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Psicologia Ensino & Formação

versão impressa ISSN 2177-2061

Psicol. Ensino & Form. vol.4 no.2 Brasília  2013

 

ARTIGOS

 

Violência sexual contra crianças e adolescentes: contribuições da Psicologia no processo de prevenção

 

Sexual violence against children and adolescents: the contributions Psychology can make to prevention processes

 

 

Renata Maria Coimbra Libório

Universidade Estadual de São Paulo. Doutora em Psicologia do Desenvolvimento Humano (USP). coimbralibor@uol.com.br

 

 


RESUMO

Este artigo é um relato de experiência e tem como objetivo refletir sobre práticas de extensão em escolas públicas municipais e estaduais voltadas à prevenção de abuso e de exploração sexual de crianças e adolescentes. Essas práticas foram desenvolvidas com profissionais da área da Educação e também com profissionais de serviços de atenção terciária. As reflexões decorrentes se assentam em dois projetos de extensão com foco na prevenção da violência sexual: um com as crianças do ciclo I do ensino fundamental de escolas públicas, em parceria com as Secretarias Municipais de Educação e Assistência Social e com a Vara da Infância e Juventude; e outro com adolescentes do ciclo II do ensino fundamental. Serão descritos, portanto, projetos de formação continuada que, embora tenham sido realizados com profissionais da Educação, valem-se de conhecimentos advindos da Psicologia e podem subsidiar práticas de psicólogos comprometidos ética e legalmente com os direitos da população infantojuvenil, atuantes em Psicologia Clínica, Social, Escolar e no Sistema Judiciário. Por meio dos projetos, confirmou-se a necessidade de inserir, na formação dos profissionais de Educação e Psicologia, a discussão de temas como: direitos da criança e do adolescente, protagonismo infantojuvenil e políticas públicas sociais.

Palavras-chave: Abuso Sexual; Exploração Sexual; Projetos de Intervenção.


ABSTRACT

This experience report presents and discusses extension practices in state and municipal government-run schools aimed at curbing and preventing sexual abuse and exploitation of children and adolescents. These practices were developed alongside education professionals and others working in tertiary care services for minors. The reflections they gave rise to are based on two specific extension projects: one targeting children in early primary education in government schools and unfolded through a partnership arrangement with the Municipal Education and Social Assistance Department and the Special Court for Childhood and Adolescence; and the other with adolescents in lower secondary education. A description is made, therefore, of continuing education projects, which, in spite of their being carried out with Educators, actually draw on knowledge from the field of psychology and could very well subsidize the practice of psychologists ethically and legally committed to the rights of the child/adolescent population and working in the fields of Clinical, Social or, School Psychology, or in the Judiciary system. The projects confirmed the need to insert into the qualification processes of Educators and Psychologists alike, a discussion of themes such as: child and adolescent rights, child-adolescent protagonism and public social policies.

Keywords: sexual abuse, sexual exploitation, intervention projects, psychologist qualification.


 

 

1 INTRODUÇÃO

O debate sobre a violência sexual, promovido por áreas das Ciências Humanas, é enriquecedor e necessário. Propicia reflexões para vários níveis de enfrentamento do fenômeno, desde a dimensão da prevenção e do atendimento a crianças, adolescentes e suas famílias, até a responsabilização dos agressores sexuais.

No início dos anos 90, a publicação do livro-denúncia Meninas da noite (1992), escrito pelo jornalista Gilberto Dimenstein, deu grande visibilidade ao fenômeno da violência sexual, ao discutir o tráfico de crianças e adolescentes no norte do país. Tal discussão originou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da prostituição infantojuvenil em 1993. Essa iniciativa evidenciou a necessidade de ações no cenário brasileiro, como apurar crimes contra a infância e envolver a academia na produção e na sistematização de conhecimentos sobre o tema, para enfrentar e prevenir o fenômeno.

Mesmo que o tema da prostituição (exploração sexual) tenha dado visibilidade à violência sexual no Brasil, o abuso sexual passou a ser revestido da mesma importância e se tornou objeto de preocupação naquele período. A sociedade brasileira tem se mobilizado visando ao combate dessa grave violação de direitos (PAIXÃO; DESLANDES, 2010; SANTOS, 2011). No entanto, mesmo que tenha havido avanços, persistem as barreiras para um pleno enfrentamento do problema.

Podem ser apontadas as seguintes razões para permanência do problema: a subnotificação dos casos por parte de profissionais de áreas como Educação, Medicina, Psicologia; a conivência dos menores com os abusadores sexuais; aspectos culturais como a representação do sexo feminino; a desvalorização do discurso da criança; a força da argumentação do agressor (LIBÓRIO; CAMARGO; SANTOS; SANTOS, 2007). Infelizmente, em muitos casos, o abuso sexual fica encoberto pelo "muro de silêncio" imposto pela família ou por valores morais e sociais. As crianças e adolescentes não encontram meios de se defender contra os abusadores (INOUE; RISTUM, 2008; PIETRO, 2007). Para enfrentar o problema violência sexual, é fundamental discuti-lo no âmbito da formação inicial e continuada de profissionais das seguintes áreas: Psicologia, Direito, Serviço Social, Enfermagem, Medicina e Licenciaturas, conforme preconiza o Plano nacional de enfrentamento da violência sexual infantojuvenil (BRASIL, 2000).

