamento, nenhuma atividade. A essa primeira definição, Blanché chama de fato bruto. Entretanto, um fato bruto, livre de interpretação, teria que ser buscado aquém da percepção, e tenderia para a pura sensação e para as imagens apresentadas à nossa consciência, pois é a partir destas que se constroem os objetos para nossa percepção. O fato bruto seria o fenômeno, a imagem tal qual se apresentaria para a consciência. Mas é possível ter acesso a esse fato bruto sem uma operação de pensamento? Não. Um fato completamente desprovido de uma organização não passa de uma miragem.
No entanto, outro sentido utilizado para a palavra fato seria afirmar que uma necessidade liga a imagem a outras imagens determinadas, integrando-as num sistema no qual cada uma está necessariamente ligada a todas as outras.
É, então, a concepção das leis da natureza, leis segundo as quais a presença de cada imagem é determinável em função de outras imagens, que nos permite passar da subjetividade da imagem à objetividade do fato. O laço que une as aparências para fazê-las entrar no sistema do conhecimento não pode ser dado, apenas concebido. Só o pensamento é capaz de estabelecer relações entre as aparências para assim constituir fatos. O fato é obra do espírito, que explica a presença de cada imagem ligando-a a outras com a ajuda de leis convenientemente escolhidas, e que, compreendendo-a, confere-lhe assim alguma objetividade. (Blanché, 1935, p.27).
Mas também não podemos falar de uma objetividade total, de uma ligação entre todos os fatos brutos para constituir uma objetividade última. Como lembra Bachelard (1996, p. 31), um objeto é fruto de um processo de objetivação em função do sentido de um problema. É esse problema que define quais elementos são pertinentes e quais não são para constituir um objeto científico. Desse modo, nenhum fato é propriamente bruto ou objetivo em si mesmos; eles apenas o serão quando situados numa série que, segundo sentido em que for percorrida, tenderá para o fato bruto (conforme for comparado a um sistema menor nele compreendido) ou para o fato objetivo (conforme for comparado a um sistema mais vasto que o compreenda). Temos então que tanto o fato bruto como o fato objetivo reduzem-se a limites: eles são brutos ou objetivos sempre em função de um problema, sendo necessário uma operação de pensamento. Segundo Blanché,
O conhecimento consiste não em acumular o maior número possível de imagens, menos ainda em achar por trás das imagens uma realidade mais profunda que elas dissimulariam, mas em relacionar, umas às outras, imagens dadas das quais se parte. Em outros termos, a obra do pensamento consiste em fabricar uma rede de relações que responda à dupla condição de constituir um sistema inteligível e de aplicar-se às imagens dadas, conferindo, assim, por uma mesma operação, ao conhecimento, o valor objetivo, ao real, a inteligibilidade; ou mais exatamente, fabricando ao mesmo tempo o conhecimento, conferindo-lhe um valor objetivo, e o real, conferindo-lhe a inteligibilidade. Essas relações não podem ser tomadas como reais, mas somente como verdadeiras. (1935, p. 31).
De forma análoga, podemos pensar que não existe a oposição entre uma realidade física e uma realidade psíquica. O que existem são, segundo Blanché, duas formas extremas de se considerar a realidade, ora como elementos concretos irredutíveis do universo material, ora como o conjunto desse universo. E isso não implicaria no dualismo da realidade e do pensamento, uma vez que o pensamento não pode ser considerado como realidade. A realidade bruta, por definição, exclui todo pensamento; por outro lado, ele não pode ser considerado parte da realidade objetiva, já que ele tem por missão justamente constituí-la. Assim, se não encontramos uma definição de realidade que seja unívoca, se o pensamento é condição de considerar uma realidade e não uma realidade, o realismo psicológico seria nada mais, nada menos do que um erro epistemológico: considerar o psíquico, que é da ordem do pensamento, como uma realidade.
O realismo psicológico ora afirma que o psíquico é uma realidade a parte da realidade externa (como os que afirmam que a mente é a realidade estudada pela psicologia: psicologia clássica, gestaltistas e cognitivistas em geral), ora que o psíquico é uma modalidade da realidade externa (como os comportamentalistas). Ora o psíquico é uma realidade que funciona de acordo com suas leis e que cabe ao cientista descobrir essa lei inexorável, ora o psíquico é uma resposta a um estímulo do ambiente. Mas ambos não deixam de considerar dois aspectos: o psíquico é uma realidade e que essa realidade tem um funcionamento estrito, dado. Ora, se na crítica ao realismo nós vimos que não podemos falar em realidade dada, como poderíamos falar de realidade psíquica dada? E se na mesma crítica vimos que o psíquico é da ordem de um pensamento, e se o pensamento é condição dessa realidade, como podemos falar de uma realidade psíquica? Foi nessa via de não considerar os problemas da ordem do pensamento como uma realidade que Freud fundou a psicanálise.
