Revista Psicologia Organizações e Trabalho
ISSN 1984-6657
Avaliação de necessidades de treinamento no trabalho: ensaio de um método prospectivo
Training needs assessment at work: a prospective method
Rodrigo R. FerreiraI,1; Gardênia da Silva AbbadII,2
IUniversidade de Brasília
IIUniversidade de Brasília
RESUMO
O objetivo desta pesquisa foi propor um método prospectivo para identificar necessidades de treinamento em ambientes organizacionais. O campo de estudo foi um órgão público brasileiro e a amostra foi constituída por auditores de obras públicas. Trata-se de um ensaio metodológico que visa responder questões referendadas na literatura da área. A análise de artigos sobre Avaliação de Necessidades de Treinamento (ANT) mostra o predomínio de práticas ad hoc, pouco focadas em prospectar as necessidades dos trabalhadores e da organização. Na Psicologia, existem pesquisas abordando predominantemente o nível individual (micro) de análise. Na Administração, as análises enfatizam o nível organizacional (macro), porém, carecem de abordagens sistemáticas. Na primeira etapa da pesquisa, foram analisados documentos sobre a organização e a atividade de auditoria de obras. Foram empreendidas entrevistas estruturadas coletivas e individuais. Na segunda etapa, os participantes responderam a um instrumento quantitativo de ANT, no qual sessenta e seis respondentes foram considerados válidos. O questionário continha 47 itens de competências associados a duas escalas tipo Likert de 11 pontos (0 a 10). Os dados foram analisados por meio de estatísticas descritivas. Os resultados mostram necessidades de treinamento em diversas competências, principalmente naquelas consideradas emergentes na área de auditoria de obras. O método proposto mostrou-se eficaz para a elaboração de medidas de necessidades de aprendizagem, indicadores de desafios e mudanças para a organização, indicadores de lacunas de competências dos trabalhadores e definição da natureza, da magnitude e da prioridade de necessidades de treinamento. No final, foi proposta uma agenda de pesquisa.
Palavras-chave: desenvolvimento de pessoal, aprendizagem no trabalho, educação corporativa.
ABSTRACT
The aim of this research was to propose a prospective method to identify training needs in organizational settings. The study location was a large Brazilian public agency, and the sample consisted of public building inspectors. Analysis of the literature on Training Needs Assessment (TNA) shows the prevalence of ad-hoc practices, with little focus on exploring future needs of employees and the organization. In the Psychology area, there are studies addressing predominantly the individual (micro) level of analysis. In the Management area, the analyses emphasize the organizational (macro) level, but lack a systematic approach. In the first stage of this research, documents on the organization and on building inspection activities were analyzed. Collective and individual structured interviews were conducted. In the second stage, the participants completed a TNA quantitative instrument. The questionnaire contained 47 competency items associated with two eleven-point (0-10) Likert scales. Sixty-six (66) respondents were considered valid. Data were analyzed using descriptive statistics. The results show training needs in various competencies, especially in those considered emerging in the building inspection field. The proposed method proved effective in constructing measures of learning needs, indicators of challenges and changes for the organization, indicators of worker skills gaps, and determining the nature, magnitude, and priority of training needs. We conclude with a proposed research agenda.
Keywords: personnel development, learning at work, corporate education
O objetivo geral desta pesquisa foi propor um método prospectivo para identificar necessidades de treinamento em ambientes organizacionais. Para isso, foram definidos os seguintes objetivos específicos: (a) conceber um instrumento de Avaliação de Necessidades de Treinamento (ANT), na primeira etapa da pesquisa, e (b) aplicar o instrumento de ANT em uma amostra de auditores de obras do Tribunal de Contas da União (TCU). Ao relatar as etapas de cumprimento destes objetivos específicos, espera-se que o método de ANT seja plenamente descrito.
As novas demandas e exigências do mundo do trabalho estão ocasionando grandes transformações na educação formal, bem como em programas de qualificação e formação de profissionais. Alguns fatores parecem instaurar um novo cenário para as organizações: a crescente complexidade dos ambientes interno e externo das organizações, o ritmo acelerado das mudanças tecnológicas na sociedade da informação, o considerável conteúdo de conhecimento exigido para a produção, a diminuição do ciclo de vida dos produtos e a rápida mudança dos processos produtivos. Entre os vários efeitos destes imperativos, a necessidade de qualificação contínua dos trabalhadores ocupa papel de destaque. Porém, pesquisas mostram que diagnósticos de necessidades de treinamento têm sido realizados de modo pouco sistemático em ambientes organizacionais (Clarke, 2003; Ferreira & Abbad, 2013 Ferreira, Abbad, Pagotto & Meneses, 2009; Ford & Noe, 1987; McGehee & Thayer, 1961; Moore & Dutton, 1978; Ostroff & Ford, 1989; Taylor, O'Driscoll, & Binning, 1998; Wexley, 1984).
Ao que parece, a improvisação tem sido uma marca nas atuais práticas organizacionais de ANT. Tais diagnósticos, segundo Abbad, Freitas e Pilati (2006), não têm facilitado o desenho de situações de aprendizagem. Muitas vezes, produzem resultados imprecisos, não alinhados às estratégias organizacionais e/ou não classificáveis de acordo com taxonomias de resultados de aprendizagem, tão valiosas nas fases subsequentes de desenho instrucional e de avaliação de treinamento.