 

2 ASPECTOS TEÓRICOS

A violência sexual, nas formas de abuso e exploração contra a população infantojuvenil, está presente em toda a história da humanidade, embora receba diferentes significados sociais a depender da época de sua manifestação – inclusive, nem sempre foi considerada violação aos direitos (ROBERTS, 1996; ECPAT, 2013).

Chauí (1999) explica que uma característica da violência é a transformação de sujeitos desejantes e racionais em meros objetos, explicitando a força das relações de poder assimétricas que sustentam as manifestações de violência sexual. Em suas palavras:

[...] violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão e intimidação, pelo medo e o terror. A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade, como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos e inertes ou passivos (CHAUÍ, 1999, s.p).

A expressão "violência sexual" abrange os conceitos de "abuso" e de "exploração sexual". Apesar de pouco clara a distinção entre ambos os conceitos, torna-se necessário esclarecer a terminologia aqui empregada.

O abuso sexual envolve o

uso de uma criança ou de um adolescente para gratificação sexual de pessoas mais velhas, através do uso de poder, podendo "abranger carícias, manipulação de genitália, mama ou ânus", podendo se expressar com contato físico (atos físicos genitais, que incluem uma variedade de situações como: relações sexuais com penetração vaginal, tentativa de relações sexuais, carícias nos órgãos genitais, masturbação, sexo oral e penetração anal) e/ou sem contato físico (voyerismo, o exibicionismo, conversas abertas sobre atividades sexuais e telefonemas obscenos) (ABRAPIA, 1997, s.p).

Com relação à conceituação da exploração sexual, adota-se a definição da ECPAT1 (2013). Importante ressaltar que, como a ECPAT segue a Convenção dos direitos da criança da Organização das Nações Unidas (ONU), o termo "criança" presente nas definições abrange o que no Brasil se entende por crianças e adolescentes, ou seja, pessoas de 0 a 18 anos:

A exploração sexual comercial de crianças (Esca) é uma violação fundamental dos seus direitos. Essa exploração tem existido ao longo da história, mas é somente em décadas recentes que a escala desses crimes tem chamado a atenção de governos e público em geral. A Esca compreende o abuso sexual quando existe remuneração em dinheiro ou espécie para a criança ou uma terceira pessoa. A criança é tratada como objeto sexual e comercial (ECPAT, 2013, s/p).

Existem várias modalidades de Esca. Apresenta-se, a seguir, a descrição das principais formas segundo a ECPAT (2013) (podem ser encontradas em seu site internacional - http://www.ecpat.net/faqs#csec):

Prostituição: implica o uso da criança em atividades sexuais em troca de remuneração ou outra forma de compensação. (...) Comumente a prostituição infantil pode ser organizada por uma pequena ou grande rede de cafetões ou grupos criminais. Entretanto, crianças também podem estar sendo exploradas na prostituição quando atos sexuais são trocados por bens e serviços tais como abrigo, comida, roupa, drogas ou melhores notas na escola. Em todos os casos, os abusadores estão explorando as vulnerabilidades da criança para sua própria gratificação (ECPAT, 2013, s/p).

Pornografia infantil: significa qualquer forma de representação de uma criança (real ou virtual) engajada em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou qualquer representação de uma criança para fins primordialmente sexuais. O uso generalizado e o desenvolvimento da internet e outras novas tecnologias expõem jovens, cada vez mais, a situações potencialmente exploratórias e têm ampliado a distribuição e compartilhamento de imagens abusivas. A produção, disseminação ou visualização de pornografia infantil é um abuso sexual e viola a dignidade e direitos da criança (ECPAT, 2013, s/p).

Tráfico para fins sexuais: refere-se ao recrutamento, transporte, alojamento, transferência ou recebimento trans-fronteiriço ou interno de crianças para fins de exploração sexual (ECPAT, 2013, s/p).

Exploração sexual no contexto do turismo: ocorre quando um indivíduo viaja, seja dentro de seu próprio país ou para o exterior e com a finalidade de se engajar em atos sexuais com crianças. Turistas sexuais são os abusadores preferenciais os quais deliberadamente buscam crianças para fins sexuais ou podem ser abusadores ocasionais que têm atos sexuais com crianças estimulados pela oportunidade ou sensação de anonimato, como resultado de estar longe de casa (ECPAT, 2013, s/p).

Na Convenção 182 (2000) da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre as piores formas de trabalho infantil, são citadas várias atividades associadas à exploração sexual. Nesse sentido, a Esca deve também ser concebida como uma forma de trabalho sexual infantojuvenil, que pode ter caráter agenciado (quando existem claramente outros indivíduos ou redes de exploradores sexuais que obtêm lucros), conforme se pode ver em Santos (2011).

