TransFormações em Psicologia (Online)
ISSN 2176-106X
Resenha
Corpos na cidade: uma abordagem psicanalítica da violência urbana em São Paulo
João Bosco dos Santos Baring1, Victor Barão Freire Vieira2
Universidade de São Paulo
"Nesse momento, entrou um policial no bar e gritou para todo mundo deitar no chão. 'O que está acontecendo aqui?', perguntou o José. 'Calado, polícia.', berrou outro policial. Ele reconheceu a voz e falou: 'Vocês estão doidos, matando moradores e pessoas inocentes!'. E tentou sair por outra porta, mas atiraram no joelho dele. Mesmo assim, ele saiu correndo pela rua, tentando se proteger em algum lugar, e eles correndo atrás, atirando sem parar". Regina, viúva de José, assassinado na Chacina da Baixada.
Consagrando uma Tradição
Com o livro "Violência no Coração da Cidade: um estudo psicanalítico", publicado pela 1ª vez em junho de 2005, Paulo Endo se propôs uma difícil tarefa: causar impacto na discussão transdisciplinar sobre violência tratando o tema a partir do ponto de vista da psicanálise. Essa missão, nada fácil, exige do autor um conhecimento que vá além de sua área de origem, para que o diálogo seja possível. Numa discussão de âmbito social, envolvendo um entendimento sobre a cidade, fazem-se necessários saberes de urbanismo, antropologia urbana, sociologia urbana, história, filosofia, geografia e política, além de um profundo conhecimento psicanalítico, uma vez que será a psicanálise o eixo central do livro, capaz de fazer articulação com as outras disciplinas.
Endo executa essa tarefa com brilhantismo quando, ao analisar a violência na cidade de São Paulo, estabelece ricas trocas com autores de peso de outras áreas, tais com Alba Zaluar, Teresa Caldeira, Sérgio Adorno, Gilberto Velho, Paul Ricoeur, Lilia Schwarcz, Bóris Fausto, Chico de Oliveira, José Murilo de Carvalho, Paul Chevigny, Walter Benjamin, Primo Levi, Pierre Bourdieu, Guy Debord, Hannah Arendt, entre outros. Além disso, explora profundamente os trabalhos de Freud que tratam da violência, estabelecendo importante elo com o pensamento de Giorgio Agamben.
Dessa forma, Endo se insere numa tradição inaugurada por Freud, que em "Moisés e o Monoteísmo", "Totem e Tabu", "O Futuro de uma Ilusão" e "O Mal-Estar na Civilização" produziu uma inflexão na psicanálise, mostrando que além da clínica, ela pode e deve falar de temas transdisciplinares complexos. No Brasil, esse percurso tem expoentes como Hélio Pellegrino, que causou impacto com sua tese "O pacto edípico e o pacto social", e Jurandir Freire Costa, autor de "Violência e Psicanálise" e "Psicanálise e Contexto Cultural". Paulo Endo realiza essa tarefa, tendo participado da fundação do Grupo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, do Laboratório Psicanálise e Sociedade da Universidade de São Paulo, do Grupo de Trabalho Psicanálise, Política e Cultura, e sendo membro do Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que buscam uma investigação psicanalítica de eventos políticos e culturais.
Em "Violência no Coração da Cidade" ele explora as matizes da violência na cidade de São Paulo, explicitando sua íntima relação com as desigualdades sociais que nela estão estabelecidas. A partir da contribuição psicanalítica freudiana, pensa o corpo e a violência a partir da guerra e neurose traumática, do sadomasoquismo e da relação entre pulsão de morte e superego. Também analisa a convivência com a violência por meio das mídias e a experiência do Fórum em Defesa da Vida Contra a Violência, do Jardim Ângela. Tal discussão se encerra na exploração do diálogo entre "Totem e Tabu" (1974/1913) e "Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua", de Agamben (2002).
O trabalho, que não foi escrito exclusivamente para psicanalistas, apresenta uma linguagem clara e fluida. O interesse que tem para pesquisadores de diferentes áreas e para o público em geral acabou lhe rendendo o prêmio Jabuti de 2006. Dessa forma, Endo acabou fazendo parte de outra tradição freudiana, quer seja, a de produzir boa literatura.