O afastamento de Freud do realismo psicológico
Podemos dizer que Freud, no desenvolvimento de suas teses sobre a histeria, foi levado a afastar-se progressivamente do realismo psicológico. Ele iniciou suas formulações mais importantes sobre a histeria em 1893, na Comunicação Preliminar (1893a), em co-autoria com Josef Breuer, onde postulou a teoria dos estados hipnóides da consciência. Segundo os autores, toda idéia seria acompanhada de uma quantidade afetiva particular. O que desencadearia a histeria seria um trauma ocorrido na infância, cujo afeto correspondente não tivesse sido completamente ab-reagido. Desta forma, a lembrança do trauma agiria como um corpo estranho que continuaria a provocar danos, a despeito da passagem do tempo. Essas lembranças não seriam acessíveis aos pacientes em estado de vigília, somente poderiam ser conhecidas através da hipnose.
Existiriam dois motivos pelos quais o afeto da lembrança não poderia ser ab-reagido: ou o conteúdo das lembranças não permitia reação (circunstâncias sociais), ou o paciente se encontrava sob estados hipnóides, estados anormais da consciência que não comportavam reação adequada (sustos, devaneios). Ou seja, a causa de um evento psíquico estaria associada diretamente a um evento na realidade.
O próprio da histeria seria, neste momento da obra de Freud, o seguinte: um trauma psíquico desencadearia uma dessas duas condições, tornando a reação impossível, provocando assim a divisão da consciência. Nos estados hipnóides as representações seriam muito intensas, mas estariam isoladas da comunicação associativa porque não existiria nenhum vínculo entre o estado normal da consciência e os estados patológicos em que as representações surgiram, ou seja, os processos normais segundo os quais uma representação se esvaece (ab-reação e reprodução em estados de associação) não se encontrariam acessíveis. O conteúdo representativo dos estados hipnóides poderia ter força suficiente para interferir na consciência, ocorrendo assim os ataques histéricos, que seriam as inervações somáticas.
O método de tratamento da histeria seria o método catártico. Este consistia em introduzir a idéia patogênica na corrente associativa, permitindo que o afeto fosse ab-reagido através da fala, fazendo assim com que o sintoma desaparecesse. Entretanto, este método continha uma falha: como só seria obtido o conhecimento sobre o mecanismo de produção do sintoma, e não da causa da histeria, o método não poderia impedir que novos sintomas se formassem. E esse método tinha o inconveniente de não permitir o diagnóstico diferencial entre as diversas psicopatologias, sendo a causa das mesmas atribuída a um axioma geral: a causa é um trauma na infância.
Portanto, os pontos principais desta teoria são a ab-reação, os estados hipnóides e o desenvolvimento do método catártico por Breuer. Mas um ponto que chama a atenção é que nesse momento a dimensão da sexualidade não é sequer mencionada.
Ainda em 1893, Freud publicou um artigo chamado "Sobre o Mecanismo dos Fenômenos Histéricos" (1893b), que visava tratar da patogênese dos sintomas histéricos, propondo a busca de sua origem na vida psíquica. Freud propôs que em todo indivíduo existiria o princípio de constância, que seria a tendência a manter o mais baixo possível a excitação no interior do organismo. Diante de uma impressão psíquica ocorreria o aumento dessa soma, e o sujeito deveria ter alguma espécie de reação (física ou verbal) que diminuísse a carga de excitação provocada pelo trauma psíquico. Se não ocorresse nenhuma reação o afeto ficaria retido na memória, e a lembrança do trauma poderia evocar este afeto como era originalmente.
Segundo Freud, os histéricos sofreriam de traumas psíquicos que não teriam sido completamente ab-reagidos. Além disso, seria provável que na histeria houvesse uma "consciência dupla" que tenderia a se dissociar, emergindo assim os estados anormais da consciência, os "estados hipnóides". Aqui vemos já um primeiro afastamento da teoria da Comunicação preliminar. Aqui o trauma passa a ser psíquico, mas ainda assim dependeria do evento ocorrido na infância.
Em 1894 Freud publicou "As Neuropsicoses de Defesa", onde descreveu três formas de histeria: histeria hipnóide, onde a idéias que emergiram durante os "estados hipnóides" da consciência estariam excluídas da comunicação com o resto do conteúdo da consciência, formando um grupo psíquico separado, suscetível de provocar efeitos patogênicos.
A segunda forma de histeria descrita por Freud nesse texto é a histeria de retenção, onde a divisão da consciência desempenharia um insignificante papel, talvez nulo. Esta forma de histeria ocorreria por falta de reação aos estímulos traumáticos, que não puderam ser "ab-reagidos". Segundo Laplanche e Pontalis (1992, p.215), esta noção estava presente na Comunicação Preliminar (1893a), mesmo que o termo retenção não, para designar uma série de condições etiológicas em que, por oposição ao estado hipnóide, a natureza do trauma, que esbarrava em condições sociais ou em uma defesa do próprio sujeito, tornava impossível a ab-reação.
