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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

 ISSN 1984-6657

     

 

Burnout e complexidade histórica

 

Burnout and historical complexity

 

 

Fernando Gastal de Castro

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tem-se como objetivo deste artigo refletir sobre burnout enquanto um fenômeno ligado ao fracasso do projeto de ser no âmbito de uma complexidade histórica. Busca-se esclarecer, primeiramente, como o esgotamento emocional no trabalho (burnout) caracteriza-se como parte integrante de um fenômeno mais amplo de crescimento do mal estar no âmbito das organizações em escala mundial. Em seguida, trata-se de compreender tal crescimento do mal estar no trabalho e do burnout em particular, a partir de um ponto de vista interdisciplinar, buscando cruzar os níveis psíquico-existencial, organizacional, socioeconômico e histórico. Por fim, conclui-se que, burnout e o crescimento do mal estar no trabalho, mostram-se ligados a uma lógica organizacional e socioeconômica resultantes de um processo histórico de transformação do modo de produção fordista-taylorista em direção ao modo de produção flexível. O fenômeno de burnout, portanto, implica a compreensão da complexidade histórica nos dias atuais, sendo capaz de revelar, desta feita, o sentido das transformações sociais e organizacionais em curso, bem como nos fazer interrogar sobre as formas de práxis que as engendram.

Palavras-chave: Burnout, Mal Estar no Trabalho, complexidade Histórica.


ABSTRACT

The aim of this article it is to reflect on burnout as a phenomenon linked to the failure of the project of to bebeing under within an historical complexity. We seek to clarify, first, as how the emotional exhaustion at work (burnout) is characterized as an integral part of a broader phenomenon of a growth ofgrowing malaise within organizations of worldwide. We Thenthen , seek to is understoodand that this growth of maleise malaise at work, and of burnout in particular, of from an interdisciplinary point of view, seeking by to crossing the existential, organizational, socio-economic, and historical levels. Finally, it weis concluded that burnout and the growing malaise in the workplace, appear to be linked to an organizational and socio-economic logic, resulting from of an historical historical process of transformation process of transformation offrom the Fordist-Taylorist mode of production Fordist-Taylorist toward the flexible production mode. The phenomenon of burnout, therefore, implies calls for understanding of present-day today's historical complexity, which canable to reveal the meaning of the social and organizational processtransformations underway, and make prompt us to wonder question about the forms of praxis that they engender.

Keywords: Burnout, Malaise at Work, Historical Complexity.


 

 

Tem-se como objetivo deste texto refletir sobre burnout enquanto fenômeno ligado ao fracasso do projeto de ser (Castro, 2010) no interior de uma complexidade histórica. Considera-se, deste modo, que o esgotamento emocional no trabalho é revelador de um fracasso que alcança a totalidade da existência individual e que se faz possível em função das novas formas de gestão do trabalho e de organização social, características do processo histórico nos dias atuais.

Primeiramente, é salutar partir da definição de burnout dada pelo Ministério da Saúde do Brasil que, desde 2002, inclui o fenômeno no conjunto de doenças ligadas ao trabalho:

A sensação de estar acabado, ou Síndrome do Esgotamento Profissional, é um tipo de resposta prolongada a estressores emocionais e interpessoais crônicos no trabalho. Tem sido descrita como resultante de uma vivência profissional em um contexto de relações sociais complexas, envolvendo a representação que a pessoa tem de si e dos outros. O trabalhador, que antes era muito envolvido afetivamente com seus clientes, com seus pacientes ou com seu trabalho em si, desgasta-se e, em um dado momento, desiste, perde a energia ou se "queima" completamente. O trabalhador perde o sentido de sua relação com o trabalho, desinteressa-se e qualquer esforço lhe parece inútil. (Ministério da Saúde do Brasil, 2002).

A partir dessa definição, é possível relacionar o fenômeno de burnout a estressores e fatores interpessoais da ordem do trabalho, capazes, por sua vez, de desencadear um esgotamento emocional que atinge tanto a representação que a pessoa tem de si mesma e dos outros quanto o sentido do trabalho.

