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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

versão On-line ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.9 no.1 Juiz de fora jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Interfaces entre a psicologia sócio-histórica e a educação popular com adolescentes

 

Interfaces between the socio historic psychology and teenagers popular education

 

 

Flaviana Franco Naves1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo ampliar os conhecimentos produzidos acerca da prática em educação popular (EP) com adolescentes a partir da análise dos sentidos de um educador popular sobre sua atuação com adolescentes de classe baixa. A orientação epistemológica e metodológica adotada foi a da Psicologia Sócio-Histórica. A análise demonstrou que os sentidos constituídos pelo educador popular acerca de sua prática são de que ela pretende ser um meio de desvelamento e execução da contra-hegemonia, de emancipação do jovem e, sobretudo, um movimento que constitua uma práxis transformadora contribuindo para a construção de um mundo mais justo e solidário. Essas análises também me convidaram a refletir sobre aspectos em que a educação popular e psicologia podem colaborar entre si. Espero que este artigo seja útil aos profissionais que atuam, sobretudo no campo da educação com adolescentes.

Palavras chave: Psicologia Sócio-Histórica, Educação Popular, Adolescência, Concepção de Adolescência, Transformação Social.


ABSTRACT

This article aims at expanding the existing knowledge regarding the popular education (PE) practices used with lower-class teenagers by analyzing the senses of a popular educator about his/her activities with lower-class teenagers. The epistemological and methodological orientation adopted was the Socio-Historic Psychology. The analysis showed that the senses constituted by the popular educators about their practices are that the popular education is intended as a mean of unveiling and implementing counter-hegemony, emancipation of the young and, above all, it is a movement that constitutes a transformative praxis which contributes to building a more just and united world. These analyzes also invited me to reflect about the ways in which popular education and psychology can work together. I hope this article will be helpful to professionals, especially in the field of teenager education.

Key words: Socio-Historic Psychology, Popular Education, Adolescence, Adolescence Conception, Social Transformation


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo parte de uma pesquisa desenvolvida para dissertação de mestrado2 e tem como objetivo enriquecer os conhecimentos produzidos acerca da prática em Educação Popular (EP) com adolescentes,3 por meio da análise dos sentidos que um educador popular constitui sobre a própria prática desenvolvida com adolescentes de classe baixa, assim como refletir sobre aspectos em que a educação popular e psicologia podem colaborar entre si.

A motivação central para a realização desta pesquisa foi a preocupação com as práticas educativas, fora da educação formal, desenvolvidas com adolescentes de classe baixa, que normalmente estão destituídos ou possuem difícil acesso aos direitos básicos nos domínios da educação, saúde, moradia, lazer, cultura, esporte, entre outros. Considero que tais práticas educativas promovem novas relações de ensino-aprendizagem e podem se configurar em referências essenciais para o enriquecimento dos processos de humanização desses jovens, para a construção de formas criativas de satisfação de suas necessidades e, quiçá, para a superação da condição de pobreza. Entre os diferentes processos educativos que são desenvolvidos fora dos canais institucionais escolares com pessoas de classe baixa, optei pela EP por ser aquela que tradicionalmente atua com essa população.

Os seguintes questionamentos constituíram o fio condutor deste artigo: Qual a concepção de adolescência de um educador popular que desenvolve sua prática educativa com adolescentes? Essa concepção condiz com sua prática? Quais elementos ele considera como fundamentais para compor sua prática? A Psicologia Sócio-Histórica e a EP podem colaborar entre si? De que forma?

 

CONCEPÇÃO DE HOMEM E ADOLESCÊNCIA

Adoto nesta pesquisa a concepção de homem defendida pela perspectiva teórico-metodológica da Psicologia Sócio-Histórica, cujo principal autor é Lev Semyonovitch Vigotski. Essa perspectiva compreende que o indivíduo se constitui humano de forma ativa, nas e pelas relações, no decorrer de sua história e pelas condições sociais e culturais engendradas pela humanidade, tendo no trabalho uma de suas principais formas de humanização. Dessa maneira, as condições objetivas de vida, tais como o momento histórico e a classe social determinam a subjetividade do homem e, ao mesmo tempo, são determinadas por ela. Assim, as transformações em ambas as dimensões (objetiva e subjetiva) só existem em função da relação dialética que as constitui.

Essa forma de compreender o homem e seu psiquismo é divergente à concepção hegemônica de humano existente na psicologia que, segundo Bock (2014),

(...) o afirma como natural e universal; pensa o ser como dotado de forças capazes de garantir um processo de individuação, capaz de garantir o desenvolvimento. (...) Há algo em nós, apriorístico, que se atualizará, transformando nossas potencialidades em capacidade e habilidades humanas. Essas dádivas nos são dadas pela espécie [independentemente de sua vida em sociedade]. (p. 361)

Em oposição à ideia natural e universal de humano, Charlot (1979) apresenta a ideia de condição humana, segundo a qual o homem, como espécie, nasce com um suporte biológico diferente dos outros animais que o permite se humanizar, mas o processo de humanização só acontece a partir das relações mediadas pelas produções sociais, históricas e culturais. Com efeito, Leontiev (2004) esclarece que as diferentes formas de ser não provêm, unicamente, de suas diferenças biológicas naturais, sendo elas "produto da desigualdade econômica, da desigualdade de classes e da diversidade consecutiva das suas relações com as aquisições que encarnam todas as aptidões e faculdades da natureza humana, formadas no decurso de um processo sócio-histórico" (p. 293).

Congruente com essa concepção de homem, a adolescência é defendida aqui como um fenômeno complexo constituído sócio e historicamente, que possui uma estruturação simbólica que a define. Deve ser analisada em sua totalidade, ou seja, em função de um conjunto complexo e mutante de mediadores que a constitui. Segundo Ozella (2011), a concepção de adolescência tem sido constituída e difundida na sociedade a partir de um tripé: naturalização, universalização e patologização.

De forma breve, entende-se por naturalização a adolescência como sendo um período próprio do desenvolvimento humano, que se encontra entre a infância e a vida adulta e que possui características naturais contidas como essência que irão se atualizar inevitavelmente nessa fase da vida. A universalização postula que a adolescência irá se manifestar em todos os seres humanos da mesma forma, desse modo, as características próprias desse período podem ser identificadas em qualquer jovem (Ozella, 2011).

