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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

 ISSN 1983-8220

     

 

ARTIGOS

 

O trabalho criativo: perda, luto e metáfora

 

Creative work: loss, mourning and metaphor

 

 

Marcus Rodrigues Jacobina Vieira1; Elisa Maria de Ulhôa Cintra

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

 

 


RESUMO

Seguindo a trilha aberta por Melanie Klein e Hanna Segal, traçamos algumas considerações sobre o trabalho do luto relacionado ao impulso para criar. O medo de perder e a dor relativa ao que já foi perdido são a base das ansiedades depressivas e podem suscitar o desejo de restaurar e recriar os objetos amados e o próprio mundo interno que se encontra destruído. O desejo de restaurar revela-se através dos processos criativos, possibilitando um trabalho de luto, e associa-se aos processos de sublimação.

Palavras-chave: processos criativos; luto; sublimação; simbolização; posição depressiva.


ABSTRACT

This paper is about the relationship between the work of mourning and the impulse to create, in agreement with the theories of Melanie Klein and Hanna Segal. The experience of loss and its related fears and pains are the basic ingredients which underlie depressive anxieties and they can be worked through in order to raise the desire to restore and recreate the loved objects, both in the inner and outer world. The desire to restore and repair lead to the ability to create and sublimate, enabling the work of successful mourning.

Keywords: creative processes; mourning; sublimation; symbolization; depressive position


 

 

Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?

(Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta, 2013, p. 22)

Neste texto, pretendemos tecer algumas considerações sobre o trabalho do luto relacionado ao impulso para criar. Compreendemos que todo trabalho de luto envolve um processo de criação, assim como todo processo criativo traz dentro de si os mecanismos de transformação metafórica desencadeados pelo trabalho do luto. Consideramos que o luto bem-sucedido resulta de um processo de transformação do vivido, pelo qual a imediaticidade e a intensidade das experiências vividas são metaforizadas, isto é, transformadas em memórias, em formas poéticas, plásticas, musicais ou obras científicas, que podem levar ao surgimento de um novo sujeito psíquico, na medida em que passa a dar novos sentidos à experiência da perda. Seguindo a trilha aberta por Melanie Klein (1929, 1935, 1940), pensamos que o conceito de posição depressiva possibilita uma articulação entre os processos inconscientes que constituem e desenvolvem o psiquismo e sua importância na manifestação e na produção do impulso criador. Por meio de inúmeras posições depressivas, pode se dar a metaforização da experiência vivida e da perda: a posição depressiva é, ao mesmo tempo, o contato com a dor sentida e um memorial, que se constrói por meio de uma obra criativa. Neste artigo, focalizaremos a elaboração do luto por meio da arte: quando ela pode acontecer e quando se torna impossível; nesse último caso, encontramo-nos diante de uma perda que não pôde ser nem parcialmente elaborada nem superada.

Algumas questões têm despertado nossa curiosidade e desenham o horizonte desta reflexão, sem a pretensão de que possam ser plenamente respondidas. Quanto do mundo interno do artista nos é revelado por suas obras? Quais as imbricações entre os processos criativos, a sublimação e o trabalho do luto? Um trabalho do luto malsucedido pode ser considerado um impedimento severo para a manifestação do impulso criador?

À medida que a Psicanálise se desenvolveu, várias tentativas foram feitas para compreender as origens da sensibilidade e da criatividade artística. Quando Freud afirmou a existência de uma vida inconsciente de fantasia e de formações simbólicas e metáforas funcionando dentro do psiquismo, tornou possível uma interpretação psicológica das obras de arte e nos mostrou como a obra de um artista é produto da fantasia e tem suas raízes, tal como os brinquedos e sonhos infantis, na vida de fantasia inconsciente, conforme Segal (1952/1969).

Em nossa opinião, foi Melanie Klein quem projetou mais luz sobre a questão do impulso criativo e da sua relação com os processos de sublimação. Outros autores de linhagem kleiniana também se debruçaram sobre a questão da arte e de sua relação com os processos inconscientes, entre os quais destacamos Hanna Segal e Ronald Britton.

 

MELANIE KLEIN E HANNA SEGAL: POSIÇÃO DEPRESSIVA, IMPULSO CRIADOR E TRABALHO DE METAFORIZAR O VIVIDO

São as fantasias motivadas pelas ansiedades depressivas que colocarão em marcha o desejo de reparar e restaurar, conforme Segal (1952/1969). Por que afirmamos isso? O medo de perder ou sentir dor pelo que já foi perdido - que estão na base das ansiedades depressivas - suscitam o desejo de restaurar e recriar tanto os objetos amados quanto o próprio mundo interno que foi destruído. E é esse desejo de restaurar que leva à capacidade de criar e de sublimar.

Hanna Segal (1993), em seu texto sobre a relação entre as origens do impulso criador e a posição depressiva, tece diversos comentários sobre um texto de Klein, "Situações de ansiedade infantil refletidas em uma obra de arte e no impulso criativo", de 1929. Nesse último, Melanie Klein analisa o personagem de uma ópera de Ravel, L'enfant et les sortilèges, para mostrar que a ansiedade persecutória, associada aos impulsos destrutivos de uma criança contra seus objetos de amor, pode transformar-se em um impulso de reparar por amor e por compaixão.