Com relação aos marcos de mobilização social de enfrentamento à violência sexual no Brasil e no mundo, apontam-se:

a) em 1993, no Brasil, a CPI da prostituição infantojuvenil foi criada tendo como base o livro-denúncia de Gilberto Dimenstein Meninas da noite2, como já citado;

b) em 1996, ocorreu, em Estocolmo (Suécia), o I Congresso mundial contra a exploração sexual comercial de crianças, que conclamou o mundo para lutar contra um fenômeno em expansão; dentre suas determinações, sugeriu-se a criação de planos nacionais para o enfrentamento à violência sexual;

c) em junho de 2000, em Natal (RN), o Brasil elaborou o Plano nacional de enfrentamento da violência sexual infantojuvenil;

d) em 2000, foi aprovada a data nacional de luta contra a violência sexual no Brasil, o dia 18 de maio (Lei Federal no 9.970, que institui o dia nacional de combate ao abuso e à exploração sexuais de crianças e adolescentes);

e) em 2001, o governo federal criou o programa de combate ao abuso e à exploração sexual comercial, conhecido como Programa sentinela, cujos atendimentos atualmente ocorrem dentro do contexto dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) – no interior dos quais podem atuar psicólogos; também em 2001, foi instalado o Comitê nacional de enfrentamento à violência sexual, com o objetivo de monitorar as ações de combate em todo o país e promover ações articuladas;

f) em dezembro de 2001, ocorreu, em Yokohama (Japão), o II Congresso mundial contra a exploração sexual comercial de crianças, que avaliou as ações mundiais travadas a partir do I Congresso e verificou que muitos países haviam construído planos nacionais e que o próximo passo seria colocá-los em prática;

g) em 2003, o Brasil criou a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), com o intuito de averiguar mais uma vez os crimes envolvendo a exploração sexual infantojuvenil;

h) em dezembro de 2008, na cidade do Rio de Janeiro, foi realizado o III Congresso mundial de enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes, que avaliou os avanços obtidos nos anos anteriores e fez apontamentos para os próximos anos em razão do aumento da exploração sexual, que tem obtido novos contornos devido ao uso de tecnologias3.

Com relação ao Plano nacional de enfrentamento da violência sexual infantojuvenil (BRASIL, 2000), participaram de sua elaboração representantes do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público, de órgãos dos Executivos federal, estaduais e municipais, de ONGs brasileiras e internacionais, assim como representantes juvenis e integrantes dos Conselhos Tutelares e do meio acadêmico. O Plano nacional foi aprovado na Assembleia ordinária do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) em 12 de julho de 2000.

O Plano nacional estabeleceu as diretrizes para as intervenções técnica, política e financeira no enfrentamento da violência sexual, organizadas em seis eixos estratégicos (BRASIL, 2000), apresentados a seguir de forma articulada com seus principais objetivos: 1) análise da situação (diagnosticar e caracterizar o fenômeno em todo o país); 2) mobilização e articulação (comprometer a sociedade civil, por meio de articulações nacionais e regionais, com o combate à situação); 3) defesa e responsabilização (empreender esforços na responsabilização dos agressores sexuais e na defesa da criança e do adolescente); 4) atendimento (efetuar e garantir atendimento especializado em rede a crianças e adolescentes expostos à violência sexual e a suas famílias, realizado por profissionais especializados e capacitados); 5) prevenção (desenvolver ações preventivas contra a violência sexual e fortalecer a autodefesa de crianças e adolescentes); 6) protagonismo juvenil (promover a participação ativa de crianças e adolescentes na defesa de seus direitos e na execução de políticas de proteção de seus direitos).

Tendo como referência os eixos apresentados acima, fica evidente a contribuição dos profissionais da Psicologia, inseridos nas diversas áreas de atuação, em ações significativas para a promoção dos eixos apontados, em especial no âmbito do atendimento, da prevenção e do protagonismo juvenil. No que concerne aos dois últimos, destaca-se também o papel da escola e dos educadores no enfrentamento da violência sexual.

Com relação à proteção de crianças e adolescentes abusados sexualmente, deve-se lembrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 2000) é um marco fundamental para orientar a sociedade sobre como proceder nos casos de suspeita ou de confirmação de maus-tratos e violação de direitos, pois estabelece os deveres da sociedade, no artigo 4o:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (ECA, 2000, p. 13).

Além desse artigo, o ECA também estabelece a obrigatoriedade de denúncia por parte dos profissionais da Educação e Saúde nos casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos, prevendo multas para omissões. Psicólogos também devem ser incluídos nessa categoria. Além da necessidade de se comprometer com a denúncia, com base em suspeita ou em confirmação, de violência cometida contra seus alunos, as escolas devem desenvolver ações na área da Educação Afetivossexual, previstas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), dentro do tema transversal Orientação sexual. É nesse contexto da prevenção que se inserem os projetos de intervenção apresentados neste artigo, projetos cujo foco foi o desenvolvimento de condutas de autoproteção em crianças e adolescentes.

O objetivo dos trabalhos de prevenção ao abuso sexual é fomentar a autoproteção, com a elevação da autoestima e a valorização da autoimagem das crianças e dos adolescentes, fortalecendo suas identidades. Além disso, esses trabalhos pretendem ensiná-los

o que constitui um toque sexual adequado, não invasivo e não doloroso, para que a criança/adolescente possa identificar e responder/reagir de maneira satisfatória e eficaz em possíveis situações abusivas atuais ou no futuro, levando a criança a aprender como identificar os microssinais que indiquem que uma situação caracteriza-se como abuso sexual (SILVA; SOMA; WATARAI, 2011, p. 44).