Debesse (1946) é um dos autores que dá maior visibilidade a essa fase da vida como natural e universal, defendendo a ideia de um psiquismo e mentalidade inerentes à adolescência. Em suas palavras, seria um

erro pensar que a juventude muda conforme as épocas (...) acreditar que ela se identifica com sucessivos vestuários de empréstimo e que cada geração tem sua juventude é uma ilusão de moralista amador e apressado (...) por detrás do aspecto da juventude existe a juventude eterna, notavelmente idêntica a si própria no decurso dos séculos (pp. 15-16).

Sobre o ponto de vista da patologização, a adolescência é marcada pelo surgimento de uma patologia natural fruto do desenvolvimento, com sintomas próprios como instabilidade, crise e rebeldia. Desse modo, a adolescência tem sido compreendida como um período problemático/patológico pelo qual todos os seres humanos passam (Aguiar, Bock & Ozella, 2009, Ozella, 2011, 2003, 2002).

Merece destaque aqui a teoria da síndrome normal da adolescência introduzida por Aberastury e Knobel (1989), que defendem uma crise preexistente ao adolescente. Essa síndrome poderia, segundo esses autores, ser diagnosticada pelas seguintes características:

1) busca de si e da identidade; 2) tendência grupal; 3) necessidade de intelectualizar e fantasiar; 4) crises religiosas (...); 5) deslocalização temporal (...); 6) evolução sexual manifesta (...); 7) atitude sexual reivindicatória com tendências anti ou associais (...); 8) contradições sucessivas em todas as manifestações de conduta (...); 9) uma separação progressiva dos pais; e 10) constantes flutuações de humor e do estado de ânimo (p. 29).

Desse modo, a adolescência concebida como consequência inevitável do desenvolvimento, como período de passagem obrigatório para a vida adulta, sinalizada pelo aparecimento de marcas corporais e significada como uma fase problemática da vida, coloca o adolescente em situação de desvalorização social em relação ao mundo adulto.

Concordo com a visão de Aguiar, Bock e Ozella (2009) ao apontarem que esse período da vida só existe porque foi criado "historicamente pelo homem, nas relações sociais enquanto um fato, e passa a fazer parte da cultura enquanto significado" (p.168).

Clímaco (1991) apresenta alguns fatores históricos que possibilitam compreender o surgimento da adolescência. Ela relata que nas sociedades modernas a tecnologização passou a exigir uma maior formação dos sujeitos, a qual foi realizada nas instituições educacionais. O desemprego estrutural produzido pelo capitalismo gerou a exigência de retardar o ingresso do jovem no mercado e aumentar os requisitos para esse ingresso, e a evolução dos conhecimentos científicos na área da saúde prolongou a vida das pessoas, trazendo desafios à empregabilidade e às formas de sobrevivência. Todos esses fatores contribuíram para a reunião de jovens em um mesmo espaço (a escola), para a extensão do período escolar e um consequente afastamento dos jovens do mercado trabalho.

O cenário da adolescência vai sendo constituído então por indivíduos que "já apresentam todas as possibilidades de se inserir na sociedade adulta, em termos cognitivos, afetivos, de capacidade de trabalho e reprodução" (Aguiar, Bock & Ozella, 2009, p. 170), mas que estão "desautorizados" pela sociedade capitalista para isso. Assim, o jovem precisa se organizar para protelar a obtenção de autonomia e condições de sustento.

A Psicologia Sócio-Histórica compreende que a adolescência é vivenciada e significada de diversas maneiras e que suas formas de expressão na sociedade se modificam por meio das particularidades da realidade de cada jovem, como a etnia, classe social, sexo, idade e escolaridade, assim como ao longo da história (Aguiar & Ozella, 2008). Desse modo, Aguiar e Ozella (2008) defendem que "(...) a manutenção das concepções de adolescência como um período naturalmente de crise cumpre o papel ideológico de camuflar a realidade, as contradições sociais, as verdadeiras mediações que constituem tal fenômeno" (p. 3).

 

ADOLESCÊNCIA E PRÁTICAS EDUCATIVAS

Trago aqui algumas pesquisas que podem colaborar com minhas reflexões sobre concepção de adolescência e seus efeitos na prática educativa, nesse caso em práticas educativas diferentes da educação formal, pois não encontrei pesquisas nesse sentido com educadores populares. Assim, a literatura aponta que as práticas educativas diferentes da educação formal, como é o caso da EP, que são desenvolvidas com adolescentes, têm se configurado em sua grande maioria em práticas de controle, disciplinamento e correção das condutas e das características patológicas consideradas como normais e universais aos adolescentes.

Sposito, Silva e Souza (2006) reuniram resultados preliminares do projeto de pesquisa denominado "Juventude, escolarização e poder local", que investiga ações públicas destinadas aos jovens no período entre 2001 e 2004, em 75 municípios de regiões metropolitanas brasileiras em que estavam compreendidos oito milhões de jovens entre 15 e 24 anos. Esse estudo revelou que o maior número de programas levantados destinados aos jovens encontrava-se sob a responsabilidade de secretarias ligadas à assistência social/inclusão/ação social (23%). Essa inserção predominante das ações alocadas nos organismos de assistência, segundo os autores, pode significar que as políticas de juventude estejam subordinadas à questão social, ou seja, elas vão ao encontro do suprimento das problemáticas da vulnerabilidade, do risco e da violência e do acionamento de práticas de controle e disciplinamento da conduta dos adolescentes, sobretudo daqueles que são pobres, em situação de rua ou em conflito com a lei. A imagem social de uma juventude associada a estereótipos negativos é, dessa forma, reforçada pelas políticas públicas.