Como ponto de partida da reflexão sobre burnout, este será abordado primeiramente como um fenômeno ligado ao crescimento do mal estar no trabalho nas últimas duas década. Em seguida, como um fenômeno implicado em uma série de fenômenos contíguos, tais como o estresse crônico, as lesões musculoesqueléticas, o assédio moral e, nos últimos anos, o suicídio ligado às condições de trabalho.

A Mission d'information sur le mal-être au travail encarregada pela Comission des Affaires Sociales no senado francês, redigiu um relatório intitulado "Le mal-être au travail: passer du diagnostic à l'action" (Dériot, 2010).Conforme o relatório, os distúrbios musculoesqueléticos representam a primeira causa de doenças profissionais no país (74% em 2008), 17% da população assalariada declara ter sido objeto de assédio moral no trabalho e, ainda, um a cada cinco assalariados declara sofrer de distúrbios ligados ao estresse no trabalho. O mesmo relatório considera ainda que, na Europa, 28% dos trabalhadores estão expostos a pelo menos um fator de risco capaz de afetar o bem estar psíquico, ou seja, 56 milhões de pessoas, sendo que o grupo mais atingido encontrar-se-ia entre aqueles com faixa etária de 40 a 45 anos.

Outro relatório de uma agência europeia (Dériot, 2010), estima que 50 a 60% das jornadas de trabalho perdidas na Europa estariam ligadas ao estresse laboral e salienta que, nos Estados Unidos, os dirigentes de grandes empresas passaram a admitir a existência de doenças depressivas ligadas ao trabalho e que estas representam atualmente a maior parte das despesas relativas a doenças profissionais e afastamentos do trabalho.

O Institut National de Santé Publique do Québec (INSP, 2004), revela em um relatório de 2004 que, na região do Québec, uma situação nova vem apresentando-se nos últimos anos, qual seja, o aumento de atos suicidas na população adulta entre 30 e 49 anos e, segundo os dados, a maioria das pessoas dessa faixa de idade encontrar-se-ia em estado depressivo tendo como uma das razões principais o trabalho.

Para Nishiyama e Johnson (1997), o Sistema Japonês de Gestão (JPM), apesar de se mostrar um dos mais eficientes do mundo ao focar sua atuação sobre a redução de custos de produção e na exigência de uma rígida disciplina na eliminação de todos os desperdícios, foi o responsável por diversos problemas de saúde, tais como a ocorrência do karoshi e burnout. Além desses problemas, mais recentemente passou-se a observar no Japão o aparecimento do karojisatsu, ou seja, o suicídio por excesso de trabalho (Nakayama & Amagasa, 2004).

Em agosto de 2010, a Confedéracion General del Trabajo (CGT) da região de Galícia (Espanha), apresentou à imprensa um relatório produzido pela Inspéccion del Trabajo de La Coruña que assinala a insustentável situação de trabalho de mais de 130 trabalhadores da empresa Atento Coruña (parte integrante do Grupo Telefonica)1, expressando a existência de uma série de transtornos de estresse e de ansiedade em sua unidade comercial. Ainda sobre a saúde dos trabalhadores espanhóis, podemos acrescentar os resultados do relatório de Benavides e Clachet (2006) que assinala um aumento considerável das doenças profissionais relacionadas aos problemas musculoesqueléticos e aos transtornos psíquicos.

No que concerte ao Brasil, em torno de 17 a 20% dos professores atestam padecer de estresse ou burnout (Codo,1999) índices que se aproximam das investigações realizadas por Burny (1991) relativa aos professores canadenses e aos profissionais de enfermagem estudados por Gil-Monte (2002, 2003) na Espanha, para os quais, a falta de reciprocidade e a sobrecarga de trabalho parecem ser determinantes no desenvolvimento de burnout e, mais amplamente, do crescimento do mal estar no trabalho.

Temos, portanto, que burnout é indicativo de um fenômeno mais amplo de crescimento, nos países industrializados, do mal estar no trabalho, que, por sua vez, o coloca em estreita ligação com uma série de outros problemas contíguos, tais como o estresse, os distúrbios musculoesqueléticos, o assédio moral e, ultimamente, os casos de suicídio. O problema de burnout revela-se, desta maneira, como significativo de uma situação histórica, de sorte que, sua abordagem deve responder a duas necessidades teóricas que nos parecem de extrema atualidade. São elas: (1) compreendê-lo como um fenômeno ligado ao atual processo histórico em curso no mundo das organizações e do trabalho e (2) abordá-lo a partir de uma ótica interdisciplinar.