A terceira forma de histeria, a histeria de defesa, seria a atividade de defesa que se exerceria contra representações que pudessem provocar afetos desagradáveis. O conceito de histeria de defesa foi a novidade trazida por Freud, que posteriormente englobaria tanto a histeria hipnóide e a histeria de retenção. Segundo Freud, os pacientes seriam saudáveis até o momento da ocorrência de uma incompatibilidade entre a consciência e uma idéia aflitiva, que, desta forma, confrontar-se-ia com o eu. Essas idéias incompatíveis seriam sempre relacionadas à sexualidade. O eu adotaria uma atitude de defesa, privando a idéia do afeto (soma de excitação) do qual estaria encarregada. Vemos surgir, portanto, neste texto de 1894, referências às noções de sexualidade e de recalque.
Esta idéia que era aflitiva tornar-se-ia inofensiva através da transformação da soma de excitação em algo somático, e para isso foi utilizado o termo conversão. Desta forma, o eu se livraria da contradição, mas manteria na consciência a lembrança; ou seja, o traço de memória da idéia recalcada não só não seria dissolvido como formaria o núcleo de um segundo grupo psíquico.
A conversão ocorreria quando um afeto recente se ligasse à idéia enfraquecida; um elo provisório seria estabelecido entre os dois grupos psíquicos, até que atuasse a defesa. O fator característico da histeria não seria a divisão da consciência, mas a capacidade de conversão, ou seja, de transpor grandes somas de excitação para a inervação somática sempre que houvesse uma incompatibilidade psíquica ou uma acumulação de excitação. O que seria posteriormente revisto por Freud: afinal, em Freud trata-se da hipótese do inconsciente e não de uma divisão da consciência.
No texto "Psicoterapia da Histeria" (1895), Freud sugeriu a existência da resistência de alguns sintomas em serem eliminados, e de alguns pacientes em serem hipnotizados. Com a descoberta da resistência dos pacientes, Freud rompeu com Breuer, abandonando a hipnose e o método catártico.
Os problemas do método catártico eram que, além de seu objetivo ser eliminar os sintomas - que cai por terra com a descoberta da resistência -, ele não permitia um diagnóstico diferencial entre as doenças. A explicação segundo a qual as neuroses eram frutos de afetos não ab-reagidos não era discriminativa, não permitia distinguir, em termos sintomatológicos e etiológicos, a histeria de neuroses obsessivas. Assim, Freud passou a utilizar o método de concentração, cujo objetivo era a remoção das resistências. Neste novo método, era pedido ao paciente que se deitasse, fechasse os olhos, se concentrasse e dissesse o que lhe viesse à mente.
Renato Mezan (2003, p.75) aponta que a teoria dos estados hipnóides não era satisfatória para Freud porque a explicação para a origem desses estados, a exaustão psíquica do sujeito, acabaria levando a uma explicação de caráter hereditário para a etiologia da histeria, explicação, aliás, que a Comunicação Preliminar buscava refutar. Um segundo motivo para a insatisfação com essa teoria era a circularidade envolvida na explicação: as idéias surgidas nos estados hipnóides tinham que ser excluídas da consciência devido às peculiaridades desses estados, e estes estados eram peculiares por privarem as representações surgidas durante eles do resto da consciência. Da mesma forma, o afeto não podia ser ab-reagido por causa dos estados hipnóides, que se caracterizavam por impedir a ab-reação dos afetos.
Além disso, Freud agrupou as três formas de histeria citadas em "Sobre o Mecanismo dos Fenômenos Histéricos" (1893 b), a saber, histeria hipnóide, histeria de retenção e histeria de defesa, num único bloco, ampliando o conceito de defesa para todas as modalidades de histeria. A razão para isso seria que as histerias hipnóides ocorreriam durante os estados hipnóides, onde a separação dos grupos psíquicos era produzida pela defesa; no mesmo sentido, embora Freud confessasse não saber exatamente explicar o mecanismo, concluiu que havia pelo menos um fragmento de defesa na histeria de retenção. Desse modo, o progresso do afastamento de Freud de proposições realistas avança: se há uma defesa, ela deve implicar necessariamente o sujeito. É em torno do conceito de defesa que Freud irá abandonar tanto a teoria dos estados hipnóides como o tratamento da histeria a partir da hipnose. Pois se há uma defesa, ela implica uma posição do sujeito, e não uma falta de condição, um déficit que o impede de se implicar em relação a determinado evento.
Assim, surgiu a teoria da defesa, entendendo-se esta como defesa do eu em relação a idéias incompatíveis com o resto da consciência. A etiologia das neuroses passou a ser relacionada com conteúdos da vida sexual, e a aquisição das doenças foi vinculada com falhas no conflito defensivo.
No artigo "Hereditariedade e a Etiologia das Neuroses" (1896a, p.178) Freud propôs que a causa das neuroses seria um distúrbio particular da economia do sistema nervoso, e que essas modificações patológicas teriam origem na vida sexual do sujeito, seja em alguma perturbação atual ou em fatos importantes do passado.
Segundo a teoria da defesa, seria no próprio momento do trauma que ocorreria a dissociação da idéia e do afeto. Freud não soube explicar como a idéia, já enfraquecida de sua quota de afeto (recalcada), poderia continuar provocando conversões. Por este motivo, desenvolveu a teoria da sedução traumática propriamente dita, ao postular que a causa da histeria relacionar-se-ia com a experiência precoce de relações sexuais com uma real excitação dos genitais e com o período da vida no qual teria ocorrido tal evento, que era a infância.