A análise da produção de conhecimentos mostra pouco alinhamento da ANT com os objetivos estratégicos das organizações, negligenciando um dos principais papéis da Educação Corporativa: apoiar o alcance da missão institucional. Há mais de 40 anos, a literatura de Treinamento, Desenvolvimento e Educação (TD&E) discorre sobre a importância da sistematização dos processos de ANT e da realização de estudos sobre as variáveis do contexto que influenciam ou originam as necessidades de treinamento. A agenda de pesquisa é extensa.
A literatura nacional e internacional em ANT indica lacunas nas pesquisas. Apesar de transcorrido quase meio século desde as proposições de McGehee e Thayer (1961) e de 20 anos desde a apresentação do modelo de Ostroff e Ford (1989), essas abordagens ainda não foram testadas na íntegra por pesquisadores da Psicologia ou da Administração (Clarke, 2003; Ford & Noe, 1987; O'Driscoll & Taylor, 1992; Wexley, 1984). No Brasil, a pesquisa de Borges-Andrade e Lima (1983) forneceu respostas metodológicas importantes para a Avaliação de Necessidades de Treinamento, porém, sem vincular as necessidades a influências internas e externas a que estão submetidas as organizações (p. ex.: estrutura organizacional, alocação de recursos, leis, tecnologia, etc.), implicando em um método reativo, focado nas necessidades atuais dos cargos dos trabalhadores. Há necessidade de desenvolver e aplicar métodos prospectivos de ANT, que, como ponto de partida, visem descrever variáveis ambientais como meio para identificar (necessidades de) competências emergentes (Sparrow & Bognanno, 1994), essenciais para os trabalhadores lidarem com a crescente complexidade de suas tarefas, advinda do posicionamento estratégico que as organizações assumem.
É justamente nesse contexto que esta pesquisa se insere. Assim, justifica-se por tentar responder algumas questões existentes nas práticas e na literatura de ANT, por exemplo: como identificar as competências dos trabalhadores que estejam vinculadas aos desafios e mudanças dos ambientes interno e externo da organização? Como descrever competências passíveis de mensuração? Como avaliar necessidades de treinamento? Como compor um indicador da prioridade e da magnitude de lacunas de competências dos trabalhadores? As perguntas serão retomadas e discutidas mais adiante. O conteúdo deste artigo está organizado em 5 seções (em ordem de apresentação): (a) referencial teórico, em que serão apresentadas as principais premissas e filiações teóricas da pesquisa; (b) método, em que serão expostas as características da pesquisa, o campo de pesquisa, o perfil dos participantes, os instrumentos de pesquisa, os procedimentos de coleta e análise de dados; (c) resultados, visando descrever as necessidades de treinamento encontradas; (d) discussão, em que os resultados serão apreciados à luz das perguntas, dos objetivos de pesquisa e do referencial teórico; e (e) limites e agenda de pesquisa, seção na qual os limites da pesquisa serão analisados e uma programação de futuras pesquisas será proposta.
REFERENCIAL TEÓRICO
Esta seção tem o objetivo de analisar alguns conceitos e premissas teóricas fundamentais para o entendimento e a elaboração da pesquisa.
Treinamento
Para Goldstein (1991), treinamento é uma aquisição sistemática de atitudes, conceitos, conhecimentos, regras ou habilidades, pelo indivíduo ou por grupos, que resulta na melhoria do desempenho no trabalho. Treinamento pode ser definido como qualquer ação organizacional desenhada e executada com o objetivo de, intencionalmente, ampliar a aprendizagem de atores organizacionais. A noção de treinamento deve ser entendida como um processo sistemático, propositadamente conduzido pela organização. Este termo representa com fidelidade a chamada aprendizagem induzida.
O processo de ANT é parte de um sistema mais amplo de treinamento, no qual todos os subsistemas desempenham papéis complementares. A etapa de Avaliação de Necessidades de Treinamento é o principal momento para se estabelecer relações entre o treinamento em si e seus resultados, pois é a etapa em que as decisões acerca de quais ações de TD&E, quem e o que será treinado, entre outras, são tomadas. Pode-se dizer que no processo de ANT identifica-se, de modo rigoroso, o que, onde e quem precisa ser treinado em uma organização. Trata-se, portanto, da matriz de informações que alimentará o restante do sistema de treinamento, conforme a Figura 1.
É na etapa de ANT que se dá o insumo do sistema. A Avaliação de Necessidades de Treinamento pode ser definida como o processo sistemático de coleta, análise e interpretação de dados ligados a discrepâncias de competências nos níveis, organizacional e individual, de tarefas destinadas ao desenho, planejamento, execução e avaliação de cursos. A etapa seguinte, Planejamento e Execução do Treinamento, tem como característica básica a aplicação de métodos e teorias instrucionais que visam possibilitar o planejamento e a execução de ações de aprendizagem induzida de conhecimentos, habilidades e atitudes (CHAs). A etapa de Avaliação do Treinamento tem o objetivo de aferir a efetividade da ação educacional em termos de aquisição, retenção, transferência e impacto no trabalho dos CHAs descritos na etapa de ANT. Uma avaliação de treinamento deve servir também para retroalimentar todo o sistema, indicando fragilidades e potencialidades das etapas anteriores.
Parte da literatura de TD&E sugere que o contexto organizacional pode influenciar os processos e resultados de ações instrucionais formais (treinamento) (Baldwin & Magjuka, 1997). Como forma de contemplar variáveis contextuais no planejamento, execução e avaliação de treinamentos, deve-se, ainda na etapa de ANT, estabelecer relações entre variáveis internas e externas à organização e as necessidades de competências dos trabalhadores. É com este objetivo que o método proposto foi desenvolvido.