Abordagem analítico-matemática em relação ao burnout

Desde Maslach e Jackson (1981), o fenômeno de burnout vem sendo demarcado a partir de três dimensões essenciais: a exaustão emocional, a despersonalização e a perda da realização pessoal. Dessas três dimensões, sem dúvida, a exaustão emocional é aquela que se evidencia como fundamental no desenvolvimento de burnout, sendo responsável pelo desencadeamento das duas outras. Segundo uma revisão teórica feita por Leiter (1993), é a partir do momento em que o sujeito encontra-se esgotado em suas energias psíquicas e exausto para continuar seu trabalho, que passaria a despersonalizar suas relações com os outros e perderia a realização pessoal.

As investigações de cada uma dessas dimensões de burnout são realizadas por meio de instrumentos de medidas destinados a quantificar sua incidência em determinada população. O Maslach Burnout Inventory (1993) é sem dúvida o mais conhecido e utilizado, mas é possível observar o desenvolvimento de outros instrumentos, tal como o desenvolvido por Gil-Monte (2002) para estudar a relação entre gênero e incidência de burnout.

O princípio dessas abordagens sobre o problema de burnout é analisar a correlação interna e a consistência entre suas três dimensões, bem como, correlacioná-las a determinados estressores organizacionais que ocupam, por sua vez, a função de variáveis independentes, permitindo a criação de modelos explicativos em termos de relações de causalidade. Nesse sentido, as altas demandas organizacionais, caracterizadas pela presença dos estressores "sobrecarga de trabalho", "pressão de tempo" e o "conflito de papéis", encontram-se positivamente correlacionadas com a exaustão emocional, enquanto aqueles estressores ligados à escassez de recursos (falta de suporte, baixa autonomia e baixo poder decisório) evidenciam-se fortemente correlacionados à perda da realização pessoal.

Acrescido a essa definição multidimensional de burnout (Shaufeli & Bunnk, 2003), é possível ainda notar uma forte tendência a investigar os modos de enfrentamento individuais (coping) face à pressão exercida pelos estressores organizacionais. Zanelli (2009) sintetiza basicamente dois modos de enfrentamento: um deles em que o sujeito volta-se sobre si mesmo e busca desfazer-se do esgotamento emocional que lhe atinge e outro em que o sujeito volta-se para o problema, dirigindo-se para fora de si e buscando saídas a partir dos componentes da situação estressante.

Em síntese, podemos dizer que tais abordagens sobre o fenômeno de burnout evidenciam uma razão analítica e matemática de base, que pode ser expressa em termos de y=f(x). Ou seja, isolam-se metodologicamente duas variáveis, y (exaustão emocional, por exemplo) e x (sobrecarga de trabalho) e aplicam-se instrumentos de medida que permitam mensurá-las a fim de conhecer seu grau de correlação. De sorte que, seguindo com o mesmo exemplo, seria possível sustentar que a exaustão emocional estaria em função da sobrecarga de trabalho. É possível tornar ainda mais complexo o modelo analítico-matemático introduzindo, por exemplo, a análise fatorial, no intuito de reduzir uma pluralidade de dados diversos a um conjunto de fatores comuns que, por sua vez, podem se revelar estressores em uma determinada população. Porém, o princípio analítico-matemático continua a servir de base lógica à investigação, visto que, busca-se verificar um ou mais fatores que ganhariam o status de variável dependente ou independente e que, portanto, encontrariam seu lugar na função y=f(x), na qual y é concebido como variável dependente e x como um complexo de variáveis independentes.