Anatomia da Violência
Na primeira parte do livro Paulo Endo é incisivo e impiedoso ao evidenciar a cidade de São Paulo como uma metrópole de exclusão na qual a violência predomina como método primordial na solução de conflitos entre as diferentes camadas sociais. Ele denuncia uma elite brasileira que tem como práticas a privatização do espaço público e a corroboração com um verdadeiro massacre que ocorre nas periferias das principais cidades do Brasil, como São Paulo, Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte, Salvador e Rio de Janeiro.
Recorrendo a uma gama diversa de autores e trabalhando a partir de pesquisas atuais sobre o tema, ele apresenta o retrato de uma das cidades mais violentas do mundo, na qual poucos detêm para si o máximo de privilégios enquanto muitos vêem negada sua possibilidade de exercício da cidadania plena. Mostra-nos que essa desigualdade, naturalizada e banalizada, é correlata da violência urbana. É dela que partem as mais profundas violações dos direitos humanos, nas quais execuções sumárias, torturas e detenções arbitrárias se tornam práticas cotidianas. Enquanto que nos Estados Unidos o presidente Obama se mobiliza para fechar a prisão de Guantánamo, com ampla repercussão mundial que celebra esse ato humanitário, Endo assinala que no Brasil a tortura se solidifica como forma de violência ilegal institucionalizada sem gerar debates ou mobilizações sociais importantes.
A tomada da cidade por apenas uma parcela de seus membros faz dela um lugar privado. Ocorrendo uma divisão citadina entre cidadãos e não cidadãos, nas quais predomina a preocupação pela aquisição de privilégios em detrimento da busca pela diminuição da desigualdade, a propriedade garante a cidadania: quem tem muito poderá muito, ao pobre nada resta. A lógica aparece invertida e as políticas públicas voltam-se apenas para o nicho mais rico da sociedade, colocando a outra parcela da população cada vez mais distante dos centros de investimento. A própria lei normatiza e normaliza tal segregação autorizando o investimento urbanístico injusto. A especulação imobiliária tem a concordância do poder público. Público esse que, a exemplo de suas ações, mostra-se claramente um poder privado, que poucos favorece. Ao pobre resta a falta de espaços de convivência, a penitenciária e a exclusão de uma cidade que não pode ser sua. O confronto torna-se inevitável e a eliminação dos nichos desfavorecidos desponta como modo de solução de conflitos. Predomina a lógica do bem contra o mal, do belo contra o feio, do que tem contra o que não tem. Nesse contexto, a polícia aparece como instrumento de realização e imposição do desejo de uma camada sobre a outra. A Justiça torna-se uma questão de quem pode pagar mais. Solidificam-se as formas privadas de justiça, tais como linchamentos, crimes passionais, lei de tráfico, justiceiros, seqüestros, etc, e, uma vez que isso acontece, os corpos se transmutam em valores e a violência em mercadoria.
Um corpo age sobre o outro. Uma bala atinge o peito de um morador de uma favela no Jardim Elba, região de Sapopemba, em São Paulo. A vítima, que voltava de uma festa, é acusada de tentativa de homicídio pelos policiais que atiraram. Agora acusado, é preso e condenado sem que o juiz apure os detalhes do ocorrido. O crime: morar na zona errada da cidade, ser negro, jovem e favelado. Esse tipo de cena, explicitada por Caco Barcellos (2008) em seu livro "Rota 66" e ainda hoje recorrente3, mostra aquilo que Endo aponta como o corpo feito objeto perante o desejo alheio. O corpo lixo, não cidadão. E mostra também o quanto a polícia, a quem cabe o "trabalho sujo", reflete os anseios da sociedade paulistana, que vê no preto, no pobre, no nordestino, no maconheiro e no adolescente seus principais inimigos.
Favela Jardim Edith. Na Operação Urbana Água Espraiada, relatada em detalhes por Mariana Fix (2001) em "Parceiros da Exclusão", os moradores são retirados paulatinamente de suas casas. A pobreza, a miséria estampada no coração da cidade perturba os olhares do "cidadão de bem" que por ali passa. Mais uma desapropriação urbana limpa a metrópole de sua sujeira. Do corpo entulho que precisa ser descartado. O Executivo, o Legislativo, o Judiciário, empreiteiras e empresas da região se unem para se livrar do corpo obstáculo, do corpo empecilho. Público e Privado se encontram em prol da desfavelização e da periferização da cidade. A violência é oficialmente argumentada como eficaz, inevitável e desejável.