Basicamente, tratar-se-ia de uma experiência sexual passiva antes da puberdade. À época do acontecimento, essa excitação sexual precoce não teria nenhum efeito, e essa lembrança agiria como se fosse um evento atual, desencadeando algo da ordem de uma ação póstuma de um trauma sexual. Num dos últimos parágrafos Freud propôs que "o próprio fato de que as agressões sexuais desse tipo tenham ocorrido em tenra idade parece revelar a influência de uma sedução prévia, da qual seria conseqüência a precocidade do desejo sexual". Ou seja, o trauma aqui não é necessariamente o evento da infância, mas a retomada dessa experiência e uma re-significação de sua lembrança. É a resignificação que é traumática, mesmo que ainda seja necessário que um evento ocorra no real.
Na Teoria da Sedução Traumática não havia ainda a concepção de uma sexualidade infantil; desta forma, uma experiência sexual precoce não poderia despertar desejo sexual. Além disso, a questão de por que a recordação de uma experiência sexual que no momento de sua ocorrência não produziu nenhum efeito psíquicos pudesse exercer influência tão drástica posteriormente permaneceu sem resposta.
Ainda em 1896 foi publicado "Novos Comentários Sobre as Neuropsicoses de Defesa", onde Freud afirmou que não era a experiência sexual em si que é traumática, e sim o reviver da lembrança pelo sujeito após a maturidade sexual.
Freud tentou dar uma explicação para a recordação de a experiência ter se tornado nociva: "a recordação desperta um afeto que não despertou quando experiência; no intervalo, a mudança da puberdade tornou possível uma compreensão diferente daquilo que foi recordado" (1896, p. 158). A explicação não é satisfatória, pois "compreensão" pertence à dimensão psicológica, e não pode ser representada em termos de deslocamento de energia.
Na conferência "A Etiologia da Histeria" (1896c) Freud reafirmou que os sintomas na histeria seriam determinados por fatores traumáticos de cunho sexual que seriam reproduzidos a na vida psíquica. O tratamento mais adequado seria, utilizando o método de concentração, fazer o paciente retroagir de seus sintomas à cena traumática. A explicação, desta vez, era que os sintomas não seriam determinados pelas experiências sexuais infantis, mas por cenas posteriores, que deveriam seu poder de determinar sintomas à sua concordância com as cenas anteriores. Os sintomas histéricos seriam formados por uma idéia que seria evocada pela combinação de vários fatores.
Para a cena ser considerada responsável pelo surgimento da histeria seria preciso que ela satisfizesse dois critérios: conveniência como determinante e apropriada força traumática. As essas primeiras cenas recordadas geralmente teriam ocorrido na adolescência e seriam de caráter trivial, ou seja, não teriam nem a conveniência como determinantes nem força traumática. Porém, insistindo com o paciente, chegar-se-ia a recordações que diriam respeito à infância, que deixariam traços mnêmicos, através dos quais exerceriam seu poder patogênico.
Entretanto, a questão de por que a recordação de uma experiência sexual que no momento de sua ocorrência não produziu nenhum efeito psíquicos pudesse exercer influência tão drástica posteriormente permaneceu sem resposta. Além disso, a sedução não seria suficiente para explicar a origem da histeria; a neurose surgiria devido a um conflito defensivo entre o eu e uma idéia incompatível. O que Freud não conseguiu explicar foi por que essa defesa falharia. Portanto, a teoria da sedução traumática continha impasses que a invalidavam, o que pode ser notado na carta 69 de Freud a Fliess:
Permite-me que te confie sem maiores delongas o grande segredo que, no curso dos últimos meses, se me foi revelando paulatinamente: já não acredito na minha Neurótica. (...) o primeiro grupo de motivos de minha atual incredulidade é formado pelos contínuos fracassos em conduzir minhas análises a uma verdadeira conclusão (...); em segundo lugar, a assombrosa circunstância de que todos os casos obrigavam a atribuir atos perversos ao pai; (...) em terceiro, a inegável comprovação de que no inconsciente não existe um "signo de realidade", de modo que é impossível distinguir uma verdade de ficção afetivamente carregada (...); em quarto, a consideração de que nem mesmo nas psicoses mais profundas chega a irromper a recordação inconsciente, de modo que o segredo das vivências infantis não se traduz sequer no mais confuso estado delirante. (Mezan, 2003, p. 66).
Ou seja, a teoria de Freud o obrigava a postular que existiriam muito mais casos de sedução infantil por parte do pai que se poderia supor, mas que essa cena não era recorda nem mesmo nos delírios psicóticos (recordando a formulação lacaniana segundo a qual a psicose é inconsciente a céu aberto). Diante disso, surgiriam duas possibilidades: ou essa cena não poderia ser alcançada, o que tornaria uma análise inválida e desnecessária, ou a cena jamais ocorrera. A comprovação de que era impossível distinguir uma recordação verdadeira de um fantasma que corroborasse esta hipótese. A isso se somava o fato de que Freud, valendo-se de sua teoria, não conseguir conduzir suas análises até o fim, que significava remover os sintomas e evitar o surgimento de outros em seu lugar.
