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Saúde & Transformação Social

versão On-line ISSN 2178-7085

Saúde Transform. Soc. vol.5 no.2 Florianopolis nov. 2014

 

Artigos Originais

 

Função apoio em pesquisa: experimentações na produção de (des)caminhos e desvios

 

Support Function in research: experiences in the production of (un)paths and detours

 

 

Carolina EidelweinI*; Carlos Alberto Severo Garcia JúniorII**; Lucas Alexandre PedebôsII***; Mateus Felipe Otaviano PedroIII****; Alice Grasiela Cardoso Rezende ChavesI*; Silvio YasuiIII*****

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS - Brasil
II Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC - Brasil
III Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (UNESP), Assis, SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Dentre os arranjos que hoje estão operando no âmbito da proposição de tecnologias em saúde com foco na reformulação dos processos de trabalho no Sistema Único de Saúde brasileiro, estão as práticas hoje denominadas como "apoio". O presente artigo é resultado de uma investigação dos efeitos que os investimentos públicos na formação de trabalhadores do SUS têm produzido nas redes de saúde, tendo como campo de pesquisa os processos de formação de apoiadores institucionais promovidos pela Política Nacional de Humanização da Gestão e da Atenção do SUS em três estados brasileiros (São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina), entre os anos de 2008 e 2009. O processo investigativo buscou analisar, junto aos participantes dos cursos, conexões entre o exercício da função apoio e os processos de mudança nas relações dos sujeitos com seu trabalho em saúde, bem como identificar novos processos e práticas de trabalho em desenvolvimento nos territórios pesquisados. Vimos que os processos formativos produziram um acionamento de mudança, que avançou singularmente em cada um, em cada processo, produzindo peculiares modulações da experimentação do apoio - as quais corroboraram o sentido de abertura e de inacabamento próprio a essa metodologia.

Palavras-chave: Humanização da Assistência; Políticas Públicas de Saúde; Avaliação em Saúde.


ABSTRACT

Practices today termed as "support" are among the arrangements operating under the proposition of health technologies focusing on work processes redesign, in the Brazilian Public Health System (SUS). The present article resulted from an investigation onwhat public investments effects, in SUS workers training,have produced on health networks. The research field is related to the training processes of institutional supporters promoted by the National Humanization Policy on Management and Care of SUS, in three Brazilian states (São Paulo, Rio Grande do Sul and Santa Catarina), between the years 2008 and 2009.The investigative process tried to analyze, along with the courses participants, connections between the exercise of support function and processes of change in the relations between subjects and their health works. Also, to identify new processes and work practices developing in the territories surveyed. It was possible to realize that formative processes produced a change that advanced uniquely in each person and process, producing peculiar modulations of support experimentation that corroborated the sense of openness and incompleteness related to the methodology.

Keywords: Care Humanization; Public Health Policies; Health Evaluation.


 

 

1. INTRODUÇÃO

Diante dos desafios enfrentados na implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), diversos arranjos organizacionais e referenciais teórico-metodológicos têm sido propostos como modos de reformulação do processo de trabalho nos serviços e nas redes de atenção, gestão e educação em saúde. Passos e Pasche1 destacam que as experiências acumuladas nesse campo indicam a importância da inovação trazida pelas tecnologias relacionais ou tecnologias leves. Tais tecnologias pressupõem a capacidade de sujeitos e organizações colocarem em questão as formas instituídas do trabalho em saúde, identificando possíveis enrijecimentos e apostando nas forças instituintes, forças capazes de mobilizar ações de mudança nos processos de trabalho2-3.

Dentre os arranjos que estão operando nesse contexto de propostas de reformulação dos processos de trabalho no SUS, estão as práticas hoje denominadas como "apoio", as quais têm sido uma das principais novidades no trabalho em saúde no Brasil. Apoio institucional, apoio matricial, apoio à gestão, apoio rizomático, devir apoio – são alguns conceitos e proposições metodológicas que vêm sendo desenvolvidas nesse âmbito. Oliveira11alerta que esses diferentes arranjos, entretanto, "não devem ser tomados como fins em si mesmos, modelos a serem implantados para fazer ‘dar certo' o SUS, mas sim como elementos agenciadores de sujeitos e processos em torno do projeto ético-estético-político do SUS; e, mais amplo ainda, de processos de democratização institucional". No cotidiano, o que temos visto é que as referidas práticas compõem bricolagens entre si e com outras ferramentas inventadas para potencializar encontros e produzir saúde coletiva4-13.

Nesse sentido é que, desde 2006, o investimento da Política Nacional de Humanização (PNH) tem sido em processos de formação de apoiadores institucionais. Essa aposta tem o intuito de articular, de modo sistemático, as estratégias extensivas da humanização com atividades intensivas, como a realização de apoio a serviços e equipes de saúde (serviços hospitalares, de atenção básica, equipes gestoras, dentre outros). Pasche e colegas15 destacam que os cursos promovidos constituíram estratégias de capilarização da PNH e, ao mesmo tempo, de experimentação de suas diretrizes, método e dispositivos na rede do SUS.

Considerando o cenário nacional de investimento na produção de práticas de apoio e a realização de diversos cursos para a formação de apoiadores institucionais pela PNH em todo o país, é que, em 2012, três Universidades parceiras deram início à pesquisa "FORMAÇÃO EM HUMANIZAÇÃO DO SUS: avaliação dos efeitos dos processos de formação de apoiadores institucionais na produção de saúde nos territórios do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo"I,II, com o propósito de investigar os efeitos que tais investimentos públicos têm produzido na formação de trabalhadores do SUS. Para isso, buscou-se analisar, junto aos participantes dos cursos, conexões entre o exercício da função apoio e os processos de mudança nas relações dos sujeitos com seu trabalho em saúde, bem como identificar novos processos e práticas de trabalho em desenvolvimento nos territórios pesquisados1.