Necessidades de Treinamento
Definições claras e objetivas de necessidades de treinamento (lacunas de competências) subsidiam a elaboração de modelos e instrumentos de ANT, que permitem estabelecer prioridades de treinamento, formular sugestões de melhorias no desempenho de indivíduos e grupos, descrever objetivos educacionais, fornecer bases sólidas para o desenho instrucional, executar e a avaliar cursos, encorajar trabalhadores a participarem da construção e execução de ações educacionais, alinhar os treinamentos oferecidos aos objetivos e às competências estratégicas da organização.
Para McGehee e Thayer (1961), as necessidades de treinamento derivam de habilidades pouco desenvolvidas, conhecimentos insuficientes ou atitudes inadequadas. Para Borges-Andrade e Lima (1983), as necessidades de treinamento podem ser definidas como discrepâncias entre uma situação prescrita e uma situação real, ou entre "o que é" e "o que deveria ser" em termos de domínio de competências por parte dos indivíduos. Para Mager e Pipe (1979), as necessidades de treinamento são diferenças identificadas entre o desempenho atual de empregados e o desempenho que a organização espera dele. Asku (2005) diz que uma necessidade de treinamento é o hiato entre o sucesso esperado e o sucesso real de uma organização ou de um indivíduo.
Para Attwood e Ellis (1971) há dois tipos de necessidades de treinamento: (a) lacunas em conhecimentos, habilidades e atitudes (CHAs) advindas do contexto atual de trabalho do sujeito, que podem ser ou não reconhecidas por aqueles que as possuem; e (b) necessidades advindas de lacunas educacionais da vida pessoal e profissional do sujeito. O escopo desta pesquisa limitou-se a explorar as necessidades advindas do primeiro tipo descrito. Green e Owen (2003) argumentam que as necessidades de treinamento são parte de um processo complexo, no qual mudanças no mercado externo e nas políticas organizacionais dão origem a um contínuo e longo processo de mudança nas competências dos trabalhadores.
Para que a lógica do uso do conceito de necessidades de treinamento fique clara, é preciso descrever também o que o conceito não se propõe a exprimir. Necessidades não são as discrepâncias de competências devidas diretamente a problemas de motivação ou de condições de trabalho. Tampouco são tópicos, temas, conteúdos, domínios, áreas de conhecimento ou de atuação profissional, como têm sido definidas por profissionais que realizam levantamentos de necessidades mediante aplicação de cardápios contendo listas de nomes de cursos ou de conteúdos previamente prontos. Solicitações de treinamento verbais e por escrito, vindas de gestores e outros profissionais de uma organização, também não são necessidades de treinamento. A descrição de cursos, por meio da apresentação de conteúdos pré-definidos, é muito tradicional e arraigado em ambientes acadêmicos e em organizações de trabalho. Porém, essa prática impossibilita a formulação de expectativas realistas sobre o que o treinando ou egresso do treinamento estará capacitado a realizar, dizer e/ou pensar após o curso. Os resultados obtidos com práticas ad hoc de ANT têm caráter reativo, pouco aderente ao que a organização espera do trabalhador em termos de domínio de competências a curto, médio e longo prazo. A descrição de necessidades, em termos de conhecimentos, habilidades e atitudes, pode ser feita com o apoio de sistemas de classificação de resultados de aprendizagem ou taxonomias de objetivos educacionais, tornando a ANT e as etapas subsequentes de treinamento mais precisas e objetivas.
Avaliação de Necessidades de Treinamento (ANT)
A análise da literatura indica o uso mais recorrente de dois termos relacionados aos métodos de diagnóstico de necessidades de treinamento: Levantamento de Necessidades de Treinamento (LNT) e Análise de Necessidades de Treinamento (ANT). É muito comum em relatos de casos o uso do termo Levantamento de Necessidades de Treinamento para se referir a ações de coleta e análise de dados, voltadas à tomada de decisões sobre demandas educacionais e de treinamento. Porém, esse termo está associado à aplicação de "cardápios" de cursos para o diagnóstico de necessidades de treinamento. Isto é, na prática, dirigentes, gestores e outros profissionais da organização escolhem e solicitam treinamentos prontos por meio de listas pré-definidas de temas e sem dados empíricos que suportem tal decisão. Por outro lado, o termo Análise de Necessidades de Treinamento tem sido usado para enfatizar a natureza analítica do processo de diagnóstico de necessidades e para se referir à aplicação de modelos teóricos tradicionais de pesquisa como os de McGehee e Thayer (1961) e Mager e Pipe (1979). Porém, o caráter descritivo das análises de necessidades esconde o fato de que existem, além de processos analíticos, processos avaliativos da magnitude e da prioridade de necessidades de treinamento ou hiatos de competências.
Bloom, Englehart, Furst, Hill e Krathwohl (1972) descrevem que os comportamentos e as cognições humanas podem ser classificados em níveis de complexidade (no domínio cognitivo), internalização (no domínio afetivo) e automatização (no domínio psicomotor). O domínio cognitivo é classificado por seis processos mentais organizados taxonomicamente por ordem de complexidade (do menos complexo para o mais complexo): conhecer, compreender, aplicar, analisar, sintetizar e avaliar. O processo cognitivo de avaliar um objeto, segundo Bloom et al. (1972), é o mais complexo, pois consiste na comparação de dados, informações, teorias, objetos e estímulos com um critério ou conjunto de critérios objetivos e/ou subjetivos para, então, emitir um juízo de valor. Por isso, na presente pesquisa, será adotada a expressão Avaliação de Necessidades de Treinamento para se referir a um processo rigoroso (teórica e metodologicamente) de coleta e análise de dados destinado a descrever lacunas objetivas de competências dos trabalhadores.
