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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.14 no.3 Florianópolis set. 2014

 

Um estudo das relações entre conflito trabalho-família, comprometimento organizacional e entrincheiramento organizacional1

 

A study of the relationship between work-family conflict, organizational commitment and organizational entrenchment

 

 

Carolina Villa Nova AguiarI; Antonio Virgílio Bittencourt BastosII; Eloah Santana de JesusIII; Luiza Nastar Achy LagoIV

IGraduada e mestre em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia. Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia. Professora assistente da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública
IIGraduado em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (1976), mestrado em Educação pela Universidade Federal da Bahia (1982) e doutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília (1994). Professor titular na Universidade Federal da Bahia e coordenador da Área de Psicologia da CAPES. Pesquisador I-A do CNPq
IIIGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia
IVGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O comprometimento organizacional é uma das atitudes no trabalho mais estudadas, sendo a perspectiva tridimensional, que considera o comprometimento como constituído por três bases - afetiva, normativa e de continuação - a mais adotada nos cenários nacional e internacional. Recentemente, o modelo tridimensional foi alvo de questionamentos envolvendo problemas conceituais e empíricos que apontam para a imprecisão do construto, em especial no que diz respeito à base de continuação. A partir de tais críticas, passou-se a defender o enxugamento do construto, restringindo-o à base afetiva, enquanto a base de continuação passa a incorporar um novo tipo de vínculo com a organização: o entrincheiramento organizacional. Diante disso, torna-se crucial o desenvolvimento de pesquisas que visem contribuir com evidências dos limites entre os vínculos. A presente pesquisa se propõe a testar o poder do conflito trabalho-família (dividido em interferência do trabalho na família e interferência da família no trabalho) como antecedente do comprometimento e do entrincheiramento organizacional. Participaram do estudo 994 trabalhadores brasileiros de diferentes ocupações. O instrumento foi composto pelas escalas de conflito trabalho-família, de entrincheiramento e de comprometimento organizacional, além de outros três potenciais antecedentes dos vínculos: empregabilidade, desenvolvimento de carreira e centralidade do trabalho. Foram conduzidas análises de correlação e de regressão múltipla. Os resultados indicaram que a interferência da família no trabalho tem poder preditivo sobre o entrincheiramento enquanto a interferência do trabalho na família prediz de forma significativa o comprometimento organizacional. Conclui-se, portanto, que o conflito trabalho-família é capaz de contribuir com as evidências de diferenciação entre os dois vínculos.

Palavras-chave: conflito trabalho-família, comprometimento organizacional, entrincheiramento organizacional.


ABSTRACT

The organizational commitment is one of the most studied attitudes at work , being a three-dimensional perspective, which considers commitment as consisting of three bases - affective, normative and continuance - the most adopted at the national and international scenes . Recently, the three-dimensional model was subjected to questions involving conceptual and empirical problems which indicate the fragility of the construct, in particular with regard to continuance commitment. From these criticisms, a movement of researchers defended the downsizing of the construct, restricting it to the affective base, while continuance basis would incorporate a new type of relationship with the organization emerged: commitment entrenchment . Given this proposal , it becomes crucial to develop research aimed to contribute with evidences of the real limits between these two bonds. This research aims to test the relationships between work-family conflict (divided into work-family interference and family-work interference), organizational commitment and entrenchment. The study included 994 Brazilian workers in different occupations. The questionnaire was composed of the scales of work-family conflict, entrenchment and organizational commitment, and three other potential antecedents of the organizational linkages: employability, career development and work centrality.. Correlations and multiple regressions analyzes were conducted. The results indicated that family-work interference has predictive power over the entrenchment while the work-family interference significantly predicts organizational commitment. Therefore, it is concluded that work-family conflict is able to contribute to the differentiation between these two types of organizational linkages.

Keywords: work-family conflict, organizational commitment, organizational entrenchment.


 

 

Dois temas que tem merecido destaque no campo de estudo da psicologia organizacional são os vínculos estabelecidos entre os indivíduos e as organizações e as dificuldades de conciliação entre duas esferas centrais na vida da grande maioria das pessoas economicamente ativas: o trabalho e a família. Embora ambos os temas sejam atuais alvos de interesse de pesquisadores da área, os motivos para isso são significativamente diferentes para cada um deles.

