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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
versão On-line ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.6 no.1 Belo Horizonte jun. 2013
ARTIGOS
O uso da narrativa dos mitos gregos como um instrumento terapêutico na psicanálise
The use of Greek myth narratives as a therapeutic tool in psychoanalysis
Karla Theonila Vidal Maciel Freitas1
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil
RESUMO
O presente trabalho discorre sobre o que caracteriza uma narrativa na visão de Bruner e Ricoeur, salientando a perspectiva interpretativa e simbólica que abarcam e relacionando-a ao contexto cultural do indivíduo e à forma como ele pode redefini-las, elaborando novos significados, segundo a perspectiva psicanalítica. Nesse sentido, sugere a utilização dos mitos gregos como ponto de partida a reflexões que envolvem vários temas humanos cotidianos, não tendo a pretensão de propor um parâmetro metodológico ao uso das narrativas, mas antes a apropriação dos mitos como ponto inicial à análise narrativa dentro da esfera cultural, para concebê-la posteriormente, num espaço particular e privado do sujeito e de sua história, permitindo-o negociar suas próprias versões.
Palavras-Chave: Narrativa, Psicanálise, Mitos gregos.
ABSTRACT
This work talks about what characterizes a narrative from the point of view of Bruner and Ricoeur, pointing out the interpretative and symbolic perspective linking them to the cultural context of individual and to the way that the person can redefine them, developing new meanings, according to psychoanalytic perspective. Therein, one proposes the use of Greek myths as the beginning of reflections that include several common human themes. One does not intend to propose a methodological parameter for the use of the narratives, but rather the appropriation of myth as a starting point for the narrative analysis within the cultural sphere so as to conceive it later in a particular and private space of the subject and his/her history, allowing same to negotiate their own versions.
Key words: Narrative, Psychoanalysis, Greek Myths.
A pesquisa social, no campo das narrativas, tem alcançado cada vez mais espaço nos estudos de diversas áreas científicas (a linguística, a antropologia e a psicologia). Isso se deve, possivelmente, ao caráter de acessibilidade e universalidade que as histórias possuem no desenvolvimento da espécie humana. Contar histórias sempre foi e continua a ser uma forma como as pessoas não apenas expressam suas intencionalidades, afetividades e experiências, como também uma maneira como se perpetuam conceitos, criam-se outros e se constroem novas realidades. Muitas teorias são geradas, nesse sentido, buscando-se métodos ou formas de se falar de si e da sociedade (Squire, 2005) ou apenas como forma de se compreender melhor o uso destas narrativas.
Torna-se interessante remeter a uma diferenciação de ordem didática e esclarecedora, feita por Bruner (1997), a respeito da caracterização que realiza sobre duas formas distintas de pensar. As narrativas surgem em oposição a um pensamento baseado na lógica positivista para adentrar numa perspectiva "que trata das ações e intenções humanas ou similares às humanas e das vicissitudes e conseqüências que marcam seu curso" (Bruner, 1997, p. 14). Essa outra perspectiva, exatamente por envolver o contexto da natureza humana, abrange um cenário multifacetado de experiências e emoções que não permeiam a lógica ou a racionalidade prática. Há uma aplicação imaginativa no modo narrativo que promove a possibilidade do alcance de boas histórias, de dramas envolventes e de relatos que, embora não necessariamente verdadeiros, guardam a potencialidade de existir através de sua verossimilhança.
Chegar a essa abordagem significou passar por revoluções nos estudos da psicologia. Bruner (1997), nesse sentido, teve um papel relevante no entendimento e propagação da mente como criadora de significados, no momento em que ela constrói e compartilha tais significados, interagindo com a cultura (Correia, 2003). Numa tentativa de romper com a tradição positivista da psicologia, surge, portanto, uma abordagem mais interpretativa da cognição, interessada em como são produzidos os significados. Assim, a linguagem passa a ser concebida como um dos atos mais significativos do ser humano e, com ela, a produção de sentidos, que ocorre por meio e pelo uso do simbólico.