Dessa forma, o presente artigo fundamenta-se nas análises elaboradas ao longo do processo investigativo a partir dos relatórios de pesquisa dos (1) Planos de Intervenção (PI) construídos pelos apoiadores na época dos cursos, dos (2) questionários respondidos via Form-SUS durante a investigação e das (3) análises produzidas pelos participantes em grupos focais, como também em algumas entrevistas, realizados como etapa final da pesquisa nos três estados, considerando o referencial metodológico do curso e os diferentes olhares lançados sobre o apoio pelos apoiadores que participaram da investigação.

 

2. APOIO: CONCEITO POLISSÊMICO

Especificamente no contexto das proposições apresentadas pela Política Nacional de Humanização, com base nas formulações de Campos6, o apoio institucional é proposto como uma função gerencial que busca a reformulação do modo tradicional de se fazer coordenação, planejamento, supervisão e avaliação em saúde, indicando uma pressão externa ao grupo e articulando os objetivos institucionais aos saberes e interesses dos trabalhadores e usuários. O autor aponta como principal foco do apoio os processos de trabalho de coletivos que estão organizados para produzir saúde. Entre seus objetivos, estão a ampliação da capacidade de compreensão e a análise desses processos de trabalho, oferecendo suporte ao movimento de mudança, fortalecendo a articulação de conceitos e tecnologias com o exercício da produção de novas alternativas em saúde. O apoio institucional opera em "uma região limítrofe entre a clínica e a política, entre o cuidado e a gestão – lá onde estes domínios se interferem mutuamente"19, trabalhando no sentido da transversalidade das práticas e dos saberes no interior das organizações.

Os cursos de formação de apoiadores institucionais promovidos pela PNH investigados nos três estados trabalharam fundamentalmente com esta concepção de apoio, que inaugurava tal metodologia à época da proposição dos cursos investigados. No processo da pesquisa, contudo, observamos que as concepções e práticas de apoio não se restringiram a ela, acompanhando os desdobramentos das produções teórico-metodológicas sobre o apoio, as quais vêm sendo progressivamente difundidas no cenário das práticas de saúde.

Ao acompanharmos as análises dos sentidos e caminhos trilhados pelos participantes da pesquisa, verificamos que as produções dos apoiadores em processo de formação apareceram atravessadas por diferentes linhas de compreensão do que seria a "função apoio", em sua forma mais abrangente, proposta por Oliveira11. Baseia-se pelo "papel institucional exercido por um agente que assume o posicionamento estético, ético e político de acordo com uma metodologia de apoio". Função que parece ter se constituído de múltiplas formas, fazendo coexistir entendimentos variados e inclusive divergentes entre si, o que talvez tenha possibilitado operar essa metodologia de trabalho no SUS de modos bastante distintos. É importante destacar que, em muitos casos, a mesma pessoa expressava diferentes entendimentos ao longo de sua escrita, bem como de sua fala. Assim, não nos interessa aqui circunscrever determinado modo de se posicionar a um indivíduo, mas entender que se tratam de produções coletivas, entendimentos construídos desde o processo de formação, num plano comum de experiências.

Inicialmente, vimos que a concepção de "apoio" aparece, em linhas gerais, como articulação, agenciamento da conexão entre atenção e gestão, do protagonismo dos sujeitos, fomento de espaços coletivos, de cogestão, de corresponsabilidade, de redes, trocas e rodas.

O apoiador, após realizar uma análise reflexiva do seu cenário e contexto de trabalho a que está inserido, procura mediar, facilitar, cooperar e apoiar nas necessidades de mudanças e intervenções respeitando as demandas e possibilidades de cada área de trabalho/serviço de saúde (PI de apoiador).

Para o desenvolvimento das atividades de intervenção no cenário local, o apoiador institucional da PNH precisa se articular com vários atores (PI de apoiador).

Em muitos fragmentos, destacados e colhidos principalmente no material da pesquisa documental, aparecem também sentidos ainda idealizados e prescritores do que seja a função apoio, ou do que deveriam ser as funções de um apoiador. Merece ênfase que esta idealização tenha aparecido tão frequentemente, considerando que uma das ideias que estruturam a concepção de humanização proposta pela PNH é justamente a da desidealização do homem. Nos referidos trechos, sustenta-se certo ideal de apoiador e utilizam-se termos como ‘deve' e ‘precisa', fazendo mirrar a perspectiva de devir que constitui o apoio e amarrando tal função a posições identitárias, que afirmam que ser apoiador é ser isto ou aquilo, em uma versão pronta e acabada do apoio14.

Ser um apoiador é cada vez mais se integrar ao grupo, é necessário ter uma postura de se deixar influenciar sem renunciar ao próprio interesse e à própria experiência. É desenvolver a capacidade de se fazer análises e soluções compartilhadas, combinar firmeza com abertura, à combinação de interesses de diferentes visões de mundo, desenvolver também a capacidade de reconhecer autoridade em outros sem se submeter a ela, de reconhecer o limite imposto pelo coletivo sem desistir de sua singularidade de desejos e de concepções (PI de apoiador).

Ainda na tônica da idealização, algumas colocações deixam transparecer a ideia de democracia como algo harmônico, ou de que é possível ao apoiador igualar o quociente de participação dos sujeitos. A compreensão expressa ali passa ao largo da ideia de que os coletivos funcionam em planos de forças, nos quais interesses diversos estão em permanente disputa, e as relações expressam, o tempo todo, essa dinâmica instável, onde o que se almeja não é o equilíbrio homogeneizante, mas a manifestação das distintas potências dos sujeitos.