De modo perverso, a ideia de adolescência carrega não só estigmas de natureza psicológica ou patológica, tradicionais em algumas teorias facilmente absorvidas pelo senso comum, como incorpora o estereótipo que designa aqueles que ameaçam a sociedade. (...) É importante considerar que parcelas dos que empreendem programas para adolescentes lutam por imprimir uma imagem mais positiva, calcada na ideia de direitos. Mas os atores responsáveis pelas ações, além do tipo de inscrição que recebem na esfera governamental – em geral na área da assistência ou da inclusão social – não conseguem, apesar dos esforços, romper com um perverso consenso. (Sposito, Silva & Souza, 2006, p. 255)

Leão (2008) aponta que as ações do Estado diante da questão juvenil têm apresentado uma tendência a reproduzir o modelo escolar que, por meio de uma rede paralela, voltam-se para a educação acerca de valores, saberes e habilidades técnicas consideradas como necessárias para uma juventude saudável. Existe uma preocupação em disciplinar os jovens com mecanismos de controle e regulação de sua conduta, em ocupar seu tempo livre e retirá-los das ruas, evitando situações de risco e, ao mesmo tempo, considerá-los livres e responsáveis para escolher seu futuro. A liberdade é dada aos jovens pobres, porém é vigiada, ocorrendo o que o autor nomeia de "autonomia tutelada" (p. 336).

A pesquisa de Gil (2007) buscou compreender "quais os sentidos de adolescência presentes no discurso de um profissional de arte-educação que atua num programa voltado a adolescentes [de baixa renda] numa Organização não Governamental" (p. 5). A autora constatou que os sentidos contêm um caráter naturalizado, patológico e universal, associando principalmente o adolescente a conflitos e crises. A prática educativa desenvolvida pelo arte-educador revela essa forma naturalizada, na medida em que busca suprir algumas necessidades que seriam próprias desse período da vida, por exemplo, as necessidades de extravasar e inovar. Para a autora, "diante desses impulsos [extravasar e inovar] que ele [arte-educador] considera intrínsecos à natureza do adolescente, mas que são mal aceitos pelo meio social, sua proposta é viabilizar esses comportamentos através da prática artística" (p. 82).

O estudo de Espindula e Santos (2004) objetivou verificar o conteúdo e a estrutura das representações sociais sobre a adolescência "a partir da ótica dos Assistentes de Desenvolvimento Social (ADSs) de adolescentes que estão em conflito com a lei e cumprindo medidas socioeducativas em regime de internação na Região Metropolitana do Recife" (p. 357). A adolescência, de modo geral, para os ADSs possui como características negativas o sentimento de onipotência e a falta de limites na relação com os pais, e como característica positiva a de ser uma fase de preparação para o futuro. A condição de conflito com a lei justifica-se pelo pertencimento a uma família desestruturada, a qual não teria competência para reintegrar esses adolescentes à sociedade. Como eles não se enquadram no modelo ideal de adolescência, "as práticas dos ADSs são no sentido de minimizar os problemas trazidos por eles (...) [e] baseiam-se em princípios corretivos e punitivos, como pôr de castigo nas celas e proibi-los de exercer as atividades educativas" (Espindula & Santos, 2004, p. 366). Os autores concluem a pesquisa refletindo sobre a necessidade de mudança no modo de conceber o adolescente para que este passe a ser considerado como um sujeito de direito.

De forma geral, as pesquisas acima revelam que: as concepções e objetivos muitas vezes são contraditórios em relação à prática desenvolvida; o fenômeno da adolescência/juventude tem sido tratado de forma universal apresentando um caráter patológico; e o elemento concepção de adolescência/juventude se destacou nas análises da constituição das práticas propostas para a população jovem.

 

MÉTODO

Para abarcar o objetivo deste artigo de ampliar os conhecimentos produzidos acerca da prática em EP com jovens e qualificar essa prática, lancei mão da análise dos sentidos que um educador popular constitui sobre a própria prática desenvolvida com jovens de classe baixa.

A pesquisa que originou este artigo constituiu-se em uma pesquisa qualitativa e teve como orientação epistemológica e metodológica a Psicologia Sócio-Histórica. O sujeito deveria ser um educador popular que atuasse com jovens de classe baixa e que se disponibilizasse a participar da pesquisa. Desse modo, encontrei algumas pessoas com esse perfil por meio de um projeto social do qual eu participava como educadora e pesquisadora na época, mas apenas um se disponibilizou a ser entrevistado. Esse único sujeito nos forneceu um conjunto de informações de qualidade e que julgamos suficientes para a contemplação de nosso objeto de estudo, não necessitando, portanto, da colaboração de outros sujeitos. Compartilho com os pressupostos da pesquisa qualitativa (González Rey, 2002), que se legitima pela qualidade das informações e não pela quantidade de sujeitos que as produz.

Assim, o participante da pesquisa foi um educador popular de 35 anos, residente na cidade de São Paulo, que atuava com jovens de classes populares há 13 anos, nomeado por mim de Luís. No momento da pesquisa, ele trabalhava como diretor-presidente de uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) e estava desenvolvendo um projeto com jovens de periferia, atuando como educador popular. Ele é membro-fundador dessa Oscip desde 2003, na qual já desenvolveu vários Projetos com jovens, principalmente de classe baixa, sempre envolvendo a democratização ao conhecimento e à cultura, à geração de trabalho e renda que, segundo ele, são condições indispensáveis para garantir a autonomia dos cidadãos.

Foi utilizado como instrumento a entrevista do tipo semiestruturada, na modalidade recorrente. A escolha pela entrevista do tipo semiestruturada se deu pela possibilidade de os sentidos do entrevistado poderem ser mais bem expressos em uma situação de entrevista que possua um roteiro relativamente mais livre, e da modalidade recorrente de entrevista em que pesquisador e sujeito estabelecem mais de um encontro, quantos julgassem necessários.

Sobre a entrevista recorrente, Sadalla, Wisnivesky, Saretta, Paulucci, Vieira e Marques (2005) apontam que "A partir da fala integral do participante, o pesquisador procede à busca de significado daquilo que foi relatado até que ambos concordem com o que foi discutido" (p. 75). Reconheço que, a partir de minhas indagações ao sujeito sobre os conteúdos de sua fala, foi possível minimizar as inferências arbitrárias que pudessem não condizer com o que o ele pretendeu comunicar.