Bruner (1997) vai propor, em oposição à chamada psicologia científica, uma "psicologia cultural" fortemente baseada na "psicologia popular", focalizando o previsível e o usual na condição humana (Correia, 2003). Fazendo uso de métodos da história e da lingüística, a psicologia cultural dá atenção à gênese, à origem das práticas e às formas de vida humana atuais. Assim, embora a psicologia cultural e as narrativas, conceitualmente, não sejam a mesma coisa, a narrativa é considerada como o cerne da forma de produzir significado, possuindo, portanto, um alinhamento com a psicologia cultural. A narrativa seria concebida, por Bruner (1997), como uma fonte de dados para o estudo da mente, visto que as diferentes formas de sua expressão teriam origem na cultura. A observação e análise daquilo que é expresso na narrativa permitiria a exploração da natureza do conteúdo narrado desde que consideradas as condições do contexto em que é revelado, levando ao entendimento de uma forma de raciocínio peculiar a tal contexto, reforçando aí, o caráter de interação entre a cultura e a mente humana. (Bruner, 1986, citado por Correia, 2003)
Nesse sentido, torna-se necessária a caracterização do que seja a narrativa, bem como o que a diferencia das demais formas de discurso. Essencialmente, os fatores como a sequencialidade de eventos e o envolvimento de estados mentais são relevantes para uma investigação da mente em seus processos simbólicos e de construção de sentidos. Bruner (2001, citado por Correia, 2003) vai apontar algumas características ditas "universais" da narrativa, para que seja concebida como tal. Elas dizem respeito, de início, ao caráter da estruturação no tempo, que embora não seja estabelecido por um tempo de relógio, cronologicamente lógico, vai ser medido pelas ações ou eventos mais importantes da narrativa. Sendo assim, é possível avançar ou retornar no tempo, podendo reordenar os eventos sequenciados, o que se constitui em outra característica. Outro ponto já comentado diz respeito à implicação de estados emocionais, aos valores e às intencionalidades humanas, que não são determinados por meio da relação de causalidade, permitindo, assim, uma variabilidade interpretativa dos eventos e estados emocionais apresentados. Por fim, a narrativa deve permitir um espaço para contestação, em que haja possibilidade de negociação das versões da história e tem que romper com o canônico, para que valha a pena ser contada.
O rompimento com o canônico deve existir como um dos pontos fundamentais da caracterização da narrativa, possivelmente porque o inusitado para a natureza humana é o que mais sensibiliza e chama a atenção. Aquilo que foge ao comum é algo que precisa ser entendido, organizado, narrado. Assim, o sujeito que narra entra com a "sua voz", a sua marca de singularidade e o jeito como vai articular essa fala tem, portanto, relação com sua cultura, com o seu contexto, mas não deixa de prescindir de suas marcas pessoais.
Ainda na visão de Bruner (1997), a narrativa pode ser real ou imaginária sem perder o seu valor como história. É necessário apenas que seja crível, antes de tudo. Deve ter ainda qualidade dramática, permitindo a construção da realidade entre o mundo real e os eventos mentais na consciência do protagonista. É considerada por esse autor como uma forma de usar a linguagem, resistindo a procedimentos lógicos (ou científicos) para estabelecer o que a narrativa significa. Ela deve ser interpretada, não há como se chegar, de maneira lógica ou necessariamente racional, às suas condições de verdade.
Tendo feito uma breve classificação do que constitui uma narrativa na perspectiva de Jerome Bruner, ressalta-se agora a questão da interpretação da narrativa, a fim de relacioná-la ao argumento do seu papel na (re)construção das histórias pessoais dos sujeitos que entram em contato com essa narrativa e com a possibilidade de reinventá-la, seja numa perspectiva pessoal ou numa abordagem mais ampla, sociocultural. Nesse sentido, é importante considerar que, na perspectiva de Bruner, a reinvenção de uma narrativa sociocultural apresenta, possivelmente em paralelo e de forma até indissociável, a dimensão pessoal atuante.