Em alguns escritos, os conflitos são localizados como algo exterior ao grupo, que avança sobre ele, cabendo ao apoiador o papel de prover o equilíbrio de forças. Resiste nestes textos a ideia de que a realidade comporta ideais: de democracia, de mundo, de grupo etc. Já no momento posterior ao da finalização dos cursos, na ocasião de realização de um grupo focal da pesquisa, uma apoiadora analisa sua mudança de posição em relação a este ponto, bem como em relação ao reconhecimento dos limites da função apoio:

Antes do curso, eu me desviava dos conflitos. Hoje, eu sei mediar um pouco melhor a questão do conflito. E o trabalho em equipe tem muito disso. Hoje eu consigo ver que o conflito talvez seja o momento mais rico dos processos. Traz à tona as angústias. É um espaço a se fazer uma escuta. Também há uma baixa na nossa ansiedade, o desejo de querer mudar o município inteiro. Temos que reconhecer os limites, as oportunidades (Narrativa de grupo focal).

Dentre as tantas tonalidades assumidas pelo apoio, algumas ênfases mostraram, também, a função apoio como "posicionamento estético, ético e político de acordo com uma metodologia de apoio"11, como prática que se produz na relação, no entre dos agenciamentos coletivos, nas grupalidades atuantes no cenário, onde as forças e poderes transversalizados são lidos e restituídos pelos coletivos numa perspectiva analítica. Nesse caso, a ênfase parece estar no movimento, no fazer funcionar virtualidades da potência grupal, muitas vezes contraditórias e paradoxais, em pactos possíveis que se desdobram em novas realidades micropolíticas capazes de conferir maior sustentabilidade a uma política pública de saúde de fato pública.

Aponta-se a necessidade de apostar na criação de espaços coletivos para os trabalhadores como potencializadores do trabalho como espaço de reconhecimento de diferentes saberes, bem como de compartilhamento do não saber em relação às situações limites do cuidado, fortalecendo, assim, as redes de pertencimento (PI de apoiador).

Além disso, as tarefas solicitadas pelo curso que envolveram a opinião de outros colegas de trabalho me fizeram exercitar um movimento de aproximação. Movimento este que literalmente fez com que saísse de meu lugar e fosse em busca de informações, por exemplo, sobre a construção do cenário, e temas sobre a saúde do trabalhador. Inevitavelmente esta busca exigia explicar sobre a PNH, me aproximar de colegas de trabalho da UBS, e proporcionou construir boas alianças de trabalho (PI de apoiador).

 

3. UMA INFLEXÃO SOBRE OS MODOS DE OPERAR DA PNH

Para analisar a produção da função apoio a partir dos dados colhidos nesse processo investigativo, faz-se necessária uma inflexão sobre os modos com que a PNH vem operando desde sua emergência no SUS. Passos e colegas15 escrevem que, em seus primeiros anos, a política de humanização investiu em sua formulação e consolidação como política pública, com sustentação teórico-metodológica, e na sensibilização e mobilização dos serviços de saúde, trabalhadores, gestores e usuários, fazendo conhecer a PNH principalmente por meio de atividades extensivas. É o que expressam, a seguir, alguns excertos de Planos de Intervenção (PI) escritos ao final dos cursos de formação de apoiadores, que dão a ver certa correlação entre as atividades propostas nos cursos e a organização e participação em eventos:

Participei no mês de março, a convite da apoiadora institucional [nome], do encontro regional dos coordenadores municipais de saúde mental, na [nº] CRS. A proposta, dentre outros assuntos, era apresentar a PNH aos trabalhadores e gestores presentes e instituir na região espaços para a apropriação da PNH (PI de apoiador).

Durante estes dez meses, trabalhamos muito no coletivo, realizamos dois Seminários Regionais e três Seminários Microrregionais, contagiamos muitas pessoas e destaco, como nossa maior conquista, a reativação do Comitê Regional de Humanização (PI de apoiador).

Se considerarmos as ações como apoiadora institucional que não se restringiram ao CMH [Conselho Municipal de Humanização], é possível destacar que em todos os espaços onde estive inserida introduzi a PNH ao meu discurso, como, por exemplo, em palestras nas Instituições de Ensino; no cotidiano de minhas práticas como nutricionista; em eventos e com os colegas e gestores da SMS (PI de apoiador).

Importante assinalar que as estratégias utilizadas pela PNH para operar interferências nos modos de atenção e gestão do SUS, embora concebidas em momentos históricos distintos, não se restringem àquela determinada época em que foram propostas. Em nosso percurso investigativo, entendemos que as diferentes estratégias convivem simultaneamente no campo, não são ultrapassadas ou descartadas. Não estamos tratando de uma evolução nem de uma linearidade cronológica, mas de descontinuidades. À medida que coexistem diferentes "PNHs", diferentes modos de conceber e operar constroem múltiplos sentidos para o que sejam as políticas de humanização, como arranjos imagéticos de um caleidoscópio. Nesse sentido, sabemos que a Política de Humanização produziu novas discursividades no SUS, ao introduzir ou reafirmar o paradigma ético-estético no arcabouço teórico da Saúde Coletiva. No entanto, indagamo-nos se, por vezes, a interferência produzida não teria ficado por demais circunscritas a um modo de dizer. Ainda que se repita uma espécie de "mantra" de que a PNH consiste em um "modo de fazer", pareceu-nos que, muitas vezes, esse fazer tenha ficado bastante circunscrito a organizar eventos-reuniões-encontros para "disseminar", "multiplicar", "sensibilizar, "repassar", "convencer", "argumentar", "tornar consistente" o que seja essa construção discursiva da humanização, como escreveram vários apoiadores em seus planos de intervenção".