Endo nos indica que o corpo sem território se torna o corpo alienado da cidade. O corpo desigual que pode ser eliminado, que é matável, torturável e desprotegido. E a sociedade, garantida por meio de suas redes de proteção privada e pela polícia, autoriza o desmando sobre ele. A expulsão para fora acalma os que permanecem dentro, corpos são protegidos em detrimento de outros. Os próprios excluídos, alvos da violência, apóiam essas medidas. A exclusão surge no imaginário como solução para a segurança, mas ao mesmo tempo ela alimenta a corrupção e truculências policiais, o tráfico de armas e de drogas. O Brasil, reconhecido por sua democracia, receptividade e convívio de credos, cores e raças, se torna também a terra da violação de direitos civis, da segregação e da eliminação do diferente.
Endo indica que, nesse contexto, a linguagem aparece domesticada pela violência e sob seu comando. A violência ao corpo dessubjetiva o sujeito o privando da linguagem. É preciso que isso mude radicalmente, para que ela ressurja como reconhecimento do diferente, para que o corpo violentado encontre um lugar de singularização. E esse lugar é a própria cidade. É somente no retorno ao público que se torna possível a reconstrução do sujeito partido. A Justiça, hoje desacreditada, tem papel central nessa mudança. Ela traz publicamente, para o âmbito do Direito, a reparação do lesado. Da mesma forma a ação de ONGs, Comissões de Direitos Humanos, ouvidorias, fóruns, organizações internacionais e pesquisadores, entre outros, se torna fundamental. É por eles que a palavra ganha sua força plena.
Psicanálise e as formas do excessivo
Viu-se na primeira parte do livro como o corpo se torna alvo inequívoco da violência na cidade: ele é vítima da violência do tráfico, da corrupção policial e das obras urbanas realizadas pelo Estado aliado a empresas interessadas no espoliamento da metrópole, ou seja, corpo sempre subjugado e expulso por meios violentos do convívio social, excluído para as periferias. A luta por espaços se transforma em luta contra obstáculos, corpos objetificados, para que diálogos, acordos, negociações ou convencimentos não interrompam a veloz necessidade comercial de se apropriar do território. Se nesses territórios há corpos agora incircunscritos (Caldeira, 2000), vulneráveis e nus, "à cidade já não interessa protegê-los, mas, ao contrário, quer justificar o seu desleixo e sua obtusidade ao querer se proteger deles" (Endo, 2005, p. 109). É neste campo catastrófico e paradoxal que, na segunda parte do livro, Endo introduzirá o pensamento psicanalítico como instrumento imprescindível para se compreender como se produzem e reproduzem as violências.
Primeiramente, escreve sobre o alvo da violência na cidade: o corpo. Depois, reflete sobre o que isso, para a Psicanálise, gera no indivíduo. Antes do surgimento da Psicanálise propriamente dita, Freud já formulava sua primeira teoria sobre a histeria apoiada numa hipótese de trauma sofrido na infância de suas pacientes. Depois de abandonada (Freud & Fliess, 1895), Endo nos mostrará que Freud volta à teoria do trauma para o estudo das neuroses de guerra ou neurose traumática, observando a necessidade de se tratar dessas vítimas que apresentavam sintomas de neurose grave. O que Paulo Endo acaba por nos evidenciar deste novo percurso freudiano é que a experiência traumática se dá num excesso de estímulo produzido por um agente externo que ataca e agride o indivíduo com tamanha rapidez ou força que não há maneira do ego erguer minimamente suas defesas. Tornado o trabalho egóico inútil, a experiência agressiva produz uma sobreposição entre percepção e motilidade que retira qualquer possibilidade de mediação do psiquismo, que, agora, se encontra ligado no sujeitamento egóico ao corpo e à sua sobrevivência. Observamos também que o custo ao ego dessa regressão psíquica seria reversível se não fosse tão freqüentemente evocado por centenas de pessoas todos os dias na cidade de São Paulo. A dor arrebata o sujeito e o leva a retirar seus investimentos libidinais de objetos externos a si e voltar suas energias para o corpo ameaçado e vulnerável. A articulação com os poderes públicos é flagrante na comercialização monopolizada pelo Estado das injustiças e violências ao citadino, que sente a destruição de direitos, redes de sociabilidade, instituições e lugares públicos como atentados à própria manifestação do "além-do-corpo" do cidadão, que vê que nada mais lhe caracteriza, restando apenas seu corpo e seu mundo privado empobrecido. Paulo nos mostra que o ego, agora fusionado ao corpo, se compromete a elaborar o evento traumático na tentativa reiterante de fazê-lo representável, existente psiquicamente, ligado. A esse trabalho dá-se o nome de compulsão a repetição, e se apresenta como recurso direto e já balizado por Eros da pulsão de dominação que repete na cena traumática (sonhos, angústias, fobias, etc) o percurso de sua elaboração. O que Endo trará nesse momento é uma observação do crescimento na obra freudiana de evidências de uma pulsão que nada teria a dever à pulsão sexual de vida e que se expressa exatamente nos espaços onde o ego falha em sua tarefa de mediador.