Devido a esse duplo fracasso - epistemológico e clínico - Freud se vê levado pela problemática da histérica a situar e a busca a origem dos sintomas em outra dimensão que não mais aquela da realidade que sustentaria um trauma psíquico, mas na dimensão na qual o sujeito se coloca em relação a seu objeto de desejo, a saber, o fantasma.
O fantasma
A partir de 1908 e 1909, o sintoma passa de protagonista a mero coadjuvante; o interesse de Freud não é mais apenas eliminá-lo, como o era à época da Comunicação Preliminar, nem mais procurar o momento exato em que o sintoma teria se estabelecido, por ocasião de um trauma real, como procurou quando tratou seus casos clínicos de 1893, nem mesmo tentar explicar o porquê do sintoma histérico através de uma concepção quantitativa, como tentou em seu Projeto para uma psicologia científica, de 1895. O interesse de Freud desloca-se para os fantasmas que se expressam tanto através dos sintomas histéricos quanto dos sonhos. Em "As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade" (1908) Freud afirmou com todas as letras: "quer estudar a histeria, portanto, logo transferirá seu interesse dos sintomas para as fantasias [fantasmas] que lhe deram origem". (1908, p. 166)
Em 1916, em "O caminho da formação dos sintomas", Freud postulou que os sintomas neuróticos seriam resultados do conflito entre a libido insatisfeita e o eu; deste viria um contrainvestimento, que obrigaria a libido a retirar-se do eu e tomar o caminho da regressão pela fixação nas experiências sexuais infantis. O investimento regressivo dessas fixações conseguiria contornar o recalque e levaria à satisfação da libido, embora fosse uma satisfação que mal se reconheceria como tal. Desta forma, o sintoma seria uma satisfação da libido, a despeito do eu - embora seja uma satisfação disfarçada, onde o sujeito não se reconhece e se queixa dela.
Por meio desta queixa Freud percebeu que certas ocorrências apareciam repetidamente na história dos neuróticos: observação do coito dos pais, sedução por parte de um adulto e ameaça de ser castrado, por exemplo. Porém, seria altamente improvável que tais cenas ocorressem com tanta freqüência como aparecia na análise dos neuróticos. Freud conclui que essas cenas da infância nem sempre eram verdadeiras.
(...) podemos igualar realidade e fantasia [fantasma]; e não nos importaremos, em princípio, com qual seja esta ou aquela das experiências da infância que estão sendo examinadas. Ademais, esta é, evidentemente, a única atitude correta a adotar para com esses produtos mentais. Também eles possuem determinada realidade. Subsiste o fato de que o paciente criou estas fantasias [fantasmas] por si mesmo, e essa circunstância dificilmente terá, para a sua neurose, importância menor do que teria se tivesse realmente experimentado o que contêm suas fantasias [fantasmas]. As fantasias [fantasmas] possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva. (p. 430).
Podemos encontrar demonstração de tal tese em Fragmentos da análise de um caso de histeria ou simplesmente Caso Dora, como ficou conhecido, foi um tratamento realizado por Freud em 1897, escrito em 1901, embora só tenha sido publicado em 1905. Este texto tem sua importância devido ao fato de ter sido um dos primeiros após o abandono da Teoria da Sedução Traumática. No Caso Dora Freud já expressava os conceitos de sexualidade infantil, conflito psíquico, recalque e fantasma, ou seja, já tinha todos os elementos para pensar uma nova teoria, onde o que estava em jogo não eram apenas os sintomas das histéricas:
Eu sem dúvida consideraria histérica uma pessoa na qual uma ocasião para excitação sexual despertasse sensações que fossem preponderante ou exclusivamente desagradáveis; e o faria fosse ou não a pessoa capaz de produzir sintomas somáticos.2(Freud, 1905, p.26).
O sintoma histérico não ocorreria mais de uma vez se não tivesse um significado psíquico. Freud deixou claro que não se tratava de um significado fixo ao sintoma somático, que cada sujeito em particular emprestava um significado diferente a seu sintoma:
(...) um sintoma significa a representação - a realização - de uma fantasia [fantasma] de conteúdo sexual, isto é, significa uma situação sexual. Seria melhor dizer que pelo menos um dos significados do sintoma é a representação de uma fantasia [fantasma] sexual, mas que nenhuma limitação desta ordem se impõe ao conteúdo de seus outros significados. (Freud, 1905, p. 44).
Um sintoma, uma vez formado, seria retido, embora o pensamento inconsciente que lhe tinha dado origem tenha perdido seu significado. A conversão seria um processo difícil por depender de condições favoráveis, como por exemplo, a rara proximidade da submissão somática necessária. Assim, um impulso para a descarga de uma excitação inconsciente utilizaria tanto quanto possível qualquer canal de descarga que poderia existir. Seria mais difícil criar uma conversão nova que formar trajetos de associação entre o pensamento novo que necessitaria de descarga e o antigo que não necessitaria mais desta descarga. O lado somático de um sintoma histérico seria o mais estável e difícil de substituir, ao passo que o lado psíquico seria mais fácil ser substituído.