Segundo Abbad, Freitas e Pilati (2006), as ANTs objetivam diagnosticar ou prognosticar hiatos de competências dos indivíduos, de modo que os mesmos, transformados em objetivos instrucionais, facilitem o desenho de ações de aprendizagem. Para Brown (2002), ANT é um processo contínuo de coleta e análise de dados destinado a determinar quais treinamentos são necessários para que os objetivos organizacionais sejam atingidos. Segundo a autora, há quatro razões para que uma ANT seja conduzida: (a) identificar problemas específicos de cada área; (b) obter apoio e confiança de dirigentes e gestores; (c) obter dados para avaliar os programas de treinamento; e (d) determinar custos e benefícios de programas de treinamento.
Para Clarke (2003), ANT refere-se ao processo organizacional de coleta e análise de dados que subsidiam a tomada de decisão acerca de quando o treinamento é a melhor opção para aprimorar o desempenho de indivíduos, bem como definir quem deve ser treinado e qual conteúdo deve ser lecionado. Para o autor, há relativamente poucos modelos para avaliar necessidades de treinamento e os existentes falham em captar os fatores que embasam a qualidade das decisões sobre ações educacionais. Os modelos de ANT existentes são baseados em uma visão unitarista e racional da organização e ignoram a influência das relações sociais e das dinâmicas organizacionais nas tomadas de decisão sobre treinamento (Clarke, 2003).
Para Wright e Geroy (1992) a ANT deve ser um processo sistemático de coleta, análise e interpretação de dados referente a lacunas de competências individuais, de grupo e/ou organizacionais e deve possuir sete características principais: (a) ser baseada principalmente na cultura e na filosofia organizacional; (b) ser proativa em vez de reativa; (c) possuir um método que possibilite a distinção entre situações que podem ser resolvidas por meio de treinamento ou não; (d) possibilitar a participação de vários atores organizacionais interessados e envolvidos direta ou indiretamente no treinamento; (e) ser baseada em competências observáveis em vez de percepções de dirigentes, gestores e profissionais; (f) considerar o uso variado de técnicas de coleta e análise de dados; e (g) ao final, possuir uma análise de custo/beneficio. Essa definição de ANT parece ser a mais apropriada aos propósitos desta pesquisa.
Competências: breves considerações teóricas
Nos últimos anos, o debate sobre competências adquiriu importância nos ambientes acadêmico e organizacional, sobretudo após a obra de Prahalad e Hamel (1990). Em Administração, as raízes teóricas do conceito de competências remetem à abordagem de Visão da Empresa Baseada em Recursos (do inglês RBV - Resource-Based View of the Firm), proposta por Penrose (1959). Nessa perspectiva, uma organização pode ser entendida como um conjunto de recursos - tangíveis e intangíveis, humanos ou não - empregados para gerar resultados. Estes recursos podem estar associados ao conceito de competência. De forma sistêmica, pode-se dizer que os conhecimentos, habilidades e atitudes (competências) são insumos para gerar comportamentos, realizações e resultados, e estes, por sua vez, geram valor econômico e social para a organização.
No ambiente acadêmico, são muitas as definições do termo competência, porém, todos estão associados, basicamente, a três correntes teóricas. A primeira entende competência como um conjunto de atributos de um profissional, necessário à realização de um determinado trabalho (Boyatzis, 1982; McClelland, 1973). A segunda define competência como a entrega de resultados que um profissional pode realizar em um determinado contexto organizacional (Le Boterf, 1999; Zarifian, 1999).
Nota-se, ainda, a existência de uma terceira corrente teórica, que pode ser vista por meio de uma perspectiva integradora das duas anteriores (Brandão, 2006). Para Gonczi (1999), um dos principais pesquisadores desta abordagem, o conceito de competência é constituído não apenas pelos atributos individuais de um profissional, mas também pelo contexto no qual o indivíduo e seus atributos estão inseridos. Dessa forma, a competência não seria vista apenas como um conjunto de CHAs, mas também como a forma pela qual essas características são mobilizadas pelo indivíduo para o alcance de resultados valorizados pela organização.
Quanto à relevância através do tempo, conforme sugerem Sparrow e Bognanno (1994), as competências podem ser classificadas como emergentes (o grau de importância tende a crescer em curto, médio e longo prazos para a organização), declinantes (cujo grau de importância tende a decrescer nos curto e médio prazos para a organização), estáveis (permanecem relevantes ao longo do tempo) e transitórias (são importantes em períodos críticos de transição ou mudança organizacionais).
A partir da análise das diversas correntes de estudos sobre o assunto, pode-se dizer que o conceito de competências no nível do indivíduo está associado aos seguintes aspectos: (1) aplicação de CHAs no trabalho; (2) capacidade de mobilizar recursos e colocar em prática conjuntos de saberes; (3) busca de melhores desempenhos; e (4) atributos relacionados ao indivíduo no trabalho. Questões relacionadas à formação, ação, resultados, contexto e interação também são fundamentais para a interpretação do conceito de competências no trabalho e nas organizações. Assim, nota-se que os vários enfoques existentes possuem uma relação de complementaridade, na qual o indivíduo, o contexto e o desempenho devem ser analisados em conjunto se quisermos entender este conceito plenamente.