Realizamos no auditório da Coordenadoria Regional de Saúde, aproveitando o início dos trabalhos do COGERE, um encontro com gestores, trabalhadores, docentes dos municípios que integram a regional; neste momento tivemos a valiosa participação da nossa tutora [nome], do meu colega e apoiador institucional [nome], e conseguimos de forma muito produtiva fazer a explanação da PNH, encerramos o encontro com a apresentação dos nossos Planos de Intervenção e a solicitação de vários gestores interessados em implementarem a PNH em seu município (PI de apoiador).

Notamos que o entendimento da função do curso incluída no leque de estratégias da política também foi sofrendo variações ao longo de tempo. No ano de 2006, o curso realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) em parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, intitulava-se "Formação de Apoiadores para a Política Nacional de Humanização da Gestão e da Atenção à Saúde" [grifo nosso]. Os apoiadores eram formados para apoiar a Política de Humanização? A pergunta reflete na investigação dos efeitos dessa formação pela pesquisa multicêntrica, à medida que entendemos haver importante diferença de concepção entre apoiar a implantação da PNH e apoiar o fortalecimento do SUS. Em que consistia a proposta metodológica do curso?

No encontro com fragmentos dos Planos de Intervenção, pudemos formular o entendimento de que o apoio, uma grande novidade à época dos cursos, era por vezes apresentado e assimilado com esse duplo objetivo – em primeiro lugar implantar a PNH e, ao fazê-lo, fortalecer o SUS, como consequência. Consequência esta que pode ter ficado esmaecida em meio à difusão dos modos de fazer de uma nova política de saúde. Os cursos propunham ao apoiador institucional em formação iniciar a implantação da PNH em seu território a partir da escolha de um dos dispositivos propostos pela política, de acordo com uma leitura do seu contexto local de atuação. Tal proposição é o que permite a caracterização desses processos formativos como curso-intervenção.

A Política Nacional de Humanização (PNH) disponibiliza diversos dispositivos entendidos como tecnologias ou modos de implementar a humanização. Instrumentalizando os Apoiadores Institucionais para compreenderem sua inserção na rede de saúde, implicados com a forma de fazersaúde de um "SUS que dá certo". Habilitando-o a identificar as demandas locais de intervenção, dotando-as de elementos e estratégias para viabilizar a execução do plano de intervenção (PI de apoiador).

Em seu movimento, a PNH foi ampliando sua institucionalidade como política do SUS também por meio de sua organização sistemática junto às Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. O fomento à descentralização ocorreu através da criação de coordenações regionais da Política de Humanização, de Grupos de Trabalho de Humanização (GTH) e de Câmaras Técnicas como espaços estratégicos para sua efetivação.

A primeira questão a ser referida foi a função assumida por mim de Coordenadora Regional da Humanização na [nº] Coordenadoria Regional de Saúde/RS. Desta forma, a PNH passa a ser reconhecida e "citada", ganha visibilidade local e regional, assume um lugar novamente entre as demais políticas públicas da CRS. Esta identificação oferece um nome, uma referência, cria um movimento, demarca um território. Mas entendia que era necessário ampliar, ter mais efeito, provocar outras mudanças e novas ações na trajetória de intervenção foram sendo realizadas (PI de apoiador).

Essa organização manteve-se próxima ao modo de operar proposto nas diretrizes do Programa Nacional de Humanização da Atenção Hospitalar (PNHAH), precursor da Política Nacional de Humanização (PNH), estimulando a organização de coletivos em Comitês Municipais e Estaduais, com forte ênfase na criação de Grupos de Trabalho de Humanização (GTH) nos diferentes serviços de saúde. Este caminho, todavia, parece pouco ter incidido na lógica hegemônica de separação entre atenção e gestão no sistema de saúde, traduzindo modos historicamente instituídos e naturalizados da organização do trabalho na gestão do SUS, fundamentados no modelo biomédico, fragmentados em programas verticais cuja coordenação é atribuída a trabalhadores que acumulam responsabilidades sobre diferentes políticas e programas, os quais dificilmente conversam entre si. O estabelecimento de coordenações regionais e municipais para a política de humanização, desse modo, pode propiciar o afastamento de uma lógica de apoio e facilitar a reprodução de modos institucionalizados de trabalho em saúde.

Tal proposta de organização da PNH também constituiu "referências", que muitas vezes foram tomadas e mesmo se colocaram como especialistas em humanização, como referências para o apoio, como visto em algumas falas de apoiadores.

A gente continua sendo referência pras pessoas quando o assunto é humanização [todos concordam e parecem gostar disso]. Esse conhecimento ninguém nos tira. Onde a gente estiver a gente vai ser referência, porque as pessoas notam nosso olhar diferente. Não somos referência só pela questão específica da Humanização, mas é uma postura que temos uma forma de trabalhar… (Narrativa de grupo focal).

Ao considerarmos a problematização sustentada pela Análise Institucional - um dos campos de saberes que fundamentam a PNH - a qual consiste na politização dos especialismos, vislumbramos uma direção de trabalho oposta à ideia de que o apoiador encarne a "pessoa de referência" para o trabalho com coletivos. Lourau16 afirma que "a sociologia deve ser feita por todos, não apenas por um", já que a política não apenas está na vida cotidiana, mas ela é a vida cotidiana. A análise, para ele, não é o oposto da ação: a ação é a análise. Ele introduz a ideia de que a ação é analisador, inclusive da análise instituída como atividade de especialista, para evitar confundir sob um mesmo nome coisas tão diferentes como a análise feita por um especialista dotado de jargões e a análise no sentido que ele propõe: uma análise social coletiva16.