Essa fixação em um lugar do corpo para o qual convergem a descarga de libido são as zonas erógenas, às quais a histérica acrescenta as zonas histerógena, o ponto do corpo onde se dá a conversão, e que conserva sua importância como zona erógena. Por exemplo, segundo Freud deverse-ia supor em Dora a presença de uma irritação real e orgânica da garganta. Porém essa irritação, por ser uma zona histerógena, foi suscetível de fixação. A irritação, portanto, ajustava-se para expressar os estados de estados de excitação da libido. Tornou-se permanente devido ao que talvez fosse seu primeiro revestimento psíquico -imitação do pai, que era tuberculoso-e em vista das auto-reprevações subseqüentes por causa de sua leucorréia. O mesmo sintoma representava também suas relações com o Sr. K. Poderia representar também seu sofrimento pela ausência do pai e seu desejo de ser uma melhor esposa para ele. Em seguida, passou a representar as relações sexuais com o pai através da identificação de Dora com a Sra. K.
No artigo sobre "A perturbação psicogênica da visão" (1910) Freud postulou que a pulsão sexual se apoiaria na função somática, mas não se confundiria com ela. No sintoma histérico, a pulsão passaria de mista a pura, anulando assim o somático. A necessidade seria apagada pelo desejo, que se apossaria do órgão e o desproviria de sua função somática, tornando-se apenas genital. A conseqüência do fracasso do recalque seria que a fronteira entre o sexual e o não-sexual não poderia mais ser estabelecida.
Entre a função real do corpo e a função simbólica que este adquire pelo recalque, está a função imaginária. No texto "Sobre o narcisismo", de 1914, Freud postulou que o narcisismo implicaria numa divisão da própria pulsão sexual entre libido sexual e libido do eu, de modo que a libido do eu envolveria a libido objetal. Neste sentido, o sujeito só poderia visar seu objeto sexual através de sua própria imagem. No seminário "Os escritos técnicos de Freud" (1953/1954), Lacan distinguiu dois narcisismos, um imaginário, fixado na imagem corporal, e outro simbólico, apoiado no traço significante tomado do Outro. O ponto mais importante é acentuar a dependência em que se encontra a identificação imaginária - da imagem corporal à identificação simbólica. Isso sugere então a dependência do sujeito em relação ao Outro.
A histérica, no entanto, jamais se sente o bastante revestida pela identificação com essa imagem corporal, como se essa vestimenta imaginária ameaçasse se entreabrir para a realidade repulsiva de um corpo que ela não pode reconhecer como seu. A lógica da fantasia [fantasma] histérica seria, então, que a falta ao nível da imagem corporal deixaria aparecer o real do corpo dessexualizado, o que a simbolização histérica do sintoma tentaria reparar invadindo o imaginário.
À falta ao nível da constituição da imagem corporal corresponde uma falta ao nível da identificação simbólica fornecida pela instância paterna. Assim, é ao nível do Outro que deve ser procurado o ponto de origem da problemática histérica. Toda a clínica da histeria gira em torno deste ponto: a potência (falo) que a histérica encontrou em seu pai é insuficiente, o pai da histérica é estruturalmente um impotente, pois ele nada pode dizer acerca de sua identidade feminina, ele só pode lhe indicar a identificação fálica. É neste sentido que se poderia dizer que a histérica "encarna" a falta, pois não se trata tanto do fracasso do recalque; na verdade, não há nada a recalcar. O significante a ser recalcado falta: não há no Outro significante do sexo feminino como tal.
Desta forma, a histérica terá que se contentar com a identificação fálica, que lhe dará uma orientação e permite que ele se preserve do real, mas ao preço de sua relação com Outro ser mediada pelo fantasma. Nesta tentativa de estabelecer a relação do sujeito com o Outro, o fantasma servirá como matriz para o processo de identificação. Os fantasmas histéricos se constroem em torno da repulsa, pois a histérica teme que sob a máscara da falicização da imagem corporal exista apenas o real orgânico à que se reduz o corpo dessexualizado. Em resposta, o que ela produz é um excesso de sexualização do corpo imaginário.
Embora não consiga o que demanda, a histérica acaba por obter algum êxito, pois qualquer sintoma é mais seguro que deparar-se com o real dessexualizado do corpo, que o encontro com a inapreensível presença feminina. É aí que entra o que Jacques-Alain Miller (1983) chamou de "virtude consoladora do fantasma", e, em conseqüência, o ganho secundário na construção de um sintoma que se edifica a partir deste fantasma. O sintoma viria na tentativa de tamponar a falha na imagem corporal.
O sintoma é, assim, determinado pelo fantasma, como sugeriu Freud em "Fantasias [fantasmas] histéricas e sua relação com a bissexualidade", mas o fantasma não pode ser tomado como todo o conteúdo do inconsciente. Ela vem como tentativa de tamponar a falta de significante do Outro, que no caso da histérica é a falta de significante sobre o que é ser mulher. Daí a função essencial de se buscar, no fantasma histérico, outra mulher: a forma que a questão do desejo do Outro assume há histeria é sempre uma questão sobre o sexo do sujeito, e a resposta será buscada via outra mulher.