A autora Corinne Squire (2005) enfoca essa perspectiva hermenêutica, relacionando-a diretamente ao trabalho de Ricoeur (1980). Até chegar a esse ponto da discussão, deixa clara a oposição deste autor à visão estruturalista de autores como Labov, cujo foco metodológico das narrativas repousa essencialmente sobre a questão semântica e estrutural. A questão da interpretação é mais complexa para Ricoeur, visto que assume que o problema hermenêutico começa no ponto em que a linguística termina.
Para Ricoeur (1980), o exame das histórias contadas na narrativa vai além dos eventos e se baseia num tempo humano, na extensão em que é articulado através de um modo narrativo próprio e não apenas baseado na cronologia comum, no "tempo do relógio". Adaptando de Sócrates, o autor declara que o exame da vida consiste ao recontá-la e que "o processo de composição e configuração, não é finalizado no texto, mas no leitor" (Ricoeur, 1991, citado por Squire, 2005, p. 06) p. 06). Tal acepção demonstra o porquê da complexidade hermenêutica acima citada e corrobora a visão de Bruner no que diz respeito a que o contexto seja apreciado, envolvendo o "mundo" dos leitores e dos textos, dos que contam a história e dos que a escutam, pois, considerados conjuntamente, podem dar maior sentido ao entendimento de como ou por que ocorrem.
Em Ricoeur (1980), a interpretação na recontagem narrativa é simbólica. No processo de contar e entender histórias os sujeitos também produzem uma identidade narrativa. Por meio das histórias contadas ou traduzidas, a ideia é a de que o sujeito possa também narrar, embora não sendo o autor original da história, a sua própria vida. Tal perspectiva vai além da visão proposta anteriormente. Constitui-se numa visão pós-estruturalista, atribuída a Ricoeur: "nós podemos nos tornar nosso próprio narrador" (1991, citado por Squire, 2005, p.07). Ou seja, ao recontar algo, há sempre uma implicação pessoal de quem reconta, na visão de Ricoeur.
É importante também ressaltar a característica da assunção do contexto nessa nova transcrição narrativa proposta ao sujeito. Ricoeur vai salientar que ao mesmo tempo em que há "um ego enamorado por si mesmo está um self instruído por símbolos culturais, entre os quais estão as narrativas legadas por nossa tradição literária" (Ricoeur, 1991, citado por Squire, 2005, p.07).
Squire (2005) ainda aponta a perspectiva de Ricoeur para desenvolver a ideia de uma hermenêutica crítica, que pode permitir às pessoas habitarem histórias de outras na sua imaginação. Segundo Corinne Squire (2005), tanto narrativas pessoais que parecem ter um espaço específico ou que são puramente teóricas, como contos causais ou que parecem fora do tempo biográfico e da história convencional ganham uma tradução interpretativa na temporalidade vivida. Essas traduções impõem um tempo para si mesmo como uma categoria interpretativa e, mais estreitamente, criam um padrão de progressão e finalização, e podem isolar espaços do inconsciente e do real no sujeito. Esse ajustamento espaço temporal e também em relação ao conteúdo da história pode ser realizado pelo indivíduo, no momento em que interpreta a narrativa.
Apesar dessa dita complexidade da interpretação narrativa, que leva a uma possibilidade de ter sua aplicação não facilitada, a abordagem de Ricoeur (1980) oferece um considerável ganho para a leitura/escuta das narrativas, pois foca no poder construtivo da linguagem, que é útil para a pesquisa e para a prática. Essas intersecções do texto com o mundo dos que o leem ou ouvem dá vazão a esse contexto de interação e mudanças, permitindo ainda a co-construção de narrativas, que não necessariamente apresentarão um fim específico, mas que podem sofrer influência de diferentes significados e efeitos culturais que as modificam, criam e recriam verdades, negociando as diversas versões possíveis de uma mesma narrativa. Isso permite que as narrativas pessoais de identificação tenham congruência com narrativas mais amplas, de temáticas diversas.