O conceito de pulsão de morte, que adquiria caráter cada vez maior na obra freudiana até sua apresentação em 1920, vai causar tensões em grandes alicerces da Psicanálise, mas também se notará fundamental para o conhecimento dos processos intra e intersubjetivos relativos à reprodutibilidade das violências. Neste aspecto, Endo construirá um detalhado percurso dentro da obra freudiana a fim de identificar estruturalmente o funcionamento sadomasoquista como um sistema atuante onde o que importa é a manutenção de sua meta e não seu posicionamento. Observa que durante a obra de Freud, este vai se afastando cada vez mais da idéia de um sadomasoquismo ligado a pulsões sexuais, desde 1905. Apresentando-nos o caso do Homem dos Lobos (Freud, 1918/1974), o que nos parece é que há uma diferenciação entre este e uma estrutura de caráter tipicamente sadomasoquista. Se no primeiro há uma fixação regressiva à fase sádico-anal por um horror à castração e se chega ao masoquismo sacrificial para se alcançar o objeto de amor através da dor, no segundo esse horror é negado e retorna como meta na experiência de dor ligado ao prazer, obtendo-se ambos sem culpa ou angústia. O importante aqui é notar que nos dois casos a expressão de morte é saciada de maneira sintomática e reprodutiva de modo que a pulsão de morte encontra satisfação na perversão, mas por si só não conseguiria permuta se não se misturasse à pulsão de vida, sexual, que se encarregará de permear prazer ao sistema. A violência encontrando caminhos eróticos para se espalhar.
Como corolário da expressão da violência no que tange à individualidade, Endo discute o conceito de superego, peça central do período mais maduro da Psicanálise para a compreensão do desenvolvimento sexual do sujeito e das repercussões em sua vida social. É com esse elemento, tido como alheio ao ego, que este terá de lidar a partir da assunção de sua internalização. Para isso, o ego precisa se a ver com a vida em conflito, paradoxal pela exigência de sua civilidade ao mesmo tempo lidando com exigências superegóicas. E é justamente essa ambigüidade que se expressa na contínua e impossível tentativa de completude do humano na cultura. A constituição da civilização é sempre produto do embate do sujeito com suas pulsões, tornando-a sempre insistente, incompleta e inacabada, carente da atuação de seus cidadãos para que continue a existir. Dessa forma, Endo novamente se dirige à cidade para encontrar esse intrincamento inerente à cultura, e pensar seu funcionamento e suas conseqüências.
Caminhos
Na terceira parte do livro Endo volta ao corpo agora já tendo percorrido a extensa fundamentação psicanalítica conjunta ao arcabouço de estudos antropológicos, sociológicos e urbanísticos para neste momento nos mostrar que as implicações da violência repercutem na maneira como criamos, transformamos ou condescendemos aos traumas que perpassam todos os lugares da cidade com maior ou menor exposição de seus corpos a depender do sucesso de expulsão de outros ou ao submetimento oneroso de sua segurança por meios crescentemente mais privados. Neste campo, Endo trará a discussão da espetacularização das violências e a insistência midiática em expor o sofrimento sem pudores de vítimas caladas por seu próprio poder de imagem. O pensamento e a discussão do sofrimento dos envolvidos numa chacina preenche mal o espaço comercial da foto de seus corpos perfurados na primeira página do jornal de uma terça-feira qualquer. É neste ponto em que Endo se insere no cotidiano das periferias para, com o pensamento sobre os campos de concentração, mostrar como o gesto solidário neste e naquele tempo preservam o ego de uma conseqüente mortificação, essa assumida no momento em que "sobreviver supõe, neste caso, abdicar das condições que possibilitam o viver" (Endo, 2005, p. 239). Sobrevive-se ao regime de morte às custas da vida.