Os fantasmas inconscientes teriam conexão com a vida sexual do sujeito, pois seria idêntica ao fantasma que serviu para lhe dar satisfação sexual durante um período de masturbação. Neste período, o ato masturbatório seria composto de duas partes: a evocação de um fantasma (representação de um desejo) e o comportamento ativo (gozo, prazer proveniente de uma zona erógena). Quando o fantasma é reativado pela pulsão, o que ocorre é o gozo. Se o recalque fosse bem sucedido, haveria prazer nesta satisfação. No entanto, o recalque falha, e o que surge é o retorno do recalcado -o sintoma.
No seminário sobre a Relação de Objeto (1956/57) Lacan retoma o esquema Z formulado por ele dois anos antes. Neste esquema ele demonstra que para que o sujeito tenha relação com o outro o Outro, é necessário passar por sua imagem especular (a), criada a partir do outro (a'). A relação imaginária, mais ou menos fantasmatizada, inscrever-se-ia entre as extremidades a-a' da relação, marcada pela especularidade e pela reciprocidade, entre o eu e o outro. A relação do sujeito com o Outro é mediada pela palavra inconsciente; qualquer que seja a forma com que essa palavra se apresente, trata-se do fantasma.
Haveria uma relação do fantasma com a lembrança encobridora, o momento em que a cadeia da memória se interromperia:
Com a fantasia [fantasma], encontramo-nos diante de algo da mesma ordem, que fixa, reduz ao estado de instantaneidade, o fluxo da memória, detendo-o neste ponto que se chama a lembrança encobridora. Pensem na maneira como uma seqüência cinematográfica que se desenvolvesse rapidamente fosse parar de repente num ponto, imobilizando todos os personagens. Essa instantaneidade é característica da redução da cena plena, significante, articulada de sujeito a sujeito, ao que se imobiliza na fantasia [fantasma], a qual fica carregada de todos os valores eróticos incluídos naquilo que ela exprimiu e de que ela é a testemunha e o suporte, o último suporte restante. (Lacan, 1956/1995, p. 121).
Tratar-se-ia da imagem na medida em que ela permaneceria testemunha de algo que no inconsciente deveria ser articulado. Essa relação imaginária estaria no caminho do sujeito na tentativa de se inscrever no Outro.
Nessa tentativa de se inscrever no Outro surgiria a frustração, que só poderia se realizar através de um objeto que o sujeito tomaria numa posição ambígua que seria da pertinência de seu próprio corpo. A frustração do gozo produziria o relançamento do desejo, mas não produziria nenhuma espécie de constituição de objeto. O que sucederia à frustração do gozo seria uma dimensão que se manteria no sujeito em estado de relação com a imagem do outro, em torno da qual o sujeito se organizaria e constituiria um mundo objetal. Este mundo não seria constituído a partir dos objetos de desejo, dos quais o sujeito havia sido frustrado desde a origem, mas a partir da frustração mesma, na medida em que a criança, dirigindo-se para algo que desejaria, encontraria algo com o que se chocaria.
Lacan acentuou, então, a importância do que Winnicott chamou de objetos transacionais. "O objeto, na medida em que é engendrado pela frustração, nos leva a admitir a autonomia da produção imaginária na sua relação com a imagem do corpo. É um objeto ambíguo, que está entre ambos, a propósito do qual não se pode falar nem de realidade nem de irrealidade." (Lacan, 1956/57, 1995, p. 128-129)
Pensar a autonomia da produção imaginária em relação à imagem corporal e a constituição de um mundo objetal nos remete ao problema da histeria. Se na sua organização o sujeito se confunde com o mundo objetal, torna-se impossível pensar uma realidade externa ao sujeito como algo dado, estático; tudo é construído em função do sentido do problema: como se inscrever no universo do Outro? E se o sujeito utiliza um objeto que não é nem real nem irreal, faz parte do sujeito ao mesmo tempo em que faz parte do mundo externo, é porque, para se inscrever no simbólico, toda a situação vai se dar no nível de um fantasma. Não faz sentido estabelecer uma realidade psíquica em oposição a uma realidade física, ambas estão conectadas a uma mesma operação de pensamento que norteia o psíquico e dá sentido ao físico. E é desta autonomia da produção imaginária em relação à imagem corporal que a histérica vai se utilizar, representando em seu corpo a falta encontrada no simbólico, já que ela não encontra no Outro um significante que lhe dê uma orientação.
Conclusão
Retornemos na crítica efetuada por Blanché ao realismo psicológico: segundo este autor, o pensamento teria duas funções: por um lado, estabelecer uma rede de imagens, por si só desarticuladas e sem qualidade, e, por outro, conferir significação a esta rede, ou seja, produzir uma realidade e torná-la inteligível.
Também para Freud as representações por si só são desprovidas de qualidade; é somente depois da operação do recalque que elas ganham importância. O recalque para Freud teria três fases: a fixação, o recalque propriamente dito e, o retorno do recalcado. A fixação seria este momento de investir em determinadas representações, e o retorno do recalcado, o sintoma.