No caso dos vínculos organizacionais, trata-se de uma área com longa trajetória de estudo, sendo foco de pesquisas desde a década de 1960 (e.g.: Becker, 1960; Morrow, 1983; Mowday, Steers, & Porter, 1979; Porter, Steers, Mowday, & Boulian, 1974), mas que tem sido repensada a partir da reestruturação do comprometimento organizacional - vínculo de maior destaque na literatura - por meio de seu desmembramento em outras formas possíveis de entrelaçar o trabalhador à organização, como através do entrincheiramento organizacional (Rodrigues, 2009). Já no que se refere às dificuldades de conciliação entre as esferas familiar e ocupacional - doravante denominadas de conflito trabalho-família -, trata-se de um campo explorado na literatura estrangeira há algum tempo (Greenhaus & Beutell, 1985), mas que apenas nos últimos anos se tornou alvo do interesse de pesquisadores brasileiros (Aguiar, 2012; Santujá & Barham, 2005).

Empiricamente, as relações entre o conflito trabalho-família e os vínculos organizacionais, especificamente o comprometimento organizacional, já foram investigadas em muitas pesquisas (Dorio, Bryant, & Allen, 2008). Para Whitehead (2008), a razão para tal interesse não pode ser atribuída a um fator isolado, e sim à combinação de maior intensidade das exigências do mundo do trabalho, que envolve mais horas trabalhadas, maior produtividade, etc. com a consequente escassez de tempo e energia disponíveis para os afazeres familiares, que incluem atividades domésticas em geral, responsabilidades com filhos e/ou idosos, etc.

Apesar da relevância atribuída à compreensão desta relação, o que tem marcado esse campo de estudo são as inconsistências empíricas dos resultados encontrados (Casper, Martin, Buffardi, & Erdwins, 2002; Dorio et al., 2008). A principal fonte de fragilidade se encontra em achados divergentes em relação à direção, magnitude e significância da associação entre os construtos. Embora muitos estudos relatem associações negativas e significativas do conflito trabalho-família com o comprometimento organizacional, algumas pesquisas apontam para correlações nulas ou mesmo positivas com o vínculo (Carlson, Kacmar, & Williams, 2000; Casper et al., 2002; Dorio et al., 2008; Eby, Casper, Lockwood, Bordeaux, & Brinley, 2005; Netemeyer, Boles, & McMurrian, 1996).

Diante desse cenário, fica evidente a necessidade de testar como se estabelecem as associações entre o conflito trabalho-família e os vínculos organizacionais na realidade brasileira. O presente trabalho se propõe, portanto, a investigar as relações entre o conflito trabalho-família e dois tipos de vínculos organizacionais: o comprometimento e o entrincheiramento.

 

CONFLITO TRABALHO-FAMÍLIA

Dois domínios centrais na vida de grande parcela da população adulta são a família e o trabalho (Chambel, no prelo). No entanto, as atividades e demandas oriundas dessas esferas muitas vezes são incompatíveis, o que pode gerar conflitos para o indivíduo que precisa transitar entre os domínios. Tal incompatibilidade tem se tornado uma realidade cada vez mais comum e as razões para isso são claras: de um lado, as crescentes pressões nas organizações para aumento de produtividade têm exigido empregados dispostos a dedicar grande parte do seu tempo e energia às atividades de trabalho; de outro lado, o aumento significativo do número de famílias nas quais os dois cônjuges se inserem no mercado de trabalho, levam à necessidade de maior divisão das tarefas domésticas que passam a consumir considerável tempo e energia destes indivíduos (Akintayo, 2010).

O conceito conflito trabalho-família surge para definir esse embate entre papeis no qual as pressões advindas da esfera ocupacional se revelam incompatíveis com as demandas da esfera familiar ou vice-versa (Greenhaus & Beutell, 1985). Ainda de acordo com os autores, três elementos distintos podem estar na origem da percepção de conflito entre trabalho e família: tempo, tensão e comportamento.