Sob essa perspectiva, torna-se possível tentar relacionar o poder de uma narrativa cultural na (re)construção das narrativas pessoais, por meio da assunção de novos significados aos primordialmente apresentados. A psicanálise intenta fazer exatamente isso, quando busca auxiliar o sujeito na reinterpretação do significado dos eventos passados, em seu presente, revisando e redefinindo os enredos de sua história de vida. E, entre a narrativa e a psicanálise não se pode deixar de observar que existe em comum o uso da linguagem. Bertrand e Baldacci (1996, citado por De Conti, 2004) apontam que Freud ligou o gênero narrativo à psicanálise ao propor a técnica de associação livre ao paciente, a fim de que o mesmo rememorasse conteúdos possivelmente recalcados. E isso se faz por meio da linguagem, do discurso. Para Mendes e Próchno (2006), foi por intermédio das pacientes histéricas de Freud que ele assume a importância da fala no processo de cura. Nesse sentido, a narrativa oral se tornaria fundamental para a cura analítica.
O que se torna interessante apontar aqui é que a narrativa, retomando Ricoeur (1980), para surtir efeito de reflexão e reconstrução, não precisa necessariamente ser da autoria do sujeito que narra. Escutá-la ou lê-la também permite este tipo de interação e (re)construção. As narrativas orais, como apontadas por Benjamin (1994), podem ter também um caráter utilitário, atribuindo ao narrador nato o senso prático de aconselhar como uma de suas características. Para este autor:
Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. (Benjamim, 1994, p. 4)
Nesse sentido, assume-se o caráter de orientação que a narrativa pode proporcionar, permitindo ao sujeito que, por meio da identificação com a história relatada ou lida, este possa reorganizar a sua própria história. O narrador que aconselha pode ser o que se auto-aconselha. O que reflete sobre o conteúdo da narrativa e por meio dessa reflexão elabora outras diretrizes, inclusive para si próprio, rememorando a história com possibilidades de outras intenções ou moralidade.
Sendo assim, a proposta deste artigo abrange o entendimento de que os mitos, como narrativas, podem agir terapeuticamente no sujeito, à medida que revelam nele aquilo que reconhecem em seu enredo pessoal e que proporcionam reflexões acerca dos significados existentes em prol de significados propostos e elaborados conforme a (re)interpretação de seus conteúdos.
O analista junguiano e psicoterapeuta Walter Boechat, no livro de Brandão (2004, p.418) aponta a importância do mito para o homem moderno, referenciando-o como uma orientação do ser. Para o analista:
"...os núcleos componentes de todos os Mitos das diversas culturas, os mitologemas, representam estruturas mentais básicas de todos os homens. Estas moléculas estruturais do psiquismo são expressão do inconsciente coletivo, tal como concebido por Jung, sempre inesgotável em suas manifestações, sempre presente." (Boechat, citado por Brandão, 2004, p. 418)
Sob essa perspectiva, a mitologia cumpriria, assim, um papel fundamental para a psicologia, fertilizando-a com imagens ricas em possibilidades de desenvolvimento o que, para o autor, seria algo mais que apresentar uma posição tipicamente conceitual, baseada unicamente em teorias científicas que visam o alcance de uma única verdade do sujeito.
