Revista do NUFEN
ISSN 2175-2591
Artigo
A politicidade no fazer pesquisa: sobre uma maneira de pesquisar e de escrever
The politicity in to do research: about a way to research and to write
La politicidad en el hacer investigación: sobre una manera de investigar y de escribir
Patrick Stefenoni Kuster; Ana Paula Figueiredo Louzada
Universidade Federal do Espírito Santo
RESUMO
Este artigo tem por objetivo colocar em análise o modo do pesquisar e o modo do escrever (como constitutivo inerente ao pesquisar), tomando por fio condutor tanto a relação da sensibilidade com o pesquisar, como a memória em sua relação com o escrever. Considerando que as condições da produção de conhecimento se dão numa sociedade de governo de uns sobre os outros, todo o desenvolvimento desse texto está na evidenciação de um saber-fazer tecido no plano de vidas insurgentes, na tensão tanto de valores hegemônicos que balizam a produção do conhecimento (como os herdados do platonismo), como tornando problemáticas ideias basilares que justificam a intolerância, que fundam relações segregantes e que criam violência de uns para com outros. Esse artigo, dessa forma, indica o exercício efetivamente político que caracteriza tanto o pesquisar, como o escrever, e toma como elemento analítico uma narrativa-memória.
Palavras-chave: Pesquisa; Produção de conhecimento; Escrita.
ABSTRACT
The objective of this articles is to put analysis a mode to research and a mode to write (as a constituent inherent in research), using a thread the relationship of sensitivity with the search, such as memory in its relationship with write. Considering the conditions of knowledge production take place in a government society of a on the other, throughout the development of this text is on the evidenciation of know-how tissue in the lives of oppressed plan, serving as tension of the hegemonic values that guide the production of knowledge (such as inherited from Platonism) as making problematic basic ideas that justify intolerance, founding segregating relations and create violence toward each other. This article thus indicates effectively exercising policy featuring both research as write.
Keywords: Research; Production of knowledge; Write.
RESUMEN
El objetivo de este artículo es colocar en análisis el modo de investigar y el modo de escribir (como constitutivo inherente al investigar), tomando para eso como línea conductora, la relación entre la sensibilidad y el investigar, la memoria en esa relación con el escribir Considerando que las condiciones de la producción de conocimiento se dan en una sociedad de gobierno de unos sobre los otros, todo el desarrollo de este texto está en evidenciar un saber-hacer urdido en el plano de vidas insurgentes, en la tensión tanto de valores hegemónicos que balizan la producción del conocimiento (como los heredados del platonismo), colocando problemáticas en ideas basilares que justifican la intolerancia, que fundan relaciones segregadas y que crean violencia de unos para con los otros. Este artículo, de esta manera, indica el ejercicio efectivamente político que caracteriza tanto el pesquisar, como el escribir, y toma como elemento analítico una narrativa-memoria.
Palabras-clave: Investigación; Producción de conocimiento; Escritura.
INTRODUÇÃO
O Pai achava que a gente queria desver o mundo
(Barros, 2010, p. 20).
Como uma pesquisa e sua escrita afirmam certos modos de conhecer? Como a escrita se articula com a produção de conhecimento e, portanto, com a reificação de mundos? Como portar uma pesquisa/escrita que porte uma produção de conhecimento sensível?
Para começarmos esse artigo, gostaríamos de tomarmos brevemente a perspectiva de produção de conhecimento. Como indica Pessoa (2006), o platonismo separou o sentido do verdadeiro e a aparência sensível das coisas, engendrando uma hierarquia de valor entre ambos em que a aparência sensível das coisas ganha o estatuto da falsidade e do engano. Então, vê-se proliferar maneiras de controlar nossa sensibilidade a fim de não atrapalhar o alcance de uma suposta verdade além do sensível.
Assim, Platão (2011) chega à fórmula de que, por meio de um movimento da alma, a faculdade de conhecer só é possível apartando-se do mundo das coisas contingentes. A sensibilidade, por não abstrair-se das particularidades contingenciais de um mundo em constante transformação, é considerada um erro. Assim, a cada vez somos impelidos a passar por cima do que sentimos, a negar o que se mostra a nossa sensibilidade, de modo que já não vemos as cicatrizes que constituem um homem.
Separado, o sentido verdadeiro não é haurido do que aparece a nossa sensibilidade. A verdade é metafísica, isto é, seu fundamento incondicionado só pode apelar para outro mundo, a-histórico. Vemos, contudo, neste mundo a compreensão metafísica de verdade criar uma sensibilidade. Vemos metafisicamente "o homem", embora já não vemos, e por isso mesmo, as cicatrizes que marcam um homem.