No entanto, por mais útil e rigorosa que seja a razão analítico-matemática, esta se restringe aos seus limites, nos fornecendo o conjunto de variáveis ou dimensões que constituem o fenômeno e as funções matemáticas existentes. Tal abordagem, própria das ciências físicas e da natureza (Castro, 2010), apresenta-se insuficiente para responder às duas necessidades teóricas postas anteriormente que se referem (1) à compreensão do sentido do processo histórico em curso, no qual encontramos o crescimento do mal estar no trabalho e a emergência de burnout em particular, e (2) a possibilidade de abordar esse processo de um ponto de vista interdisciplinar.

Burnout e complexidade histórica

Trataremos agora de analisar o fenômeno de burnout a partir de três níveis distintos. Um primeiro nível constitui-se do psíquico-existencial, no qual buscaremos dar uma compreensão do processo psicossocial que conduz a burnout, buscando abordar o sujeito em sua totalidade e não exclusivamente em suas relações com o trabalho (Castro e Zanelli 2008). Num segundo nível, abordaremos a complexidade organizacional e do trabalho presente em burnout. Trata-se, neste aspecto, de identificar a lógica organizacional a partir da qual o fenômeno de burnout pode ocorrer. Num terceiro nível, tratamos do "sentido do processo histórico", em que buscaremos, por meio de uma perspectiva sintética e compreensiva, integrar os níveis precedentes e dar visibilidade ao sentido histórico que o problema de burnout revela e, mais amplamente, o sentido do crescimento do mal estar no trabalho na atualidade.

O nível psíquico-existencial2

Consideraremos neste nível o processo psíquico-existencial que burnout é capaz de revelar. Houve interesse, neste ponto, em analisar o esgotamento emocional relacionado ao conjunto da historicidade individual compreendida a partir da noção de projeto de ser (Castro, 2010). Nesse sentido, consideraremos três momentos essenciais: um primeiro momento em que o sujeito define seu projeto de ser a partir da infância e dá um sentido existencial ao seu trabalho. Um segundo, em que o sujeito passa a viver a tensão entre seu projeto de ser e as exigências organizacionais. E um último, em que uma cisão do projeto existencial se processa instaurando um impasse psicológico.

Consideremos o modelo a seguir como expressão do primeiro momento:

O sujeito enquanto projeto de ser, constitui-se como uma totalidade histórica singular composta por uma escolha original realizada na infância, uma escolha profissional realizada em um momento de transição da adolescência para a idade adulta e uma relação significativa com o trabalho, portadora de um sentido existencial e social. Em relação à escolha original, esta se constitui como um acontecimento biográfico (Castro, 2010; Sartre, 1971), no qual a criança experimenta certa possibilidade de ser para si a partir dos condicionantes familiares e de classe. Um momento decisivo na existência individual, que se reverte pela pura ordem determinista das condições exteriores e quando a criança consegue fazer algo daquilo que o mundo social e familiar fez dela até então (Sartre, 1952). Já a escolha profissional é considerada não uma simples escolha de um fazer, mas a definição de uma possibilidade de ser que se realizaria por meio do fazer profissional escolhido dentro de um campo socioprofissional determinado.

 

 

A escolha profissional, desta maneira, aparece como um acontecimento totalizante da história individual (Castro, 2010), visto que retoma a escolha original de infância e, ao mesmo tempo, projeta-se para a realização de um futuro desejado e por construir. Por fim, a relação do sujeito com o trabalho e com a organização adquire um sentido social e existencial à medida que este interioriza o valor social do trabalho e o ideal institucional, passando a unificá-los ao conjunto de sua existência individual. É esta totalidade singular, portanto, que se define enquanto projeto de ser (Castro, 2010), e que sofrerá o desgaste do processo estressante e de todo o mal estar no trabalho que o acompanha.

A esse primeiro momento do processo psíquico-existencial de burnout, acrescenta-se um segundo, caracterizado pela tensão e pelo estresse. Suas características podem ser observadas conforme o modelo que se segue:

Em determinado momento, o sujeito enquanto projeto de ser passa a viver uma situação de tensão em função de reestruturações organizacionais que, por sua vez, são caracterizadas por exigências de hiperprodutividade, flexibilidade e adaptabilidades contínuas. Tais transformações na ordem organizacional passam a colocar o sujeito diante de um ideal institucional irrealizável, mas o sujeito mantém-se comprometido em função do sentido que o trabalho possui no conjunto de sua existência.