A reação/resposta à violência sexual requer que se ensine aos menores o direito de serem protegidos quando se sentem violentados, estimulando-os a buscar ajuda de terceiros quando essas situações os angustiam. Nesse sentido, compartilha os referenciais da Sociologia da Infância (SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS, 2007), bem como os da Convenção dos Direitos da Criança da ONU (1989), que percebem as crianças e os adolescentes como atores sociais, cujo direito à participação social é imprescindível para chegar à condição de protagonistas de suas lutas. Deve ficar claro que a defesa da participação das crianças e dos adolescentes (pela autoproteção, pelo engajamento autônomo e pela busca de ajuda em situações de violação) não elimina a função do Estado, das famílias e das comunidades de protegê-los. Essa proteção externa requer, nos casos de violação de direitos, tanto ações preventivas quanto reparadoras. Dessa forma, ressalta-se que não cabe à criança ou ao adolescente isoladamente assumir a responsabilidade de sua própria proteção, pois os agentes que farão a denúncia formal ao Conselho Tutelar são os profissionais ou as pessoas para quem a violência foi revelada.

Além de considerar esses argumentos, as ações de intervenção apresentadas a seguir se fundamentaram nas diretrizes do Plano nacional (2000), em especial nos eixos da prevenção e do protagonismo infantojuvenil (eixo que se articula com o desenvolvimento da participação ativa das crianças e dos adolescentes na defesa de seus direitos), e foram desenvolvidas no âmbito da formação inicial e continuada de profissionais da Educação e da Assistência Social, especificamente de educadores sociais que atuam nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras).

A preocupação em desenvolver projetos de intervenção com profissionais da Educação se justifica, pois pesquisas apontam a dificuldade em notificar denúncias de maus-tratos, dentre os quais o abuso sexual, contra crianças e adolescentes. Isso se deve à falta de formação oferecida em cursos de licenciatura ou de formação contínua (BRINO; WILLIANS, 2003a; BRINO; WILLIANS, 2003b; CAMARGO; LIBÓRIO, 2005; COSTA, 2008; CUNNINGHAM; SAS, 1995; FINKELHOR, 1986; FURNISS, 1993; HAZZARD, 1984; LIBÓRIO et al, 2007; MARTINS, 2002; PIETRO, 2007; SANTOS, 2011).

De forma convergente, os estudiosos citados defendem políticas públicas de educação com diretrizes que contenham estratégias de formação inicial e contínua que tratem a violência sexual contra crianças e adolescentes, constituindo um espaço de proteção à infância e à adolescência. Do mesmo modo, esse tema deve fazer parte do currículo dos cursos de Psicologia, na medida em que os psicólogos que atuarão, por exemplo, nos contextos educacionais, comunitários/sociais, judiciário e clínico, certamente vão se deparar com situações de atendimento envolvendo violência sexual.

A discussão da violência sexual requer debates sobre temas mais amplos na formação inicial de psicólogos. Sugere-se, assim, grades curriculares com disciplinas cujos conteúdos abordem estes pontos: direitos das crianças e dos adolescentes; sistemas de proteção a eles dirigidos; políticas públicas sociais voltadas a esse público, uma vez que a prevenção e o atendimento de qualidade aos vitimados requerem ações interdisciplinares; concepções sobre protagonismo infantojuvenil que problematizem teorias de desenvolvimento humano com caráter universal, as quais tendem a naturalizar e não contextualizar as condições de desenvolvimento na contemporaneidade.

 

3 FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS E O ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL

Como as intervenções descritas aqui remetem à prevenção da violência sexual, serão apresentadas informações sobre os números atuais de denúncia desses casos no Brasil e sobre pesquisas a respeito da formação de profissionais da Educação para a prevenção da violência sexual – em destaque, o projeto Escola que protege, criado pela Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação (Secad/MEC). Também serão apresentados estudos analisados por Brino e Willians (2008) sobre a eficácia de projetos de autoproteção com crianças pequenas.

Os dados estatísticos apresentados neste artigo são do levantamento feito pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH), que anualmente lança informações de denúncias de abuso e exploração sexuais (dentre outras informações de violações de direitos) por meio do serviço Disque 100. Esse serviço de disque denúncia nacional de abuso e exploração sexuais contra crianças e adolescentes é coordenado e executado pela Secretaria Direitos Humanos da Presidência da República. Por meio desse serviço, o usuário pode denunciar violências contra crianças e adolescentes, colher informações sobre o destino de crianças e adolescentes desaparecidos – independentemente de suas idades – e obter informações sobre os Conselhos Tutelares.

Segundo os dados divulgados pela SDH (2014) com relação aos casos de denúncia de abuso sexual no Brasil, no ano de 2012, foram recebidas 31.551 denúncias; em 2013, foram denunciados 26.613 casos; e, em 2014, até o mês de abril, constavam 6.106. Os números referentes às denúncias de Esca são menores em todos os anos, embora não menos preocupantes. No ano de 2012, foram registrados 8.080 casos de denúncia; em 2013, 7.217; e, em 2014, até abril, tinham sido computados 1.669. Uma hipótese para essa diferença nos números pode se dever ao menor comprometimento com a defesa de adolescentes, por se acreditar que eles têm mais chances de se autoproteger da Esca (comparada ao abuso sexual) e por se responsabilizar, em certos casos, os próprios menores pela violência sexual sofrida (LIBÓRIO; CAMARGO; SANTOS; SANTOS, 2007).

