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Revista Psicologia Organizações e Trabalho
versão On-line ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. v.4 n.1 Florianópolis jun. 2004
RESENHA
Liderança e cultura organizacional: a visão de mundo dos empreendedores e principais colaboradores na construção da realidade social nas organizações1
Narbal Silva
Psicólogo, Doutor em Engenharia de Produção: Professor do Departamento de Psicologiada Universidade Federal de Santa Catarina (narbal@dh.ufsc.br)
A cultura organizacional consiste em algo que as organizações são em suas essências e totalidades (aquilo que a organização é) ou em algo que a organização possui (uma variável da organização)? A cultura organizacional é criada ou reproduzida? Os fundadores e os seus principais colaboradores impõem de modo unilateral aos demais participantes de uma organização os modos considerados certos de pensar, sentir e agir?
Estas e outras questões relacionadas à polêmica e controvertida área de conhecimento referente à cultura nas organizações são contempladas por Edgar H. Schein, conferencista sênior e professor emérito de administração da Sloan of Management, do Massachusetts Institute of Technology, no livro que é considerado uma de suas obras mais importantes, Organizational Culture and Leadership (Cultura Organizacional e Liderança). A importância conferida ao livro no cenário internacional deve-se ao fato de que ele esclareceu o campo da cultura organizacional como nenhuma outra tentativa prévia havia logrado fazer. Em função disto, apareceram muitos projetas de pesquisa e livros sobre o assunto (Crainer, 1999).
O livro, tanto no Brasil como no exterior, é considerado uma das mais importantes contribuições da literatura ao tema da cultura organizacional. Não é por acaso que praticamente todos os estudos teóricos e empíricos que versam sobre cultura, mesmo quando não utilizam o conceito ou o método de investigação proposto em Organizational Culture and Leadership, se reportam às idéias centrais do autor sobre o assunto.
Tais idéias adquiriram relevâncias científica e social de tal porte, na academia, que passaram a nortear grande parte das pesquisas estadunidenses e até mesmo as européias sobre o fenômeno cultural nas organizações (Fleury, 1992). Reforçando a relevância das idéias do autor sobre o tema, já na introdução do livro Guia de sobrevivência da Cultura Corporativa (2001), também de Edgar H. Schein (trad. bras. José Olympio), o conceituado psicólogo organizacional e do trabalho Warren Bennis menciona que Schein provavelmente conhece mais sobre cultura organizacional do que qualquer um que esteja a escrever sobre esse assunto na atualidade.
O livro (360 p.) é dividido em três grandes partes, nas quais são apresentados e discutidos os seguintes assuntos. Na Parte Um, o tema central se refere à definição de cultura organizacional e a sua função nas organizações. Na Parte Dois, o autor contempla o processo de formação e de desenvolvimento das culturas nas organizações ocidentais. Finalmente, na Parte Três, Edgar Schein se reporta ao modo como as culturas mudam. O processo de gestão da mudança cultural deve ser, segundo o autor, capitaneado pelas principais lideranças da organização. Tal recomendação vem ao encontro da concepção presente em Organizational Culture and Leadership, segundo a qual os fundadores e os seus principais colaboradores no momento da edificação de determinado empreendimento se apresentam como os grandes responsáveis pela descoberta ou criação e consolidação da cultura de uma organização. Considerando que isto é um pressuposto da abordagem proposta pelo autor da compreensão do processo de formação e consolidação da cultura organizacional, decorre daí, aparentemente, que a mudança cultural também requererá a participação efetiva dos empreendedores e portadores da cultura vigente, no que se refere ao trabalho de ressignificação dos pressupostos culturais em curso. Isto porque, segundo o autor, a cultura muda na medida em que é ressiginificada, ou seja, os valores considerados básicos não são alterados; o que ocorre é um processo de reinterpretação dos mesmos, ao se considerar as demandas de adaptação da organização aos seus contextos interno e externo.
Essa concepção adaptativa já está presente no consagrado conceito de cultura organizacional proposto por Edgar Schein, quando da primeira edição de Organizational Culture and Leadership,publicada em março de 1985. Nessa ocasião, o autor concebeu o fenômeno cultural nas organizações numa perspectiva dinâmica e evolucionária, sugerindo, desse modo, que a cultura pode mudar, porém de modo lento e gradativo, a partir de progressivas redefinições nos significados conferidos às premissas culturais em determinado período de tempo. A justificativa para a mudança cultural, segundo o autor, será elaborada em função da necessidade que têm as organizações de constantes e progressivas adaptações comportamentais ao longo do tempo. Porém, a função adaptativa conferida no livro ao conceito de cultura organizacional, cujo intuito é o de reduzir a ansiedade dos membros do grupo, não implica que as relações de poder entre os participantes da comunidade organizacional deixem de ser consideradas na compreensão que o autor possui do fenômeno cultural nas organizações de trabalho. Para isto, o autor se ancora na tipologia de Etzioni (1975) para subsidiar a compreensão de tais relações existentes nas organizações e que se constituem em produtos e produtoras das culturas organizacionais. Contudo, embora o autor considere as relações de poder nas organizações e suas repercussões na cultura organizacional, não se reporta de modo explícito ao fenômeno de formação e consolidação das contraculturas nas organizações. Quais as razões para isto? Uma delas provavelmente é a perspectiva de compreensão da cultura organizacional, cujo papel é o de promover a adaptação dos membros da organização nas relações que estabelecem entre si e com outros segmentos externos à comunidade organizacional. Dentro desta ótica, a ausência da visão crítica dialética no conceito de cultura proposto pelo autor parece reforçar o fato de que os movimentos contraculturais não tenham sido enfatizados na construção do eixo norteador da obra. Admitir a ocorrência de um movimento contracultural pressupõe considerar conflitos entre diferentes classes de trabalhadores, interesses antagônicos entre trabalhadores e dirigentes nas organizações e a configuração de diferentes concepções de realidade organizacional na relação entre o "chão de fábrica" e as pessoas que ocupam o topo da pirâmide organizacional.