Experiências de frustração com o trabalho e com a organização começam assim a se reproduzir, e momentos de fracasso passam a acumular-se a ponto de o sujeito, cada vez mais, desiludir-se com aquilo que faz e com quem é. Uma situação, portanto, de tensão emocional constitui-se, caracterizada pela contradição entre aquilo que o sujeito busca manter em relação ao sentido existencial e social de seu trabalho e, a nova situação, produtora de frustração e desilusão (Castro, 2010).

Um terceiro e último momento do processo psíquico-existencial de burnout pode ser caracterizado por uma ruptura do projeto de ser, capaz de conduzir o sujeito a uma situação de impasse. No modelo a seguir, buscamos esclarecer os detalhes deste novo acontecimento no plano da vida individual:

O que encontramos neste momento do processo individual é uma situação na qual o acúmulo de experiências de frustração e fracasso torna-se insuportável e unifica-se num momento psicológico qualitativamente novo da vida do sujeito. A certeza de ter se tornado alguém inútil e fracassado evidencia-se como preponderante e, ao mesmo tempo, ocorre uma perda do sentido social e existencial do trabalho que, até então, orientava as ações do sujeito dentro e fora do trabalho. Como consequência, cria-se um impasse psicológico entre aquilo que o sujeito se tornou [A], mas não suporta [não A], e aquilo que o sujeito era [B], mas não consegue mais recuperar [não B]. O impasse constitui-se, portanto, como uma contradição não dialetizável (Ali, 1989), ou seja, como uma contradição ao mesmo tempo insustentável e intransponível, que não encontra na vida concreta do sujeito uma possibilidade de síntese.

 

 

O nível de análise psíquico-existencial de burnout, portanto, revela um fracasso do projeto de ser (Castro, 2010) que diz respeito ao conjunto da história individual afetada por uma transformação profunda das relações de trabalho e da dinâmica organizacional. Cabe, agora, passar para o segundo nível de análise, examinando as características dessas transformações de ordem organizacional, bem como sua lógica subjacente.

O nível organizacional

A raiz da tensão que divide o psiquismo encontra-se no novo sistema de gestão que começa a surgir nos países industrializados a partir da década de 1970. Um sistema formado a partir de uma situação de crise, tanto da ideologia de justificação do capitalismo posta em xeque a partir dos movimentos de maio de 1968, como também de sua reprodução, posta em xeque pela crise econômica do início da década de 1970 (Boltanski & Chiapello, 1999).

Os movimentos de maio de 1968 possuíram tanto o caráter de revolta estudantil quanto operária. Grosso modo, estudantes e trabalhadores enfatizaram a crítica à alienação, à miséria do cotidiano, à desumanização do mundo regido pela técnica e à falta de autonomia e de criatividade. No que diz respeito ao domínio do trabalho e da produção, a crítica recaiu sobre o poder hierarquizado, o autoritarismo, as tarefas prescritas, os horários e as cadências impostas, em suma, contra o sistema taylorista de organização do trabalho (Casevecchie, 2008). A luta dos movimentos de maio de 1968, portanto, dirigiram-se contra os dois fundamentos de justificação do sistema social capitalista, quais sejam, contra a exploração (a chamada "crítica social") e contra seu caráter alienante (a chamada "crítica artística"), segundo Boltanski e Chiapello (1999). Em suma, maio de 1968 foi um movimento social que se engajou na luta contra a exploração do trabalho e a favor da autonomia.

Por outro lado, os países industrializados, principalmente da Europa ocidental e os Estados Unidos, passaram a viver uma grave crise econômica. O tripé kaynesiano formado pelo estado investidor e mediador, por uma política de bem-estar social e pela iniciativa privada regulada, havia esgotado suas possibilidades de desenvolvimento e reprodução da ordem capitalista (Harvey, 1992). A emergência das economias do leste asiático e a crise do petróleo exigiram a busca de novas formas de organização do trabalho que retomasse a produtividade e fosse capaz de enfrentar a nova competitividade internacional. Por fim, o poder sindical, com sua capacidade de produzir um número elevado de movimentos de greve e frear a produção, representava, para a perspectiva do capital, um custo de produção a ser vencido.