Questionando esses pressupostos filosóficos, na linha argumentativa de Pessoa (2006), consideramos que há mais verdade no que aparece em nossa sensibilidade do que na própria ideia metafísica de verdade. Portanto, há nas cicatrizes de um homem, exatamente onde ele definitivamente não se mostra uno, absoluto, incondicionado, a-histórico, verdades insondáveis que remonta a histórias de lutas.
Esse artigo, dessa forma, evidencia um modo de fazer pesquisa que quer exatamente perfazer as histórias de lutas, que quer fazer aparecer as cicatrizes de um homem, isto é, suportar o vivido sem apelar para subterfúgios metafísicos.
O ponto nevrálgico nesse artigo, ao querer discorrer sobre uma maneira de pesquisar, é exatamente a relação que vamos fazendo com o que se mostra a nossa sensibilidade, a relação que vamos fazendo com o que, usando uma expressão de Mosé (2011), vamos chamar de nova impressão.
Assim, nos encaminhamos na compreensão de que as novas impressões são signos obscuros do processo de produção de conhecimento, que no plano de tessitura do pesquisar evidenciam um saber que surpreende e expõe o governo de uma vida pelas verdades pretensiosamente metafísicas.
Um pesquisar, dessa forma, que se dá em desver o mundo (Barros, 2010), de modo que se fica sem palavras, as formações discursivas habituais perdem sentido, um inaudito tenciona o regime de dizibilidade, e escrever implica em se colocar nessa tensão.
É que a palavra já carrega um vício metafísico, "[...] nomear é impor identidade ao múltiplo, ao móvel, é forjar uma unidade que a pluralidade das coisas não apresenta. A palavra, por juntar coisas distintas em um único signo, se sustenta na negação da diferença. [...]" (Mosé, 2011, p.72).
A relação com as palavras, como modalidade expressiva do pesquisar, dessa forma, também se apresenta como um campo problemático. Querendo sustentar exatamente a afirmação da diferença, isto é, a contrapelo "do homem" metafísico, fazer aparecer as cicatrizes de um homem na concreção de seu mundo que é este, a relação com as palavras busca suportar o vivido com hiatos desestabilizadores.
Esse artigo, portanto, partindo de uma pesquisa de mestrado realizada na rede municipal de ensino de Domingos Martins (ES), é uma tentativa de se tracejar algumas questões no que diz respeito a um modo de pesquisar e a um modo de escrever, considerando o escrever um elemento inerente ao pesquisar.
SOBRE UMA MANEIRA DE PESQUISAR
Chamamos de política cognitiva um tipo de atitude ou de relação encarnada, no sentido em que não é consciente, que se estabelece com o conhecimento, com o mundo e consigo mesmo. (Kastrup, 2007, p. 15).
De início perfazeremos alguns poucos elementos do pensamento da tradição platônica que de alguma forma pode atuar delimitando sentidos no processo de produção de conhecimento. Vale ressaltar que esses poucos elementos com que se ocupa esse texto, não são tomados como elementos de uma teoria totalizadora, que teria seu sentido guardado dentro de uma filosofia geral.
Ainda que venhamos colocar em análise efeitos de platonismo, não é objetivo explanar sobre uma filosofia em sua coerência interna, nem fazer deste texto um tratado filosófico. Apenas traçamos alguns poucos elementos filosóficos na medida em que reconhecemos neles forças, modalidades de sensibilidade, que agem a despeito de um corpo filosófico.
Assim, perfazer um pouco de platonismo nos faz remeter ao pressuposto platônico desta vida ser um erro. Isto é, ao pressupor que esta vida é cópia infiel de outro mundo, do mundo das ideias (Platão, 2011), a tradição platônica reconhece uma natureza errante, própria do viver esta vida, e o faz num quadro valorativo que o desqualifica. Então, viver esta vida é um erro que, atravessado pela tradição platônica, engendra uma maneira de viver que menoriza o valor até a negação desta vida e do que lhe é próprio, isto é, de sua natureza errante.
O negar esta vida, considerada errância, é uma maneira de viver constituindo-se em subterfúgios. Hipostasiam-se acima do que sentimos, ou melhor, no lugar do que sentimos, agindo como substitutos do que sentimos, impermeabilizando-nos para o que sentimos, o que Platão (2011) chamou de ideias em si do mundo das ideias.
Valendo-me de um personagem alegórico, Brás Cubas (Assis, 1997) é testemunho direto de que as ideias exercem um grande poder sobre nossa sensibilidade, ele que tomado por uma ideia, a do emplastro, tornara-se por isso mesmo insensível aos sinais de seu adoecimento que, dessa forma, o levara a morte.