ANT e competências
O conceito de competências é largamente adotado em pesquisas e práticas utilizadas na Administração e na Psicologia Organizacional e do Trabalho, desde as que estudam a inteligência até as que buscam compreender como se dá a aprendizagem informal e em TD&E. A centralidade do conceito de competências é ainda mais evidente quando são discutidos técnicas de diagnóstico de necessidades de treinamento. Muitos métodos de ANT já faziam uso prático da noção de competências antes mesmo desse conceito exercer toda a influência em gestão de pessoas que vemos atualmente. Foi depois do debate teórico mais sistematizado e amplo, assim como a adoção de gestão por competências por grande parte das organizações, que os métodos de diagnóstico de necessidades e o conceito de competências passaram a ser "faces de uma mesma moeda".
A lógica que orienta a suposição de diálogo entre os processos de ANT e competências é proposta por Kerlinger (1980), na qual um constructo deve possuir duas definições: uma constitutiva, pela qual um conceito é definido por outros conceitos, e outra operacional, que especifica o modo como um conceito é mensurado. Desse modo, pode-se dizer que o conceito de competências é definido por vários outros conceitos (dimensão constitutiva - conhecimentos, habilidades, atitudes, capacidades) e mensurado por meio dos métodos de ANT (dimensão operacional - auto ou heteroavaliação de lacunas de competência, diferença entre medidas de competências reais e esperadas, importância e domínio de habilidades, testes, provas, entre outras medidas baseadas em julgamentos e percepções humanas). Todos os critérios adotados para aferir diferentes níveis de um determinado constructo (competências ou necessidades de treinamento) são definidos como dimensões operacionais do conceito.
Os processos de ANT, portanto, constituem uma das faces operacionais do conceito de competências, pois buscam, em última análise, mensurar a discrepância entre a importância e domínio de competências (ou de seus componentes em separado, os CHAs) em diversos níveis (indivíduos, grupos, processos, organizações).
MÉTODO
Esta seção tem por objetivo descrever o método de ANT proposto. Por tratar-se de estudo misto, qualitativo (primeira etapa) e quantitativo (segunda etapa), o relato do método vai se dividir de acordo com as etapas da pesquisa.
Características da pesquisa
A presente pesquisa é de natureza empírica, na qual a abordagem qualitativa foi utilizada para a construção do instrumento de ANT e quantitativa para a aplicação do instrumento com uso de escala do tipo Likert. O estudo é descritivo e exploratório. A técnica de survey foi utilizada para fazer o levantamento de dados, que são de origem primária. O recorte temporal da pesquisa é transversal. A amostra é não-probabilística e de conveniência; o critério para escolha da área da pesquisa deu-se em função do acesso aos participantes.
Primeira etapa: construção do instrumento de ANT
A 1ª etapa da pesquisa (qualitativa) visou cumprir o primeiro objetivo específico: elaborar o instrumento de Avaliação de Necessidades de Treinamento.
Participantes (1ª etapa)
A definição dos participantes desta etapa foi planejada em parceria com profissionais de TD&E da organização. Para que a amostra pudesse representar os perfis desejados, foi feita uma análise prévia dos dados profissionais dos participantes (cargo, função, lotação). Essas informações foram fornecidas pela organização, de modo a garantir que a amostra contivesse auditores especialistas e outros profissionais (técnicos, generalistas, gestores) ligados à fiscalização de obras. Estiveram presentes 33 dirigentes, gestores, especialistas, generalistas, profissionais não comissionados e técnicos (lotados em Brasília e em outros estados do país). Destes, 28 participaram das entrevistas coletivas (válidas).
Em relação à faixa etária dos participantes (n = 28), 42,9% tinham entre 31 e 40 anos, 46,4% tinham entre 41 e 50 anos e 10,7% tinham mais de 50 anos. A média de tempo de trabalho na organização foi de 11,09 anos (D.P. = 5,46).
Instrumentos (1ª etapa)
O instrumento utilizado nas entrevistas coletivas foi composto por três questões abertas: (1) "Em minha opinião, os principais desafios e mudanças que o [nome do órgão] enfrentará em fiscalização de obras nos próximos anos são:"; (2) "Em minha opinião, as competências emergentes necessárias para o alcance do sucesso da atividade de fiscalização de obras nesses próximos anos são:"; e (3) Em minha opinião, os profissionais que precisam desenvolver essas competências estão lotados...". Tais questões fornecem as bases para que o método proposto tenha um caráter prospectivo, pois induzem os respondentes a elaborarem conteúdos diretamente relacionados a fatores internos e externos da organização como meio para definir as competências necessárias para a sua atuação profissional no futuro. O registro das respostas dos participantes era feito nos próprios questionários, que possuíam espaço destinado a anotações e respostas. O questionário utilizado na etapa da dinâmica em grupo era composto pelas mesmas sentenças, transcritas para o plural.
Procedimentos (1ª etapa)
A coleta dos dados qualitativos ocorreu em um único dia, na ocasião de um encontro dos participantes, promovido pela organização. Todos os participantes foram reunidos em uma sala, onde foram informados sobre: (a) a identidade dos pesquisadores e sua parceria com a organização; (b) os objetivos da pesquisa; (c) a confidencialidade dos dados individuais coletados; (d) as etapas da pesquisa a que estariam sujeitos; (e) as instruções para o preenchimento dos formulários; e (f) a necessidade de análise e divulgação dos resultados. Em seguida, foram formados dois grupos de 14 pessoas cada. Ao se solicitar a divisão dos grupos, sugeriu-se que fossem heterogêneos em termos da presença de dirigentes, gestores, especialistas em auditoria e generalistas na área.