Assim, o novo sistema de gestão que se desenvolverá como resposta a tais necessidades de justificação e de produtividade do capitalismo do final do século XX, constituir-se-á de uma junção de dois aspectos antagônicos. Por um lado, ele assimilará a sua maneira, a "crítica artística" ao sistema, com suas reivindicações de autonomia e criatividade que, por princípio, reivindica a humanização do trabalho e das formas de organização social. Por outro, desenvolverá novas formas de racionalização do trabalho, visando sua maior exploração a custos mais baixos. Aos novos técnicos e ideólogos da gestão empresarial caberá, portanto, a responsabilidade de inventar uma nova forma de organizar o trabalho que será portadora, desde sua raiz, de um paradoxo: produzir uma ideologia humanizante e justificadora das novas formas de organização e, ao mesmo tempo, produzir novas formas de exploração do trabalho para tornar os sujeitos produtivos e retomar a capacidade competitiva do sistema.

 

 

Segundo Le Goff (1999), os preceitos de maio de 1968 são integrados ao novo sistema ideológico de gestão de maneira a desvinculá-los de seu imaginário revolucionário original e a incorporá-los a um discurso de modernização organizacional. O modelo não será o do trabalhador assalariado portador de um ''saber-fazer'', mas o do colaborador, comprometido subjetivamente com a empresa e portador de um ''saber-ser'' (Le Goff, 1999). A nova ideologia gestionária, portanto, desloca seu caráter prescritivo da atividade e seus modos operacionais para o sujeito e seus modos de ser. Ser participativo, saber dialogar, aceitar crítica, ser tolerante, franco, engajado num progresso contínuo e aderido subjetivamente aos ideais da empresa, tornam-se princípios básicos das novas formas de gestão.

Para Le Goff (1999), o ''saber-ser'' torna-se o coração do novo processo gestionário com suas exigências de flexibilidade de tempo, competências e tarefas baseadas em um discurso sobre o desenvolvimento pessoal. Conforme Gaulejac (2009), o ideal de excelência mostra-se um dos conceitos-chave das novas prescrições gerenciais, o que significa "ser fora do comum" e engajado subjetivamente em "ser performante". A empresa, dentro dessa nova mentalidade gerencial, deixa de ser um lugar de exploração e alienação para tornar-se portadora de modernização e de desenvolvimento individual.

Paralelamente a essa nova ideologia gestionária, uma nova racionalização do sistema produtivo desenvolve-se. Apresentamos a seguir uma síntese de suas principais características:

• busca pela "mensuração" rigorosa das competências na tentativa de quantificação cada vez maior da performance individual;

• "individualização" ergue-se como um princípio baseado nas medidas de salário variável e nos dispositivos de avaliação individual (Dejours e Bègue, 2009);

• "diminuição de custos" com salário torna-se sinônimo de modernização, seja a partir de demissões em massa (Antunes, 2006) ou da criação de diversas formas de subcontratação e de trabalho temporário, via terceirização e constituição de empresas de serviços, transformando os proletários em prestadores de serviço;

• forte "ofensiva contra o poder sindical" faz parte ainda do novo sistema, na qual a contradição capital-trabalho e temas tais como alienação e exploração são banidos do interior da empresa em prol da exigência de colaboração e da ideia de empresa enquanto portadora de modernização;

• "gestão por objetivos" (Dejours & Bègue, 2009) portadora de uma intensificação do ritmo das tarefas e de uma desqualificação do trabalho em prol da fixação de objetivos financeiros a curto prazo; e,

• contradição entre manager, portador do novo modelo gestionário baseado na redução de custos, nas metas de produtividade e na ideologia do "saber-ser", e trabalhadores, portadores do "saber-fazer" próprios de sua atividade profissional.

Gestão e trabalho, nesse sentido, distanciam-se um do outro, funcionando a partir de lógicas diferentes, motivo pelo qual, constatam-se um aumento cada vez maior do assédio moral, da violência, da pressão e dos conflitos entre gestores e funcionários (Barreto, Neto & Batista, 2011). A lógica organizacional torna-se, dessa maneira, uma lógica paradoxal tensionada entre as prescrições ideais de um saber-ser e uma imposição de exigências produtivas que tornam tais ideais irrealizáveis (Castro, 2010).