Seu testemunho póstumo aos vivos alerta para os cuidados necessários para com as ideias fixas, essas ideias que enrijecem nossa sensibilidade tornando-se um habito fatal. "A minha ideia [diz Brás Cubas], depois de tantas cabriolas, constituíra-se ideia fixa. Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi aideia fixa da unidade italiana que o matou. [...]." (Assis, 1997; p.5, grifo nosso).
Esse poder que exerce sobre o que sentimos é a evidência de uma hierarquia valorativa. O que se chama ideias não são ideias ingênuas, muito menos se considerarmos que o valor que se lhes atribui são valores constituídos numa sociedade de governo de uns sobre outros.
Queremos ressaltar, portanto, a propósito do exercício de pesquisar, primeiro uma relação com o que Mosé (2011) vai chamar de nova impressão, isto é, uma estranheza que se mostra à sensibilidade e que tem força para tencionar as ideias, indagando seus valores e seus fundamentos. E, por fim, sabendo-se que o valor das ideias se dá numa sociedade de governo de uns sobre outros, evidenciar a politicidade do ato de conhecer, isto é, o aspecto necessariamente político da situação cognoscitiva.
Assim, Mosé (2011) nos traz algumas pistas quando diz:
[...] ver agora é um produto do nome.[...] A operação de ver foi substituída pela de nomear, que é o mesmo que acessar uma imagem previamente codificada. Desta forma, cada vez mais, apenas o conhecido é visto, porque somente ele é passível de identificação, de reconhecimento. Uma nova impressão, quando atinge a vista, quando chega à consciência, ou é reduzida a uma outra já conhecida, ou é eliminada como destituída de sentido. [...] (p.119, grifo nosso).
Então é na relação com uma nova impressão que em ultima instancia temos condições de colocar em análise o exercício do pesquisar. O homem platônico aí se vale de ideias como subterfúgios para negar ou reduzir o que sente, opacizando o que é nova impressão. O platonismo engendra uma lealdade a legibilidades hiperurânias, o que implica, tomando emprestadas as palavras de Clarice Lispector (1999), ser desleal para com todo o resto.
Todavia, o que é uma nova impressão é indicação de que algo (tudo?) não se dá em decalque ao plano das ideias. Bem como é indicação do efeito de governo exercido pelas ideias sobre nossa sensibilidade na medida em que essas ideias visibilizam algumas coisas e invisibilizam outras, possibilitam que algumas coisas sejam ditas e outras não, tornam pensáveis algumas coisas e outras tornam impensáveis.
Acolher o que é nova impressão é, portanto, suportar essa fronteira entre visível e invisível, dizível e indizível, pensável e impensável, onde exatamente podemos acessar o governo exercido pelas ideias sobre nossa sensibilidade. Isto que é nova impressão, então, é a chave de acesso não para as supostas ideias em si de outro mundo, mas para o governo das ideias em meio a este mundo.
Vale destacar que embora usamos por designação "governo das ideias", podendo com isso indicar um plano que ultrapassa sobremaneira os homens, queremos por essa designação reportar a um exercício que atravessa os homens e são por eles atualizados num governo de uns sobre outros.
Assim, ao acessar o governo exercido pelas ideias sobre nossa sensibilidade, acessamos primeiro um governo para um suposto mesmo, isto é, uma força homogeneizante. Segundo, ao acessar esse governo nos remetemos a significações estratégicas precisas. Governa-se para que? Governa-se para quem? Enfim, quais sentidos assumem esse governo?
Não se trata, agora, de inverter mantendo o mesmo mecanismo, fazendo da nova impressão um imperativo ideal que venha negar o plano das ideias. Trata-se antes de, sem se valer de qualquer subterfúgio que nos subtraia da materialidade condicional da existência enquanto realidade de transformações contínuas nesta realidade, sublinhar a força da tensão engendrada pelas novas impressões, evidenciando o que essas tensões colocam em questão.
O que é nova impressão tem um caráter de desconexão que perturba as coordenadas instituídas do sentir, dando visibilidade a essas próprias coordenadas, de modo que o sentir se volta sobre si mesmo no governável de seu ato. Assim, tanto o que é sentido se mostra numa abertura constitutiva, como o próprio sentir ganha um vigor processual (é quando o olhar, arrancando-se da imobilidade das coisas, descobre novas coisas de ver).
Na cidade de Domingos Martins (ES),1 por meio de um dispositivo de pesquisa criado a partir do Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), com a intersecção de estudantes assinalados por profissionais da rede municipal de educação, de um modo geral, por "estudantes indisciplinados", pudemos vislumbrar, em ato, essa governança sobre o sentir e, por consequência, sobre o vivo.
