Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Saúde & Transformação Social
versão On-line ISSN 2178-7085
Saúde Transform. Soc. vol.5 no.1 Florianopolis 2014
ARTIGO ORIGINAL
Pesquisa com usuários de Crack e seus familiares: análise de uma de uma vivência.
Study with Crack users and their families: experience report.
Maycon Rogério SeleghimI; Sueli Aparecida Frari GaleraII; Magda Lúcia Félix de OliveiraIII
IDoutorando, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, SP – Brasil
IILivre Docente, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto, SP – Brasil
IIIProfessora Adjunta Nível D, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá, PR – Brasil
RESUMO
Diante da escassez de estudos sobre o tema uso de crack e sua interface com as famílias, o presente trabalho teve por finalidade relatar algumas experiências vivenciadas durante a fase de coleta de dados de uma pesquisa com esta clientela. O estudo relatado, de cunho qualitativo, foi desenvolvido em um serviço especializado para o tratamento da dependência química do Paraná e teve como referencial teórico a Teoria Geral dos Sistemas, particularmente o uso do genograma para a identificação de aspectos multigeracionais associados ao uso de drogas. O diário de campo foi utilizado de forma complementar, mas considerando a riqueza das informações encontradas em campo, e registradas, estruturou-se este relato, que foi desenvolvido a partir da realidade empírica, das situações presenciadas no local de estudo e dos depoimentos coletados. Pensa-se que estudos como esse possa fornecer subsídios para a elaboração e o aprimoramento de futuras investigações sobre a temática.
Palavras-chave: Drogas Ilícitas; Crack; Relações Familiares; Comunidade Terapêutica.
ABSTRACT
Given the scarcity of studies on the topic of crack use and its interface with the families, this paper aims to report some experiences during the data collection phase of research with this clientele. The reported study, a qualitative, has a theoretical general systems theory, particularly the use of the genogram to identify multigenerational aspects associated with drug use. The field journal was used in a complementary way, but considering the wealth of information found in the field, and recorded, was structured this report, which was developed from the empirical reality of the situations witnessed in the study site and observed facts. It is thought that such studies can provide subsidies for the development and improvement of future research on the topic addressed.
Keywords: Illicit Drugs; Crack; Family Relationships; Therapeutic Community.
1. INTRODUÇÃO
A elaboração do presente trabalho foi motivada pela escassez de estudos sobre o tema uso de crack e sua interface com a família, pela necessidade de aprofundar os conhecimentos relativos à família e as relações familiares na problemática do uso de drogas, mas também pelas experiências dos autores em coleta de dados de pesquisa com esta clientela.
Dessa forma, durante o desenvolvimento da dissertação de Mestrado intitulada Recursos e Adversidades no Ambiente Familiar de Indivíduos Usuários de Crack1, construída junto ao Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá em 2012, verificou-se a necessidade de relatar algumas experiências vivenciadas durante a fase de coleta de dados (facilidades/dificuldades), bem como fornecer subsídios para a elaboração e o aprimoramento de futuros estudos sobre esta temática.
O trabalho em questão, de cunho qualitativo, teve como referencial teórico a Teoria Geral dos Sistemas (TGS), particularmente o uso do genograma para a identificação de aspectos multigeracionais associados ao uso de drogas, o qual foi elaborado e fundamentado nessa perspectiva teórica. De acordo com essa teoria, a família é considerada como um sistema, ou seja, um grupo de pessoas que estão ligadas por laços biológicos, legais, culturais e/ou emocionais, e que tem história e perspectiva de futuro comuns. Essas pessoas constituem um sistema de relações significativas, no qual seus membros são interdependentes, ou seja, a mudança de comportamento/funcionamento em um membro repercute nos demais e no sistema familiar como um todo².
O estudo foi desenvolvido em um serviço especializado para o tratamento da dependência química da região Noroeste do Paraná e, considerando os critérios de inclusão/exclusão dos sujeitos na pesquisa, foram entrevistados 20 usuários de crack e 15 familiares¹.