Brino e Willians (2008), ao analisar os programas de prevenção primária do abuso sexual realizados com crianças pequenas, identificaram que o início desses programas ocorreu na década de 1970 nos Estados Unidos. Tais programas estão em crescimento até hoje naquele país. Entretanto, as autoras apontam que há poucos estudos publicados sobre esse tema no Brasil. Segundo elas, trabalhos divulgados entre 1982 e 1990 por pesquisadores internacionais constataram que, quando esses programas com as crianças desenvolvem propostas com uso de modelos, exposição e encorajamento sociais – aproximações comportamentais –, as crianças de 0 a 6 anos são capazes de aprender habilidades de defesa, desenvolvendo, assim, o que se chama de condutas de autoproteção.

Muitos dos programas analisados por Brino e Willians (2008) abordam conceitos relativos ao domínio do corpo, à questão dos toques e à possibilidade de dizer "não", visando a desenvolver a consciência das crianças quanto à necessidade de buscar ajuda, de forma que indiretamente essas crianças fortaleçam sua autoestima, o conhecimento de si e a percepção de que podem se proteger quando sofrerem violências. O projeto analisado neste artigo se fundamenta nas mesmas premissas.

Além dos programas desenvolvidos diretamente com as crianças, por meio de dramatizações, filmes, leituras de histórias, os pesquisadores que desenvolveram os estudos mencionados por Brino e Willians (2008) reconhecem que programas voltados à prevenção do abuso sexual infantil devem envolver profissionais da Educação. Esses profissionais podem colaborar na identificação de casos suspeitos e, portanto, na proteção. Os pesquisadores sugerem ainda envolvimento dos pais nessa discussão, tema que não será abordado neste artigo por não ser o foco deste trabalho.

O envolvimento de profissionais da Educação na prevenção de situações de violência sexual é fundamental, afinal a escola é o local onde a maioria das crianças passa a maior parte de sua vida. Além disso, a escola é espaço formativo, voltado não só a conteúdos escolares. A defesa dessas ações é feita por diversos autores, conforme podemos ver na literatura da área (BRINO; WILLIANS, 2003a; 2003b; LIBÓRIO; CAMARGO; SANTOS; SANTOS, 2007; PIETRO, 2007; BRINO; WILLIANS, 2008; FALEIROS; FALEIROS, 2008; SANTOS, 2011).

No Brasil, a relevância do espaço escolar como lócus privilegiado de prevenção do abuso sexual foi reconhecida pelo MEC em 2004, quando, em parceria com a Secad, criou o projeto Escola que protege, destinado a capacitar profissionais de escolas de ensinos fundamental e médio para atuarem na prevenção e intervenção de situações de violência contra crianças e adolescentes. Segundo Faleiros e Faleiros (2008), em 2006, a Secad/MEC estabeleceu como prioridade a formação de professores e profissionais da Educação para garantir os direitos de crianças e adolescentes, e firmou parceria com universidades federais e estaduais para isso. No portal do MEC é possível localizar todas as universidades que adotaram o projeto Escola que protege. Deve ser destacado que, entre essas universidades, a maioria aderiu ao projeto por meio de seus Departamentos de Psicologia, reforçando a pertinência desse campo do saber na prevenção da violência sexual.

Ao fazer um levantamento da implantação do projeto Escola que protege em vários estados, de uma forma geral, os pesquisadores o avaliaram positivamente, como pode ser visto em Pedrosa (2011), no estudo realizado em Fortaleza; em Francischini e Souza Neto (2007), em Natal; em Morgado (2008), que conduziu o projeto no Rio de Janeiro; em Silva, Lopes e Carvalho (2008), no Paraná; e em Filha, Meza, Amorin, Motti e Damasceno (2008), no Mato Grosso do Sul.

Para Morgado (2008), as ações qualificaram a compreensão e a análise dos professores da rede pública sobre as diferentes formas de violação de direitos. Eles passaram a se perceber como elementos primordiais na rede de proteção e reconheceram o papel de destaque no encaminhamento de denúncias. Pedrosa (2011) aponta que, apesar de continuarem existindo obstáculos ao enfrentamento da violência sexual em razão das posturas de gestores escolares e de dificuldades no relacionamento entre escolas e Conselhos Tutelares, os profissionais que participaram do Escola que protege o avaliaram positivamente por ter havido mudanças nas ações de identificação e notificação das violências, bem como nas práticas pedagógicas.

Além das ações de formação em vários estados brasileiros associados ao Escola que protege, ações avaliadas positivamente, é possível encontrar nas pesquisas de mestrado de Pietro (2007) e Santos (2011) experiências bem-sucedidas na área de Formação de Profissionais da Educação, que visaram à prevenção e ao enfrentamento da violência sexual. Ambas as autoras desenvolveram programas de intervenção com metodologias participativas, por meio de discussões de textos, debates sobre filmes e casos práticos, tanto na formação em serviço desses profissionais (PIETRO, 2007) quanto na formação inicial, com alunos de Pedagogia e demais licenciaturas (SANTOS, 2011).