Vasconcelos e Morschel13 vão ao encontro da proposição de Lourau16 quando aproximam o apoio a uma lógica, uma metodologia, por meio da qual se pretende desconstruir a ideia de que uma supervisão, um "superolhar", uma "cabeça pensante" vinda do "exterior", sem envolvimento com o espaço-tempo institucional, com o cotidiano dos serviços, possa prover os corpos executantes de respostas apuradas. Para as autoras, ao contrário, o apoio institucional tem como objetivo-chave justamente o de construir espaços de análise e interferência no cotidiano, potencializando análises coletivas de valores, saberes e fazeres e, dessa forma, implementar e mudar práticas.

Por outro lado, o fato de os apoiadores que participaram dos processos de formação se referirem à constituição de uma "referência" para o apoio ou para a Política de Humanização parece estar ligado, também, ao dispositivo da equipe de referência que compõe o apoio matricial e que consiste, de certa forma, em um avanço no interior da máquina estatal. Diante da ideia de "coordenadores" ou "representantes" das áreas temáticas, tradicionalmente utilizadas no Estado, a noção de "referência" amplia a compreensão da função, incluindo o estabelecimento de relações de vínculo e corresponsabilização pelas práticas de cuidado e gestão, ligadas a modos mais horizontais de organização dos processos de trabalho17.

Portanto, o apoiador é a referência local no que se refere à PNH, tendo subsídios teóricos para implementar, com a participação de todos, ações que venham a humanizar o atendimento, tornando-o resolutivo, qualificado e que atenda os princípios do SUS e as necessidades da população (PI de apoiador).

Para além da demarcação de um lugar de especialista, aparece uma espécie de missão assumida pelo apoiador, a qual caracterizamos como "apoiador messias" nas análises produzidas no grupo de pesquisa. Em muitos fragmentos, os apoiadores personificavam a PNH e se colocavam – por vezes, de forma sutil e, por outras, de forma mais caricata – como figuras autorreferenciadas capazes de realizar, sozinhas, os projetos mais ambiciosos de mudança nas práticas e quiçá o fortalecimento do SUS, sendo o Plano de Intervenção um projeto de salvação das barbáries do sistema.

Acredito que, como apoiadora, farei a diferença na minha instituição. Nós, apoiadores, somos a chave para dar entrada ao SUS que dá certo, um sistema abrangente, ainda um pouco carente, mas que depende de nós para o início desta mudança. Somos nós que nortearemos nossas equipes neste momento, equipes que se encontram, muitas vezes, "solitárias", cada qual com suas funções (PI de apoiador).

Numa parceria como apoiadoras institucionais, eu e a gestora [nome] nos intitulamos agentes públicos da mudança através da PNH (PI de apoiador).

Em outros fragmentos, também, o apoiador torna-se depositário de expectativas impossíveis, como se a ele coubesse a responsabilidade de garantir que a PNH aconteça nas instituições. Um "super-apoiador". Alguém que deve agir conforme uma certa lista de atributos/objetivos, e ainda manter permanente consciência destes, como se tivesse que – ou pudesse - prescindir do olhar do outro para manter-se em contato com suas próprias questões. Ora, se a tarefa relativa ao trabalho como apoiador for centralizada nesta ou naquela figura – ou mesmo ficar sob a responsabilidade maior deste ou daquele sujeito -, qual é então, de fato, a ideia de coletivo que circula aí? As compreensões de apoio que circularam mostraram-se novamente ligadas a um estereótipo "desejável" do apoio, um papel a ser desempenhado.

É imprescindível que haja a figura do apoiador institucional nas instituições de saúde, no intuito de esse sujeito associar todo o pilar estrutural e teórico da PNH, ou seja, "o que fazer" com o modo de fazer ou o "como fazer" indicado pela mesma (PI de apoiador).

Nossa tarefa é civilizar, vamos praticamente mexer em dois séculos de tradição (hegemônica) de trabalho. É bastante normal encontrarmos resistência. Mas diante de resistências ou não, chegou o momento de substituir o velho supervisor pelo apoiador (PI de apoiador).

 

4. A PRODUÇÃO DA FUNÇÃO APOIO: ENTRE O CONCEITO-SINTOMA E O CONCEITO-EXPERIÊNCIA

Seja nessas espécies de "projetos messiânicos", seja nas expectativas assumidas pelos "super-apoiadores", o que encontramos são posicionamentos que parecem dar visibilidade à análise realizada por Benevides e Passos14, de que o conceito de humanização pode operar, muitas vezes, como conceito-sintoma. Em vez de caminhar no sentido de um conceito-experiência, tal como defendido pelos autores, pode operar como reprodução de práticas já estabelecidas sem colocar questões a elas. Deste modo, partindo da crítica ao conceito-sintoma, a humanização como um conceito-experiência, ao mesmo tempo, descreve, intervém e produz a realidade convocando para manter vivo o movimento no qual o SUS se consolida como política pública, política de todos, política para qualquer um, política comum14.

Na instituição hospitalar, o profissional tem uma escala de trabalho, e não tem tempo para cumprir o papel da humanização. A humanização acaba sendo realizada pelos voluntários. Quando precisa fazer a barba do paciente, os voluntários que fazem. A coordenadora da Humanização da instituição nem entra na emergência (Narrativa de entrevista com apoiador).