À medida que esses estudantes eram assinalados como "estudantes indisciplinados", sem que estivéssemos enredados a uma lógica disciplinar, buscávamos entender o que estava comprometido nessa enunciação. Assim, à medida que encontrávamos com esses estudantes e com as realidades por eles vividas, de maneira inesperada, éramos levados a sair das rotas e circuitos que fazem de Domingos Martins uma cidade eminentemente turística. Ao encontrarmos com esses "estudantes indisciplinados" onde viviam, éramos surpreendidos com comunidades campesinas e comunidades muito pobres que não lembravam em nada aquela cidade tal como se abria para o turismo.
Num mesmo movimento, se evidenciava o como, num jogo de luz, a cidade era destacada por paisagens bonitas das rotas turísticas e por valores culturais de identidade européia de valor turístico (o alemão e o italiano, povos que ocuparam essas terras), a cidade tinha uma espécie de frontispício por meio do qual estrutura um padrão valorativo que chamei de a Grande Cidade Turismo.
Tomando uma expressão de Ítalo Calvino (1990), esses "estudantes indisciplinados" eram as chaves de cidades invisíveis em Domingos Martins, na medida em que entoavam a voz emudecida de suas comunidades campesinas e das classes populares aí invizibilizadas.
Expressão de mundos irredutíveis à Grande Cidade Turismo, por isso mesmo, esses "estudantes indisciplinados" guardavam uma obscuridade perturbadora que, embora transgredisse a ordem do lugar, sua linguagem ininteligível tornava embotada sua força interrogativa. Os profissionais da educação viam em suas transgressões os sinais de uma patologia a ser medicalizada, quando na verdade equivocavam valores hegemônicos que atravessavam as relações que se institucionalizavam em escolas da rede municipal de ensino.
Na rede municipal de educação da cidade de Domingos Martins (ES), estudantes designados por "estudantes indisciplinados" equivocavam qualquer plano ideal, e como índices obscuros formavam uma nova impressão que despertava a curiosidade para o não sabido. Não vemos mais aí o que já conhecemos, vemos antes de tudo linhas de erro que criam certo gosto em desver o mundo. "Huck2 de repente tem um ataque de fúria aqui na escola, esse menino não tem regras, também ele vive nas ruas de São Bentinho" (diz a diretora da escola).
Huck, como signo de uma nova impressão, servia de fio condutor do pesquisar que, mantendo-se no disparate de seus elementos, vai dando a ver que suas ruas guardam misérias que não podiam aparecer no fluxo do mercado turístico. Ruas invisibilizadas na grande cidade, "não tem posto de saúde, não tem creche, tudo é em Pedra Azul" (morador da comunidade de São Bento, afastada/apartada da rota turística e marcadamente pobre).
As ruas de Huck não são ruas objetivadas em métricas espaciais absolutas, e suas medidas muito menos se equivalem a das ruas de Pedra Azul, a das ruas da Rota do Lagarto, ruas de cujas leis formam hegemonicamente a ideia da cidade turismo de Domingos Martins.
Huck inegavelmente vive em suas ruas, as ruas de São Bentinho. E no vivido de suas ruas, com suas ruas, Huck fabrica realidades de meninices e de homens do campo, que não se conformam às "ruas onde só têm pessoas alcoolizadas, onde as mulheres se prostituem, onde existem drogas" (diretora da escola e pedagoga dizendo das ruas de São Bentinho).
À medida que usa suas ruas em brincadeiras, que as usa junto as suas famílias secando grãos colhidos na roça, dando a ver, no uso de suas ruas, regras (quem disse que não há regras?) forjadas na necessidade do vivo, que não podem ser percebidas nas vias turísticas da cidade, Huck faz isto que Michel de Certeau (2012) chamou de sintaxes espaciais, indagando os valores instituídos nessa sociedade opressiva.
Portanto, o governo das ideias conjurando nossa sensibilidade assume um plano sobreimplicado mediante a odiosidade que se forma em relação à Huck e sua família, na medida em que Huck evidencia que esse governo que conjura nossa sensibilidade é signo do poder, servindo na manutenção de uma ordem normatizadora.
A seguir, como elemento de análise, com realce para uma política de escrita que possa abarcar os campos sensíveis, trazemos um registro de escrita.