Foram realizadas três entrevistas diferentes, em forma e conteúdo. A primeira contou com questões acerca da história de vida do Luís, focada em sua trajetória profissional até o momento presente, e algumas questões iniciais a respeito da população para/com a qual desenvolve seu trabalho, ou seja, os adolescentes. Na segunda, abordei questões sobre os adolescentes e como Luís percebe e se relaciona com eles, sobre as metas e importância em relação ao seu trabalho e sobre sua metodologia de trabalho, por meio de questões que estavam fundamentadas em sua fala da primeira entrevista e algumas frases polêmicas para que ele discutisse, refletisse e explicitasse seu pensamento. Por fim, na terceira entrevista, a partir da organização, confrontação e síntese das entrevistas anteriores, selecionei quatro temas com questões geradoras de aprofundamento e reflexão pelo sujeito. Os temas selecionados foram: concepção de homem, concepção de adolescente, importância do trabalho em educação popular com jovens e metas do trabalho em educação popular com jovens.

Todas as entrevistas foram gravadas, transcritas e enviadas a Luís, na íntegra, anteriormente à próxima entrevista, para que ele realizasse a leitura e se apropriasse de sua fala. Após transcrição e várias leituras das entrevistas, os conteúdos presentes na fala do participante foram organizados a partir de questões repetentes, lacunares, contraditórias e retornei a ele para checar meus entendimentos e melhor compreender suas falas anteriores.

Sobre a contradição, entendo-a como possibilidade de transformação, como a mola propulsora para a superação de formas de pensar, agir e sentir. Por isso, com esse instrumento, não permaneci apenas no registro das contradições expressas pelo sujeito, mas o "confrontei" com os conteúdos contraditórios de sua própria fala, criando uma condição para que ele pudesse repensar questões, agregar outros elementos e revelar novas formulações.

Coerente com os pressupostos epistemológicos da Psicologia Sócio-Histórica, foi escolhida a Estratégia de Análise dos Núcleos de Significação, apresentada por Aguiar e Ozella (2006), para análise das entrevistas. Segundo Vigotski (1999), o processo de significação ou internalização é tipicamente humano e revolucionário, pois carrega a possibilidade de reestruturar radicalmente a atividade psíquica. No processo de internalização, o indivíduo converte o universo objetivo e os significados socialmente compartilhados em sentidos subjetivos, por isso a apropriação do mundo se dá pelo prisma dos sentidos. Desse modo, para compreender o indivíduo é pertinente se aproximar do processo de constituição desses sentidos, explorando emoções, necessidades e motivos que estão aí contidos.

Segundo Aguiar e Ozella (2006), a palavra com significado e impregnada de sentido deve ser o ponto de partida da análise. Parafraseando Vigotski (2001), a palavra com significado se encontra vinculada ao contexto da narrativa da pessoa e das condições histórico-sociais em que ela está inserida. Ela é um elemento empírico que revela a subjetividade de forma mediada. É necessário, portanto, aproximar não só do empírico, mas também dos múltiplos mediadores que circundam a palavra expressa.

Ainda de acordo com Aguiar e Ozella (2006), os Núcleos de Significação "devem expressar os pontos centrais e fundamentais que trazem implicações para o sujeito, que o envolvam emocionalmente, que revelem as suas determinações constitutivas" (p. 231), e que possam colaborar com o objeto de pesquisa.

Foram construídos cinco Núcleos de Significação que abarcavam principalmente os seguintes conteúdos de análise: concepção de homem; concepção de adolescência, concepção de educação, método e objetivos de trabalho. Para fins deste artigo, a discussão será realizada interligando todos os núcleos e privilegiando os conteúdos sobre concepção de homem e adolescência e seus efeitos na prática do Luís.

 

ANÁLISE E DISCUSSÃO

É por meio da palavra com significado e da associação de palavras que pude chegar aos sentidos constituídos por Luís sobre nosso objeto de estudo. A palavra, como materialização do pensamento humano (Vigotski, 2001), existe também como síntese dos múltiplos sentidos do sujeito, ou seja, ela é uma inteligibilidade de parte do real. Dessa forma, as análises obtidas nos núcleos de significação me permitem dizer que a palavra "transformação", para Luís, condensa sentidos múltiplos que atravessam seu trabalho e que também se expande para outros âmbitos de sua vida. Partirei então da palavra transformação para construir e amarrar a rede complexa de sentidos constituídos por ele acerca do objeto de estudo.

A palavra transformação, utilizada por Luís, contém o significado dicionarizado, mas subverte e extrapola esse significado, pois ela aparece em um contexto único de configuração singular. Assim, não é qualquer transformação, e sim a transformação que contém sentidos particulares para Luís. Mas, quais sentidos são esses? Transformar o que, quem e como? Transformar para quê? É o que será discutido.

Em relação à concepção de homem,4 de Luís, o elemento que é ressaltado por ele para pensar a sua prática educativa é acreditar no homem como ser inacabado, em constante transformação. Porém, recorrentemente, ele fala sobre o homem de forma generalizada e abstrata (desarticulado da prática) e, nesse sentido, reconheci em sua fala uma tensão entre conceber o homem ora de forma inatista, ora de forma historicizada, sendo que tais contradições, ora coexistem em harmonia, ora são produtoras de tensão e desconforto para ele. Essa tensão é conferida pela contradição entre social × inato e pela dicotomia social × individual. O sujeito considera que o social constitui o indivíduo e, ao mesmo tempo, não consegue abandonar a concepção inatista para algumas características humanas.

Sobre o inatismo, Luís defende que todo ser humano, como espécie, possui características que são inatas e universais, como apresentado em sua fala: "quando eu falo da curiosidade,5 que é uma coisa natural da espécie humana, isto é, biológico, é essa curiosidade que nos fez dar vários saltos na história da espécie humana".

Compreendo que a curiosidade é uma Função Psicológica Superior (FPS) que, diferentemente dos processos elementares, necessita da relação social para existir (Vigotski, 2007). Desse modo, o homem não nasce curioso, ele aprende a ser curioso na relação com os outros homens. A forma de ser, agir e sentir que compõe a curiosidade é histórica, assim como são as outras FPSs, como a criatividade, memória e atenção voluntária.