Iniciou-se o preenchimento individual dos formulários. Esta etapa teve duração de aproximadamente 25 minutos. Durante a coleta de dados, o pesquisador e dois auxiliares de pesquisa observaram a reação dos participantes em relação à legibilidade do questionário. Nenhuma dificuldade foi encontrada.
Em seguida, quando todos os participantes terminaram de preencher o formulário individual, foram formados quatro subgrupos: dois com 4 participantes e outros dois com 3 participantes. Novamente foi solicitado que os subgrupos fossem heterogêneos em termos da presença de dirigentes, gestores, especialistas e generalistas na área. Os participantes dos subgrupos dispunham de 30 minutos para chegarem a um consenso, com base nos formulários individuais, sobre quais respostas eram representativas do respectivo subgrupo para cada questão do questionário; este tempo precisou ser estendido para 50 minutos em função do rico debate gerado pelas respostas.
Na fase final da coleta de dados, foi solicitado que cada subgrupo elegesse um relator das respostas. Todos os relatos levaram 20 minutos para serem concluídos. O intuito foi de que, antes de compor o formulário final do grupo, as respostas fossem julgadas e condensadas pelos 14 participantes. As respostas foram digitadas por um pesquisador auxiliar à medida que o grupo decidia por consenso. Durante toda a sessão de coleta de dados, havia um pesquisador auxiliar fazendo anotações sobre as reações dos indivíduos. A duração total desta etapa da pesquisa foi de 90 minutos (1 hora e 30 minutos). Ao final, foram recolhidos os questionários preenchidos individualmente e os questionários respondidos pelos subgrupos. Além desses dados, o pesquisador obteve as respostas estabelecidas por consenso no grupo.
Análise dos dados (1ª etapa)
Foram empregadas técnicas baseadas em análise de conteúdo (Bauer & Gaskell, 2002; Silverman, 2009;). Todos os formulários individuais e dos subgrupos foram digitados. Realizou-se uma leitura flutuante dos formulários com o intuito de conhecer seu conteúdo e iniciar a formulação de hipóteses com base no quadro teórico adotado e nos objetivos de pesquisa. Foi realizada uma pré-análise dos dados, na qual as respostas dos participantes, a cada questão indutora, foram organizadas por semelhança de conteúdo. Após a leitura e a releitura do material, foi feita, para cada questão indutora, a categorização dos índices (organização dos discursos por assunto, referências) e a definição de indicadores marcantes dentro dos discursos de cada participante, dos subgrupos e do grupo como um todo. Índices que se repetiam nos formulários individuais e coletivos foram contabilizados apenas uma vez para fins de análise. Partiu-se, então, para a identificação das categorias temáticas que compunham as respostas de cada questão indutora. Os índices extraídos da análise categorial temática dos conteúdos foram transformados em constructos com definições constitutivas, de modo a facilitar a construção do instrumento de ANT. Por fim, foram descritos indicadores (itens) de competências que representavam operacionalmente a definição constitutiva das categorias de CHAs encontradas no discurso dos participantes. Todas as análises, transcrições e a versão final do instrumento foram avaliadas por 4 integrantes de um grupo de pesquisa e por 5 profissionais de educação corporativa da organização.
Segunda etapa: aplicação do instrumento de ANT
A 2ª etapa da pesquisa (quantitativa) visou cumprir o segundo objetivo específico: aplicar o instrumento de ANT em uma amostra de auditores de obras.
Participantes (2ª etapa)
O instrumento construído na etapa anterior foi enviado, via internet, para 72 auditores. A Tabela 1 resume o perfil dos participantes da 2ª etapa da pesquisa.
Instrumentos (2ª etapa)
O questionário foi composto por 47 itens de competências (p. ex.: fiscalizar obras que necessitem de fundações em estaca raiz) organizadas em 5 categorias: (a) competências de comunicação; (b) competências gerais de auditoria; (c) competências instrumentais; (d) competências específicas em fiscalização de obras públicas; e (e) competências emergentes em fiscalização de obras públicas. Também constavam 8 itens sobre desafios e mudanças para a área (formulados com base na questão 1 do instrumento da 1ª etapa), a saber: (a) aplicar a legislação ambiental vigente na fiscalização de obras públicas; (b) sistematizar a gestão do conhecimento sobre fiscalização de obras públicas; (c) alocar e reter servidores na atividade de fiscalização de obras públicas; (d) aumentar a quantidade de obras a serem fiscalizadas; (e) mudanças estruturais do mercado; (f) criar políticas e/ou aprimorar as práticas de treinamento, desenvolvimento e educação voltadas para a fiscalização de obras; (g) pressões exercidas pelo governo, mercado e/ou sociedade; e (h) aumento da complexidade técnica das obras a serem fiscalizadas.