O diário de campo foi utilizado de forma complementar a referida pesquisa, mas frente à riqueza das informações encontradas em campo, e registradas, estruturou-se este relato, que foi desenvolvido a partir da realidade empírica, das situações presenciadas no local de estudo e das entrevistas realizadas. Assim, além de descrever as situações enfrentadas durante a fase de coleta de dados, também foi possível fornecer uma aproximação das relações familiares dos usuários de crack.
2. O USO DE CRACK E SUA INTERFACE COM A FAMÍLIA: APROXIMANDO-SE DA TEMÁTICA
O uso de crack é um tema atual e relevante para a área da saúde, bem como para outros setores da sociedade. A complexidade que envolve o fenômeno do uso e o fato de suas consequências atingirem os usuários, as famílias e a sociedade, com elevação dos índices de violências, tem apontado a necessidade de investigações nos múltiplos aspectos dessa temática, na tentativa de contribuir para a formulação de políticas públicas específicas para o seu controle e tratamento3.
Nas últimas décadas, a comunidade acadêmica tem procurado desenvolver estudos que possam clarear aspectos ainda pouco conhecidos sobre as relações familiares, bem como definir diretrizes de atuação e (re)orientar as políticas públicas na área do uso de drogas. Neste sentido, uma das formas de se conhecer as respostas científicas a determinado evento é revisando o que já foi produzido e publicado a respeito daquilo que se quer investigar4.
Em uma revisão de literatura sobre o tratamento para o uso indevido e/ou abusivo de drogas, a família apareceu como co-autora tanto do surgimento do abuso de drogas quanto como instituição protetora para a saúde de seus membros. Os estudos apontaram para a complexa influência da família, da escola e do grupo de amigos no caso da manifestação do uso abusivo de drogas, principalmente na adolescência5.
Especificamente em relação ao crack, pesquisa desenvolvida em uma unidade de emergência psiquiátrica como o objetivo de conhecer o vínculo familiar desses indivíduos, evidenciou uma trajetória de perdas e separações, presença de drogas e violência no ambiente familiar, indicando que a ausência de suporte social e familiar, e a deficiência no acesso e vínculo aos serviços de saúde primários, pouco acessíveis àquelas pessoas que mais necessitam, parecem agravar a situação do crack na atualidade6.
Há consenso na literatura de que o uso compulsivo de crack interfere na dimensão individual do usuário, comprometendo também seu relacionamento social, de forma que os vínculos sociais e familiares estáveis e normalizados se fragilizam e rompem-se, marginalizando-o progressivamente1, 3, 4, 6. Assim, nessa perspectiva os fatores que levam a adesão ou a condenação do uso de drogas são influenciados principalmente pelo contexto sociocultural em que se inserem os indivíduos, e as famílias são consideradas importantes para a iniciação, manutenção e resolução do uso de crack e de outras drogas entre seus membros7.
Por outro lado, estudo realizado com a finalidade de conhecer as repercussões do uso contínuo de crack na estrutura e na dinâmica das relações familiares, identificou que embora o uso de crack provoque distanciamento entre os membros da família, verificaram-se comportamentos adotados de forma a preservar a integridade do grupo familiar8.
Pesquisas realizadas sob esta perspectiva indicam que embora o grupo familiar tenha um ambiente conflituoso e pobre em recursos, sempre busca uma forma de reestruturação e rearranjo para continuar visando seus ideais9. Essa concepção alia-se as transformações ocorridas nas diretrizes da assistência psiquiátrica, que mudou a relação do profissional de saúde mental com as famílias, as quais se tornaram importantes parceiras para o processo de reabilitação. A inclusão das pessoas portadoras de um transtorno mental no convívio familiar tem tirado cada vez mais a família do papel de causadora de doença mental, deslocando-a para o papel de colaboradora e aliada do cuidado.
A relação entre os profissionais de saúde mental e os familiares pode ser campo fértil para a elaboração e a execução de medidas efetivas de intervenção terapêutica. A parceria do profissional de saúde mental com o familiar pode constituir-se como garantia de continuidade do cuidado e progresso no tratamento de seus parentes10. Os profissionais de saúde devem então refletir sobre as intervenções junto aos sujeitos em sofrimento psíquico e seus familiares, identificando as necessidades deste grupo.