Os pontos-chave da história se dão quando o menino, cheio de cólera por ter frustradas as suas expectativas, tenta ferir um esquilo. Nesse momento, todos os objetos a sua volta ganham vida própria e manifestam intensa hostilidade contra ele. Mais tarde, essa mesma criança manifesta sua preocupação com o outro, quando tenta cuidar da pata de um esquilo ferido. No momento em que a agressividade dá lugar à compaixão, todos os elementos que antes se apresentavam como objetos aterrorizantes sofrem uma transformação, tornando-se amistosos. O menino chama por "mamãe", resgatando a imagem da mãe cuidadora, depois do momento de fúria e destruição, e, ao resgatar o objeto bom interno, reencontra a sustentação no ambiente externo e os objetos que o ameaçavam se transformam, fazendo eco ao seu chamado pela mãe boa.

O fato de o menino ter feito um apelo à figura protetora da mãe revela que a raiva e a hostilidade presentes nos momentos anteriores tinham cedido, em parte, permitindo que fizesse contato com a experiência amorosa que ele quer restaurar e que havia desaparecido no momento em que a cólera tinha tomado conta da cena psíquica.

Vale ressaltar que a história do menino descreve a movimentação da posição esquizoparanoide para a posição depressiva, que se dá nos períodos mais arcaicos da constituição do psiquismo. Isso se torna possível graças à introjeção de um bom objeto, que é a base de todo impulso de reparar e criar. A passagem para a posição depressiva é também o que possibilita o reconhecimento das diferenças entre o mundo interno e o externo, a aceitação de que somos limitados e o desenvolvimento da tolerância à frustração.

No segundo exemplo desse texto, Klein dedica-se a pensar sobre a vida da artista sueca Ruth Kjär e nos informa que essa jovem pintora sofria de uma profunda depressão, que fazia com que se sentisse invadida por um espaço vazio. Em certa ocasião, antes de se tornar pintora, quando um de seus quadros foi removido da parede, diante do espaço vago na parede de seu quarto ela foi dominada pelo sentimento insuportável de vazio interior. Essa angústia mobilizou-a de tal forma que ela se viu compelida a pintar um quadro para preencher aquele espaço. O espaço vago na parede parecia coincidir com o seu sentimento de vazio interior. Pela necessidade inicial de solucionar uma situação que lhe provocava um intenso sofrimento psíquico, Ruth Kjär tomou conhecimento de seu talento e iniciou uma carreira de sucesso.

Klein relata que um dos primeiros trabalhos de Ruth Kjär foi o retrato de uma mulher idosa em um estado de tristeza e resignação, como se nos dissesse, apenas com a expressão de seu olhar, que seu tempo de vida estava chegando ao fim. Um de seus últimos quadros, no entanto, um retrato de sua mãe, na figura de uma jovem, bela e exultante mulher com o queixo erguido e um olhar desafiador, revelava uma figura feminina com vitalidade, como se tivesse ainda muito desejo de viver. Parece que, nesse trabalho, a imagem desvitalizada da mãe revela que predominava na cena psíquica o desvalimento. No momento em que a pintora se sentiu criativa, pôde evocar a imagem de sua mãe jovem e vitalizada.

É interessante observar que Kjär cumpre as etapas descritas por Klein, desde as fantasias em que predomina a destruição dos objetos amados, na forma da imagem da velha senhora que aguarda resignada o próprio fim, até o ponto de ser capaz de restaurar esses mesmos objetos por meio do seu fazer criativo.

A transformação interna que acontece na posição depressiva, com a evocação da vitalidade da infância e sua integração ao psiquismo, é um caminho que exige trabalho psíquico e tempo para resgatar a potencialidade vital e exige aceitar as perdas inevitáveis. No caso da pintora, foi a revitalização da mãe interna provocada pelo nascimento da criatividade e pela aceitação e transformação de sua destrutividade que levou ao retrato da mãe em sua juventude.

O trabalho da posição depressiva consiste justamente no movimento de sair do pensamento mágico e onipotente. Se, por um lado, o mecanismo mágico tem o poder de produzir uma imediata realização de desejo, por outro, ao longo do tempo, o seu preço é bem alto, uma vez que representa uma fuga da transformação dos mundos externo e interno, ao passo que o lento trabalho de transformação da posição depressiva é capaz de fazer um verdadeiro resgate da vitalidade perdida e provocar um real rejuvenescimento.

A criatividade reencontrada coloca a pintora em contato com suas percepções internas e externas da beleza e da juventude que transparecem no retrato de sua mãe, feito no fim de sua vida. O seu impulso de reparar e reconstruir o narcisismo ferido e trazer à vida os seus bons objetos que estavam destruídos no estado de depressão ressignifica a relação da artista consigo mesma e com o mundo. Acreditamos que é por isso que a realização do trabalho criativo representa, para muitos artistas, um trabalho de elaboração psíquica interna semelhante ao processo analítico. De certa forma, a citação anterior de Rilke revela algo dessa necessidade vital de criar para se manter vivo e vitalizado.

 

HANNA SEGAL: A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA E SEU PODER DE METAFORIZAR O VIVIDO

Segal (1993) defende que a formação de símbolos é a própria essência da criatividade artística. Em um artigo de 1952, "Uma abordagem psicanalítica da estética", sugere que o impulso criativo está diretamente ligado à posição depressiva. Segundo a autora, a "necessidade do artista é recriar o que sente nas profundezas de seu mundo interno" (1993, p. 96); para isso, o artista cria um mundo que seja sentido como inteiramente novo. Dizemos isso para enfatizar que as obras de arte, seja na pintura, seja na literatura, têm o poder de nos transportar para dentro daquilo que há de mais singular e individual em nós e, ao mesmo tempo, o que há de mais universal, por meio de uma realidade perceptual e uma linguagem completamente novas, e isso vale tanto para o criador quanto para quem as usufrui.