Souza e Rocha (2009) também assumem a mitologia como narrativa, expondo a visão de Morin (1986, citado por Souza & Rocha, 2009, p. 201) de que "o mistério do mito invade aquele que o considera a partir do exterior", porém considerando-o como algo que é vivenciado no interior do indivíduo, como uma possível verdade. Morin propõe ainda a inseparabilidade do mito e da linguagem, baseando-se na própria raiz etimológica do primeiro, já que mythos significa discurso. Beividas (2001) vai falar da diferenciação entre os termos muthos e logos, que, inicialmente, não se opunham e diziam respeito, ambos, à ideia de um relato sagrado que seria transmitido oralmente, entre gerações. Porém, na época dos pré-socráticos, começa a se instaurar uma diferenciação crescente entre os termos, que nos reporta à atual distinção entre o paradigma científico e o interpretativo das narrativas. O logos começa a tomar o sentido de um discurso, com regras, disciplinado, em busca do reconhecimento da verdade, relacionado diretamente à razão. Já o muthos se vê "depreciado" à conotação da palavra como uma inverdade, voltada a criar ilusão ou a reportar um caráter ficcional, não real (Ramnoux, 1985, citado por Beividas, 2001, p. 10):
... «Discurso verdadeiro» vs «fala mentirosa» assim pode ser resumida a polaridade feroz com que a civilização ocidental absorveu em berço as vertentes paradigmáticas do logos e do muthos. Exaltado o primeiro e condenado o segundo, o pensamento mítico inicia assim sua longa marcha de conotações desdenhosas como «ficção», «absurdidade», «ilusão», «falsidade», «estupidez»... (Beividas, 2001, p. 10)
Tal diferenciação foi ainda mais acentuada no século das ciências, atingindo o seu ápice no positivismo empírico do paradigma científico, que causou ainda mais o afastamento do mito ou, na expressão de G. Gusdorf (1953, citado por Beividas, 2001, p. 131), o "recalcamento" da consciência mítica. Nesse sentido, Beividas (2001) vai salientar que o resgate da temática mítica começa a ganhar espaço no século XXI quase em todas as camadas da episteme coletiva, havendo uma revalorização do pensamento mítico. Para tanto, sugere que as razões que envolvem essa revalorização dizem respeito a três motivos essencialmente: um, que seria uma espécie de protesto ao cientificismo exacerbado e sua busca de uma única verdade, ainda mais quando está voltado a ciências relacionadas ao ser humano. As duas outras formas de revalorização do mito, segundo o autor, operam em conformidade com a ciência, tentando manter ou restabelecer o diálogo entre logos e muthos. E assim as caracteriza:
... uma delas tende a se postar numa reflexão mais epistemológica e filosófica na revalorização do pensamento mítico - onde se tenta reintroduzir uma porção justa de metafísica na consideração científica, enquanto que a outra insiste mais em encontrar instrumentos metodológicos de descrição a estudar as articulações de um «saber mítico», da «inteligência» (narratológica) que comanda o pensamento mítico. (Beividas, 2001, p. 133).
Associando o mito à psicanálise, nessa correlação entre teoria científica e conto tradicional, fictício ou "improvável", Beividas (2001) assume que não restam dúvidas de que o solo em que operam a psicanálise e o mito possa ser o mesmo. Levanta exemplos dos mitos como Édipo e Narciso, que tanto habitam a instituição básica da psicanálise freudiana e, ressalta que, em Jung, os mitos vão determinar toda a sua teoria. Corrobora ainda essa perspectiva com a expressão de Mircea Eliade, que concebe o inconsciente definindo-o como uma "mitologia privada" (1972, citado por Beividas, 2001, p. 134). Para o autor, as indagações, os discursos do paciente ou do seu inconsciente não vão designar outra coisa senão um enquadramento de sua subjetividade frente, por exemplo, ao complexo parental edipiano (em Freud) ou relacionado aos arquétipos mitológicos herdados de uma coletividade (em Jung), tornando-se, então, um discurso mítico.