Diante do exposto, verifica-se a necessidade da produção de conhecimento nesta área devido à escassez/carência de fontes específicas, incluindo estudos em profundidade sobre as relações familiares e o uso de drogas, e especialmente do uso de crack, com vistas à elaboração de medidas de apoio voltadas aos usuários e seus familiares.
3. A EXPERIÊNCIA NO CAMPO DE ESTUDO
Geralmente, usuários de drogas estão "escondidos" da sociedade, por usar uma droga ilegal e pela criminalidade relacionada ao uso, ou pela dificuldade em assumir o "vício" de uma droga legal, o que ocasiona dificuldades em acessar este grupo populacional bem como localizar suas famílias devido à estigmatização social11.
No entanto, os usuários podem ser encontrados em delegacias de polícia e nos presídios, onde se encontram pelos crimes relacionados às drogas; em hospitais, em conseqüência de violência ou para cuidados de saúde pelas drogas ou outras condições a elas relacionadas; e em serviços especializados para tratamento da dependência química, onde são internados para recuperação ou por "overdose"11.
No caso particular do crack, apesar dos usuários serem facilmente encontrados vivendo em trânsito pela rua, o acesso e a abordagem a estes indivíduos requerem do pesquisador alguns cuidados ou mesmo certa experiência em coleta de dados de pesquisa com esta clientela, devido aos riscos que podem ser encontrados no campo de estudo, como a presença de usuários sob o efeito do crack e/ou de outras substâncias psicoativas, ou ainda o local ser destinado à venda e ao comercio ilegal de drogas.
No presente estudo, optou-se por acessar os usuários e seus familiares em um serviço especializado para tratamento da dependência química, pelo fato de que nesse ambiente de tratamento os usuários encontravam-se abstinentes de crack, estabelecendo maior vínculo com o pesquisador. Também, porque suas famílias puderam ser localizadas e abordadas com maior facilidade, visto que o rompimento dos vínculos sociais e familiares é frequentemente encontrado no contexto de vida desses usuários.
A coleta de dados da pesquisa se deu nos meses de maio a julho de 2011, e foi constituída por análise documental, aplicação dos roteiros de entrevista aos usuários e a um familiar, inclusive com a elaboração dos genogramas, e construção dos diários de campo. O genograma é um instrumento semelhante a uma árvore genealógica que permite retratar a estrutura familiar, seus padrões de relacionamentos, manutenção de conflitos, bem como reunir dados de sua história e dos indivíduos que a compõem. É, portanto, uma forma gráfica de apresentar informações que permite a rápida apreensão de complexos padrões familiares e a reflexão de como questões clínicas podem estar ligadas à evolução de problemas e da própria família ao longo do tempo2.
Esse instrumento tem sido muito utilizado na Enfermagem Familiar Sistêmica, principalmente por meio do Modelo Calgary de avaliação e intervenção de famílias, desenvolvido pelas enfermeiras e pesquisadoras Wrigth e Leahey, da Universidade de Calgary, Canadá. Esse modelo fundamenta-se em um esquema conceitual necessário à compreensão do sistema familiar como uma unidade de cuidados, integrando alguns conceitos de sistemas, cibernética, comunicação, biologia do conhecimento e teoria da mudança2.
O genograma também é considerado um bom instrumento para coleta de dados ao longo de entrevistas em profundidade. A organização gráfica da estrutura e dinâmica familiar, ao longo da entrevista, permite a boa interação entre entrevistador e entrevistado, além de encorajar este último a contar sua história. Essa riqueza de dados favorece a análise qualitativa da história multigeracional da família12.
Inicialmente, análise de documentos foi realizada para seleção dos usuários em estudo, por meio de consulta aos documentos institucionais e de informações dos profissionais que atuavam no serviço. Nesta fase, foram selecionados 20 usuários de crack que preencheram os critérios de inclusão/exclusão do estudo.
Os usuários foram abordados individualmente durante a realização das atividades no serviço (laborterapia, cursos de capacitação, atividades recreacionais e de educação, dentre outras) pelo pesquisador e um supervisor e/ou profissional de saúde da instituição para participar do estudo. Embora o pesquisador tivesse informações sobre a população a ser estudada, não era sempre que ele estava inserido no meio a ser pesquisado. Por essa razão, a figura do gatekeeper (facilitadores de acesso à população) se fez necessária, que além de fazer parte do serviço mediou à apresentação do investigador e o protegeu13.