HUCK, OS TAMBORES E AS NOVAS IMPRESSÕES
Integrando um equipamento de "gestão da anormalidade", o psicólogo escolar era levado, às pressas, a outra escola. O levavam seguindo as vias principais da cidade, sempre rodeadas por paisagens turísticas belas, claras, resplandecentes, hipnotizantes. De repente, arrancado por solavancos das vias principais, o carro faz uma curva inesperada, entrando em uma viela de terra batida que levava a um relevo mais baixo, mais profundo. Uma escuridão contrastante ia tomando conta, envolvendo-os pavorosamente.
A sombra os abraçava, eriçando os pêlos dos corpos tremulantes, uma excitação temerosa inesperada, como um cão que late não se sabe onde. O declive era suficiente para impedir os raios de luz, não importa o ângulo, atingirem aquele lugar terrível. O fluxo de fótons, direcionada para as planícies turísticas, não alcançava aquela região.
Se o carro não houvesse saído das vias principais nunca teria notado tal viela, muito menos a comunidade que a circunda. Ainda assim, com muita dificuldade, em decorrência do breu que tomava conta do lugar, notava um amontoado de construções estranhas, não pareciam construções de homem-branco-masculino-adulto-heterosexual-habitantes da cidade, mas traziam indícios de que aquela região era de alguma forma habitada.
As construções, de alvenarias e tábuas, pareciam dispostas desordenadamente. E, nas contingências ilicenciadas das habitações formavam labirintos insondáveis. Pela economia, era comum, num mesmo lote de terra, haver mais de uma habitação. Era comum mais de uma família habitar um mesmo lote de terra.
Pela disposição das casas que então ia se formando num mesmo lote, toda uma rede de solidariedade ia sendo condicionada. Era comum um cuidar do filho do outro, quando houvesse necessidade; ou de fazerem algum trabalho juntos (como secar grãos de café no terreno baldio ao lado) etc...
As casas eram muito pequenas, com poucos cômodos. As crianças estão nas ruas, usando-as para brincar. As casas e as ruas, na verdade, pareciam uma coisa só. E, definitivamente essas ruas não eram as mesmas ruas da cidade turística e higienizada.
Sons de atabaques de candomblé se faziam ouvir nesse lugar. Em meio aquela escuridão, as imagens da cidade turismo eram inesperadamente solapadas, embotando as coordenadas estruturantes da cidade, e uma musicalidade traçava alguns canais de expressão singulares.
Ainda conseguia ver em meio aquele terror fuliginoso, varais fora das casas com roupas surradas pelo uso, ensopadas de uma lavagem recém realizada que arrancava o fedor do suor que escorrem dos corpos nos campos, nas oficinas, no trabalho. Grande parte das pessoas que habitam esse lugar é constituída de meeiros que vieram de outras cidades.
Aquela era uma comunidade muito pobre da cidade. Entrara numa região escura, uma escuridão que não era constituída apenas pelo clandestino poético, onde se cria modos de viver, de habitar, de convívio, irredutíveis aos modos turísticos hegemônicos da cidade. Mas uma escuridão que tristemente também era constituída de pobreza, de desigualdade, de vidas precarizadas.
"Não há uma creche aqui. Para as crianças chegarem à escola mais perto, elas precisam atravessar a BR para pegar o ônibus no ponto. Isso é muito perigoso, pois na BR passam muitos carros. Não há um posto de saúde, tudo tem que ser feito lá em Pedra Azul", diziam alguns moradores.
Em meio aquela escuridão, havia a escuridão onde a clandestinidade ganhava o seu máximo de refinamento, cultivada por seus habitantes numa afirmação poética da vida que não cabe no quadriculado turístico da cidade. Mas também havia a escuridão, efeito de um jogo de luz hostil de uma cidade turismo que preza por suas imagens.
Não demoraria, estavam novamente nas vias principais, ganhando a normalidade das ruas centrais da cidade. Seu corpo estava reflexamente contraído de medo, levando-o a uma exaustão precipitada. A claridade das vias principais ofuscava suas vistas agora desadaptadas. Estivera numa região assustadoramente escura, uma escuridão que sempre recobrava suas ambivalências emocionais, algo terrificante, mas um terror que estranhamente o atraía.
Mas uma confusão de sentidos o tomou, pensou estar ficando louco. Duvidava de suas impressões. Será que aquilo não fora um sonho, um devaneio epiléptico, episódico, que perturbara seus nervos naquele lapso de tempo? Será que aquele lugar terrível existia, ou era uma invenção delirante de seus sentidos canhestros? De onde vinha o som dos atabaques?
Sua perturbação só não era maior porque com ele iam duas testemunhas que poderiam lhe tirar daquela confusão mental. Estavam com ele, naquele carro, uma pedagoga que o acompanhava em todos os lugares, formando uma parceria de trabalho. Chamada Maria Vitória, uma pessoa que se indignava contra as injustiças sociais. Ela dizia: "Aqui – apontando a comunidade pobre por que passaram - é a comunidade que foi apelidada de "São Bentinho". Estamos quase chegando à escola".