Souza e Rocha (2009) desenvolvem a perspectiva freudiana e lacaniana da relação da psicanálise com o mito, deixando-nos crer e reforçar que esses expoentes autores do tema consideraram a perspectiva do mito na abordagem psicanalítica. Nessa explicação, Souza e Rocha (2009) esclarecem que Freud inicia a psicanálise a partir de três experiências fundamentais: a experiência clínica com seus pacientes, sua auto-análise e, por fim, "sua experiência com a alma humana por meio dos mitos" (Souza & Rocha, 2009, p. 201). Na visão de Azoubel Neto (1993, citado por Souza & Rocha, 2009), Freud teria contribuído para o estudo do mito, em psicanálise, por concebê-lo como um fenômeno psíquico vivo e pulsante. E, a partir dessa concepção, teria estabelecido alguns estudos, ampliando o campo de investigação dos mitos com a teoria psicanalítica, principalmente no que diz respeito à importância do mito no funcionamento do psiquismo humano. Nas palavras de Azoubel Neto:
A psicanálise redescobriu o mito, retomou o seu estudo e fê-lo através de um método de trabalho próprio, um método que constitui em si um processo de resgate. Localizou a presença do mito como uma condição real, atuante e atual no inconsciente. (1993, p. 15)
Em relação a Lacan, Souza e Rocha (2009) vão referenciar que ele "define o mito como uma expressão imaginária das relações fundamentais características do modo de ser humano em uma determinada época" (p. 202). O mito seria concebido tal qual um legado cultural e social, mas que se inscreveria individualmente e contemplando, ao mesmo tempo, um aspecto coletivo e singular e pondo em destaque os paradoxos da subjetividade situada e construída na fronteira entre o eu e o outro. Tal constatação aproxima ainda mais mito e psicanálise.
É importante referenciar que o sentido de mito aqui exposto, encontrado em diversos trabalhos científicos a respeito do tema, envolve basicamente a noção de algo que se contrapõe ao científico, como já anteriormente citado. Adentrando ainda mais na perspectiva proposta pelo artigo, cabe salientar que os mitos gregos são aqui referenciados com o propósito de serem analisados dentro dessa perspectiva terapêutica, como narrativa. Sobre eles, será discorrido mais a respeito, sugerindo não uma metodologia, mas uma forma de serem visualizados na alternativa terapêutica.
Mitos gregos
Maria Aparecida Bressani (2003), psicóloga e psicoterapeuta jungiana, ressalta que o homem sempre buscou identificar e saber sobre suas origens, para compreender o sentido de sua existência. E que, na mitologia grega, histórias populares eram contadas exatamente com a intenção de explicar e compreender tanto a criação do universo, quanto a do homem e a forma como se desenvolveu. Nesse sentido, vale salientar que as histórias eram oralmente expostas aos ouvintes, o que na visão de Brandão (2004) faz diferença a quem "recebe" essa narrativa. Para esse autor, a forma escrita do mito o desfigura, pois o enrijece e o fixa numa forma definitiva, quebrando a fluidez que crê ser necessária numa narrativa mitológica.
Medeiros (2009) reforça esse argumento propondo que estudar mitologia é estudar a si próprio. Na observação das várias histórias da mitologia grega, percebe-se que todas as narrativas valorizam perspectivas humanas relacionadas à sua existência, seus sentimentos, seus valores, seus conflitos. Em seu estudo, Medeiros (2009) enfoca Fedra sob a perspectiva de três autores, para falar sobre a concepção do amor (Eros) como delito, confissão ou redenção, conforme a acepção de quem narra a história. Eurípides, considerado "o mais trágico dos trágicos" por Aristóteles, foi o primeiro autor, supõe-se ao menos, a colocar e analisar a paixão e o ciúme no teatro grego (foi ele também o autor de Medeia, d'As Bacantes, As Troianas, etc.). A personagem Fedra, de Hipólito, representa a ideia da mulher como encarnação do desejo, a sua aliança com a carne e os sentidos. Já a Fedra de Racine traz uma heroína mais hesitante, vítima de uma paixão cambaleante, que titubeia o tempo inteiro. Seu conflito é não saber se ama ou odeia e, assim, procura se redimir e volta a errar, num ciclo que a condena. Sêneca também escreve uma Fedra, mais violenta, mais passional ainda que a grega, perplexa pelo seu horror que era a paixão por seu enteado.