Após esta aproximação inicial, os usuários eram encaminhados a uma sala reservada para o esclarecimento detalhado dos motivos da pesquisa, onde então se procedia à entrevista com a elaboração dos genogramas. Durante a realização de um estudo anterior com usuários de crack, foi observado um grande receio dos sujeitos em participar de uma pesquisa sobre o uso de drogas, principalmente sobre o uso de crack, o que exigiu maior esforço do pesquisador para o esclarecimento dos objetivos da pesquisa6.
De modo semelhante a este estudo, também se observou certo receio por parte de alguns usuários em participar das entrevistas, sendo que o esclarecimento prévio dos objetivos do estudo foi utilizado durante a abordagem de forma a facilitar o estabelecimento de vínculo entre o pesquisador-entrevistado. A atitude acolhedora do pesquisador possibilitou o estreitamento do vínculo, assegurando maior qualidade e fidedignidade aos dados obtidos.
A priori, a abordagem e a realização das entrevistas familiares se deram em dois momentos. Primeiro foram entrevistadas as famílias que residiam no município de localização do serviço em suas próprias residências, com o objetivo reduzir o número de perdas, em um segundo momento foram entrevistadas as famílias que residiam em outros municípios, durante a visita familiar ao usuário. No total, 15 familiares foram investigados.
Nas entrevistas realizadas no domicílio, adotou-se o conceito de visita domiciliar, que enquanto técnica de abordagem de grupo familiar reúne pelo menos três tecnologias: a observação, indicando a atenção aos detalhes dos fatos e relatos apresentados durante a visita; a entrevista, implicando o diálogo com a sua devida finalidade e não apenas uma conversa empírica; e o relato oral ou história, espaço onde as pessoas revelam fatos de suas vidas, dentro dos limites e da liberdade que lhes são concedidas14.
O desenho dos genogramas foi realizado manualmente pelo pesquisador em todos os casos, ou seja, tanto nas entrevistas aos usuários quanto nas entrevistas aos familiares. No entanto, somente os genogramas familiares serão abordados neste relato devido à complexidade inerente a temática e evidenciada no campo de estudo.
Para a construção dos genogramas foi utilizada uma explicação prévia sobre a sua finalidade e apresentação dos símbolos que poderiam ser utilizados e seus significados, contudo, a oportunidade da criação de símbolos e siglas que não estavam no modelo adaptado favoreceu a identificação de outros/novos comportamentos adotados pelos entrevistados2.
Vale salientar, que todas as entrevistas foram gravadas em meio digital, sendo posteriormente transcritas na íntegra. Durante elas, foram abordados ainda outros aspectos como o momento do ciclo vital familiar, sentimentos e comportamentos relacionados à associação família-droga, características pessoais dos familiares e outros temas trazidos pelos próprios entrevistados.
No que se refere às entrevistas aos usuários, a atitude acolhedora do pesquisador permitiu que os sujeitos se sentissem a vontade para expressar suas opiniões quanto às perguntas que eram solicitadas, dando maior fidelidade aos dados obtidos. Observou-se que a maioria dos usuários era jovem, em fase economicamente ativa e reprodutiva, porém sem vínculo empregatício e com baixo poder aquisitivo; e nível de escolaridade incompatível para idade, conformando o ciclo vicioso da repetência e da evasão escolar1. Assim, apesar da carência de estudos com usuários de crack institucionalizados, pode-se dizer que o perfil socioeconômico encontrado entre os usuários foi semelhante ao que tem sido descrito na literatura1,3-4.
O uso múltiplo de drogas, em oposição ao uso exclusivo de crack, foi uma característica claramente evidenciada entre os usuários. A maioria relatou que a idade de início do uso de drogas lícitas (tabaco e álcool) e ilícitas (maconha, cocaína e crack) aconteceu predominante na juventude, entretanto, chamou atenção o uso precoce em muitos usuários das drogas lícitas ainda na infância, e o início do uso das drogas ilícitas na fase adulta do ciclo vital.