Conforme Segal (1993), quando lemos um romance que nos impressiona, olhamos um quadro ou escutamos uma música, somos conduzidos para dentro de um completo mundo novo. E é um mundo que pertence exclusivamente à obra. Por mais realistas que sejam o pintor ou o escritor, dois pintores que pintam a mesma paisagem, ou o mesmo retrato, ou dois romancistas que descrevem a mesma sociedade, na realidade criam mundos exclusivamente seus.

Toda criação artística traz em seu bojo o desejo de trazer à vida objetos amados mortos ou, de alguma forma, perdidos. O escritor Marcel Proust, em sua obra mais importante, Em busca do tempo perdido, nos diz que "um livro é um grande cemitério onde sobre a maior parte das lápides não se pode mais ler os nomes desbotados" (1908/1979, p. 108). Aqui, damo-nos conta, em consonância com a sensibilidade do escritor e acompanhando o pensamento de Segal (1993), que, para que exista a necessidade de recriar, é preciso que os objetos tenham se tornado passado; esse distanciamento seria um fator determinante para que o sujeito se sinta impelido a criar. "Somente quando renunciamos àquilo que amamos é que podemos recriá-lo" (Proust, 1908/1979, p. 109).

Isso nos lembra do que disse Freud no texto "O eu e o id" (1923/2011) - o primeiro a fazer uma análise de obras de arte sob o prisma da psicanálise2 - sobre a renúncia ao objeto e sua posterior assimilação pelo ego. Desse modo, parece-nos impossível não antecipar aqui a necessidade do trabalho de luto para que se realizem de maneira satisfatória os processos de sublimação e criação.

De acordo com Segal (1993), Proust também enfatiza que o único modo pelo qual se pode fazer um luto é encontrando uma forma de expressão simbólica. Ela sustenta que a criação do mundo interno é também a recriação inconsciente de um mundo perdido. Mas que mundo perdido seria esse de que nos fala Proust? Um mundo de objetos tingidos com as cores das nossas projeções idealizadoras e que se perderam no tempo das nossas memórias mais arcaicas e de ideais que alimentavam um sentimento de completude e onipotência. Isso se expressa também na obra de outros artistas, entre eles o poeta inglês William Wordsworth quando nos oferece a sublime descrição das reminiscências de suas primeiras relações de objeto no seu famoso O prelúdio.

Esse processo de mergulhar nas próprias reminiscências perscrutando as camadas mais profundas das experiências emocionais arcaicas envolve o movimento de reconhecer a própria incompletude e a dependência dos objetos amados, assim como a agressividade e o potencial destrutivo que estão presentes nas experiências emocionais arcaicas. No caso de Proust, ele percebe, por meio do sofrimento e da dor das perdas, que será necessário recompor o próprio equilíbrio psíquico a fim de recuperar alguma harmonia e organização interna, pela realização do trabalho de criação.

O sentimento de ter, na fantasia, ferido ou danificado os objetos amados internos e externos, acompanhado por um sincero pesar, que muitas vezes se manifesta como um lamento, uma tristeza profunda pelas perdas, impele o ego na direção de reparar os danos feitos em fantasia e recompor o próprio mundo interno, o que permitirá a restauração em alguma medida daquilo que foi quebrado, destruído ou perdido. Isso é o que chamamos de reparação verdadeira: um trabalho que exige o contato com a dor da perda e leva a um processo de reconstrução, de lenta e gradual assimilação e transformação do vivido. Em contraste a isso, podem acontecer tentativas maníacas de reparação. Estas se caracterizam pelo desejo de reconstruir o mundo interno que foi despedaçado, sem atravessar e elaborar a dor, por meio de um curto-circuito, por exemplo, quando desejamos reabilitar um vínculo, por meio de atos impulsivos e sem ter contato com a dor.

Anteriormente, falamos do lamento, pois acreditamos ser este uma genuína manifestação da dor experimentada. O ato de lamentar parece uma forma de expressão simbólica pela qual é possível dar voz ao próprio sofrimento. A lamentação é uma espécie de canto fúnebre, uma forma espontânea de pouco a pouco afastar-se dos objetos perdidos. E temos ciência de que, ao longo de toda a vida, o canto fúnebre das lamentações terá de ser entoado por diferentes razões e de diversas maneiras.

Pensamos o trabalho criativo como uma viva metaforização das perdas e traumas sofridos, que se constrói por meio da elaboração psíquica, o que é central ao processo de sublimação. O artista desenvolve a habilidade para expressar o seu mundo interno de relações de objeto utilizando sua arte. Cada quadro, escultura, obra literária ou mesmo um trabalho acadêmico conta-nos uma história de angústias inescapáveis, dores inomináveis e um intenso desejo de restaurar e recriar no mundo externo e interno tudo aquilo a que foi preciso renunciar.

É claro que aqui estão os traços das importantes habilidades psíquicas que se desenvolvem por intermédio da elaboração da posição depressiva infantil. Sob a forma de um luto primordial, ela funcionará como matriz, no caso de ter sido bem-sucedida, de todos os trabalhos de elaboração psíquica posteriores. Trata-se de um processo de luto primordial que, como sabemos, precisa ser continuamente retrabalhado, ao longo de toda a vida.

Em seus escritos sobre o Moisés de Michelângelo, Freud (1914/2012) afirma que, ao renunciar à posse exclusiva dos objetos de amor, estes são internalizados dentro do ego como partes da personalidade do próprio indivíduo. Ao transformar os objetos em parte da realidade psíquica, o artista pode criar uma obra de arte que tenta reproduzir na pessoa que usufrui da obra "a mesma constelação mental que nele produz o ímpeto de criar" (Freud, 1914/2012, p. 383). Ao dizer isso, Freud nos coloca diante do desafio de compreender não somente as raízes do impulso criador, mas também os meios utilizados pelo artista para despertar no seu público o mesmo enlevo que o motivou a criar, ao mesmo tempo que é capaz de capturar seu interesse e sua admiração.