Pietro (2007), ao concluir seu trabalho, constatou que os profissionais que participaram dos encontros de formação se sentiram satisfeitos e sugeriram a repetição do programa em outros contextos. A autora destaca que seu objetivo principal, criar estratégias para fortalecer a denúncia de abuso sexual e legitimar o papel de proteção assumido pelas escolas, foi alcançado, pois muitos educadores disseram ter se tornado mais sensíveis aos indicadores de abuso sexual e reconheceram seu compromisso profissional na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Santos (2011), em pesquisa com licenciandos da Unesp de Presidente Prudente, pretendeu verificar o conhecimento sobre violência sexual contra crianças e adolescentes, aplicando aos graduandos um programa de intervenção para formação inicial sobre a temática. A pesquisa foi dividida em duas etapas. Na primeira fase, participaram 159 estudantes dos cursos de licenciatura em Educação Física, Física, Geografia, Matemática, Pedagogia e Química, que responderam a questionário sobre o tema. Os resultados demonstraram que esses alunos tinham pouco conhecimento sobre a violência sexual, embora algumas concepções apresentadas não estivessem de acordo com os estudos da área. A segunda fase visou a elaboração, aplicação e avaliação de um programa de intervenção para alunos das licenciaturas, que contou com a participação inicial de 26 estudantes dos cursos de Educação Física, Física e Pedagogia. Após intervenção realizada em vários encontros, avaliou-se essa intervenção, a qual evidenciou mudanças no conhecimento dos futuros professores sobre abuso e exploração sexuais, bem como nas atitudes desses sujeitos em relação à suspeita de casos de violência sexual e à identificação dos indicadores específicos de exploração sexual – reconhecidos mais facilmente do que os indicadores de abuso sexual.

Pelo exposto, depreende-se que as estratégias de formação de profissionais da Educação, sejam elas oferecidas no momento inicial, no curso universitário ou no serviço profissional, podem ser viáveis e bem-sucedidas, aumentando a proteção de crianças vulneráveis à violência sexual. A constatação desses resultados aponta um caminho profícuo em termos de ações de enfrentamento da violência sexual, que depende certamente dos conhecimentos produzidos pela área da Psicologia.

A metodologia de trabalho desenvolvida nos projetos de intervenção relatados e propostos neste artigo foi inspirada nos trabalhos de Pietro (2007) e Santos (2011). A seguir, serão apresentadas informações sobre os projetos de intervenção desenvolvidos com professores e educadores sociais em formação continuada que trabalham com crianças de 5 a 11 anos. Estes projetos também são desenvolvidos com os licenciados de Pedagogia (formação inicial). Além disso, será exposta uma proposta de trabalho com adolescentes (ainda em desenvolvimento).

 

4 CONTEXTO E APRESENTAÇÃO DOS PROJETOS DE INTERVENÇÃO

As pesquisas e intervenções realizadas no grupo de pesquisa "Educação, desenvolvimento humano em situação de risco e indicadores de proteção" entre 2005 e 2012 envolveram parceria com as Secretarias Municipais de Educação e Assistência Social, Conselhos Tutelares, Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), Vara da Infância e Juventude. Materializaram-se em pesquisas de mestrado, projetos de extensão universitária (formação continuada) e conteúdo de aulas para licenciandos da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp (formação inicial), além de ações de mobilização social nas datas de 18 de maio (dia nacional de enfrentamento à violência sexual), feitas anualmente desde 2002.

 

5 PROJETOS DE DESENVOLVIMENTO DE CONDUTAS DE AUTOPROTEÇÃO COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES

A primeira intervenção, realizada na forma de um curso de capacitação, intitula-se Desenvolvimento de condutas de autoproteção. Foi efetuada com profissionais da rede municipal de ensino, incluindo professores, gestores e coordenadores pedagógicos vinculados à Secretaria Municipal de Educação, e com educadores sociais dos Cras do município de Presidente Prudente. A formação em serviço na área da violência sexual teve carga horária de 30 horas e visou ao conhecimento e à sensibilização sobre o tema, além da capacitação para implantação de um programa de prevenção ao abuso sexual, por meio do desenvolvimento de condutas de autoproteção.

A intervenção contou com a parceria da Secretaria Municipal de Assistência Social, por meio da participação da coordenadora do Creas à época, Viviane Rodrigues, e da Secretaria Municipal da Educação, que divulgou o curso para os profissionais da rede municipal de ensino, englobando educação infantil e ciclo I do ensino fundamental. Por meio da intervenção, ofereceu-se um curso de capacitação para 25 pessoas, incluindo professores, diretores e coordenadores pedagógicos que atuavam nas escolas municipais, e para 30 educadores sociais atuantes em projetos sociais. A intervenção foi oferecida, concomitantemente, em dois turnos: às quartas-feiras à noite, para os profissionais da Secretaria Municipal de Educação; e às sextas-feiras de manhã, para os 30 educadores sociais da Secretaria de Assistência Social.

 

6 METODOLOGIA

Durante o curso de capacitação, adotou-se metodologia que visou não só à transmissão de conhecimentos teóricos, mas também à sensibilização dos profissionais sobre a problemática da violência sexual. Dessa forma, foram realizados 15 encontros de três horas, com discussão teórica e com a apresentação de filmes e documentários referentes ao tema do abuso sexual. Além disso, apresentou-se e aplicou-se de forma prática, por meio de dinâmicas de grupo, a proposta desenvolvida por Maggie Escartín (2003), divulgada pela ONG Save the children. Essa proposta se caracteriza como um programa de prevenção ao abuso sexual contra crianças – Desenvolvimento de condutas de autoproteção, para crianças entre 6 e 11 anos. O principal objetivo da proposta de Escartín é desenvolver a autoproteção por meio de ações que elevem a autoestima e valorizem a autoimagem de crianças, para que possam aprender a reagir diante de uma situação de risco, abuso sexual ou outras formas de violência.