Além de Maria Vitória, também podia contar com a testemunha da motorista que se chamava Jose. Pessoa zelosa, que os levava às escolas do município. Preocupada com a segurança nos mínimos detalhes, sempre pedia para abaixar a trava das portas do carro em movimento, para não correr o risco delas se abrirem durante, às vezes, longas viagens que faziam até as escolas.
Estavam chegando. Apesar da claridade do poder, uma escuridão relapsa, intermitente, perturbadora, tremulava suas carnes com a estranheza vinda dos atabaques, que desde então nunca mais deixava de ouvir. Seu fascínio aguçava exorbitantemente sua curiosidade.
A escola não ficava na comunidade de "São Bentinho", mas não era longe dali, de modo que muitos desta região iam estudar nesta escola. Inclusive Huck, garoto franzino, de seis anos, mistura de negro com índio, e que se destacava pela virulência que "de repente se voltava contra tudo o que via pela frente na escola, algo incontrolável", assim já nos adiantava a diretora da escola, que vinha ao nosso encontro desesperada.
Entrando numa sala com prateleiras enormes de livros e uma mesa central de reuniões, a diretora, agora também junto da pedagoga daquela escola, prosseguia: "Nossa! De repente esse menino se levanta, joga o que vê pela frente pra longe... é carteira da sala, é mochila, é caderno... sai empurrando todo mundo e se você não segurar, ele bate nos colegas... é uma coisa horrorosa, agente não sabe mais o que fazer".
"Mas como que é esse de repente?", pergunto intrigado. A pedagoga, então, tomava a palavra: "Olha, os irmãos dele, mais velhos, também estudam aqui, mas eles fogem da escola, eles conseguem pular as janelas da escola e ganhar a rua, mas ele, por ser o mais novo e o menor, não consegue pular as janelas e ir com irmãos pra rua, acaba ficando na escola".
Aproveitando o ensejo, a diretora complementava: "Esses meninos são criados na rua mesmo. Os pais desnaturados deixam os meninos aos cuidados das avós. Os meninos não ficam em casa, ficam na rua o tempo todo. Eles não tem regras, o problema é que eles são criados sem regras nenhuma. Eles são ali da comunidade de São Bentinho, você sabe né... uma comunidade que não tem nada, e agente fica sabendo de que tem muita droga ali. Eu fico me perguntando como esses pais deixam esses meninos na rua? São muitos desnaturados mesmo... a mãe, pra você ter uma ideia, tem até tatuagem no corpo".
A diretora continuava a falar, ininterruptamente: "Os pais são tão desnaturados que agente vê que Tiago – assim chamava o menino - precisa mesmo é de um médico neurologista, porque isso não é normal. Agente marca o médico pra eles levarem Tiago, mas eles não levam. Uma vez eu fiz o seguinte, depois de Tiago ter outra daquelas crises de fúria, eu falei pros pais que ele só voltaria pra escola depois que tivesse ido ao médico e ser medicado. Dei tipo uma suspensão, sabe? Foi ali que eles levaram o menino no médico. Depois até eles me disseram que tiveram que ficar mais de três horas esperando o médico, e acabaram perdendo até o ônibus para voltar, tendo que esperar mais um bocado para pegar outro ônibus, chegado já muito tarde em casa... coitados... mas, enfim, eles o levaram, o médico receitou um remédio pro menino tomar, mas os pais não estão dando o remédio como o médico pediu. Eles dizem que o remédio está fazendo mal ao menino, mas eu não sei não, eles não podem parar o tratamento assim. Vê só, e deixaram por isso mesmo. Não são uns desnaturados? O problema do Tiago é a família dele".
Agora, nos levando a sua sala, a diretora dizia da primeira vez que conversou com Tiago: "Uma vez, logo no início quando veio pra cá, ele disse pra mim que era o Huck. Ele já trouxe essa história desde quando estudava na creche. Acho que ele viu isso na televisão, não sei. Eu falei pra ele que não, ele não era o Huck, que ele era o Tiago, aluno daquela escola".
Huck é da rua, não das ruas turísticas da cidade, não das rotas do lagarto, não das ruas de Pedra Azul onde mora a diretora da escola, mas das ruas escuras dos arrabaldes, a arapuca do lagarto, região estranha às regras do turismo, Huck é de "São Bentinho", corpo fraudulento naquelas regiões turísticas da cidade, considerado surtado em suas virulências inesperadas e delírios de criancice. Huck era um exemplar abissal que despertava, no monstro-andarilho, uma estranha aliança tétrica impronunciável, embora nunca houvessem se conhecido.