Também pudemos encontrar posicionamentos que refletem uma compreensão do apoio sustentada na ideia de produção de instabilidades, um movimento de sair da homeostase, de instigar, de provocar desacomodação, de questionar os instituídos e lançar-se em apostas. São movimentos que não têm cinto de segurança ou apólice de seguro, mas que acreditam na potência de um certo modo de caminhar, que avança pela indagação, pela construção do caminho a partir da pergunta - e vice-versa - e da reflexão.

A nossa postura durante o decorrer das conversações sobre as experiências vividas pelos participantes é de mais indagar do que propor. A indagação é uma preparação para o escutar, porque demonstra a preocupação com as inquietudes dos outros, abrindo espaço para que este as exponha e as compartilhe com os demais (PI de apoiador).

Sinto que fui bem aceita no grupo como apoiadora, e isto dependeu muito da minha postura; postura esta que pretendo manter daqui pra adiante – não me coloquei como uma "guia de cego", como uma "solucionadora de problemas", mas como alguém que traz problemas, que cutuca, que questiona, que "cutuca" as pessoas, chamando-as para desconstruir o que não está bom e reconstruir na coletividade, no grupo (PI de apoiadora).

Em que pese tais análises, emergentes principalmente a partir das leituras dos trabalhos finais dos apoiadores, para além da produção de modos messiânicos de formar e intervir em saúde, outros pontos de vista sobre a formação de apoiadores tiveram lugar na pesquisa, como investimento na produção de análises coletivas e aposta no acompanhamento de processos, reconhecendo a transitoriedade do dispositivo do apoio.

Se perceber como apoiador foi ao mesmo tempo emocionante e angustiante. As dificuldades apareceram, principalmente, em relação às mudanças que a PNH proporciona. As pessoas têm medo de mudar. E continua sendo difícil trabalhar com isto (PI de apoiador).

Este processo não se encerra em si, pois implementar mudanças estruturais, favorecer a reflexão e participação dos profissionais com intervenções em sua prática gera sujeitos, que geram significados, que geram caminhos que geram algo novo que a princípio ninguém sabe ao certo onde vai dar (PI de apoiador).

Na fase final da pesquisa, momento dos grupos focais e das entrevistas com apoiadores, vimos que a compreensão do apoio como estratégia para a implantação da PNH foi sendo dissipada no período de experimentações dessa metodologia que sucedeu ao curso. Alguns apoiadores referendaram essa ideia, de que, na época do curso, sentiam-se imbuídos de tal tarefa, e outros referiram não se reconhecerem nessa obrigação em nenhum momento. Disseram trabalhar com a PNH de modo sutil, sem necessariamente explicitar uma relação formal entre suas ações e a Política de Humanização. Mencionaram a proposição de rodas de conversa e de mecanismos de gestão compartilhada, porém sem citar a PNH - o importante é que elas aconteçam. Verbalizaram preocupação quanto ao estabelecimento de relações entre a PNH e suas ações, já que o termo Humanização apresenta-se carregado de sentidos cristalizados.

Eu escutei no início: "Ai, já vem tu com aquele negócio da humanização de novo". Então eu tenho que fazer as coisas informalmente. Às vezes, a gente dá um passo pra frente e vinte pra trás. Chega uma hora em que tu começas a ser visto pelos colegas de uma forma conturbada, em relação a tua conduta, a tua pessoa. Pensam que ou tu queres puxar o saco das pessoas ou quer aparecer, e isso nos enfraquece. A gente está lá na linha de frente, e até que ponto eu posso estar incomodando com isso? Às vezes nem incomodamos o gestor, mas incomodamos o nosso colega. Eu tentei; às vezes a gente não consegue e tem que ir por outro lado (Narrativa de grupo focal).

Nos grupos focais, os apoiadores também problematizaram a noção de "apoiador messias", a qual traduziram como desejo de trazer algo novo, como corresponsabilização, como parte do processo de apropriação dos conceitos apresentados nos cursos. Em vez de salvador, força instituinte que vem apontar novas formas de cuidado.

As pessoas nos colocam nesse lugar também, então tem um pouco disso, sim. Mas sou geradora de energia, sim! Não me vejo como salvadora da pátria. Isso tem muito a ver com meu jeito e minha formação. Não me via salvadora da pátria, muito pelo contrário, me via indo pra fogueira! Isso porque eu conseguia traduzir o que os colegas acreditavam e queriam pro trabalho e queriam me colocar como porta voz... mas, quando eles conseguiram se apropriar disso, foi muito fortalecedor e eu consegui diluir esse papel no grupo, pois todos são capazes da mudança. Sacada da roda está em democratizar as coisas, dividir as responsabilidades, os acertos e os problemas. E isso é complicado de se fazer, pois pensamos numa lógica do especialismo, então a questão do apoiador messias passa por aí também, pois nos colocam nesse lugar de especialista, que traz as respostas (Narrativa de grupo focal).

Se, por um lado, as produções escritas dos apoiadores - que nos Planos de Intervenção chamavam a atenção pelas certezas, pela contundência das afirmações relativas ao trabalho do apoiador "da" Política de Humanização – destacavam concepções mais restritas da função apoio, as análises construídas coletivamente nos grupos focais permitiram o entendimento da processualidade da formação, como ilustra a citação acima. Assim, percebemos que essa posição de "apoiador messias" talvez tenha se configurado como papel atribuído, no sentido do que era esperado de tais apoiadores em formação pela equipe gestora-formadora dos referidos cursos, o que nos levou a considerar a relação de reciprocidade entre "apoiadores messias" e "formadores messiânicos". Do mesmo modo, alguns apoiadores comentaram em grupo focal sobre a expectativa que as pessoas têm com relação ao apoiador como alguém que faz por elas. Alternativamente, vimos tratar-se também do investimento narcísico necessário à vida, ao buscar colocar-se em um lugar capaz de produzir movimentos de mudança diante da dureza das condições em que muitas vezes o trabalho em saúde acontece.