As FPSs foram desenvolvidas ao longo da historia da humanidade pelos homens como recursos para a satisfação de necessidades ou, por outro ângulo, torna-se uma necessidade historicamente constituída, nesse caso, ser curioso. As FPSs são heranças sociais, preservadas nas e pelas relações humanas. Vigotski esclarece essa análise afirmando que "A internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da espécie humana; é base do salto quantitativo da psicologia animal para a psicologia humana (...)" (2007, p. 58).

Luís também argumenta acerca da existência de características inatas individuais. Para isso lança mão da palavra "personalidade", que ele descreve como sendo um conjunto de características inatas a determinado indivíduo que o torna único, além de ser considerada uma instância do homem que resiste e que é impenetrável aos padrões comportamentais que seriam impostos pela sociedade. É como se a personalidade representasse a possibilidade de autenticidade do indivíduo.

(...) eu acho que [eu tenho que] pensar um pouco melhor, mas é nesse sentido quando eu falo da personalidade (...) é isso, a gente tem características inatas, mesmo, que são biológicas.

(...) o que eu chamo de personalidade é isso: é uma coisa que nos torna únicos, cada um tem a sua individualidade e a cultura, ela tenta (...) criar padrões para isso, tenta nos dizer: que o homem jovem adolescente age dessa forma, o adulto age dessa forma (...), o homem idoso age dessa forma. Então a personalidade é que passa por todos esses valores e uniformidades que a cultura quer colocar na gente.

Percebo que nas falas acima o pensamento de Luís apresenta tensão fundada no impasse entre considerar o inatismo e ao mesmo tempo considerar as relações sociais na constituição do homem. O pensamento inatista é amplamente disseminado e arraigado no imaginário social e na própria psicologia, e compreendo que, para ele, retirar os elementos naturais do homem significa quase retirar sua humanidade, é deixar de ser humano. A Psicologia Sócio-Histórica defende o contrario: a humanidade só existe pela possibilidade do homem de se apropriar da cultura, da história e do que é social. Bock (2014) defende ser "preciso compreender que a subjetividade não está dentro [do individuo]. Ela se movimenta do sujeito para o mundo e deste para o sujeito, em um movimento permanente" (p. 367). Apesar de essa tensão ser recorrente na fala do entrevistado, a concepção inatista que carrega ideias de estagnação, paralisia e imutabilidade praticamente desaparece quando sua fala se articula à prática educativa, dando espaço para as ideias de homem historicizado, de transformação, de movimento e de mudança.

Compreendo, assim, que Luís quer se colocar num lugar que considera o homem como ser social e histórico, apontando que as relações sociais são necessárias para o desenvolvimento do homem e apresentando a educação como um meio que viabiliza esse desenvolvimento e transformações humanas, como ilustra sua fala a seguir:

(...) eu acho que tem coisas que determinam a sua vida, que indicam um caminho, mas que isso a gente traz dentro da gente eu não acredito, eu acredito que é social, até mesmo porque se fosse assim não precisaríamos de educação, todo mundo já estaria determinado a ser o que é, pra que você iria precisar de educação, de pai e mãe, solta no meio do mato e depois quando crescer vem pra sociedade e já vem pronto e acabado.

Considerar o homem com características inatas exigiria de Luís, em meu entendimento, um ocultamento dos determinantes sociais produtores e mantenedores da alienação e opressão em que vivem os jovens pobres, além de contrariar o sentido atribuído por ele à importância de sua prática educativa como via de transformação na vida dos adolescentes. A direção dessa transformação seria conduzir os adolescentes de uma vida com conteúdos alienados para uma vida consciente, com conteúdos críticos e transformadores da sociedade.

A concepção de homem de Luís é, portanto, mediadora de sua prática. Porém, ela não determina como causalidade as suas formas de ação. Isso porque os sentidos do sujeito que constituem a sua prática educativa não se encontram condensados, em sua totalidade, nessa atividade. Assim, compreendo que uma particularidade da atuação revela dimensões de sua totalidade. Contudo, a totalidade da prática de ensino de Luís não revela a totalidade dos sentidos possíveis acerca dessa prática. Os sentidos sobre concepção de homem, com outros sentidos, mediarão essa prática de forma dialética e complexa, mas não serão equivalentes.

Vigotski (2001) discute que:

(...) exatamente porque um pensamento não tem um equivalente imediato em palavras, a transição do pensamento para a palavra passa pelo significado. Na nossa fala há sempre o pensamento oculto, o subtexto. Devido à impossibilidade de existir uma transição direta do pensamento para a palavra, sempre houve quem se lamentasse acerca da inexpressabilidade do pensamento. (p. 186)

Considero o mesmo raciocínio do pensamento para a atividade. O motivo pelo qual Luís realiza seu trabalho está voltado para a transformação do jovem no processo de ensino-aprendizagem, e não para as características inatas que não podem ser transformadas. Desse modo, na contradição entre sócio-histórico × natural, os elementos sócio-históricos são priorizados. Esta fala de Luis sintetiza a relação que ele atribui à sua forma de pensar o homem e à constituição de sua prática educativa:

Pesquisadora: Eu queria entender, o que conceber o homem dessa forma implica na sua prática de educação popular com os jovens?

Luís: (...) é olhar o ser humano de uma maneira que a gente enxergue nele a capacidade dele mudar e que ele não está acabado.

A tensão contida na concepção de homem se repete para a concepção de adolescência/juventude: compreender o jovem como sujeito historicizado e sujeito naturalizado. Vejamos as frases abaixo quando ele aponta algumas características dos jovens:

(...) esse jovem, ele tem essa capacidade, essa curiosidade e essa velocidade de raciocínio, uma coisa muito natural da espécie humana.

(...) a rebeldia, a curiosidade, a competitividade e essa necessidade de status vai variar de acordo com o grupo social, porque a rebeldia para um grupo social não necessariamente é para outro (...) essas características, elas vão variar.

(...) sua família tem muita grana, mas você não é dono daquela grana, ao mesmo tempo quando você não tem grana e você quer uma coisa, se você não tem condições de entender por que você socialmente ainda não compreendeu a complexidade da sociedade, você vem com essa característica de ser rebelde.