Diante de Moisés de Michelangelo, que aspectos da vida psíquica de Freud provocaram a sua captura estética? Moisés, condutor do povo hebreu pelo deserto, para sair da escravidão no Egito, encontra todo tipo de rebeldia e está prestes a quebrar as tábuas da lei em um momento de fúria. Temos uma figura paterna, o momento de fúria e indignação diante da rebeldia dos filhos que queriam os prazeres imediatos e a resolução mágica de suas necessidades por meio de rituais de magia, abandonando a fé no Deus que os unia em seu projeto de libertação da escravidão. Estão aí reunidos inúmeros temas: a relação com o pai, a fúria, a contenção da fúria, a questão da lei, enfim, temas que nos recordam dos conflitos que Freud também viveu com seus primeiros discípulos e que, por sua vez, evocavam os conflitos entre rebelarse e submeter-se, característicos do Complexo de Édipo.

Devemos retornar a Hanna Segal, que nos propiciará uma melhor compreensão da experiência estética, primeiro vivenciada pelo artista e, depois, por seu público. Concordamos com Freud, a respeito de que o artista deseja evocar os mesmos sentimentos inconscientes que o teriam motivado a realizar a sua obra na pessoa que a está usufruindo. Para Segal, a experiência estética surge do encontro e da afinidade das emoções evocadas em ambos:

(...) E se estou certa ao pensar que a constelação específica a que se visa, no fundo, relaciona-se com uma tentativa de resolução de um conflito depressivo, incluindo aí sua constelação edípica arcaica, então os meios devem transmitir tanto o conflito como uma tentativa reparatória de resolução. (Segal, 1993, p. 99)

Quando Segal se refere à experiência estética como a emoção e as sensações despertadas no público pela obra de arte, e que tem raízes profundas no inconsciente arcaico, lembramo-nos de Todorov (2011), quando nos apresenta àquilo que nomeia de "aspiração ao absoluto" e "experiência de plenitude". Trata-se de uma experiência que nos transporta a algum lugar que não sabemos nomear, que nos enleva, causando-nos um sentimento de completude, ainda que ilusório, que é pura sensação. Esse momento de arrebatamento, simultaneamente, nos remete à nossa necessidade de nos alimentarmos de beleza - uma necessidade imperiosa e necessária à saúde mental, de tempos em tempos.

A natureza da experiência estética pode ser pensada como um processo de metaforização da vivência materna primária, e a aspiração ao absoluto teria então suas raízes em uma fantasia de um reencontro fusional e oceânico com o objeto primário ideal. Serão as experiências arcaicas registradas e arquivadas no inconsciente do indivíduo que colorirão e modelarão a intensidade e a capacidade de cada ser humano experimentar o enlevo da experiência estética, que organiza e restaura os bons objetos no mundo psíquico.

 

OSCAR WILDE: A BELEZA COMO UM BEM SUPREMO E O RETRAIMENTO DA CAPACIDADE DE CRIAR

As ideias expostas nos lembram da história de Oscar Wilde, e de seu desejo de tornar-se ele mesmo uma obra de arte, cercando-se de coisas belas. Aqui, relembramos que, para nós, a história desse escritor está dividida em dois momentos muito distintos: antes e depois da prisão. No primeiro, ele é o célebre e aclamado escritor que transita pelas altas rodas da sociedade londrina, na qual tem livre acesso, momento em que se tornou conhecido como "apóstolo da beleza". No segundo, ele é um homem despojado de tudo aquilo que sempre cultivou, sobretudo a beleza, na forma de seu antigo estilo de vida, e do seu talento criativo. O bloqueio de sua criatividade acontece depois da prisão, onde, isolado e humilhado, ele se viu privado de todas as fontes nutridoras de sua criatividade, que lhe chegavam por meio de um abundante universo de sensações que seus órgãos dos sentidos sorviam avidamente. O bloqueio de sua criatividade colaborou para precipitar ainda mais a sua decadência física e emocional, provocando um retraimento progressivo em relação às trocas com o mundo exterior, o que pode ter contribuído para apressar a sua morte. A beleza para Wilde representava um bem supremo que organizava seu mundo interno e externo. Retomamos o tema da beleza, pois acreditamos que os encontros com o absoluto e as experiências de plenitude, na forma de repetidas experiências de satisfação, segurança e amor, são constituintes do psiquismo e também oferecem, em alguma medida, uma via de transformação e restauração dos objetos internos. Mas também, no caso de Wilde, a relação que o escritor estabeleceu com a beleza nos leva a intuir que era constituída por raízes profundas nos registros arcaicos de seu inconsciente.

Sobre isso, por intermédio do biógrafo Daniel Salvatore Schiffer (2011), apreendemos que, desde o seu nascimento, Oscar Wilde esteve cercado de expectativas e idealizações. Sua mãe desejava que o seu segundo filho fosse uma menina, e o nome completo do escritor evocava uma trajetória de vida célebre e prestigiosa, a saber: Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde,3 nos fazendo crer nas poderosas idealizações e projeções que seus pais depositaram sobre ele. Além disso, como vimos, sua mãe é descrita pelo biógrafo como uma mulher vaidosa, megalomaníaca e narcisista, alguém que dispensava muito valor às aparências. Essas preocupações com a bela imagem e a elegância devem ter sido um dos ingredientes que justificam o extremo valor dado à beleza, como importantes organizadores do mundo interno e externo.