Nessa descrição distinta acerca de um mesmo mito realizada por Medeiros (2009), podemos sugerir que o entendimento da intenção da personagem permeia a compreensão de quem narra a história. Oportunamente, salienta-se que na perspectiva narrativista, aquele que ouve, lê ou discute tal narrativa assume, entre as opções colocadas, aquela que referencia mais sobre si próprio ou reformula outros pontos de vista conflitantes ao seu.
Por meio de um breve estudo sobre a mitologia grega, bem referenciada na obra de Brandão (2004), percebe-se que muitos outros temas humanos podem ser discutidos por meio dos mitos gregos. Serão aqui citados alguns, como forma de ilustrar. Tem-se, como exemplo, o tema da vaidade ferida, vislumbrado em Ajax de Sófocles: o herói enlouquece pelos deuses depois de abandonar a tropa grega, magoado porque depois de tanto fazer pelo povo, as armas de Aquiles foram destinadas a outro. O discurso do herói, clamando gratidão, reconhecimento, é tão atual que se pode crer ter sido escrito ainda neste século. A tragédia em questão põe em pauta até que ponto a vaidade pode enlouquecer o homem.
As Eumênides, de Ésquilo - o mais antigo dos poetas gregos -, narra a tragédia do jovem Orestes, que depois de assassinar sua própria mãe, Clitmnestra, é perseguido pelas Fúrias (relacionada aqui à culpa). Sentindo-se necessitado de ser purificado por esse crime, Orestes termina sendo absolvido com a ajuda de Apolo (o Sol). Nessa narrativa, é significativa a relação culpa-castigo e redenção por meio dos deuses, perspectiva humana histórica e sempre atual.
Ésquilo é o mesmo autor que escreveu Prometeu Acorrentado, retomando essa relação tensa e cheia de angústia entre o homem e os deuses, no caso, entre um semi-deus (Prometeu) e um Deus soberano (Zeus) - relatando a potência de um deus em confronto com a impotência e a insubordinação do outro, ao lado do Homem. Essa narrativa foi referenciada ao chamado "Complexo de Zeus", que é essa exibição de autoritarismo, embora as raízes dessa manifestação se encontrem num sentimento de impotência e inferioridade.
Ainda em Eurípides se tem "As Troianas" e "Hécuba", em que o poeta grego desloca a culpa da fatalidade dos deuses e a integra no próprio homem, na Hýbris humana (a palavra Hibrys em grego quer dizer descomedimento, portanto o homem acometido por essa falta, erra, descontrola-se). Segundo Medeiros (2009), como a obra de Eurípides coincide com o surgimento do direito jurídico no mundo ático, tornava-se preciso entender até que ponto o homem era responsável por seus atos, era o senhor da suas ações. Por essa razão, em sua narrativa mitológica, há o deslocamento da responsabilidade dos atos para o próprio sujeito em vez de atribuí-la à interferência dos deuses.
Outro mito que engloba a questão do descomedimento humano é o de Ícaro, que embriagado pelas asas de cera fabricada pelo pai Dédalo, sobe tão alto que se aproxima do Sol e as suas asas derretem. Ícaro é outra vítima da hýbris (a demesure, o descomedimento), que, na sede de voar, de ultrapassar o metrón (em grego, o limite), vai além das suas possibilidades. Para o mundo grego, Ícaro é a personificação da megalomania. Essa narrativa também é relacionada ao termo "volúpia das alturas", já que as asas são o símbolo desse deslocamento, da liberdade, da desmaterialização e também do consciente que se tornou insensato, pela exaltação emotiva e vaidosa, acreditando-se poder mais.