Luís discorre sobre características que seriam próprias da fase da adolescência. A tensão e contradição entre elas serem constituídas ou naturais é evidente. O homem seria dotado de uma essência anterior à sua participação na sociedade que se atualiza e se manifesta obrigatoriamente em determinados períodos do desenvolvimento? O homem possui uma essência natural que constitui sua personalidade, mas que não estaria atrelada a períodos do desenvolvimento, e ela se manifesta como um continuun em toda a vida do indivíduo? O adolescente possui características naturais ao período do desenvolvimento, possui outras naturais e individuais como um continuun e também outras que seriam socialmente constituídas e por isso podem ser sócio-historicamente explicadas? E ainda existem características próprias à espécie humana?

Para Luís, a "velocidade de raciocínio" seria própria da fase da adolescência, porém sua qualidade e forma de expressão estariam ligadas ao social. A "rebeldia" seria uma característica sócio-historicamente constituída e assim uma de suas possibilidades de gênese é explicada por ele. A "curiosidade" é natural à espécie humana como apontado na discussão sobre concepção de homem. Por mais que o pensamento naturalizante esteja presente em sua fala, ele não é elemento de destaque em sua relação com esse jovem. Luís também considera os determinantes econômicos, político-sociais e os fatores histórico-culturais como responsáveis pela atual situação da adolescência no Brasil.

(...) esse jovem é um jovem que é vítima do próprio sistema capitalista, aqueles que estão ali na franja do sistema sofrendo todo o tipo de exclusão, e que estão de uma certa forma impossibilitados de acessar os seus direitos mesmo estando no estado de direito.

(...) tem uns jovens que nem tiveram adolescência, (...) muitos já saíram da infância e foram direto pro mercado de trabalho, ter que se sustentar, cuidar da casa (...).

Isso aqui é histórico, porque o termo adolescência, ele é muito recente, quer dizer que está mais perto do mundo capitalista, da sociedade capitalista e mais do capitalismo industrial porque está muito relacionado na educação para o mercado.

Nesse momento, a fala de Luís está em consonância com os apontamentos de Bock (2004):

A adolescência refere-se, assim, a esse período de latência social constituído a partir da sociedade capitalista, gerada por questões de ingresso no mercado de trabalho e extensão do período escolar, da necessidade do preparo técnico. (:) Essas questões sociais e históricas vão constituindo uma fase de afastamento do trabalho e o preparo para a vida adulta. As marcas do corpo, as possibilidades na relação com os adultos vão sendo pinçadas para a construção das significações (p. 41).

Na história de vida de Luís, entendo que alguns fatores podem ter contribuído para a sua visão de adolescência crítica apontada acima: ser membro de família pobre e de baixa escolaridade; ter começado a trabalhar cedo, aos treze anos de idade, e não mais ter parado, sempre conciliando estudos com trabalho, o que, de certa forma, o privou da vivência plena da condição de adolescente postulada e difundida socialmente; ter trabalhado com pessoas de classe economicamente desfavorecida e atualmente atuar com jovens de classe baixa.

Luís possui um extenso repertório sobre a realidade da classe baixa e mais especificamente dos jovens, das circunstâncias que enfrentam no dia a dia e os colocam num lugar de difícil acesso aos direitos sociais, assim como das maneiras e formas comportamentais que eles têm assumido no cotidiano. Acredito que essa experiência e conhecimento sejam utilizados por Luis no trabalho com esses jovens na tentativa de transformá-los para que eles não reproduzam a lógica capitalista, ou seja, a ideologia dominante que os circunda. Admitir a existência da história e da realidade social vivida por esses jovens de classe baixa confere a Luis uma forma também crítica de pensar sobre o futuro e as escolhas dos jovens, que para ele seriam compostas principalmente pela questão econômica e pela lógica capitalista.

(...) acho que o problema não é o jovem não escolhe ele aproveita a oportunidade, (...) acho que no próprio mundo capitalista muita coisa você não escolhe você tem que fazer por necessidade.

(...) o jovem também tá cheio de ficar ouvindo aquele negócio da mídia de que tem oportunidade pra todo mundo, o que é mentira, alguns sacam logo no início e outros demoram, outros reproduzem esse discurso: ah, mas se a gente lutar a gente vai conseguir, e não vai, o mercado não é pra todo mundo, tem ali algumas características.

(...) eu procuro sempre falar isso quando eu estou trabalhando com o jovem: esse negócio de você ter força de vontade, você sonhar e falar eu quero, isso mesmo não significa que você vai conseguir porque não vai ter espaço pra todo mundo.

A primeira fala da sessão acima remete para a importância de considerar que a realidade agrega muitos impedimentos gerados principalmente pela condição econômica de pobreza que coloca esses jovens num lugar de difícil acesso aos benefícios sociais. Essa realidade constitui, como analisado anteriormente, suas formas de ser, agir e sentir e, portanto, constitui também os seus movimentos de escolha. Nas falas subsequentes, Luís aponta alguns mitos construídos na sociedade capitalista, como a existência de "oportunidade para todos" e a "força de vontade". Esses mitos carregam a ideia de que a sociedade oferece condições de igualdade de oportunidades para todos e por isso caberia exclusivamente ao indivíduo esforçar-se para obter sucesso na vida.

Os mitos trazidos por Luís recordam aqueles ditos por Freire (1996/2005), ainda atuais:

(...) todos são livres para trabalhar onde queiram. (...) O mito de que todos, bastando não ser preguiçosos podem chegar a ser empresários – mais ainda, o mito de que o homem que vende, pelas ruas, gritando: "doce de banana e goiaba" é um empresário tal qual o dono de uma grande fábrica. (...) O mito da operosidade dos opressores e o da preguiça e desonestidade dos oprimidos. (p. 159)

Articulada aos impedimentos sociais, a visão perversa disseminada socialmente de que a trajetória de vida profissional de sucesso ou fracasso depende somente da vontade e do esforço de cada um colaboram para a manutenção de uma estrutura social marcada pela desigualdade, enfim, por uma sociedade de classes. Além de ter nascido pobre, esse jovem ainda é culpabilizado e também se sente culpado por permanecer na condição de pobreza.