Os itens de competências foram associados a uma escala tipo Likert de importância (0 = "sem importância para minha atuação profissional" e 10 = "muito importante para minha atuação profissional") e a outra de domínio (0 = "não tenho domínio dessa competência" e 10 = "domino completamente essa competência"). Os itens de desafios e mudanças foram associados a uma escala de intensidade (0 = "não gera necessidades de treinamento" e 10 = "gera intensa necessidade de treinamento"). Também foram inseridas no instrumento variáveis demográficas e profissionais dos participantes: (a) sexo; (b) faixa-etária; (c) formação em nível superior; (d) pós-graduação; (e) função; (f) unidade; (g) diretoria; (h) tempo de atuação no órgão; (i) tempo de atuação em fiscalização de obras; (j) executa auditoria de obras atualmente?; e (k) já executou auditoria de obras? O instrumento será apresentado em partes na seção de resultados.
Procedimentos (2ª etapa)
O instrumento foi disponibilizado para os participantes via internet. Foi enviado um e-mail para cada respondente contendo o link para a pesquisa. Antes do envio, a equipe de educação corporativa do órgão realizou uma breve sensibilização dos auditores, informando-lhes da importância da participação na pesquisa. O instrumento e o arquivo de dados ficaram hospedados em servidor externo à organização, sob responsabilidade dos autores.
Análise dos dados (2ª etapa)
Inicialmente, foi feito um exame de valores extremos uni variados que poderiam distorcer os valores das médias, no caso dos itens de competências. Optou-se por excluir duas respostas (sujeitos 72 e 64) do item 13 ("Listar os órgãos competentes para a emissão de licença ambiental no Brasil") e uma resposta (sujeito 19) do item 28 ("Estabelecer critérios de auditoria para avaliação das medidas mitigadoras do impacto ambiental de uma obra"), pois estavam a dois desvios padrão acima da média das respostas dos participantes aos itens. Em seguida, as respostas dos participantes da pesquisa ao questionário foram submetidas a análises estatísticas descritivas (frequência, média, desvio padrão, valores mínimos e máximos). Para definir as necessidades de treinamento, foi utilizado o Índice de Necessidade de Treinamento (INT), baseado no Índice de Prioridade Geral (IPG), proposto por Borges-Andrade e Lima (1983). O INT é representado pela seguinte fórmula: INT = I x (10 - D) / n, onde: I = valor de importância atribuído ao item; D = valor de domínio atribuído ao item; n = número de respostas válidas a cada item. O resultado do INT é um indicador objetivo de discrepância (ou não) entre a importância e o domínio de competências, conforme será demonstrado na seção de resultados.
RESULTADOS
Esta seção demonstrará, brevemente, os resultados alcançados na pesquisa. Eles serão apresentados de acordo com as etapas do método proposto e discutidos mais adiante
Resultados da 1ª etapa - Construção do instrumento
A 1ª etapa da pesquisa teve por objetivo criar um instrumento de ANT. Ele é apresentado resumidamente na Figura 2 e foi descrito na seção Instrumentos (2ª etapa).
Resultados da 2ª etapa - Aplicação do instrumento
A 2ª etapa da pesquisa teve por objetivo aplicar o instrumento de ANT desenvolvido na 1ª etapa. Em cumprimento ao objetivo geral da pesquisa, serão apresentados apenas os índices de necessidades de treinamento por competência, conforme a Tabela 2.
A amplitude da escala de necessidades de treinamento, após cálculo do INT, varia entre 0 e 100. Considera-se como necessidade de treinamento um INT de, no mínimo, 30 (discrepância mínima de 30 pontos entre importância e domínio). Os INTs entre 30 e 40 são considerados como necessidades de magnitude e prioridade baixas; INTs entre 41 e 60 são considerados como necessidades de magnitude e prioridade moderadas; e INTs entre 61 e 100 são considerados como necessidades de magnitude e prioridades altas.
Com base nesta classificação, nota-se que:
Necessidades de magnitude e prioridade baixas foram encontradas em competências como: (a) criar planilhas avançadas em softwares (Excel e/ou Access); (b) descrever requisitos presentes em projetos de engenharia; e (c) operar GPS, entre outras;
Necessidades de magnitude e prioridade moderadas foram encontradas em competências como: (a) avaliar a qualidade de editais com base na jurisprudência do TCU; (b) propor encaminhamentos de auditoria com base no Regimento Interno do TCU; e (c) ao participar de equipes, compartilhar informações pertinentes ao desenvolvimento do trabalho, entre outros;
Não foram encontradas necessidades de magnitude e prioridade altas;
Algumas competências não têm necessidade de treinamento pelos auditores, como: (a) operar estações totais; (b) elaborar consultas avançadas em bancos de dados e sistemas data-warehouse; e (c) fiscalizar obras de hidroelétricas.
Quanto aos fatores de mudanças e desafios para a organização que podem estar relacionados às necessidades de treinamento dos auditores, obteve-se os seguintes resultados, demonstrados na Tabela 3.
Na opinião dos participantes, os desafios ou mudanças para a organização que estão mais relacionados ao surgimento de necessidades de treinamento dos auditores são: (a) alocar e reter servidores na atividade de fiscalização de obras; (b) aumento da complexidade técnica das obras; (c) sistematizar a gestão do conhecimento; (d) criar políticas e/ou aprimorar práticas de TD&E; e (e) mudanças estruturais do mercado.
DISCUSSÃO
Pode-se dizer que o objetivo geral (propor um método prospectivo para identificar necessidades de treinamento em ambientes organizacionais) e os objetivos específicos da pesquisa - (a) conceber instrumento de ANT; e b) aplicar instrumento de ANT em uma amostra de auditores de obras do Tribunal de Contas da União - TCU) - foram atingidos. Em termos operacionais, o méto acordo com o Anexo 1.