No entanto, nem só de glórias e intensas idealizações foi sua vida. Ainda com essa biografia, tomamos ciência de alguns fatos importantes da vida do escritor, que, talvez, nos ajudem a vislumbrar alguns cantos escuros do seu mundo interno, aparentemente inexistentes se detivermos nosso olhar apenas sobre o "apóstolo da beleza".

Schiffer (2011) nos conta que a infância de Wilde foi pontuada pelo escândalo envolvendo seu pai, que era médico e fora acusado de tentativa de estupro, por uma antiga paciente. O pai de Wilde conseguiu livrar-se do processo, mas há também que se levar em conta os conflitos internos e externos a que o jovem Wilde se viu exposto, pelo fato de que Sir William tinha duas famílias: uma oficial, composta por três filhos, sendo dois meninos - entre eles Wilde -, e uma menina; e outra oficiosa, com duas meninas e um menino. Para situar a relação entre os irmãos, basta citar que as crianças passavam juntas as férias de verão.

Sobre a relação de Wilde com seu pai, o biógrafo relata que Wilde sentia por ele muito mais respeito do que afeição, ao contrário de sua mãe, que sempre foi uma figura que influenciou fortemente sua personalidade e seus valores. Além disso, o jovem escritor nutria por seu irmão uma viva rivalidade, que chegava por vezes ao desprezo, ao passo que, com sua irmã Isola, mantinha uma relação extremamente afetuosa.

Sobre os incidentes que possivelmente instalaram no jovem Wilde uma melancolia que nunca mais o abandonou, Shiffer (2011) aponta duas histórias trágicas: suas duas irmãs por parte de pai pereceram queimadas vivas em um acidente em 1871. E quatro anos antes, aos onze anos de idade, ele perdeu a sua querida irmã Isola, vítima de um derrame cerebral aos nove anos em consequência de uma febre mal tratada. De acordo com o biógrafo, foi para ela que Wilde compôs, em 1877, seu primeiro poema, intitulado "Resquiescat" (Descanse), somente publicado em 1881.

Um detalhe nos dá mais indícios ainda das sombras que permeavam o mundo interno do escritor desde muito cedo e que, mesmo depois de decorridos muitos anos, nunca o haviam abandonado: quando ele morreu em seu miserável quarto de hotel, 33 anos depois da morte de Isola, seus amigos mais próximos encontraram em meio aos seus poucos objetos pessoais um pequeno, mas precioso, envelope colorido contendo em seu interior uma mecha de cabelo de sua amada irmã. Quem sabe se a impossibilidade de elaborar os lutos mais recentes de sua vida, que paralisaram a sua criatividade, impedindo-o de recriar e restaurar seus objetos e a vitalidade de seu mundo interno não estaria enraizada nas profundezas de seu inconsciente, por meio de um registro de perda e de dor que nunca tinha sido suficientemente elaborado, desde os seus primeiros lutos? Cremos que esses acontecimentos trágicos teriam exigido reconhecer a dor da perda, mas também o ódio sentido pela vivência de abandono decorrente da separação do objeto amado.

 

SEGAL, RODIN E PICASSO: O BELO E O FEIO NA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

Partindo do contraste entre vida e morte, pensemos agora em uma conexão entre o que está íntegro e a ideia de beleza. De acordo com Ella Sharpe (1930), o belo está associado às experiências de satisfação vivenciadas e internalizadas pelo sujeito e que sustentam alguma simetria, harmonia e ritmo. O contrário do belo corresponde a tudo que é arrítmico e assimétrico, destruído e doloroso. Assim como Rickman (1940), Sharpe coloca a beleza e a feiura em campos antagônicos. Hanna Segal, por sua vez, defende que a "experiência estética" seria "uma particular combinação entre o que tem sido chamado de 'feio' e o que poderia ser chamado de 'belo'" (1993, p. 100). Para ela, o artista seria aquele que tem o poder de transformar, com sua arte, as experiências terríveis em formas de beleza.

Há nessa ideia de Segal um sentido de integração entre partes, como se a beleza, na forma de um objeto bom e confortador, e a feiura, como um objeto mau e perseguidor, precisassem ser integradas formando um elemento/objeto total, em que coexistisse a ambivalência das duas vertentes como aspectos complementares e constituintes. A arte, ou melhor, o trabalho criativo do artista surge como a forma de expressão simbólica que possibilita essa transformação.

O trabalho do artista produz transformação, nos diz Segal (1993) em certo momento. A história de Picasso serve como uma bela ilustração desse processo de integração, possibilitado pela elaboração psíquica decorrente da realização de uma obra criativa. O pintor espanhol teve uma intensa experiência de desilusão, aos dezenove anos, ao sentir-se incapaz de produzir uma obra à altura dos grandes mestres da pintura. Ao ser acometido por uma depressão, Picasso experimentou uma quebra de confiança em sua potencialidade criativa, que ficou fragmentada, nesse primeiro momento, aos dezenove anos. Muito tempo depois, na velhice, ele pintou uma interpretação pessoal do quadro "As meninas", de Velásquez. Em sua própria versão, Picasso fragmentou e desmantelou o quadro de Velásquez para reconstruí-lo a sua maneira. Poderíamos levantar a hipótese de que foi somente depois de uma vida inteira de criação que ele se autorizou a reconstituir e recriar os seus objetos ideais, que tinham lançado sobre ele sua sombra, acompanhada de um profundo sentimento de perda e de impotência.