A ideologia liberal defende que a atitude de cuidar de si próprio como via para que o todo melhore torna universal a crença no esforço pessoal e descola o social da constituição da subjetividade. Os elementos determinantes para a elaboração de estratégias que viabilizem a satisfação das necessidades são reduzidos à "ideia mágica" de que todas as dificuldades são superadas pelo próprio esforço. Ocorre que assim ficam ocultos os vários determinantes que constituem a subjetividade e condicionam a vida dos sujeitos.

Sua concepção tanto de homem como de adolescente privilegia-os como seres em constante transformação. Sua função e responsabilidade para com esses jovens é direcionar essa transformação rumo à constituição de uma consciência crítica e de atitudes também críticas e transformadoras por meio do processo de ensino-aprendizagem, como apresentado nesta fala:

(...) a principal meta no meu trabalho em educação popular com jovens é preparar pra vida, ter uma visão crítica do mundo, uma visão criativa, podendo ver que você formou realmente sujeitos históricos, não só cidadãos, mas pessoas que são protagonistas da sua vida, da sociedade.

Luís percebe e quer que sua prática educativa seja transformadora na direção de propiciar, em última instância, a construção de uma sociedade mais justa e mais solidária, como ele sintetiza nesta breve fala: "(...) é muito romântico e utópico isso, mas o que a gente quer é uma nova sociedade, mais justa, solidária". Nesse sentido, ele condensa em sua prática elementos/meios que contribuem para essa transformação.

Um elemento importante está em sua forma de educar embasada por princípios da EP, que segundo Gadotti (1996) representa um dos paradigmas mais ricos da pedagogia contemporânea, configurando "a grande contribuição do pensamento pedagógico latino-americano à pedagogia mundial" (p. 19). Esse autor defende a produção de Paulo Freire como a maior referência na consolidação da EP, tendo como principal obra desse autor a Pedagogia do oprimido.

A EP é entendida por Paulo Freire (...) como o esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares; capacitação científica e técnica. Entendo que esse esforço não se esquece, que é preciso poder, ou seja, é preciso transformar essa organização do poder burguês que está aí, para que se possa fazer escola de outro jeito. (Freire & Nogueira, 1989, p. 19)

Para que isso seja possível, é preciso que os métodos pedagógicos, os educadores populares e as relações de ensino-aprendizagem não reproduzam as desigualdades, a exclusão, enfim as relações sociais de dominação, mas que questionem a atual lógica social, econômica e política, que é excludente, e favoreçam a criação de alternativas de superação dessa exclusão.

Paulo Freire apostou durante sua vida que por meio da educação poderíamos transformar a organização social, mas ele não foi ingênuo de pensar na educação como único meio de transformação, pois esta exige um movimento da sociedade como um todo, em sua complexidade. Em suas palavras:

Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho se não viver plenamente a nossa opção. Encarnála, diminuindo assim a distância entre o que fizemos e o que fazemos. (2000, p. 67)

Entre os princípios6 da EP destacam-se, no discurso de Luís, a promoção de uma educação com relações professor-aluno que sejam horizontais, democráticas, dialógicas, uma educação conscientizadora acerca das condições de opressão a que estão sujeitadas as classes populares e o reconhecimento da educação como ato político. Vejam a fala dele, a seguir:

(...) duas faces da educação: a educação enquanto um ambiente institucional que prepara para o mercado e para a sociedade capitalista e uma educação mais popular, emancipadora, que prepara as pessoas para (...) ter essa sensibilidade social, política e entender todos como iguais do ponto de vista de seres humanos.

Em referência a Freire (2005), Luís condena a forma de educação "bancária" e preza por uma educação "problematizadora". Sua metodologia contém os princípios da EP reconhecidos por ele como imprescindíveis à constituição de formas transformadoras dos adolescentes se colocarem no mundo.

Destaco que para tal empreendimento o papel do educador nesse processo educativo exige uma contínua e dialética integração entre ação e reflexão, uma atuação que carregue a dialética voltada para a ação transformadora dessa realidade injusta e desigual, para a construção de outra realidade justa e democrática. O educador torna-se um mediador na constituição da consciência crítica e na criação e concretização de práticas transformadoras para os jovens. Nesse sentido, compreendo que a prática de Luís pretende ser crítica, uma vez que seu exercício encontra-se em constante mediação com suas reflexões teóricas.

Enfatizo, por último, a práxis como um elemento de sentido central para compreender a prática de Luís. Ela pretende ser práxis, assim como é esperado para os adolescentes o desenvolvimento dessa práxis. É importante ressaltar que nem toda atividade é uma práxis, mas toda práxis requer uma atividade que seja transformadora (Vazquez, 2007). Sendo assim, considero que nosso educador popular possui uma intenção revolucionária clara de transformação da realidade social, a qual pretende estar encarnada em seu trabalho.

Seu conhecimento teórico é constantemente mobilizado/movimentado/produzido em função de uma realidade percebida como injusta e que o incomoda, e sua prática educativa é um motivo possível de superação desse incômodo.

A práxis não privilegia teoria ou prática, ela existe em uma relação de tensão constante entre essas duas instâncias. Assim, Vazquez considera que "algumas vezes se transita da prática à teoria e outras desta para a prática" (p. 257), mas na ausência de um desses dois elementos não há práxis.

Acredito que desenvolver a compreensão da relação dialética existente entre teoria e prática seja fundamental para se constituir a práxis, além de ser um caminho necessário buscado por educadores que tenham como objetivo de sua prática a transformação social. Constituir a prática pedagógica como práxis potencializa a construção de um saber direcionado para a atuação no mundo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo possibilitou, por meio da voz de um educador popular que atua com adolescentes de classe baixa, refletir sobre como as diferentes formas de conceber o homem e a adolescência repercutem na atuação com adolescentes no âmbito da educação.

O trabalho de Luís como educador popular, sua história de vida, os adolescentes com os quais convive e já conviveu, foram e continuam sendo mediadores fundamentais para incluir a historicidade dos fenômenos em sua compreensão. Negar a historicidade seria negar o sentido atribuído a seu trabalho de transformação social, como ele mesmo diz, "porque se fosse assim não precisaríamos de educação", caso existisse um eu predeterminado.

Por outro lado, encontra-se na visão de Luís uma tradição da psicologia que continua constituindo as formas de pensamento dominantes: a personalidade inata como uma marca do humano, e abandonar isso seria como retirar a humanidade, retirar o que o homem possui de diferente dos outros animais.