A trajetória do uso de drogas foi relatada pelos usuários como "uma escalada no uso de substâncias psicoativas", iniciando com o tabaco e/ou álcool e finalizando com o uso de crack. Chamou atenção também o uso de solventes e cola de "sapateiro" pelos usuários, o que remete a necessidade de um controle mais rígido, restringindo o acesso facilitado a estes produtos tóxicos.
Quanto às entrevistas familiares, observou-se que a maioria eram mães, casadas e com mais de um filho, com baixa escolaridade, católicas e empregadas. Isto nos remete ao fato de que a mulher ocupa papel importante dentro das famílias e é colocada como elemento agregador imprescindível. De modo geral, a maioria das famílias possuía alguma religião, utilizava o SUS como sistema de assistência à saúde, e apontou o almoço familiar como a atividade recreacional mais realizada pelos constituintes familiares.
No que se refere à elaboração dos genogramas familiares, observou-se grande aceitação por parte dos familiares. De modo geral, os 15 genogramas analisados incluíram duas gerações, com uma média de 25,2 familiares por genograma; o número mínimo de pessoas encontrado por família foi de 13, e o máximo de 39 pessoas. Ficou evidente que o número de indivíduos na primeira geração (pais e irmãos) foi proporcionalmente menor que na segunda geração (avós e tios), talvez devido às transformações de natureza social.
Considerando a metodologia para a elaboração dos genogramas, foi possível classificar a estrutura familiar em três principais configurações. Assim, nove famílias eram nucleares, formada por um homem, uma mulher e seus filhos (biológicos ou adotivos); quatro eram monoparentais, com uma estrutura formada de pais únicos devido à fenônemos sociais, como o divórcio e óbito; e apenas duas eram comunitárias, constituídas por pessoas com vínculos afetivos e familiares diversos.
De acordo com a tipologia para a construção das linhas de relacionamento familiar, observou-se que todas as famílias apresentaram pelo menos um relacionamento harmonioso com um membro familiar, e a grande parte apresentou relacionamentos distantes e conflituosos. Em relação aos relacionamentos harmoniosos, estes se apresentaram diversificados, sendo de maior ocorrência na primeira geração. Em adição, os relacionamentos distantes foram mais frequentes na segunda geração e menor na primeira. Já os relacionamentos conflituosos encontravam-se totalmente na primeira geração.
O uso de drogas pelos membros da família também foi uma característica frequentemente encontrada nos genogramas analisados. No geral, 14 famílias apresentavam antecedentes de uso de drogas, sendo que oito tinham história de uso de drogas ilícitas, principalmente maconha, cocaína e crack.
A análise dos genogramas associada ao conteúdo das entrevistas pareceram confirmar a hipótese de que a presença de eventos desfavoráveis no ambiente familiar, como famílias desestruturadas, condições socioeconômicas restritivas, e antecedentes familiares de uso de drogas lícitas e ilícitas, podem atuar como importantes fatores de risco para o uso de drogas.
As entrevistas em profundidades indicaram, nas relações familiares dos usuários de crack, a deficiência de suporte parental, a presença de regras muito rígidas ou permissivas, a superproteção dos filhos, a cultura do uso de drogas, a existência de conflitos e violências, a desinformação sobre a temática das drogas e o desconhecimento das famílias sobre o uso de drogas pelos usuários.
Os achados do estudo indicam também a necessidade da elaboração de políticas públicas específicas de prevenção ao uso de drogas no ambiente familiar, que considerem a diversidade de configurações expressadas pelas famílias. Também, verificou a urgência de medidas de atenção à saúde com enfoque na relação dos usuários de crack com as suas famílias, a fim de se entender as relações no ambiente familiar.
4. CONCLUSÃO
Conclui-se que o fato dos usuários estarem abstinentes de crack deu maior fidedignidade aos dados obtidos e também "protegeu" o pesquisador durante a realização da coleta dos dados.
Com a realização do estudo ora relatado, houve a participação de diversos atores sociais que estavam envolvidos no processo, pois a investigação produziu informações sobre 20 usuários de crack e 15 familiares e teve a participação de técnicos do serviço, como facilitadores do acesso aos documentos e aos sujeitos do estudo.