É possível compreender, a partir do exposto, que o paradoxo não constitui um acidente do novo sistema gerencial, mas é parte essencial de sua lógica e de seu funcionamento. Conforme Le Goff (1999) está-se diante de um management paradoxal, à medida que funciona a partir de duas lógicas antagônicas e, ao mesmo tempo, necessárias dentro do sistema: é preciso ser autônomo e, ao mesmo tempo, ser em conformidade às normas estritas de produtividade e performance. O mesmo sustenta Linhart (2004), para quem o novo sistema de gestão desenvolvido para a modernização da empresas se estabelece a partir de duas demandas contraditórias: ser participativo e ser submisso. Da mesma forma Gaulejac (2008) assinala que uma característica fundamental das mudanças vividas pelas empresas é a passagem da contradição ao paradoxo.

Por um lado, a contradição de classe entre as categorias dos trabalhadores e dos patrões é substituída pela individualização radical e por uma lutte des places3 e a administração taylorista é substituída pelo new management que, ao trabalhar para produzir o valor para os acionários, mostra-se incapaz de criar mecanismos de mediação sociais, levando ao crescimento da solidão serial (Castro, 2010). A ambiguidade, portanto, evidencia-se como central dentro da nova lógica de gestão ao colocar em prática dois sistemas de sentidos que se opõe: um econômico-financeiro, baseado na exigência de hiperprodutividade com diminuição de custos e outro, social e existencial, baseado na demanda de realização pessoal (Gaulejac, 2008).

O sentido do processo histórico: burnout e complexidade histórica

A análise de burnout como parte de um fenômeno mais amplo de crescimento do mal estar no trabalho e a partir de uma ótica interdisciplinar, nos permite tecer algumas considerações sobre a complexidade do processo histórico que este representa. A partir das análises dos níveis psíquico-existencial e organizacional, é possível destacar dois aspectos fundamentais do processo histórico em curso: (1) o desenvolvimento da serialidade como luta individualista, competitiva e antagônica no interior das organizações (lutte des places, conforme Gaulejac & Leoneti, 1994) que desconstrói a identidade coletiva; (2) a transformação do valor social do trabalho em valor econômico-financeiro.

Observa-se que o homem atual em sua relação com trabalho encontra-se sobrecarregado pelas exigências e demandas crescentes do campo social prático inerte (Castro, 2010) que, por sua vez, colocam todos, cada vez mais sob a pressão de "fazer mais" com "cada vez menos tempo e com menos pessoas" e, ao mesmo tempo, as mesmas demandas solicitam de todos uma adesão a um ideal irrealizável. O sentido desse processo histórico implica, portanto, uma individualização da relação com o trabalho, uma fragmentação dos laços sociais nos pequenos grupos e uma decomposição dos coletivos, em termos de identidade comum, como sustentam Boltanski e Chiapello (1999). Um processo histórico produtor de um sujeito "desfiliado" (Castel, 1991), ou seja, um "ser-sem": sem emprego, sem família, sem sentido e sem coletivos com que se identificar.

Além do crescimento da serialidade e da destruição das identidades coletivas no interior das organizações de trabalho, é possível observar uma substituição do sentido social do trabalho, gerador de objetos ou de serviços com valor qualitativo, por um sentido econômico-financeiro, gerador de um valor exclusivamente quantitativo. No plano da existência individual, isto significa que o sujeito precisa trabalhar para alcançar metas quantitativas de produtividade e desempenho (cifras a cumprir). Já no plano organizacional, essa transformação aparece por meio da nova mentalidade gerencial que, cada vez mais, implementa um trabalho por metas, exigindo valores quantitativos elevados que fazem deteriorar o sentido social para o qual a produção de algo tem valor, à medida que satisfaz as necessidades sociais e materiais de uma determinada coletividade (Castro, 2010).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como maneira de sintetizar nossa compreensão sobre a relação entre burnout e complexidade histórica, consideremos o modelo que se segue:

No centro do modelo tem-se o sujeito que desenvolve burnout. Conforme a introdução desse trabalho, partiu-se da definição de Maslach e Jackson (1981) segundo a qual, o esgotamento emocional mostra-se ligado a sinais de despersonalização e de perda da realização pessoal, resultantes das altas demandas e poucos recursos vividos no interior das organizações. No entanto, buscamos mostrar ao longo deste artigo que a razão analítico-matemática sobre a qual se baseiam os estudos sobre burnout não se mostra suficiente para responder as exigências de compreensão da complexidade histórica que o problema suscita.