Para Medeiros (2009), Eurípides constrói sua obra sobre os temas mais banais e ordinários (entenda-se comuns) e, portanto, próximos ao cotidiano humano, o que justifica ele ser, dos poetas áticos, o mais representado até os dias atuais. O autor assume que Eurípedes foi bastante responsável pela sensibilidade coletiva dos gregos, já que o teatro Antigo era um evento ao ar livre, destinado para cerca de 30 mil espectadores. E, a essa época, não se ia ao teatro como uma atividade diletante, ia-se para se ter uma experiência catártica.
Dessa forma, percebe-se o valor da narrativa, em seu gênero mito, na compreensão da própria condição humana, em seus mais diversos conflitos e posicionamentos. Retoma-se aqui, portanto, o argumento de Bruner (1997) e Ricoeur (1980) em relação ao contexto cultural na compreensão de como as narrativas ocorrem e são recebidas ou percebidas pelos receptores de suas mensagens.
Considerações finais
Assumindo a psicanálise com uma estreita relação com a linguagem, que é a matéria prima da narrativa, compreende-se que a primeira vai se desenvolver por meio de um processo dialógico entre paciente e psicanalista, fundamentado na composição da última (narrativa), que acaba por sofrer uma interpretação compartilhada por parte dos envolvidos no processo. A interpretação do que é narrado no contexto psicanalítico vai se construir a partir do que é exposto pelo analisando, por meio de seu discurso e da associação das ideias que dele advém. Em contrapartida, pelo lado do psicanalista, deve existir também a percepção e sensibilidade no entendimento do que é narrado, a fim de se compreender as possibilidades de significados a propor ao paciente.
A narração de um mito pode envolver um contexto de sentimentos, valores e conflitos que, apresentados ao sujeito, possam permitir que este se identifique com os personagens e suas situações, incitando espaços para a elaboração de suas próprias questões, sendo auxiliado por sua capacidade em fantasiar. Mendes e Próchno (2006, p. 47) fazem uma colocação semelhante quando relacionam a psicanálise à literatura, referenciando que cada um de nós possui um "texto interno, complexo, consciente ou inconsciente, produzido por outras leituras/escrituras, por mitos familiares, de qualquer forma presos ao discurso do Outro, ao discurso familiar".
Analogamente a essa proposta, poder-se-ia supor a possibilidade de a psicanálise trabalhar com o discurso produzido pelo sujeito, a partir de uma identificação com uma narrativa mitológica. O que ele traz em seu discurso é a verdade singular de cada sujeito.
A associação dos mitos às narrativas, no campo da psicologia, perpassa a concepção de que o mito possui uma natureza essencialmente simbólica, advindo daí, essencialmente, a sua possibilidade interpretativa. Muitos indivíduos podem não ser capazes de reconhecer (ou assumir) os motivos de suas angústias. Assim, podem não conseguir expressar em suas narrativas pessoais, o cerne da questão de seu sofrimento psíquico. Ou porque não o reconhecem ou porque se sentem tolhidos pelos ditames culturais que condenam ou rechaçam sentimentos ou intenções que possam ser expressas, quando contrárias a seus preceitos morais. Escutar a narrativa de um mito, discorrer sobre ela, pode levar o sujeito a se reconhecer na história e, assim, apropriar-se dela, como se fora sua. A partir dessa perspectiva, falar sobre o mito pode vir a ser falar sobre si mesmo, porém, numa concepção fluida, atual, de reconstrução de sua atuação, quer seja por justificativas ao seu posicionamento, quer seja por aceitação de suas escolhas, entre outras opções. Mas o importante, nesse contexto, é o seu posicionamento. A assunção de se conceber como autor de sua história, ainda que narrada em uma perspectiva mitológica. O reconhecimento de si na narrativa dá-lhe a condição de apropriação do tema e (re)elaboração dos seus significados, construindo para si uma outra história, talvez um outro direcionamento e a consequente produção de uma narrativa própria, autobiográfica, que esteja em busca de um ajustamento psíquico que reduza seu sofrimento. Tal é a razão maior da proposta da psicanálise.
Referências
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Recebido: 26/03/2012
Aceito: 01/10/2012
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