No primeiro caso, parte-se do pressuposto de que o tempo é um recurso finito e que gastá-lo em atividades de um domínio (trabalho; família) impede que ele seja destinado ao cumprimento de atividades de outra esfera da vida (família; trabalho). No segundo tipo de conflito, é a tensão gerada por um domínio que passa a ser a fonte de dificuldades para o bom desempenho em outro domínio. Por fim, o conflito baseado no comportamento emerge quando padrões comportamentais específicos de um papel são incompatíveis com as expectativas comportamentais para outro papel e o indivíduo, por alguma razão, não consegue adaptar, de forma satisfatória, o seu comportamento (Greenhaus & Beutell, 1985).

Para uma compreensão mais completa do conflito, é preciso levar em consideração, ainda, que se trata de um fenômeno de caráter bidirecional, que envolve tanto a interferência do trabalho na família (ITF) quanto à interferência da família no trabalho (IFT). De acordo com Netemeyer et al. (1996), a primeira direção pode ser compreendida como um tipo de conflito entre papeis no qual as demandas de trabalho, além do tempo dedicado a ele e da tensão gerada por ele, interferem no desempenho das responsabilidades familiares. Já a direção oposta - a interferência da família no trabalho -, se refere a um tipo de conflito entre papeis no qual as demandas da família, assim como o tempo dedicado a ela e a tensão gerada por ela, interferem no desempenho das responsabilidades ocupacionais.

Ainda sobre a bidirecionalidade do conflito trabalho-família, cabe esclarecer que, embora as direções sejam conceitualmente apresentadas uma em oposição à outra, elas não devem ser compreendidas como pertencentes a um único continuum. Em outras palavras, diversos padrões de combinações são possíveis, como alta ITF/baixa IFT, baixa ITF/alta IFT, alta ITF/alta IFT e assim por diante. De um modo geral, estudos brasileiros e estrangeiros indicam que os perfis mais presentes na população são aqueles que se caracterizam por uma interferência do trabalho na família consideravelmente mais elevada do que a interferência da família no trabalho (Aguiar, 2012; Frone, Russell, & Cooper, 1992; Santujá & Barham, 2005).

 

VÍNCULOS COM A ORGANIZAÇÃO

O comprometimento organizacional é uma das atitudes no trabalho mais estudadas por pesquisadores e gestores. Uma das principais razões para tal popularidade, de acordo com Akintayo (2010), está no fato das organizações buscarem gerar e sustentar vantagem competitiva através do comprometimento de seus empregados. De fato, pesquisas apontam fortes relações entre o comprometimento e comportamentos desejáveis no trabalho, como dedicação, empenho extra e produtividade (Cooper-Hakim & Viswescvaran, 2005; Meyer, Stanley, Herscovitch, & Topolnytsky, 2002).

O comprometimento organizacional foi inicialmente conceituado por Mowday, Porter e Steers (1982) a partir de uma perspectiva unidimensional que enfatizava a natureza afetiva do vínculo, definindo-o como um estado no qual o indivíduo se identifica com a organização e seus objetivos e deseja manter-se nela como membro.

No início dos anos 1990, Meyer e Allen (1991) propuseram um modelo multidimensional deste construto, partindo da premissa de que processos psicológicos distintos estariam na base de dimensões específicas que configuram o vínculo do trabalhador com a sua organização. Três dimensões foram então definidas como componentes: a) afetiva - que considera o comprometimento como uma identificação do indivíduo com a organização e compartilhamento de valores com a mesma, que promovem sensação confortável dentro do ambiente organizacional e competência no trabalho; b) de continuação ou instrumental - que envolve a avaliação dos custos associados à saída da organização, e que resulta da magnitude e número de investimentos feito pelo empregado na organização e a falta de alternativas no mercado; e c) normativa - que se relaciona à adesão as normas e objetivos da organização, a partir de pressões normativas por ele introjetadas, que ocorrem no processo de socialização primário após a entrada na organização.

Essa perspectiva tridimensional do comprometimento tornou-se claramente hegemônica, passando a guiar a produção científica da área. Recentemente, no entanto, este modelo foi alvo de questionamentos envolvendo problemas conceituais e empíricos que apontam para a ambiguidade e imprecisão do construto. Conceitualmente, percebeu-se que tal modelo, na tentativa de proporcionar maior extensão e abrangência ao construto, afastou a concepção científica da forma como gestores e demais atores sociais entendem o comprometimento organizacional (Bastos, Brandão, & Pinho, 1997; Brito & Bastos, 2001; Moscon, 2009; Rowe & Bastos, 2007).