 

 

Nesse sentido, nossa análise buscou colocar em evidência um fracasso no plano do projeto de ser, à medida que os sujeitos interiorizam o paradoxo organizacional de um ideal irrealizável. Quer dizer, a interiorização desse paradoxo conduz à tensão constante entre o manter o sentido social e existencial do trabalho e a perda desse sentido em função das exigências de hiperprodutividade, flexibilidade e adaptação que levam os sujeitos a, cada vez mais, trabalharem em função de um valor econômico-quantitativo e a perder o valor social daquilo que fazem. O processo de fracasso do projeto de ser que burnout representa, implica, dessa maneira, tanto no fracasso de um esforço histórico singular de dar sentido à existência, como uma ruptura com o ser em comum. O sujeito que se esgota, portanto, deixa de compartilhar com os outros o sentido social do trabalho e o pertencimento a uma identidade comum, aumentando o individualismo, a serialização e a insignificância no âmbito das relações sociais e de trabalho.

É possível compreender que cada novo sujeito que interioriza os ideais irrealizáveis da nova ordem gestionária e cada nova organização que adota os princípios gestionários baseados no ''saber ser'', na hiperprodutividade e na prioridade financeira, mostram-se como (re)produtores de um processo histórico que inviabiliza o tecido social, em detrimento de uma lógica quantitativo-financeira que, por sua vez, contribui para a desconstrução das identidades coletivas e para a reprodução da insignificância social e existencial.

A compreensão de burnout como um fracasso do projeto de ser encontra suas condições organizacionais na nova lógica gestionária nascida da crise de justificação social e econômica da sociedade capitalista nos anos de 1970. A aceleração do ritmo econômico, a pressão de um tempo cada vez menor para realizar cada vez mais trabalho e a ruptura dos laços sociais passaram a impedir a realização de um trabalho com sentido, como também, a inviabilizar a construção do tecido social. Burnout e crescimento do mal estar no trabalho mostram-se, assim, um fenômeno novo, à medida que estão ligados a uma lógica social e organizacional resultante de um processo histórico novo de transformação do modo de produção fordista-taylorista em direção ao modo gerir o trabalho a partir dos princípios do new management.

O fenômeno de burnout como parte integrante do crescimento do mal estar no trabalho nas últimas décadas, portanto, implica uma complexidade histórica constituída pela dialética entre os níveis psíquico-existencial e organizacional, capaz de revelar o sentido do atual processo histórico, bem como, nos fazer interrogar sobre as formas de práxis que o engendram.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rua Gustavo Sampaio 738 ap.501, Bairro Leme
Rio de Janeiro (RJ)
Tel: (21) 3344-2340
E-mail: fernandogastal@gmail.com

Recebido em: 01.11.2011
Aprovado em: 10.01.2013

 

 

1 Conforme documento disponível em www.lavozdegalicia.es, intitulado "Situación laboral: la CGT denuncia ante Inspección de trabajo a Atento y Telefonica" publicado em 19.08.2010.
2 Esta parte do artigo está baseada em minha tese de doutorado intitulada "Burnout, projeto de ser e paradoxo organizacional", mais especificamente na Parte I, Capitulo 13, onde é tratada a lógica psíquico-existencial do processo de desenvolvimento de burnout, op. cit.
3 Expressão proposta por Gaulejac e Leonetti no livro La lutte des places (op.cit) e que define o tecido social da sociedade contemporânea por uma luta individualiza e competitiva por postos de trabalho em substituição à luta social entre classes ocorrida até meados da década de 1970 no mundo industrializado ocidental.