Decerto havia muitas luzes naquela escola. Huck ali não era o monstro abissal do misterioso "São Bentinho", não era nem Huck. As luzes que incidiam em seu corpo, na escola, o afrontavam, transfigurando-o num ser patológico a ser medicalizado. Na claridade da escola, "São Bentinho" também perdia o brio próprio de sua escuridão, e toda possível curiosidade suscitada nos mistérios de sua negritude perdia sua força. Havia apenas drogas, o perigo das drogas, e nada mais. Mas não para quem ouviu o som de seus atabaques.
Os irmãos mais velhos ganhavam a rua, os atabaques ressoavam de longe, trazendo vibrações estranhas à escola, vinham da rua, vinham das margens não turísticas. Ficava mais claro que os sons dos atabaques eram notas de fuga. Mas ele era pequeno, não conseguia pular as janelas, fica preso àquele lugar que não entendia o chamado dos atabaques. Ele fica furioso. Não suporta aquele lugar.
"Temos que ter um auxiliar para ficar só com o Tiago, para segura-lo senão agente não dá conta", a diretora pedia a monstro-andarilho e a Maria Vitória. A hora já era avançada quando então eles se despediram ali mesmo na sala da diretora, combinando de voltar para conhecer Huck e o som inesquecível de seus atabaques.
SOBRE UMA MANEIRA DE ESCREVER
[...] não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? (Benjamin, 1994, p. 223).
O processo de escrita aqui, como constituindo também o ato do pesquisar, explorava uma relação com a memória do que aconteceu há pouco, no pesquisar. Memória de lutas, uma reminiscência não para ser conhecida tal como foi, mas para ser apropriada como instrumento criador, uma força contra o conformismo no presente.
Logo um desnivelamento se impõe abruptamente no ato de escrever o que se passou, pois não se trata de um discurso apenas sobre outros discursos, mas de uma arte de caçar e ser caçado por palavras no ato de discorrer sobre aquilo que não é só discursivo, uma rede de forças estranha a palavras.
É necessário atentarmos para esse desnivelamento ao escrever, suportando-o ao fazer a escrita não uma teoria sobre práticas, mas já uma prática astuciosa não cooptada nos labirintos de suas frases.
[...] a teoria não expressará, não traduzirá, não aplicará uma prática; ela é uma prática. Mas local e regional [...] não totalizadora. Luta contra o poder, luta para fazêlo aparecer e feri-lo onde ele é mais invisível e mais insidioso. [...] Uma "teoria" é o sistema regional desta luta. (Foucault, 2008, p. 71).
De memórias não se extrai um passado fixo e determinável. Re-equaciona-se a linha passado-presente, (re)construindo o passado conforme necessidades do presente (Ferreira, 2002), (re)encaminhando o material mnemônico ao plano de forças que urgem no tempo dessa arte de dissertar.
Há na ocasião do escrever, exigências que não eram necessariamente as mesmas do acontecimento pretérito, e que agem na maneira como acesso o acontecimento pretérito pela memória.
As alianças com as memórias que se forçam, as memórias de luta, se dão como dispositivo que escapa, que fura e que cria novos contextos. Um olhar endógeno, validado pelo outro, que dão testemunho de uma riqueza visceral da constituição de uma realidade epidérmica, em declarados contrastes com as gélidas quantificações estatísticas e totalizações teóricas. Uma escrita não raro sem deixar de trazer elementos que se contrapõem a história dos documentos oficiais (Thompson, 1992).
A memória mediatiza transformações espaciais. Segundo o modo do 'momento oportuno' (kairós), ela produz uma ruptura instauradora. Sua estranheza torna possível uma transgressão da lei do lugar. Saindo de seus insondáveis e móveis segredos, um "golpe' modifica a ordem local (Certeau, 2012, p. 149).
Já evidenciamos que nosso interesse não diz respeito a estruturas totalizantes, mas a redes de forças, deslocamo-nos do plano de ideias em si para as situações vividas, das normas coletivas para as situações singulares. Agora traçamos uma escrita que tem na memória seu fundamento. Como não tornar isso demasiadamente pessoal, algo exageradamente intimista?
Todo enlevo dessa história é carreada por um processo mnemônico desindividuado na medida em que é uma memória que subsiste na sua íntima ligação com circunstâncias, ainda que vividas por mim. Quantas memórias temos que são irrememoráveis? Irrememoráveis na medida em que a singularidade de suas circunstâncias não se repete. O cenário das circunstâncias, com seus intercessores (um texto, uma fala, uma pessoa, um verão, etc.), suscitam signos mnemônicos que já não é re-memoração, mas uma arte de criação.