Empiricamente, diversas fragilidades foram apontadas. A primeira delas se refere às altas correlações encontradas entre bases afetiva e normativa, sugerindo a possibilidade de sobreposição e colocando em dúvida a real dimensionalidade das escalas deste modelo (Meyer et al., 2002). Além disso, outro problema empírico que merece destaque se refere aos diferentes padrões de associações encontrados entre as dimensões do comprometimento e outros construtos tradicionalmente tratados como seus antecedentes, consequentes ou correlatos (Cooper-Hakim & Viswescvaran, 2005).

A partir desse quadro de fragilidades que cercam o tradicional modelo de Meyer e Allen (1991), iniciou-se uma agenda de pesquisa com o objetivo de alcançar uma melhor delimitação do comprometimento organizacional. No Brasil, os esforços necessários para superar as limitações acima apontadas já foram iniciados. O questionamento acerca da pertinência da base de continuação como componente do comprometimento organizacional, especificamente, foi trabalhado por Rodrigues (2009). O cerne do trabalho da autora está na proposta de um conceito até então inexistente no estudo das organizações: o entrincheiramento organizacional, definido como "a tendência do indivíduo a permanecer devido a possíveis perdas de investimentos e a custos associados à sua saída e devido à percepção de poucas alternativas fora daquela organização" (Rodrigues, 2009, p. 75).

De acordo com a autora, este construto possui três dimensões: ajustamento à posição social, arranjos burocráticos impessoais e limitação de alternativas. A primeira dimensão refere-se aos investimentos do indivíduo e da organização nas condições necessárias para o bom desempenho de determinada atividade, e adaptação do comportamento do trabalhador à posição em que se encontra; a segunda dimensão, diz respeito ao envolvimento e a estabilidade dos ganhos financeiros que seriam perdidos caso o trabalhador deixasse aquela organização. E a última dimensão diz respeito ao fato de o trabalhador não visualizar outras oportunidades, seja por perceber restrições de mercado ou por entender que seu perfil profissional não seria aceito por outras organizações.

A partir do surgimento do conceito do entrincheiramento organizacional, e tomando como base resultados de análises de covariância, Rodrigues (2009) aponta que o novo construto e a base de continuação do comprometimento se referem ao mesmo fenômeno psicossocial, sugerindo a sua retirada do conceito de comprometimento organizacional.

A partir do suporte teórico e empírico oferecido por Rodrigues (2009) e outros autores que tem se dedicado ao estudo dos limites conceituais do comprometimento organizacional (Ko, Price, & Mueller, 1997; Moscon, 2009; Silva, 2009; Solinger, Olffen, & Roe, 2008), surge a tendência nesse campo de estudo de retomar a definição mais restrita do construto, a exemplo da primeira conceitualização oferecida por Mowday et al. (1982), que volta a ser compreendido a partir de uma abordagem unidimensional, na qual apenas a base afetiva é considerada parte da essência do construto, por esta compreender propriedades psicométricas bastante satisfatórias, além de se configurar no componente que apresenta correlações mais fortes com construtos que vêm sendo tradicionalmente apontados como antecedentes do comprometimento organizacional.

Dentre a ampla gama de antecedentes do comprometimento, três deles foram selecionados para compor o modelo testado no presente estudo. Foram eles: centralidade do trabalho, compreendida como o grau em que o trabalho é importante (central) na vida do indivíduo (Mow, 1987); desenvolvimento de carreira, que consiste na avaliação sobre a adequação das políticas organizacionais relativas à promoção e treinamento; e empregabilidade, definida como a avaliação pessoal da própria capacidade de inserção no mercado de trabalho e de se manter nele, mesmo diante de eventuais obstáculos (Costa, 2003). A inserção dessas variáveis no modelo tem como objetivo permitir a comparação das relações dos vínculos organizacionais com o conflito trabalho-família e com outras variáveis previamente apontadas como potenciais antecedentes.