Podemos concluir que não é possível tratar a realidade como dada, ela é produzida pelo pensamento; da mesma forma, não existe sintoma em si, há todo um trabalho de investimento naquelas representações, um trabalho de pensamento para produzir aquele sintoma específico, e para torná-lo importante a ponto de questionar o sujeito.
Não é possível buscar uma causa universal para os sintomas, nem tratá-los sob a perspectiva de uma relação direta entre causa e efeito, já que isto estabeleceria que, uma vez descoberta a causa, cessaria seu efeito. Não faz sentido pensar a causalidade como se o pensamento seguisse determinadas leis tal como a realidade física. Isso invalida qualquer tentativa de se conduzir por um manual - como os compêndios de psiquiatria -que prescreva tratamentos medicamentosos e comportamentais, que fossem generalizáveis e universais, em outras palavras, válidos para todos.
As práticas psicoterápicas atualmente em voga utilizam-se do realismo psicológico ao pretenderem reduzir a clínica a simples técnicas de controle dos sintomas. Sabemos que há grandes diferenças entre diversas práticas psicoterápicas: diferenças de princípios teóricos, diferenças de finalidades e da maneira de abordar o fenômeno clínico. Se considerarmos a psicoterapia humanista-existencial, sabemos que ela se afasta completamente da psicoterapia comportamental. O mesmo podemos dizer da investigação psicopatológica: sabemos que o manual de psicopatologia de Karl Jaspers (1993) ligado a tradição clássica da psiquiatria se coloca em posição antinômica aos manuais estatísticos da Associação Psiquiátrica Americana (2003) que é tão afeito a práticas cognitivo-comportamentais. Segundo esta prática, basta seguir o manual diagnóstico para saber, a partir da freqüência de determinados sintomas, qual transtorno o indivíduo sofre. A noção de transtorno sendo a perturbação da ordem, a realidade abalada por um mau funcionamento do sujeito.
Mas por outro lado podemos dizer, junto com Jacques-Alain Miller (1997, p.12) que há um ponto em comum entre as diversas psicoterapias: a incidência da palavra do Outro de quem o sujeito espera a resposta e aprovação. Esse fator, como lembra Miller "não é eliminável nem das psicoterapias ditas comportamentais, porque elas são sempre dominadas pelo Outro que aprova, que diz 'está bem', que diz 'sim'" (1997, p.12). É nesse aspecto que podemos avaliar a importância do abandono do realismo psicológico operado pela psicanálise: permite que a psicanálise não confunda níveis de análise distintos, pretendendo que um evento da ordem da fala e da linguagem seja tomado como um fenômeno da ordem de uma realidade física ou biológica. Vemos essa confusão de níveis hoje tanto na psiquiatria biológica que afirma a origem genética ou neuronal dos eventos psíquicos; na pesquisa psicopatológica que deixa de lado a explicação dos eventos psicopatológicos e a substitui por uma catalogação amparada na estatística; e na prática psicoterápica comportamental e seu derivado cognitivo comportamental que busca como finalidade a adaptação do sujeito seja a que norma for estabelecida por uma maioria, sem preocupação com a validade das próprias normas.
A psicanálise, ao recusar o realismo psicológico, recusa também tomar o sujeito como alvo de objetivação, mas o toma como um sujeito pensante. Ou seja, em psicanálise não se trata de realidade, mas de posicionamentos subjetivos. O fantasma não implica em nenhum dado de realidade; ele é apenas um recurso do sujeito para se inscrever no simbólico. Portanto, não faz sentido tratar o campo do sujeito como uma realidade dada; o sujeito, através do fantasma, criará uma rede de conceitos para produzir uma realidade. Ora, se o sujeito se utiliza de uma realidade produzida para se inscrever no Outro, é impossível tratá-lo de modo cientificista. Dessa forma, o arcabouço teórico da psicanálise impede a absorção do sujeito por perspectivas reducionistas.
Referências
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Recebido em 29/06/2008
Aceite final em 01/07/2008
Roberto Calazans. Prof. Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del Rei. Dr. em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
Renata Viana Gomide. Psicóloga pela Universidade Federal de São João del Rei. Mestranda em Teoria Psicnalítica no Programa de Pós-Graduação em Teoria psicanalítica da UFRJ.
* Endereço eletrônico para correspondência: calazans@ufsj.edu.br
1. Utilizaremos o termo fantasma em vez de fantasia no decorrer desse texto por entendermos que o termo fantasia está impregnado de ressonâncias psicológicas e não atende à dimensão que Freud pretende dar ao conceito: o ponto a partir do qual se estrutura a relação do sujeito com o desejo. O termo fantasia, por sua vez, é mantido em vários textos traduzidos para o português. Por essa razão, indicaremos entre colchetes nas citações em que o termo fantasia aparece que se trata de fantasma.
2. O sintoma não poderia ocorrer sem a presença de certo grau de submissão somática oferecida por algum processo normal ou patológico num dos órgãos do corpo ou relacionado com um deles. Essa idéia, segundo a qual a pulsão sexual anularia a pulsão do eu, seria retomada em "A perturbação psicogênica da visão" (1910).