Tal programa apresenta uma apostila contendo uma descrição detalhada dos conteúdos e dinâmicas dos encontros com as crianças, divididos em três módulos:

Módulo 1: "quem sou eu" – aprender a conhecer a si mesmo e seus sentimentos; a dizer o que pensa e sente; a fazer valer seus direitos; a pedir ajuda.

Módulo 2: "este é o meu corpo" – aprender a conhecer seu espaço; a reconhecer situações de perigo; a conhecer seu corpo; a pedir ajuda.

Módulo 3: "eu tenho o direito de me sentir seguro" – aprender a diferenciar entre bons e maus segredos; a dizer "não"; a fazer valer seus direitos; a pedir ajuda.

As atividades têm caráter lúdico e pedagógico; são de fácil aplicação. A implantação da proposta requer atuação em um semestre letivo. As atividades devem ser desenvolvidas uma vez por semana.

Ao final das intervenções, tanto com os 25 profissionais da Educação quanto com os 30 educadores sociais, avaliou-se o curso de capacitação por meio de questionário com perguntas abertas, no qual não havia necessidade de identificação dos respondentes. As respostas foram organizadas em termos de sua frequência e conteúdo. Em ambos os grupos, as avaliações foram muito positivas, especialmente no que se refere à qualidade da discussão dos temas e sua diversidade. Dentre os temas que os participantes mais gostaram de abordar, destacam-se a pedofilia, a apresentação dos indicadores de abuso sexual e a importância e as formas de denunciar e notificação. Sobre a metodologia, eles valorizaram a sensibilização e a reflexão propiciadas pelos filmes. Os profissionais afirmaram que a apostila tem ótimo conteúdo e fácil aplicação. Sua única limitação é o longo tempo exigido para as dinâmicas, tendo em vista a vasta carga de conteúdo pedagógico que deve ser ministrado no ano letivo. Apesar disso, todos os participantes apontaram a necessidade de continuidade de formação para prepará-los a ajudar as crianças a desenvolverem condutas de autoproteção.

Devido aos aspectos positivos levantados nos questionários, acredita-se que essa capacitação terá reflexos, em médio prazo, na melhoria dos processos de aprendizagem das crianças e no desenvolvimento de condutas de autoproteção, além de auxiliá-las a identificarem situações de risco e de prepará-las para buscar ajuda. Justifica-se essa afirmativa, pois a tônica das dinâmicas propostas na apostila discutida no curso é esta: auxiliar as crianças na identificação de potenciais agressores, na percepção de comportamentos indicadores de risco de abuso sexual e na localização de pessoas que possam ajudá-las. Portanto, no caso de os profissionais capacitados colocarem em prática os conteúdos trabalhados no curso, esse objetivo será atingido.

A outra proposta de formação em serviço teve início em 2011, a partir do encontro do dia 18 de maio. Foi concebida para dar continuidade à intervenção anterior, visando também ao desenvolvimento de condutas de autoproteção, no eixo da prevenção. Essa formação abrangeu inicialmente profissionais que atuavam no 5º ano do ensino fundamental do município e educadores sociais dos Cras. Atualmente, está em desenvolvimento na rede municipal de ensino, incluindo crianças do 3º ao 5° ano do ensino fundamental.

Esse projeto se baseia na proposta das psicólogas paranaenses Alessandra R. S. Silva, Sheila M. P. Soma e Cristina F. Watarai, que, com base no atendimento de crianças expostas ao abuso sexual no Creas, conceberam o livro infantil O segredo da Tartanina: um livro a serviço da proteção e prevenção contra o abuso sexual infantojuvenil (2011), acompanhado de um livro teórico voltado ao debate do tema e ao auxílio na condução da intervenção com crianças de 4 e 11 anos.

A cada semestre, essa proposta é submetida a avaliações coordenadas pela equipe técnica da Secretaria Municipal de Educação, por meio das quais se observam o grande envolvimento dos profissionais da Educação na realização da proposta e o sucesso da experiência. Nesses momentos de avaliação, as equipes pedagógicas das escolas que estão desenvolvendo o projeto O segredo da Tartanina apresentam relatos sobre o desenvolvimento das atividades, incluindo: nível de participação das crianças; repercussões na família; descrição das dinâmicas criadas pelas equipes, como confecção de bonecos e cartazes representando os personagens da história; dificuldades encontradas na implementação do projeto. Desde seu início, já se realizaram quatro encontros de avaliação.