 

MÉTODO

Participantes

A amostra de pesquisa contou com 994 trabalhadores brasileiros. A fim de garantir a variabilidade, foram convidados para participar do estudo pessoas com diversas características pessoais e ocupacionais. Houve uma discreta predominância de mulheres (59,1%) e de solteiros (51,5%). A partir da idade dos participantes é possível afirmar que se trata de uma amostra jovem, com média de 32 anos (DP = 9,12). No que diz respeito à localização geográfica, tem-se que a maioria dos participantes se encontra nas regiões nordeste (51,2%) e sudeste (47,8%) do país. Quanto à escolaridade, 61,5% ingressou no ensino superior. Em relação às características ocupacionais, 78,6% dos participantes têm jornada de trabalho diurna de 8 horas com intervalo. Pouco menos da metade (48,1%) está há dois anos ou menos na empresa atual e 79% não ocupam cargo de chefia. Por fim, no que se refere às variáveis organizacionais, a maioria dos participantes se encontra em empresas privadas (83,5%) e com mais de 100 funcionários (77,2%).

Instrumentos

1. Conflito trabalho-família - foi utilizada a medida originalmente proposta por Netemeyer et al. (1996) e adaptada para a realidade brasileira por Aguiar e Bastos (2012). Trata-se de uma escala bidimensional, constituída pelas dimensões interferência do trabalho na família (ITF - 5 itens, α = 0,90) e interferência da família no trabalho (IFT - 5 itens, α = 0,85)

2. Comprometimento organizacional - para a mensuração do comprometimento foi adotada a escala de comprometimento afetivo validada por Bastos, Brito, Aguiar e Menezes (2011), composta por 10 itens (α = 0,88).

3. Entrincheiramento organizacional - instrumento proposto e validado no Brasil por Rodrigues (2009). Contempla as três dimensões do construto: ajustamento à posição social (8 itens, α = 0,80); arranjos burocráticos informais (7 itens, α = 0,77); e limitação de alternativas (7 itens, α = 0,79).

4. Centralidade do trabalho - foi utilizado a clássica medida sobre significado do trabalho desenvolvida pelo grupo Meaning of working research team (Mow, 1987), no qual solicita-se ao participante que atribua um valor de 1 a 100 para representar a centralidade atribuída às diferentes esferas de sua vida, incluindo o trabalho.

5. Empregabilidade - foi desenvolvida uma medida bidimensional, envolvendo a percepção da empregabilidade (6 itens, α = 0,73) e a percepção de estabilidade no emprego (4 itens, α = 0,75).

6. Desenvolvimento de carreira - para mensurar a percepção sobre o quanto a organização investe em treinamento e incentiva o crescimento profissional de seus empregados, foi realizada a adaptação e validação da medida proposta por Gaertner e Nollen (1989). A escala alcançou bons indicadores psicométricos (6 itens, α = 0,78).

Procedimentos de Coleta de Dados

A coleta de dados foi realizada a partir de três procedimentos distintos: auto-aplicação do instrumento em versão impressa (58,8%); auto-aplicação em versão eletrônica (online) (10,5%) e aplicação em forma de entrevista (30,7%). As duas primeiras estratégias foram utilizadas para trabalhadores com maiores níveis de escolaridade. Para facilitar o acesso aos participantes, foram acionadas redes de contatos de pessoas de diferentes organizações e estados.

Para os trabalhadores de menor escolaridade, foi adotada a aplicação em forma de entrevista. Seguindo recomendações de Borges e Pinheiro (2002) para aplicação de escalas em trabalhadores de baixa escolaridade, esta estratégia de coleta contou com alguns recursos adicionais que visaram facilitar a compreensão das questões, como escalas coloridas e figuras ilustrativas.

Em todas as estratégias de coleta de dados, os participantes foram consultados sobre a disponibilidade de participar da pesquisa prestando as informações solicitadas no questionário. Para tanto, todos aceitaram o Termo de Consentimento Esclarecido que lhes assegurava o estrito uso das informações para fins científicos e o tratamento das mesmas de forma global, sem identificar quaisquer dos participantes.