 

OSCAR WILDE E O RETRAIMENTO DE SUA CAPACIDADE METAFÓRICA E CRIATIVA: HIPÓTESES

Não podemos deixar de recorrer também aqui à experiência de Oscar Wilde quando se percebe destituído de sua capacidade criativa. Podemos inferir que o escritor irlandês, na passagem do ambiente da prisão ao convívio social, tenha nutrido a idealização de realizar uma obra literária que o fizesse recuperar seu antigo status perdido. Essas idealizações e desilusões, já que Wilde em pouco tempo chegaria à conclusão de sua incapacidade de retomar seu trabalho de escritor, possivelmente fizeram emergir memórias de lutos arcaicos que estavam sendo atualizados naquele momento e ampliaram a experiência traumática. Infelizmente para Wilde, os acontecimentos não tomaram o mesmo curso que na vida de Picasso e ele não conseguiu reconstituir seu mundo interno, recriando seus objetos amados perdidos por meio do seu fazer criativo.

Parece que, entre outras coisas, Wilde não foi capaz de reconhecer o seu próprio ódio contra aqueles objetos que o perseguiram e abandonaram. Lembramos que em "De Profundis", observamos um Wilde muito resignado com sua situação de condenado, oscilando entre o lamento ressentido e o sentimento de ser plenamente merecedor de seu castigo.

O processo que subjaz à criatividade é o de transformação. "A reparação verdadeira, em contraste com a reparação maníaca, deve incluir um reconhecimento da agressividade e de seu efeito" (Segal, 1993, p. 102). A reparação verdadeira exige que se possa ter um contato profundo com a dor, com o sentimento de ter destruído algo valioso e com o desejo de restaurá-lo. Contudo, a reparação maníaca procura evitar o contato com a dor de ter destruído, com o sentimento de abandono e com a perda, levando a atos de reparação que não se enraízam no penar e na culpa que se originam do contato com a dor.

Hanna Segal cita Adrian Strokes e sua descrição de como o primeiro passo ao iniciar o trabalho artístico é o de conter a agressividade. No caso do escultor, ele diz que o mármore deve ser cortado e martelado, o barro precisa ser socado. Quando se refere ao pintor e ao escritor, Strokes fala do momento em que é preciso macular a tela e a folha de papel em branco com o primeiro traço ou gota de tinta. Depreendemos que, no ato que impulsiona o artista a emergir de suas idealizações para entrar no processo de realização de seu trabalho, existe uma brusca ruptura e um trabalho de luto a ser realizado. Há que se abrir mão dos ideais de perfeição que muitas vezes paralisam o trabalho criativo para encontrar a realidade daquilo que pode ser realizado. Mas há também a fantasia de que algo imaculado foi violado e, portanto, urge a necessidade de uma reparação. Nisso reside a diferença entre a criatividade e o delírio, ou seja, para ser criativo é preciso que se renuncie, em parte, aos ideais de perfeição e se possa ter um contato com a precariedade, com o limite, com a resistência que a matéria oferece à realização da obra de arte. Por sua vez, o delírio promove uma construção imaginária fechada ao contato com as influências do mundo.

Rilke disse, em suas Elegias de Duíno: "Pois que é o Belo senão o grau do Terrível que ainda suportamos e que admiramos porque, impassível, desdenha destruir-nos?". O que inspira medo e o imperfeito deve coexistir com o perfeito, e toda obra comunica a seu receptor a tensão que subjaz a seu processo de criação.

Todorov (2011) nos diz que a experiência de plenitude é ilusória, embora nos satisfaça e nos lance no impulso de repetila incansáveis vezes durante a vida. É como se buscássemos, em cada encontro com o absoluto, a revivescência e a vivacidade da primeira experiência estética, do primeiro encontro com o objeto bom: um sentimento de completude ilusória associado à fruição do belo e que foi chamado por Freud (1916/2010) de raridade no tempo. Segal (1993) pensa o trabalho do artista como um ato de reparação que nunca se completa, afirmando que, no encontro com a verdadeira obra de arte, nunca exaurimos as possibilidades de nos tornarmos completos. Em outras palavras, diferentemente da arte inferior, que parece saciar nosso desejo de frequentá-la, a verdadeira obra de arte sempre provoca em nós o desejo de repetir a experiência, pois a cada reencontro poderemos completá-la, percebendo novas e diferentes interpretações do mundo simbólico que nos é oferecido. Segal (1993) afirma que precisamos completar a obra internamente e que nossas imaginações devem transpor a última lacuna a ser preenchida. O próprio Picasso afirmou certa vez que um quadro nunca está terminado.

Esse processo de completar o sentido de uma obra de arte, redescobrindo-a e reinterpretando-a, parece-nos algo muito próximo às elaborações internas durante o processo de análise. Mesmo durante a vida, fora do espaço analítico, podemos pensar que todos os processos de luto, o atravessar e elaborar perdas e rupturas, o chorar e o enxugar as lágrimas, envolvem um contínuo e ininterrupto redescobrir, reinterpretar, restaurar e recriar. As perdas ao longo da vida, assim como as obras de arte, fazem uma incessante demanda de interpretação, de novas leituras e da invenção de novas metáforas.