Essa contradição pode justificar a recorrência dos pensamentos lacunares durante a fala de Luís como "tenho dificuldade de explicar essa idéia" e "preciso pensar melhor", já que, mesmo ele estando em uma atividade que possibilite uma reflexão que rompa com os pensamentos naturalizantes e dicotomizantes, ele não consegue formular seu pensamento de maneira diferente, mesmo percebendo em alguns momentos da entrevista essa contradição.

E porque ele ao perceber a existência da contradição não consegue superá-la? A consciência da contradição não traz a superação. Os conteúdos contraditórios necessitam de elementos teóricos que sejam suficientes para que o salto qualitativo na consciência aconteça e avance. As perguntas realizadas durante as entrevistas ofereceram novos elementos que movimentaram o pensamento do sujeito e que poderiam ter cumprido o papel de mediadores para a superação da contradição, mas em um determinado momento a contradição permanece e o pensamento não mais se movimenta, é preciso mais.

Nesse sentido, ofereço ao leitor a seguinte pergunta: A Psicologia Sócio-Histórica pode oferecer contribuições à EP?

Refletindo a partir das análises realizadas, acredito que a Psicologia Sócio-Histórica possa colaborar para a construção de formas de pensar que sejam coerentes com práticas críticas, às quais se propõe a EP. Para o sujeito desta pesquisa, poderia ser útil como uma alternativa, um caminho possível para a superação de contradições teóricas e, quiçá, para fortalecer sua práxis, isso porque ele teria um elemento teórico de sustentação e potencialização de sua prática.

Luís, mesmo dicotomizando o ser humano e mais especificamente o adolescente – compreendendo a gênese de seu comportamento ora como sociais e históricas, ora como individuais e inatas –, privilegia o social ao individual em sua atuação. Isso não ocorre em outras atuações trazidas em revisão bibliográfica em que a gênese dos comportamentos é reconhecida como individual e as práticas reforçam a patologização e naturalização da adolescência.

Desse modo, compreendo que ter uma concepção de homem, segundo a qual este só se torna humano na relação com a humanidade e, sendo assim as questões sociais e históricas, constitui seu desenvolvimento, e suas diferentes formas de expressão pode beneficiar a EP.

Em contrapartida, também ofereço outra pergunta: a EP pode contribuir com a psicologia?

Acredito que falta à psicologia um projeto social que não só oriente, mas que se incruste na atuação dos psicólogos como práxis. Nisso a EP já está mais que calejada e podemos nos embeber dela, em nossa caminhada de luta por uma sociedade e humanidade que queremos.

Enquanto a EP tem dedicado sua luta incansável apoiando as classes populares, e essa luta continua sendo relevante na atualidade, já que sua intenção ainda não foi cumprida, ou seja, "de propiciar a humanização e a libertação dos sujeitos que sofrem com as opressões políticas, econômicas e culturais" (Brandão & Assumpção, 2009, p. 10), a psicologia tem afirmado certa neutralidade em sua atuação e isso tem tido como efeito o descompromisso social, práticas alienadoras, desconectadas dos grandes problemas da sociedade deste tempo e, sobretudo, a sustentação da desigualdade social. Na suposta neutralidade, o vento atua a favor das classes dominantes.

Bock (2009) vem discutindo e lutando pelo compromisso social da psicologia. Ela traz a seguinte provocação:

(...) [qual a] importância ou a diferença de termos uma ou outra concepção sobre o fenômeno psicológico. A diferença está em que as concepções naturalizantes nos afastam do mundo social e acobertam a construção social do psiquismo, tornando-se ideológicas. Ao contrário, os psicólogos devem buscar construir leituras que, ao falarem do mundo psíquico, falem do mundo social e, ao pensarem em transformações, psíquicas, exijam um projeto social. (p. 23)

Se o psiquismo é produto das relações sociais, que relações sociais almejamos? Que projeto social precisamos exigir e construir? Que contribuições podemos oferecer à sociedade? Essas perguntas precisam ser postas, assim como respostas coletivas para ela, e o posicionamento (diferente de neutralidade) coerente com essas respostas deve estar encarnado na formação e atuação dos psicólogos em seus diferentes locais de trabalho.

Acredito que a EP possa contribuir para que a psicologia encontre caminhos no sentido de se comprometer com a sociedade como classe e se posicionar, desenvolvendo ferramentas úteis que convertam esse compromisso em atuação, em práxis. Assim como Bock (2003), defendo que esse compromisso seja "pela melhoria da qualidade de vida; um compromisso em nome dos direitos humanos e do fim das desigualdades sociais" (2003, p. 28).

 

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Recebido em: 14/05/2015
Aceito em: 30/05/2016

 

 

(Endnotes)

1 Contato: flavinaves@yahoo.com
2 Dissertação denominada "Sentidos constituídos por um educador popular acerca de sua prática desenvolvida com adolescentes: uma análise Sócio-Histórica", apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Educação: Psicologia da Educação, sob a orientação da Profa. Dra. Wanda Maria Junqueira de Aguiar. Disponível em: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_arquivos/23/TDE-2011-06-13T08:39:44Z-11042/Publico/Flaviana%20Franco%20Naves.pdf
3 Em geral, empregarei os termos jovem/juventude e adolescente/adolescência como sinônimos por entender que, mesmo o termo adolescência tendo sido criado pela Psicologia, em muitas teorias psicológicas, as diferenças entre eles são imprecisas sendo ora distintas, ora complementares e outras equivalentes.
4 Os conteúdos de análise presentes nos Núcleos de Significação estarão destacados ao longo da análise para que os leitores possam localizá-los e diferenciá-los de forma mais clara.
5 As palavras e/ou pequenos trechos italizados presentes em todas as falas do sujeito representam os principais conteúdos reveladores de seu pensamento em cada fala selecionada.
6 Não é intenção deste artigo explicar cada um dos princípios da educação popular, porém, para análise da fala de Luís, foi preciso compreendê-los. Desse modo, eles encontram-se descritos de forma mais detalhada na dissertação de mestrado que compôs este artigo e ainda ao longo de toda obra de Paulo Freire e outros teóricos da Educação.

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