Dos muitos sentidos e funções associadas ao apoio, alguns são ressaltados pelos apoiadores, como o da produção de transversalidade, de lateralização e produção do comum. A perspectiva de aproximação das práticas envolve esta abertura curiosa à experiência, a partir de uma escuta-experimentação que nem a idealiza, nem a demoniza. Conversar com as experiências pressupõe rodas de comunicação, "onde os saberes e os poderes possam circular por entre os sujeitos implicados no processo de produção de saúde"13-15.

A valorização dos diferentes saberes, a gestão com os sujeitos e não sobre eles, a produção de subjetividade pelos modos de gestão, a consideração dos múltiplos interesses da democracia, a produção de autonomia, entre outros, são alguns dos sentidos que também apareceram nos escritos dos apoiadores, sendo o compartilhamento de saberes destacado como atitude que sustenta a compreensão de como este fazer do apoiador pode acontecer:

As rodas com o usuário acontecem sem que o profissional seja um simples repassador de conhecimento, e sim atuar como apoiador considerando a sabedoria popular para construir novos pactos de convivência e práticas de autocuidado e corresponsabilização (PI de apoiador).

A função apoio foge do foco do saber único, ou seja, é no coletivo que as questões são resolvidas, não existe a verdade absoluta, existem vários pontos de vista e estes todos devem ser considerados (PI de apoiador).

Este é um convite à criatividade, pois é necessário construir um canal decomunicação, com envolvimento de todos os atores, para juntos desenvolver habilidades de comunicação, exercitar a escuta, o diálogo, edificar corresponsabilidade ora com o usuário, ora com os demais membros da equipe multiprofissional e gestores. A equipe tem visão diferenciada sobre os diversos problemas e estes profissionais, quando em sintonia com gestores e comunidade, fazem com que o processo de tomada de decisão seja resolutivo (PI de apoiador).

Além da produção de desacomodações por esses processos formativos sustentados pela ideia de "experimentar-fazendo" dentro do local de trabalho em que os apoiadores estavam inseridos, o exercício do apoio em formação mostrou-se importante para a capilarização dos chamados "modos de fazer da PNH". A formação dos apoiadores incluía a construção de uma intervenção no local de trabalho, a qual não prescindia do encontro com os pares nesse ambiente. Através do questionário da pesquisa, a ampla maioria (85%) dos apoiadores avaliaram que, ao ingressarem no curso, seus colegas de trabalho possuíam pouco conhecimento sobre tal política. Contudo, 69% dos apoiadores entenderam que houve ampliação desse grau de conhecimento em função da intervenção.

Como havia de se esperar, estas aquisições mudam a paisagem do meu cenário local dia a dia, acompanhando as mudanças dos sujeitos que nela vivem. A minha mudança de setor desde o início de 2009, por conta da troca de gestão, influenciou diretamente o meu cenário local e, por consequência, o meu plano de intervenção. Neste momento, o curso me deu tranquilidade para que eu pudesse transitar de uma função a outra, entendendo que o apoiador institucional realiza seu trabalho onde quer que o mesmo esteja localizado (PI de apoiador).

Independentemente do lugar em que o apoiador esteja inserido, o importante é que ele esteja em conexão com os coletivos interessados nos processos de produção de saúde. Da mesma forma, as intervenções propostas só são possíveis através do estabelecimento de parceiros que, inquietados com a situação colocada, são contagiados pela possibilidade de mudança e se propõem a sair da zona de conforto instituída. Mesmo que, em alguns momentos, tenha ficado evidente certa centralização da função apoio por alguns, 86% dos apoiadores relataram ter executado o Plano de Intervenção com o auxílio de pares do serviço/rede. Porém, quase metade dos apoiadores (42%) referiu não ter conseguido executar o PI da maneira como planejado, talvez pelo PI não ter se mostrado como construção suficientemente coletiva/colaborativa, talvez porque se tratasse de um planejamento necessariamente provisório, sensível às demandas dos coletivos participantes das intervenções.

Podemos dizer que os cursos incidiram na dimensão de produção de si, como ressignificação de si e seu papel, principalmente dentro da instituição de atuação, à medida que observamos traços dessa ressignificação em quase todos os relatos de PIs. No questionário - que foi aplicado em 2012, dois anos após o fim do último curso analisado - 93% dos egressos disseram se considerar "apoiadores" e 99% afirmaram que o curso transformou a relação deles com o SUS. Visto tal cenário, não podemos ignorar o fato de que o reposicionamento do sujeito como protagonista das ações em seu território lhe torna corresponsável pelo impacto gerado por tais ações. A dimensão da produção de si aparece como catalisador do apoio, sendo fomentada e observada ao longo do processo de formação, como coloca em análise o seguinte fragmento:

É nesse processo de apropriação da política de humanização que vamos nos sensibilizando, nos interrogando, nos sentindo inseguros, questionados de até onde podemos ir, diante de um sistema tão amplo, tão particular, com gestão centralizada, trabalhadores desmotivados, usuários vendo-se apenas como portadores de direitos (PI de apoiador).

A função apoio pode ser compreendida também a partir da perspectiva de investigação da realidade, colocando o apoiador como observador-conversador ativo, produtor de conhecimento junto aos coletivos. Podemos ver neste assinalamento a perspectiva de registrar os movimentos dos espaços, um modo de dar materialidade aos processos, de instrumentalizar para as análises e de assegurar a dimensão pública do apoio – aproximando-se, dessa maneira, do ethos do cartógrafo:

A definição que encontro para demarcar a função dos trabalhadores de saúde – que é também o meu lugar – é a de Cartógrafos do Cuidado, uma vez que nos dedicamos a acompanhar movimentos e narrativas, negociar rotas e compor processos de produção de vida (PI de apoiador).