 

EXPERIÊNCIA DE DESTRUIÇÃO E RECRIAÇÃO DO MUNDO INTERNO

Sobre a relação entre o impulso criador e os sentimentos que são evocados no receptor de uma obra de arte, naquilo que chamou de experiência estética, Segal nos diz que

O ato de criação no fundo tem a ver com uma memória inconsciente de um mundo interno harmonioso e com a experiência de sua destruição – isto é, com a posição depressiva. O impulso é o de recuperar e recriar esse mundo perdido. Os meios para alcançar isso têm relação com o equilíbrio entre elementos "feios" e elementos "belos", de modo que possam evocar no receptor uma identificação com esse processo. (1993, p. 103)

Acreditamos que a busca por um objeto ideal, íntegro, vivo e harmonioso parece ser o ponto de partida que impele à ação de criar, mas que também pode paralisar o artista imobilizando a sua criatividade. No processo de criação, o artista deverá ser capaz de se atrever a transformar sua idealização em realidade, confrontando as realidades interna e externa, o que, ao fim do trabalho, implicará reconhecê-la incompleta e inacabada tal como ele mesmo. A possível destruição imaginária do objeto ideal levará a um impulso para recriá-lo no mundo interno e externo do artista. Esse processo de destruição e recriação é o que dá vida à obra de arte. O público em contato com a obra passa pelo mesmo processo imaginário de destruir/recriar, e por intermédio da obra de arte o mundo interno de ambos passa por uma espécie de ressurreição, ou seja, um renascimento do sujeito psíquico pode acontecer.

É um paradoxo que a obra de um artista seja vista como algo novo e, no entanto, surja da ânsia de recriar e restaurar. Esse paradoxo é, conforme Segal (1993), inerente ao simbolismo. Toda criação artística tem em sua raiz inconsciente uma fantasia de restaurar ou recriar. O trabalho criativo pode ser pensado pelos mecanismos de equivalência utilizados no desenvolvimento da formação de símbolos, como um filho simbólico, e seu processo de realização equiparado a uma gestação. Os pais ou os autores, isto é, o que era mais velho está sendo recriado e ressuscitado. Esse processo de transformar as vivências do mundo interno em formas de expressão simbólica no mundo externo é resultado de uma capacidade que se desenvolveu em um período arcaico de constituição psíquica, pois a habilidade para formar símbolos que está na base do impulso criativo é resultado de um trabalho psíquico que começou a se desenvolver desde as primeiras posições depressivas, por volta dos seis meses de vida.

Hanna Segal (1993) segue a ideia de Freud do artista como alguém que está sempre em devaneio criativo e defende que ele apresenta uma habilidade em sua sensibilidade. Para o artista, produzir uma obra de arte representa alcançar algo no mundo externo, fator essencial para seu sentimento de ter uma reparação concluída.

Freud tinha razão ao afirmar que, em certo sentido, o artista também retorna à realidade. Ele retorna à realidade externa ao fazer algo no mundo externo real e para esse mundo. A difícil conquista da superação da posição depressiva é a aceitação pelo bebê de que sua mãe e outras figuras significativas são realmente externas e têm existência independentemente dele próprio. Um aspecto crucial da reparação, bem como do progressivo senso de realidade, é o de que a criança pouco a pouco renuncie a suas fantasias de controle onipotente e, em sua mente, aceite a existência independente da mãe, incluindo a relação dela com o pai, outras gravidezes e todas as extensões e simbolizações dessas atividades. Assim, se a nossa suposição é correta - que o artista em seu trabalho está novamente elaborando sua posição depressiva infantil -, então ele tem não apenas de recriar algo em seu mundo interno que corresponda à recriação de seu mundo e de seus objetos internos, mas, também, de externalizar isso, para dar-lhe vida no mundo externo, conforme aponta Segal (1993).

O artista, portanto, é aquele que tem livre trânsito entre a realidade e a fantasia. Sua sensibilidade, no entanto, não o destitui de sua capacidade de distinguir aquilo que pertence às percepções internas e subjetivas daquilo que pertence ao mundo externo.

Recordamos que o impulso criador nasce de ansiedades depressivas e vive do expediente de expressar essas ansiedades, de um modo que seja significativo para quem entra em contato com a obra do artista. Isso envolve processos análogos aos que são mobilizados na posição depressiva: a capacidade de simbolizar, a percepção da realidade interna e externa e a habilidade de suportar a separação dos objetos amados.

A grande dificuldade encontrada na produção de uma obra criativa artística diz respeito à necessidade de satisfazer, no artista, o anseio por um objeto ideal e um self fundido com esse objeto, mas também há a necessidade de restauração de um objeto que é realisticamente percebido no mundo externo. Por sua vez, o processo de se encontrar imbuído por uma intensa idealização para, logo em seguida, pelo teste de realidade, encontrar a desilusão e a frustração das expectativas idealizadas, pode ser o ponto de partida para o início de uma produção criativa bemsucedida. No entanto, defesas extremas contra um conjunto de sentimentos que configuram a posição depressiva podem se mostrar como significativos fatores de inibição da criatividade artística ou refletir-se no produto final da obra. De acordo com Segal, "defesas esquizoides e maníacas baseadas em negações de realidades psíquicas seriam fortemente prejudiciais à experiência estética" (1993, p. 107).

 

CONCLUINDO: REFLEXÃO E HIPÓTESES SOBRE O RETRAIMENTO CRIATIVO DE OSCAR WILDE

Mais uma vez, devemos retornar à história de Oscar Wilde para refletirmos sobre aquilo que se tornou um impedimento para entrar em um processo de elaboração psíquica, que permitisse retomar a sua criatividade artística. Talvez o verdadeiro momento de recriar seus objetos e seu mundo interno teria sido, para esse escritor, não durante a sequência de eventos traumáticos que o lançaram na categoria de pária, mas no momento em que se deu a grande desilusão por perceber, na forma de um colapso de suas idealizações, que não seria mais possível retomar seu antigo estilo de vida, tampouco seu antigo estilo de escrita. O paraíso perdido de Wilde se transfigurou em terras distantes, ecos de um passado que nunca mais retornaria. Era preciso reconhecer a estrangeiridade desse outro país chamado passado.