A possibilidade de coexistirem múltiplas culturas, embora não enfatizada em Organizational Culture and Leadership, é considerada pelo autor em outros trabalhos (Schein, 1996). Tal formação seria típica de culturas fortes, construídas a partir da homogeneidade e estabilidade dos membros do grupo e da duração e intensidade das experiências compartilhadas. Neste caso, as subculturas, em princípio, não entrariam em confronto com a cultura maior. Entretanto, quando conflitos ocorrem entre diferentes culturas, a ausência de alinhamento decorrente, segundo o autor, repercute de forma negativa no processo de aprendizagem nas organizações.
Embora não se reporte de modo direto às relações entre cultura e aprendizagem nas organizações, o que passará a ocorrer em trabalhos posteriores, o conceito de cultura organizacional apresentado em Organizational Culture and Leadership já evidencia a relação estabelecida pelo autor entre estes dois conceitos. Ou seja, os pressupostos básicos de cultura, "aquilo que é tido como verdade inquestionável", é progressivamente aprendido pelas gerações que se sucedem nas organizações, enquanto fonte de orientação para pensar, perceber, sentir e agir.
Dentro desta concepção, a abordagem presente no livro prioriza a perspectiva de análise individual ou psicológica, uma vez que o interesse reside em compreender as diversas confluências existentes na relação entre cultura e comportamento dos atores organizacionais. Contudo, a proposta de estudar as manifestações culturais no nível individual é considerada exceção na literatura que versa sobre o assunto. A maior parte dos estudos culturais abarca os níveis de grupo e organizacional. Portanto, o interesse maior de Edgar Schein em Organizational Culture and Leadership é o de demonstrar que a compreensão da cultura de uma organização ocorre a partir do entendimento das influências da visão de mundo, valores, sistemas de crenças e estilos cognitivos dos fundadores e das principais lideranças das organizações nos momentos de criação ou descoberta, consolidação e, se for o caso, de mudança cultural nas organizações (Silva e Zanelli, 2004). Deste modo, Edgar Schein preferiu uma visão psicológica do fenômeno em vez de considerar tudo o que as organizações fazem como componentes das sua culturas.
Em decorrência, a questão posta por Linda Smircich (1983), se a cultura organizacional é uma variável da organização ou se a organização se constitui numa expressão cultural total, é respondida por Edgar Schein, ao considerar a cultura como um componente entre outros da organização, como é o caso da estrutura, tecnologia, estratégia, entre outras variáveis consideradas organizacionais. Para isto, o autor posiciona sua abordagem como sendo de cultura corporativa, seguindo a classificação de Linda Smircich, onde as organizações são concebidas como organismos adaptativos existentes nos processos de troca com o ambiente. Porém, no já referido livro The corporate culture survival guide (1999), o autor enfaúza a importância da cultura nacional no processo de formação da cultura organizacional, fato este que não é destacado em Organizational Culture and Leadership. Este tipo de consideração também posiciona sua abordagem, segundo a classificação de Linda Smircich, na área básica de pesquisa cultural denominada de administração comparativa.
A compreensão da cultura nas organizações, segundo o que é indicado na obra, se dá a partir da revelação dos pressupostos básicos de cultura. Estes pressupostos se encontram ordenados nas seguintes cinco dimensões, denominadas de categorias culturais: relação da organização com o ambiente (as organizações são donas do seu próprio destino ou não), natureza da verdade e da realidade (métodos utilizados para definir o que é real e verdade na organização), natureza da natureza humana (conceito de ser humano no trabalho), natureza da atividade humana (significado do trabalho) e natureza dos relacionamentos humanos (individualismo ou cooperação). Ao propor estas cinco dimensões para o estudo da cultura organizacional, a abordagem construída no livro permite a operacionalização do conceito de cultura, favorecendo a orientação de pesquisas culturais que priorizem estudos de natureza qualitativa. Dentro desta perspectiva, o processo de investigação da cultura organizacional sugerido no livro propõe que os participantes tomem consciência dos pressupostos básicos de cultura que orientam os comportamentos, decisões - enfim, o fazer humano nas organizações.