Outra proposta promissora, ainda em fase inicial e em negociação com representantes das escolas públicas e particulares do ciclo II dos ensinos fundamental e médio que frequentam os projetos sociais municipais e as outras instituições de atendimento aos adolescentes do município, intitula-se O impacto das mídias na sexualidade dos adolescentes. Esse projeto teve início no primeiro semestre de 2013 como consequência do aumento de denúncias no Creas relativas a adolescentes de 12 a 14 anos que se fotografam nuas e compartilham suas fotos com amigos por meio de telefones celulares. Em decorrência do vazamento de tais fotos, as adolescentes passaram a ser vistas de forma mais ampla pela internet, o que fez com que o compartilhamento inicial de fotos com amigos se configurasse como produção de material pornográfico. Fundamentada nos ideais de prevenção com base na autoproteção dos adolescentes, a intervenção visa a sensibilizá-los para as formas contemporâneas de viver a sexualidade, as quais podem representar violência sexual. Para tanto, essa intervenção se valeu da projeção dos filmes Confiar (2010), do diretor norte-americano David Schwimmer, e Depois de Lúcia (2012), de Michel Franco. Também fez uso de cartilha (SAFERNET, 2013) desenvolvida pela ONG SaferNet Brasil, no interior de escolas, centros comunitários, projetos sociais e demais organizações de atendimento a adolescentes e jovens.

O conteúdo organizado pela cartilha (SAFERNET, 2013) tem linguagem voltada ao público juvenil e aborda, na forma de histórias em quadrinhos, problemas que os jovens podem enfrentar se não usarem a internet de forma segura. Dentre esses problemas, está a grande exposição de suas imagens, que, uma vez vazadas na internet, perpetuam-se, podendo trazer repercussões sociais e psicológicas aos adolescentes. A expectativa é que, por meio desses momentos de discussão, os adolescentes reflitam sobre o contexto histórico produtor dessas tecnologias, pensem sobre as novas formas de interação social e sobre como isso tem impactado suas atitudes. Espera-se ajudar os participantes a tomarem consciência dos reflexos de suas escolhas, dando-lhes subsídios para que assumam essas escolhas com responsabilidade, ou seja, com base na aquisição de comportamentos de autoproteção.

Tais intervenções reforçaram a pertinência de se oferecerem cursos em espaços formativos para além das escolas na área de violência sexual a profissionais que atuam com crianças e adolescentes.

 

CONCLUSÃO

A formação de profissionais que atuam com crianças e adolescentes, em especial da Educação e da Psicologia, deve visar a uma incorporação de conhecimentos e atitudes que protejam crianças e adolescentes, ultrapassando os embasamentos unicamente teóricos. Isso deve acontecer em processo educacional de médio e longo prazos, com espaço para reflexão, ação e participação, com diálogo, debates e trocas, por meio, por exemplo, de recursos gráficos, cinema e literatura.

Acredita-se que as intervenções relatadas no âmbito da formação de profissionais da Educação podem servir de referencial para a ação de psicólogos e formadores dos futuros profissionais da Psicologia, favorecendo uma aprendizagem que poderá gerar práticas que visem à proteção da população infantojuvenil.

A responsabilidade pela prevenção da violência sexual não deve ser assumida somente no nível das ações pessoais, isoladas e localizadas em escolas, nem somente por profissionais das áreas de Psicologia e de Educação. As políticas nacionais de vários âmbitos (Saúde, Educação, Assistência Social) voltadas a crianças e adolescentes devem incluir, entre suas prioridades, o enfrentamento de toda e qualquer violação de direito e de todas as formas de violência cometidas contra crianças e adolescentes.

Mais especificamente com relação à formação de profissionais da Psicologia, a discussão da violência sexual requer o debate de temas que permitam, aos futuros psicólogos, uma compreensão mais crítica e contextualizada dos problemas que assolam a população infantojuvenil. Dessa forma, sugere-se que sejam inseridas, nas grades curriculares, disciplinas que abordem os seguintes temas: direitos das crianças e dos adolescentes; sistemas de proteção a eles dirigidos e construção de redes sociais de atendimento integral; políticas públicas sociais voltadas a esse público, uma vez que a prevenção e o atendimento de qualidade aos vitimados requerem ações interdisciplinares; concepções sobre protagonismo infantojuvenil que problematizem teorias de desenvolvimento humano com caráter universal, as quais tendem a naturalizar e não contextualizar as condições de desenvolvimento na contemporaneidade; transformações na vivência da sexualidade nos dias atuais, mediadas pelas tecnologias sociais.

 

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Recebido em: 20/11/2013
Aceito em: 16/09/2014

 

 

1 ECPAT – Rede internacional de organizações e indivíduos que lutam pelo fim da prostituição e pornografia infantil e do tráfico de crianças e adolescentes para fins sexuais. Mais informações no site: http://www.ecpat.net/EI/Ecpat_vision.asp.
2 Apesar da importância da obra, algo muito dramático ocorreu: por problemas na dimensão ética do livro produzido, adolescentes cujas fotos foram divulgadas tiveram graves prejuízos devido às denúncias apresentadas; algumas, inclusive, foram mortas.
3 Para aqueles que tiverem interesse em conhecer as discussões desenvolvidas no III Congresso, acessar o relatório do evento no site: http://iiicongressomundial.net/index.php?id_idioma=1&inicial=2&sid=78865782141f6a60f230686d69952ad7&id_sistema=2; ou ainda acessar o relatório final no site: http://iiicongressomundial.net/congresso/arquivos/Declaracao%20do%20Rio%20e%20Chamada%20para%20Acao%20-%20Versao%20FINAL.pdfu

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