A pesquisa pode ter contribuído para a formulação de respostas a questões teóricas e empíricas há tanto tempo arraigadas na literatura de TD&E, por exemplo: como identificar competências dos trabalhadores que estejam vinculadas aos desafios e mudanças dos ambientes interno e externo da organização? Como descrever competências passíveis de mensuração? Como mensurar necessidades de treinamento? Como compor um indicador da prioridade e da magnitude de lacunas de competências dos trabalhadores?
As questões discutidas nas entrevistas coletivas foram elaboradas de forma a induzir os respondentes a produzirem conteúdos diretamente relacionados a variáveis internas e externas do ambiente organizacional. Esse material serviu de insumo para a elaboração de indicadores de competências e desafios e mudanças organizacionais que, consequentemente, estavam relacionados a questões estratégicas da área de auditoria de obras e da organização (p. ex.: definir os objetivos da auditoria no contexto da administração pública; fiscalizar obras de construção de aeroportos; fiscalizar construção de usinas nucleares). Foram identificados 4 fatores como sendo os mais representativos de forças internas e externas à organização e que podem influenciar o surgimento de necessidades de treinamento: aumento da complexidade da tarefa, mudança estruturais no mercado, políticas e práticas de TD&E, pressões governamentais. As análises preliminares de documentos internos, comparados com os resultados, permitem pressupor que tais fatores podem estar relacionados a temas de interesse estratégico da organização e do país, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a Copa do Mundo, as Olimpíadas, entre outros. Estes fatores foram a base para que os respondentes pudessem definir quais são as competências necessárias à sua atuação profissional, por isso, o desenvolvimento das competências identificadas pode dar suporte ao alcance de metas organizacionais importantes e emergentes. Nota-se que este procedimento de pesquisa deslocou o foco da ANT (do cargo ou espaço ocupacional do indivíduo) para o contexto organizacional, estabelecendo a relação necessária entre o ambiente e as competências dos trabalhadores.
O método qualitativo empregado na pesquisa demonstrou-se útil à construção de instrumento de ANT, à descrição de desafios e mudanças para a área e à definição de indicadores de competências. O INT foi um indicador pertinente para a descrição de discrepâncias entre a importância e o domínio de competências, o que vai ao encontro do conceito de necessidades de treinamento, apresentado no referencial teórico. Tal indicador também fornece bases objetivas (discrepâncias numéricas) para a tomada de decisão sobre a magnitude e a prioridade de necessidades de treinamento no ambiente organizacional.
A pesquisa mostra que é possível imprimir um método rigoroso para avaliar necessidades de treinamento de profissionais. Iniciativas como essa já encontram similaridades com outras da mesma natureza empreendidas no Brasil (Borges-Andrade & Lima, 1983; Hoffman-Câmara, Abbad, Meneses & Ferreira, 2010; Meneses, Zerbini & Abbad, 2010;). Porém, essa prática ainda é pouco usual nas organizações e aponta uma possível solução para desenvolver métodos mais sistemáticos de definição das necessidades de treinamento em contextos de trabalho formais. Tal solução implica, se implementada, conforme indica a literatura, que as atuais práticas de ANT em grande parte das organizações sejam repensadas.
Por fim, vale ressaltar algumas limitações do estudo e, com base neles, propor uma agenda de pesquisa. A magnitude do INT indica que há uma discrepância na expressão de competências individuais, porém, não define se essa discrepância pode ser sanada com ações de treinamento ou por outras estratégias de aprendizagem, como aquisição externa de competências pela contratação de pessoal para realizar certos trabalhos que requerem competências muito específicas e raras ou outras ações instrucionais, como informação, instrução, desenvolvimento, educação, etc. Em função do reduzido número de casos, o questionário não foi submetido à validação estatística. A relação entre indicadores de desafios e mudanças (internas e externas à organização) e as necessidades de treinamento não foi testada por meio de técnicas estatísticas. A pesquisa baseou-se principalmente na autoavaliação dos participantes sobre necessidades de treinamento. Apesar disso, as avaliações basearam-se em itens construídos coletivamente por diferentes representantes da atividade de auditoria, o que conferiu robustez aos resultados da ANT, pelo menos no que tange à relevância das competências contidas no questionário. As autoavaliações de domínio, apesar de fazerem referência às competências emergentes, alinhadas a estratégias organizacionais e ao futuro, estão sujeitas a limitações relacionadas à desejabilidade social e/ou leniência dos respondentes. Sugere-se, então, a seguinte agenda para pesquisas futuras: (a) desenvolver métodos que indiquem qual ação instrucional e organizacional é a mais adequada para sanar as lacunas de competências (informação, instrução, treinamento, educação, desenvolvimento); (b) investigar estatisticamente possíveis preditores internos e externos de necessidades de treinamento; (c) desenvolver pesquisas que façam uso de delineamentos quase-experimentais ou experimentais, baseados não apenas na autoavaliação dos sujeitos, mas também em heteroavaliações; e (d) testar as relações entre variáveis do contexto externo e interno e necessidades emergentes de aprendizagem e treinamento em outras organizações e áreas de atuação.
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Recebido em: 28.12.2011
Aprovado em: 31.01.2012
1 Professor Assistente no Departamento de Administração da Universidade de Brasília. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Gestão de Pessoas no Setor Público (GEPAP). rodrigoferreira@unb.br.
2 Professora Adjunta no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Coordenadora do grupo de pesquisa IMPACTO. gardenia.abbad@gmail.com.