Procedimentos de análise

Inicialmente, foram conduzidas análises descritivas para caracterizar a amostra no que se refere a características pessoais e ocupacionais. Em seguida, foi adotado o procedimento de análise que consistiu em correlações de Pearson entre as variáveis centrais do estudo - conflito trabalho-família (dividido em interferência do trabalho na família e interferência da família no trabalho), comprometimento organizacional e entrincheiramento organizacional (dividido em arranjos burocráticos informais, ajustamento à posição social e limitação de alternativas).

Em seguida, foram conduzidas análises de regressões múltiplas (método Enter) com a finalidade de verificar se o conflito trabalho-família se comporta como um preditor significativo do comprometimento organizacional, do entrincheiramento organizacional, ou de ambos. Nesse momento, foram inseridas no modelo as demais variáveis do estudo (centralidade do trabalho, desenvolvimento de carreira e empregabilidade).

Resultados e Discussão

Inicialmente, foram analisados os índices de correlações obtidos entre as variáveis centrais dos estudos. À primeira vista, os resultados obtidos já apontam que a ITF e a IFT se relacionam de formas distintas com os dois tipos de vínculos com a organização.

Como pode ser observado na Tabela 1, o comprometimento organizacional apresentou correlação negativa e significativa com a ITF. Embora a magnitude da relação não possa ser considerada elevada, este resultado indica a tendência de um maior nível de comprometimento ser acompanhado por menor percepção do que as exigências do ambiente ocupacional que prejudicam o cumprimento das demandas advindas da esfera familiar. Esse resultado segue a mesma tendência apontada por estudos estrangeiros que também contemplaram tal associação (Akintayo, 2010; Casper et al., 2002).

A correlação entre o comprometimento organizacional e a IFT, por outro lado, não foi estatisticamente significativa. Embora tal direção do conflito não tenha sido explorada empiricamente por Akintayo (2010), o autor apresenta, em seu trabalho, a expectativa de que essa direção do conflito também apresentasse associação negativa com o vínculo. Segundo o autor, se o empregado vivencia alto grau de IFT é porque ele prioriza o cumprimento das demandas domésticas e bem-estar da família em detrimento das atividades ocupacionais. Em outras palavras, seria coerente dizer, neste caso, que o indivíduo está mais engajado com a família e, consequentemente, menos engajado (essência do comprometimento afetivo) com a organização.

No que diz respeito ao entrincheiramento organizacional, este vínculo apresentou correlações positivas e significativas com as duas direções do conflito trabalho-família, indicando que aqueles indivíduos que se sentem mais entrincheirados também são os que mais percebem as demandas do trabalho e da família como incompatíveis. Analisando as dimensões do entrincheiramento separadamente, nota-se que todas apresentaram correlações significativas e nesta mesma direção (positiva) com o conflito. É válido destacar que a percepção de limitação de alternativas - seja por restrições de mercado ou por especificidade do perfil profissional do indivíduo -, se destacou por ser o componente do entrincheiramento que apresentou as correlações com as maiores magnitudes.

Com o objetivo de aprofundar os resultados, optou-se pela condução de análises de regressões múltiplas para verificar se o conflito trabalho-família se comporta como preditor dos vínculos organizacionais. No modelo de regressão testado, além das duas direções do conflito, foram inseridas as demais variáveis consideradas potenciais antecedentes. O propósito desta inclusão foi o de possibilitar a comparação da força explicativa do conflito em relação a outros antecedentes destes vínculos. Os resultados estão apresentados na Tabela 2.

O conjunto de preditores foi responsável por explicar 32,8% da variância do comprometimento organizacional e 18,6% da variância do entrincheiramento organizacional. A partir da análise comparativa do poder preditivo de cada variável inserida no modelo de regressão, tem-se que o desenvolvimento de carreira se comportou como o preditor de maior força para ambos os vínculos, seguidos de centralidade do trabalho (para o comprometimento) e percepção de empregabilidade (para o entrincheiramento).

Nota-se, portanto, que nenhuma dimensão do conflito trabalho-família se destacou como principal preditor dos vínculos organizacionais. Algumas razões podem ser levantadas para esse resultado: em primeiro lugar, é preciso considerar que o fato de terem sido selecionadas variáveis previamente apontadas como preditoras importantes do comprometimento organizacional assegurava que elas seriam responsáveis por explicar boa parte de sua variância; em segundo lugar, não se pode desconsiderar o fato de que essas variáveis pertencem diretamente ao contexto organizacional, enquanto que o conflito trabalho-família se caracteriza por pertencer apenas parcialmente a tal contexto.