A utilização da entrevista semiestruturada com a construção dos genogramas permitiu que assuntos não-eleitos previamente fossem investigados à medida que emergiam, o que enriqueceu a pesquisa e, consequentemente, possibilitou a compreensão da temática em suas múltiplas dimensões.
A aproximação do componente familiar por meio da representação gráfica do genograma permitiu também a compreensão da trama relacional no qual os indivíduos pesquisados estavam inseridos, e a partir daí fornecer subsídios para a atuação dos profissionais de saúde nos pontos críticos identificados. Apesar de aparentemente complexa, o genograma é uma técnica é simples e com grande aplicabilidade prática para o planejamento de ações de enfrentamento do uso de drogas, principalmente na rotina dos profissionais de saúde atuantes na Estratégia de Saúde da Família, que possuem estreitos laços de contato com essa população.
Acredita-se que embora a experiência apresentada tenha sido realizada em nível local, os aspectos abordados podem fornecer subsídios para a elaboração de futuros estudos sobre a temática. Sugere-se que o uso do genograma como técnica principal ou complementar de pesquisa deve ser estimulada em estudos sobre o uso de drogas e as relações familiares.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Seleghim MR. Recursos e adversidades no ambiente familiar de indivíduos usuários de crack [dissertação]. Maringá (PR): Programa de Pós-graduação em Enfermagem, Universidade Estadual de Maringá; 2012. [ Links ]
2. Wright LM, Leahey M. Enfermeiras e famílias: um guia para avaliação e intervenção na família. 4. ed. São Paulo: Roca, 2009. [ Links ]
3. Oliveira LG, Nappo AS. Avaliação da cultura do uso de crack após uma década de introdução da droga na cidade de São Paulo [tese]. São Paulo (SP): Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo; 2007. [ Links ]
4. Rodrigues DS, Backes DS, Freitas HMB, Zamberlan C, Gelhen MH, Colomé JS. Conhecimentos produzidos acerca do crack: uma incursão nas dissertações e teses brasileiras. Cien Saúde Colet. 2012;17(5):1247-1258. [ Links ]
5. Schenker M, Minayo MCS. A importância da família no tratamento do uso abusivo de drogas: uma revisão da literatura. Cad. saude publica. 2004;20(3):649-659. [ Links ]
6. Seleghim MR, Marangoni SR, Marcon SS, Oliveira MLF. Vínculo familiar de usuários de crack atendidos em uma unidade de emergência psiquiátrica. Rev. latino-am. enfermagem [Internet]. 2011 [citado 2012 jan. 15]; 19(5):5 telas. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v19n5/pt_14.pdf. [ Links ]
7. Velho G. Nobres e anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2008. [ Links ]
8. Pinho LB, Oliveira RI, Gonzales, RIR, Harter J. Consumo de crack: repercussões na estrutura e na dinâmica das relações familiares. Enfermería Global. 2012; 25(1):150-160. [ Links ]
9. Galera SAF. A trajetória da família cuidadora – análise de 10 anos de convivência com o adoecimento mental [tese]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2009.
10. Silva KVLG, Monteiro ARM. The family in mental health: support for clinical nursing care. Rev. esc. enferm. USP. 2011; 45(5):1237-42. [ Links ]
11. Zilberman ML. Características clínicas da dependência de drogas em mulheres [tese]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, 1998. [ Links ]
12. Mcgoldrick M, Gerson R, Shellenberger S. Genograms assessment and intervention. 2. ed. New York: W.W.Norton & Company, 2008. [ Links ]
13. Taylor SJ, Bogdan R. Introduction to qualitative research methods: a guidebook and resource. 3. Ed. New York: John Wiley, 1997. [ Links ]
14. Lopez WO, Saupe R, Massaroli A. Visita domiciliar: tecnologia para o cuidado, o ensino e a pesquisa. Cienc Cuid Saude 2008;7(2):241-247. [ Links ]
Maycon Rogério Seleghim
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto
Rua Adalberto Pajuaba, 957
Sumarezinho, Ribeirão Preto, SP
CEP: 14055-220
Telefone: (16) 98169-6105
Email: mseleghim@yahoo.com.br
Artigo encaminhado 21/02/2013
Aceito para publicação em 01/04/2014