Uma das conseqüências que Endo nos mostra da articulação entre mídia e público será o surgimento de um pacto estritamente violento e autogerido por ambos. Sabe-se que o objetivo de uma mídia é manter o consumidor 'consumindo', em última instância, não podendo haver espaço para o surgimento de interesses que interrompam a dupla TV – espectador no sofá, e, neste campo, tudo vale para que o espectador goze na relação. É neste lugar que se insere a violência em meio a tantos outros assuntos (esportes, música, política...) reduzidos a formatos assimiláveis e digeríveis enquanto mantenedores da relação decorrente daquela: imagem – impacto emocional. E o que seria melhor do que a finitude, a violência e a morte para atingir essa meta? É exatamente o que Endo nos mostrará quando nos remete à profusão de imagens de corpos sendo tocados de todas as maneiras possíveis e a concorrência das mídias em conseguir o maior furo, a maior catástrofe. O que preocupa é que "o sujeito pode ser aniquilado, não por assistir à TV ou ler jornais, mas por admitir que tudo o que ele vê, lê ou ouve quer apenas agradá-lo" (Endo, 2005, p. 254). Associado a isso, vemos que é essencial a ausência do pensamento nesse vínculo, algo que poria o sujeito para fora da relação por via da crítica. De fato, é o que encontramos na exibição de imagens heterogêneas, tornadas homogêneas por seu formato de contigüidade, e, para além disso, crucial para que este sistema não se rompa, que ele não deixe espaço-tempo para o pensamento dar conta de algo que experienciou (p. ex. "e eu?
O que acontecerá com isto que estou sentindo?" (Endo, 2005, p. 247)), e saiba como escamotear seus meios de funcionamento, cuja transparência evocaria a reflexão de maneira quase que imediata.
Pode-se imaginar que a violência que enseja o estabelecimento de vínculos sadomasoquistas e a produção de sofrimentos psíquicos está vinculada a ausência de mecanismos de reconhecimento público e social. Apenas esses poderiam acolher tais desejos de morte procurando "aliá-los às formas de ligação não destrutivas, capazes de contribuir na sublimação individual e coletiva da pulsão de morte" (Endo, 2005, p. 289).
Um desses mecanismos é o testemunho. Por meio da recusa à convivência com o traumático, ele aparece como meio radicalmente transformador que, frente ao excessivo, traz uma fala singular, própria e compartilhada, na qual a escuta tem papel central. Como já advoga a psicanálise, é ela que dará força ao que é dito, esclarecendo o que deve ser ouvido. É por ela que haverá partilha, compromisso e cumplicidade.
O testemunho também funcionará como contraponto às falas herméticas e repetidas que são pronunciadas pelos poderes públicos, pelas vítimas e pelas corporações policiais. Estes, num discurso permeado pelo sarcasmo, pela mera descrição e pelo espetáculo, se autorizam a afirmar uma verdade definitiva sobre o que é a violência, a dor e o crime. O equívoco de seus ditos é que estes já nascem sepultados, uma vez que não tem uma interlocução com a população atingida e envolvida pelos abusos.
Paulo Endo acompanhou as atividades do Fórum em Defesa da Vida, Contra a Violência, do Jardim Ângela nos anos 2000 a 2002. Lá pode presenciar outra forma pública e política de relação com a violência urbana. Todos os anos, no dia de finados, o Fórum organiza uma caminhada pela vida e pela paz. Nela os sujeitos absolutamente expostos à violência "recusam o isolamento e o emudecimento, reivindicando a palavra num lugar onde ela pode ser ouvida" (Endo, 2005, p. 275). Num ambiente livre dos constrangimentos de uma fala solitária, as milhares de mortes injustas e arbitrárias ganham memória e espaço, dando continuidade a luta por uma cidade segura e justa, na qual os vínculos solidários falem mais alto do que o individualismo daqueles que se preocupam apenas com a própria segurança.