Então, como fazer da lembrança algo pessoal, se ela se constitui necessariamente na rede social que vivo? Não podemos esquecer que os efeitos de memória singulares são encadeamentos que não é qualquer um que pode fazê-los. Uma memória pessoal, mas imbricada de coletivo (Habwalchs, 2006).
Assim segue uma história fundamentada em memórias, em minhas memórias que são coletivas, em minhas memórias e de todo o mundo ao mesmo tempo, numa paradoxal relação de criação, de co-memoração. Essa história já não é o que aconteceu, mas uma poética com o que aconteceu, ela é também um acontecimento, uma celebração de forasteiros da palavra.
Em meio a uma cobrança cada vez maior por enredos lineares, com o desenvolvimento crescente de técnicas informacionais que estancam a potência criadora na novidade fechada nela mesma e nas explicações que exige (Benjamin, 1994), essa história traz um espectro labiríntico, numa aposta de palavras instauradoras de criações.
Sem deliberações preliminares, as memórias, no entremeio de muitas interferências no ato de escrevê-las, podem então ir se tornando uma ficção, uma fábula, descomprometida a se ajustar o mais possível a uma realidade suposta, uma escrita, muito pelo contrário, que aparenta subtrair-se a uma conjuntura dada. "[...] Deste modo, precisamente, mais que descrever um 'golpe', ela o faz [...]" (Certeau, 2012, p. 142).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa pesquisa nos possibilitou vislumbrar a distância irreversível entre Huck e a ideia da cidade turismo. Huck não é nem cópia embotada da ideia, mas algo tão distante da ideia que é de outra natureza, um simulacro que remonta a cidades invisíveis em Domingos Martins, um conhecimento político que nos enleva a luta contra toda opressão.
Atravessados pelo plano das ideias, por meio dos quais se vive efeitos de normalização na conjuntura social, Huck (signo do que chamamos de nova impressão) é todo um resto em cuja força indica o ângulo de vidas oprimidas que resistem.
Esse pesquisar e esse escrever se constituíram, dessa forma, num modo de operar com restos, restos de impressão a todo um plano ideal, restos mnemônicos a toda memória oficial. Operar com restos que se evidencia como um gesto político na medida em que com eles (com os restos) vamos fabricando uma realidade que equivoca toda realidade homogênea e hegemônica, politicidade elevada ao seu expoente na medida em que esgarça a naturalidade e normalidade das coisas numa luta por um mundo mais solidário, no qual o conhecimento possa traduzir sensíveis.
Referências
Assis, M. (1997). Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Editora Globo. [ Links ]
Barros, M. de (2010). O menino do mato. São Paulo: Leya. [ Links ]
Benjamin, W. (1994). Obras escolhidas: magia, técnica, arte e política. (7ª ed., Vol. 1). São Paulo: Editora Brasiliense. [ Links ]
Calvino, I. (1990). As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Certeau, M. de (2012). A Invenção do Cotidiano: artes de fazer (18ª ed.). Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Ferreira, M. M. (2002). História, tempo presente e história oral. Rio de Janeiro: Topoi. [ Links ]
Foucault, M. (2008). Microfísica do Poder (25ª ed.). Rio de Janeiro: Edição Graal. [ Links ]
Nota sobre as autoras
Patrick Stefenoni Kuster: Psicólogo, Mestre em Psicologia Institucional, UFES. E-mail: pask1806@gmail.com
Ana Paula Figueiredo Louzada: Professora Adjunta do Departamento de Psicologia. Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional. Laboratório de Afetos e Biopolíticas, UFES. E-mail: paulalouzada27@gmail.com
Recebido em: 05/08/2016
Aprovado em: 10/10/2016
1 Cidade do centro-sul serrano do Estado do Espírito Santo, que fica a 43 Km da capital Vitória. Domingos Martins é conhecida principalmente pelo turismo, uma de suas principais atividades econômicas, ao lado da agricultura. Nesse texto destacamos o distrito de Aracê, um dos lugares onde o turismo é mais explorado. Reconhecido por paisagens bonitas (é a região onde se situa a Pedra Azul, a Rota do Lagarto, etc.) e clima frio, ela apresenta uma rica rede de pousadas que hospeda turistas de várias regiões do Brasil e do mundo. Sendo um trabalho que se desenvolveu na rede municipal de ensino, muitos estudantes, como veremos, são de comunidades muito pobres da região, como as comunidades de São Bento, Barcelos etc..
2 dos os nomes usados são fictícios.