Ainda que não tenham sido variáveis extremamente fortes do modelo, as duas dimensões do conflito trabalho-família apresentaram indicadores significativos: a IFT obteve um coeficiente de regressão β = 0,203 (p<0,001) para a predição do entrincheiramento organizacional, enquanto a ITF, por sua vez, alcançou coeficiente significativo e negativo, ainda que de força baixa, para a predição do comprometimento organizacional (β = - 0,069, p<0,05).

Em outras palavras, é possível dizer que aqueles indivíduos que percebem que há alta interferência da família em suas atividades laborais tendem a sentir-se mais entrincheirados com a organização, mantendo-se nela especialmente por já terem feito investimentos consideráveis no seu trabalho (β = 0,194, p<0,001) ou por perceberem escassez de alternativas no mercado de trabalho (β = 0,189, p<0,001). Já no caso do comprometimento organizacional, percebe-se que o fortalecimento do vínculo está associado a uma percepção de baixa ITF. Ou seja, aqueles trabalhadores que consideram que as suas tarefas e responsabilidades ocupacionais não prejudicam ou prejudicam pouco a sua dedicação a atividades familiares, se tornam mais propensos a desenvolverem um maior grau de identificação e envolvimento com a organização na qual trabalham.

Os coeficientes de regressão encontrados no estudo permitem a constatação de que altos níveis de conflito trabalho-família (mais especificamente da IFT) contribuem para a intensificação do entrincheiramento organizacional, que é considerado um vínculo pouco desejável para o indivíduo e para a organização. Por outro lado, índices reduzidos de conflito trabalho-família se revelaram apenas discretamente responsáveis pelo aumento do comprometimento organizacional, que, por sua vez, é tido como uma forma extremamente positiva de ligação entre indivíduos e organizações.

 

CONCLUSÕES

O estudo realizado teve como foco a investigação das relações estabelecidas entre o conflito trabalho-família, o comprometimento organizacional e o entrincheiramento organizacional, com os objetivos de contribuir com as seguintes agendas de pesquisa: uma que identifica a necessidade de se buscar evidências adicionais sobre os limites entre os dois vínculos organizacionais e outra que sugere a condução de mais estudos sobre as interfaces entre trabalho e família no Brasil.

Através dos resultados obtidos por meio de análises de correlação e regressão, foi possível identificar que o comprometimento organizacional associa-se de forma negativa com a ITF, ou seja, o indivíduo tem uma tendência de um maior nível de comprometimento com o trabalho sem a percepção de que as demandas do ambiente ocupacional prejudiquem as suas demandas familiares.

O entrincheiramento organizacional, por sua vez, foi explicado de forma significativa pela IFT, sugerindo que o fato de perceber que a família torna o cumprimento das tarefas ocupacionais mais difíceis pode levar os indivíduos a sentirem que permanecem na organização apenas devido à percepção de possíveis perdas de investimentos, de custos associados à sua saída e/ou de limitação de alternativas no mercado, e não por um sentimento de identificação e envolvimento com a organização.

Ao final da realização do presente trabalho, conclui-se que ele representa importante contribuição para ambos os campos de estudo em que está inserido. De um lado, tem-se que os resultados empíricos cumpriram o papel de evidenciar as diferenças entre o comprometimento e o entrincheiramento organizacional, através do estudo de seus antecedentes. De outro lado, tal pesquisa incrementa a ainda incipiente produção científica sobre o conflito trabalho-família no Brasil. Para a agenda de pesquisa futura, sugere-se que sejam exploradas como se manifestam as relações entre o conflito trabalho-família e os vínculos organizacionais em trabalhadores imersos em ambientes ocupacionais que propiciem uma maior permeabilidade entre os dois domínios, como no caso do teletrabalho.

 

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Endereço para correspondência:
Carolina Villa Nova Aguiar
Rua Barão de Jeremoabo, s/n
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E-mail: carol.vna@gmail.com

Recebido em: 06.03.2014
Aprovado em: 28.07.2014

 

 

1 Financiamento: CNPq