Dizemos isso porque compreendemos que há dois importantes aspectos a serem destacados na elaboração da posição depressiva. O primeiro é o reconhecimento e a aceitação do objeto em sua forma real, tal como de fato o é, com sua imperfeição, incompletude e ambivalência. Isso implica um intenso trabalho de desidealização dos objetos e também de si, aceitando-se, entre outras coisas, como elemento excluído da cena triangular edípica, pois renunciar à posse exclusiva dos objetos amados está na base tanto da elaboração da posição depressiva quanto do processamento dos lutos inerentes a todas as fases da vida. Mas também podemos pensar na desidealização e na aceitação da imperfeição e incompletude do artista em relação à sua obra, da qual, em algum momento deverá ser capaz de separar-se, e que sempre revelará alguma distância entre aquilo que foi idealizado e o que foi possível realizar. O segundo aspecto diz respeito a reconhecer a própria dependência dos objetos, dos quais, embora estejamos separados, continuamos necessitando para nos constituir e desenvolver.

Segal nos diz que "não se pode restaurar uma mãe sem restaurar toda a família com a qual ela está relacionada" (1993, p. 109). Por que nos referimos à mãe nesse momento?

Porque a mãe, na forma de um primeiro objeto de amor, é também a primeira pessoa de quem o sujeito deverá ser capaz de separar-se para se constituir e desenvolver. Essa ruptura será atualizada e revivida ao longo de toda uma vida na relação de separação, destruição e restauração de inúmeros objetos encontrados e perdidos.

Acreditamos que o grande impasse na etapa final da vida de Oscar Wilde foi que, após todas as vivências de perda, dor e humilhação por sua condenação e prisão, ele tivesse de aceitar que não apenas o mundo à sua volta havia se transformado, mas ele próprio também havia se tornado uma nova pessoa e precisava fazer um trabalho de integração das suas experiências de perda, dor e sofrimento na sua vida dali em diante e também em sua obra.

Todorov (2011) fez uma observação pertinente quando disse que, mesmo depois de libertado, Wilde não foi capaz de libertarse da prisão instalada dentro dele. Essa prisão, aliada a todas as experiências traumáticas vividas nos últimos anos, fez ruir o seu mundo de idealizações que parecia estar fortemente sedimentado na forma de sua organização psíquica interna. Esse funcionamento interno se fazia revelar pela forma como Wilde expressava suas ideias e seus ideais em suas obras, e, entre eles, a beleza sempre ocupou lugar de destaque.

Ele se manteve prisioneiro: incapaz de retomar o trabalho criativo, reproduziu no mundo real e externo a sua amputação interna. Parece que no mundo interno do escritor restaram apenas objetos despedaçados que, em confluência com a vida de miséria e vergonha, suas fiéis companheiras em seus últimos anos de vida, empurraram-no para dentro de seu cárcere interno, impedindo-o definitivamente de fazer florescer novamente a beleza e a criatividade em sua vida.

Consideramos, em sintonia com Segal (1993), que todo malogro estético está na negação da verdade interna, e que existe no artista um desejo de recriar um estado mental e objetos ideais anteriores, um estado ideal perdido no começo da integração. Há uma perpétua tensão entre a exigência de destruir ideais e construir novos ideais, sem os quais é difícil viver. O artista se vê confrontado com a tarefa de encontrar uma fórmula própria de compatibilizar duas exigências opostas: entre fazer o luto e separar-se dos ideais infantis e, ao mesmo tempo, não se separar completamente dessas figuras capazes de encantar o mundo. Trata-se, na verdade, de reconstruí-las através de novas e imperfeitas formas; aí reside o talento artístico, o âmago de uma fórmula a ser incessantemente perdida/re-encontrada.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em: 22/07/2015
Aceito em:13/05/2016

 

 

1 Contato: markusrod@yahoo.com.br
2 "Personagens psicopáticos no palco" (1905-1906), "Delírios e sonhos na Gradiva, de W. Jensen" (19061907), "Escritores criativos e devaneios" (1908), "Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci" (1910), "O tema da escolha do cofrinho" (1913), "O Moisés de Michelangelo" (1914), "Uma recordação de infância em Poesia e verdade" (1917), "O inquietante" (1919), "Prólogo a Edgar Poe: estudo psicanalítico, de Marie Bonaparte" (1933), para citar alguns exemplos. Os textos de Freud aqui citados seguem a edição das obras do autor publicadas pelas editoras Companhia das Letras e Imago, conforme as referências bibliográficas.
3 De fato, segundo Schiffer (2011), tal nome de batismo traduz toda uma doutrina, enraizada em um poderoso contexto histórico. Oscar, na mitologia céltica, é o filho de Ossian, rei de Morven, na Escócia; já Fingal, irmão de Ossian, é um herói do folclore irlandês. O'Flahertie é o nome genérico dos reis pré-normandos de um condado situado do lado ocidental da Irlanda. Essa genealogia é corroborada em um artigo tardio (1909) dedicado a Wilde por outro célebre autor irlandês: James Joyce. Quanto ao quarto nome, Wills, trata-se de um dos nomes do próprio pai de Oscar Wilde, que descendia de um ilustre e destemido guerreiro batavo. Podemos imaginar que essa encantadora sucessão de nomes, na forma de uma espécie de aliteração poética extemporânea, ressoava no espírito do jovem Wilde como um eco das velhas lendas.

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