Entretanto, ao se reportar à necessidade de "tomada de consciência" das premissas culturais que orientam os comportamentos das pessoas nas organizações, enquanto ponto de partida para a mudança cultural, Edgar Schein, em Organizational Culture and Leadership, afirma que o fato das premissas culturais estarem enfronhadas nas entranhas das organizações, fazendo com que as pessoas não as questionem ou não se dêem conta de que as mesmas orientam comportamentos, não significa que estejam inconscientes ou recalcadas em alguma instância do imaginário organizacional. Ao dizer que os pressupostos básicos de cultura organizacional são inconscientes, o autor destaca que os mesmos não se encontram reprimidos ou recalcados num lugar ou construto hipotético denominado de inconsciente. O argumento utilizado para explicar a dimensão do inconsciente na perspectiva de pesquisa cultural adotada no livro é o de que, à medida em que determinados processos motivacionais e cognitivos são repetidos e continuam a funcionar, se tornam inconscientes. Em virtude disto, só poderão ser trazidos de volta ao nível do consciente por meio de um tipo de pesquisa de enfoque semelhante à utilizada pelos antropólogos. Porém, o autor não deixa claro em que dimensões específicas de "esquecimento" estariam armazenados os pressupostos básicos de cultura. A descoberta da cultura em uso (Argyris, 1982), cujo resultado seria a "tomada de consciência" da comunidade organizacional, ocorreria a partir de múltiplas verificações ("checagens"), que pressupõem a análise de documentos, entrevistas em profundidade e observações, participantes ou não, visando encontrar padrões de consistência e inconsistência entre as instâncias denominadas de artefatos visíveis, a mais superficial, e a dos valores, intermediária entre os artefatos visíveis e o nível mais profundo da cultura, o dos pressupostos básicos. Os resultados obtidos com base nas consistências e inconsistências identificadas levariam à descoberta dos pressupostos básicos de cultura que de fato orientam o comportamento humano nas organizações. Ao optar por esta modalidade de investigação, reforçando o que já foi mencionado, o autor evidencia a sua preferência pelo método qualitativo, mais especificamente pela abordagem denominada de intramétodo, cuja finalidade primordial é a de obter coerência interna nos resultados obtidos pelo processo de investigação cultural.
As considerações até aqui efetuadas sinalizam e evidenciam o fato de que o livro Organizational Culture and Leadership pode ser recomendado para todos os profissionais graduados e pós-graduados em psicologia, administração, sociologia, antropologia, engenharia, pedagogia e ciência política, entre outras áreas de conhecimento, acadêmicos ou profissionais interessados em aplicação, que se interessam pela compreensão do comportamento humano nas organizações. O caráter conceitual e aplicado do livro permite contemplar múltiplos interesses relativamente à utilização dos conhecimento produzidos sobre cultura organizacional.
Em particular no caso dos psicólogos que atuam ou pretendem atuar em organizações, interessados em compreender os processos de mudança organizacional, sobretudo os aspectos de natureza comportamental envolvidos em circunstâncias de resistência à mudança, esta obra, embora ainda não tenha sido traduzida para o português, torna-se leitura imprescindível. Isto porque, para estes profissionais, a inquietação gerada em função da incompreensão dos significados conferidos aos comportamentos humanos, aliada à necessidade de compreendê-los em seus aspectos, em princípio considerados ininteligíveis ou irracionais, se torna vital enquanto possibilidade de atuação concreta em processos de mudança que de fato contribuam para a efetividade plena das organizações.
Referências
ARGYRIS, C. Enfrentando defesas empresariais: facilitando o aprendizado organizacional. Rio de Janeiro: Campus, 1992. [ Links ]
CRAINER, S. Os revolucionários da administração.São Paulo: Negócio Editora, 1999. [ Links ]
ETZIONI, A. A comparative Analysis of Complex organizations.New York: Free Press, 1975. [ Links ]
FLEURY, M. T. L. O desvendar a Cultura de uma Organização: uma discussão metodológica. ln: Fleury. M. T. L.; Fischer, Rosa Maria (coord.). Cultura e Poder nas Organizações.2. ed. São Paulo: Atlas, 1992. [ Links ]
SCHEIN, E. H. Guia de sobrevivência da Cultura Corporativa.Rio de Janeiro: José Olympio, 2001. [ Links ]
SCHEIN, E. H. Three cultures of management:the key to organizacional learning. Sloan Management Review, Boston: Fall, 1996. [ Links ]
SILVA, N.; ZANELLI, J. C. Cultura Organizacional. ln: ZANELLI, J. C.; ANDRADE-BORGES, J. E.; BASTOS A V. (Orgs). Psicologia, Organizações e Trabalho no Brasil.Porto Alegre: ARTMED, 2004. [ Links ]
SMIRCH, L. Concepts of Culture and organizational Analysis. Admínistrative Science Quartely.[s. 1.] v. 28. n.3. 1983. [ Links ]
Recebido: 05/07/04
Revisado: 25/07/04
Aceito: 15/08/04
1 Resenha do livro de Edgar H. Shein - "Organizational culture and leadership". São Francisco: Jossey-Bass, 1987. 5ed.