Por fim, Endo dialoga com hipóteses do filósofo italiano Giorgio Agamben, presentes no livro "O Poder Soberano e a Vida Nua". Esse autor argumenta que a exceção, ao contrário do que se afirma, é fenômeno inscrito e interno à aplicação da norma. Esta serviria para instituir condições políticas para que haja a exceção. E, no estado de exceção, haveria espaço para o exercício absoluto da vontade do soberano e autorização para todo e qualquer excesso sobre seus subordinados. Um exemplo típico seria a figura do homo sacer no direito romano, que seria ao mesmo tempo insacrificável e matável. Este teria uma vida nua, uma vez que poderia ser exterminado sem qualquer ônus pessoal, social ou político, tendo assim um corpo traumatizável, violável e torturável.
Na trilha de Agamben, Endo vê proximidades desse pensamento com "Totem e Tabu". Nessa obra, Freud pensa no pai da horda que tem poder de vida e de morte sobre seus filhos e que posteriormente é morto por eles. Tal pai se faz novamente presente na vida nua uma vez que o assassinato primordial retorna psiquicamente nos filhos como sentimento de culpa, pulsão de morte e instância superegóica, dando persistência ao medo, a autodepreciação e a obediência. Em contato com os elimináveis da sociedade os filhos colocam em suspenso a instância paterna superegóica e repetem a lógica tirânica e sádico anal na qual não incide nenhuma castração. Exercem seu poder aniquilador sobre o corpo do homo sacer, sobre aquele que, segundo a própria norma, pode ser eliminado.
Cremos que Endo, após essas preciosas reflexões, atingiu o principal objetivo que se propôs na escrita do livro: "repercutir e ser de algum modo instrumentado por aqueles que vivem e reconhecem a dimensão da violência na cidade com crueza, constância e sem atenuantes" (Endo, 2005, p. 266). Ao apresentar um quadro perturbador da cidade e completá-lo com originalidade e pertinência, também contribui na batalha diária por uma cidade mais cidadã.
Elisabeth Roudinesco (2009), em entrevista concedida ao Estado de São Paulo aponta que no âmbito da psicanálise, o Brasil tem se mostrado um dos países menos conservadores ao fugir de um dogmatismo centrado na clínica e mostrar um interesse da psicanálise por assuntos sociais. Se pensarmos na profundidade e pertinência da obra de Paulo Endo, certamente ela tem razão.
Referências
Agamben, G. (2002). O Poder Soberano e a Vida Nua. Belo Horizonte: Editora UFMG. [ Links ]
Barcellos, C. (2008). Rota 66: A História da Policía que Mata. Rio de Janeiro: Record. [ Links ]
Caldeira, T. (2000). Cidade de muros - Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34. [ Links ]
Endo, P. (2005). A Violência no Coração da Cidade: um Estudo Psicanalítico. São Paulo: Escuta. [ Links ] Freud, S. (1974). História da Neurose Infantil (Homem dos Lobos). Pequena Coleção Obra de Freud, v. 26. Rio de Janeiro: Imago Editora. (Trabalho original publicado em 1918) [ Links ]
Freud, S. (1974). Totem e tabu. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 13. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913) [ Links ]
Freud, S.; Fliess, W. (1986). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887-1904). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Fix, M. (2001). Parceiros da Exclusão. São Paulo: Boitempo. [ Links ]
Paulino, V. (2008). Guerra ao Pobre: a História de Sandro, negro, pobre e favelado. Observatório das Violências Policiais – SP. Recuperado em 16 de novembro de 2009 de: http://www.ovp-sp.org/denuncia_sandro_sapopemba.htm
Roudinesco, E. (2009). Psicanálise é a medicina da alma do nosso século. Artigo de Jornal. O Estado de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. Recuperado em 16 de novembro de 2009 de: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,psicanalise-e-a-medicina-da-alma-do-nosso-seculo,437434,0.htm [ Links ]
1 Graduação em Psicologia, endereço eletrônico: jardineiro_01@yahoo.com
2Graduação em Psicologia.