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experimentação do apoio constituiu-se de modos variados, os quais refletiram não só as concepções correntes do que é a função do apoiador, como também as possibilidades construídas singularmente ao longo do curso – corroborando o sentido de abertura e de inacabamento próprio a essa metodologia.

Temos visto que, nos processos de apoio, assim como na própria formação de apoiadores – à medida que são processos coemergentes, afinal "aprende-se a apoiar apoiando" – o fundamental é contar com espaços de compartilhamento das práticas, o que tem sido chamado de "apoio ao apoio". Se o trabalho do apoio é uma tarefa em ato, na experimentação da intervenção, um "fazer com" em meio ao próprio campo em suas interferências mútuas, ali mesmo onde se dá o próprio exercício da produção de novos sujeitos em processos de mudança, realmente se faz necessário construir espaços formativos que acompanhem a dinâmica de tais processos18.

Tivemos muitas dúvidas que foram se clareando no decorrer do curso. Como exemplo, posso citar o entendimento sobre o que seria a "função apoio". As palestras em [local] e o próprio grupo auxiliaram na construção dessa concepção como sendo: ‘suporte', e que a realização deste curso vem para "ajudar o apoiador a cuidar de si mesmo. Empoderá-lo o suficiente para dar conta de conduzir o seu trabalho." Esses encontros permitiram desenvolver o saber aprender e fazer aprendendo. Realizar trabalhos "ao lado" um do outro (PI de apoiador).

No momento dos grupos focais, discutiram-se a importância do "apoio ao apoiador" e a necessidade de "apoio externo" apresentada pelos apoiadores. Existe um sentimento de solidão entre os apoiadores/trabalhadores, é difícil trabalhar sozinho. A necessidade desse apoio pareceu evidenciada também no momento em que os apoiadores relataram que, ao terminar o curso de formação, alguns processos encerram-se, e parece difícil perceber como e onde exercer a função apoio afora o plano de intervenção. O lugar institucional do apoiador também foi problematizado pelos apoiadores, os quais declararam que assumir a função apoio para além de uma postura ética, com vistas a mudanças de processos de trabalho ou problematização constante dos mesmos, por vezes encontra barreiras. Por exemplo, quando parcerias não são estabelecidas e as ações se dão em um plano isolado sem possibilidade de ampliação ou de alcançar institucionalidade nas redes.

Nesse sentido, apontam que o fato de apenas uma ou duas pessoas do mesmo serviço participarem do curso é um complicador, já que, muitas vezes, os demais trabalhadores não compreendem a discussão levantada pelos apoiadores que utilizam o conhecimento apreendido no curso. Mencionam que seus pares não estão "preparados", ou seja, caso mais pessoas da mesma unidade fizessem o curso juntas, a potência de mudança poderia ser maior. Diante de tais colocações, no entanto, perguntamo-nos se a função apoio não consistiria justamente em produzir conversas com outros, arriscando expor-se a novos encontros, buscando operar certa inclusão da alteridade nas redes de saúde. Uma apoiadora relatou que em cada distrito sanitário havia um apoiador de referência e que, com o tempo, estas ajudas foram de esvaindo, pois faltavam trabalhadores que atuavam em consonância com a Política de Humanização. Diferente desses posicionamentos que parecem circunscritos à rede temática da PNH, algumas apoiadoras referiram mudança no sentimento de "estou sozinha" e que hoje buscam novas parcerias, buscam quem também está na luta.

Assim como o mundo não é um espaço asséptico, os processos de formação não formatam sujeitos, não produzem apoiadores prontos e acabados, mas produzem um acionamento de mudança, que avança muito singularmente em cada um, em cada processo, produzindo peculiares modulações da experimentação do apoio. Não se pode esquecer que a aposta da produção de práticas se dá indissociada da aposta na produção de sujeitos. Entendemos assim que antigos modos de ser passam a conviver com novos, também nestes apoiadores. Modos de ser prescritivos, homogeneizantes, normativos, autoritários podem passar a se confrontar, conviver, dialogar com modos de ser democráticos, estéticos, solidários, um nascente "devir apoiador" que irá avançar de modo incerto ao longo do percurso de cada um.

Como salientaram em um grupo focal, subjetividade se criou, ninguém saiu do curso como entrou - a questão é como a gente se fortalece para desempenhar a função apoio. Nessa direção, indicam que nós precisamos discutir mais sobre a função apoio, função que diz respeito à forma como cada um suporta uma mudança e carrega um certo método, um certo modo de fazer, como aprende a se movimentar. E também ao quanto cada um suporta se perder - estavam perdidos dentro do atendimento. Eu cheguei lá... e me perdi também (Narrativa de um grupo focal).

 

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Endereço para correspondência
Carolina Eidelwein
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Av. Paulo Gama, 110 - Farroupilha
CEP: 90040-060. Porto Alegre, RS – Brasil
Email: caroleidelwein@gmail.com
Tel.: (48) 9972-1499

 

Artigo encaminhado 05/10/2014
Aceito para publicação em 13/11/2014

 

 

Notas

* Mestre em Psicologia
** Doutorando em Ciências Humanas
*** Doutorando em Saúde Coletiva
**** Graduando em Psicologia
***** Professor Assistente
I. Pesquisa realizada por meio de um convênio entre três universidades públicas brasileiras – UFRGS, UFSC e UNESP - e o Ministério da Saúde, no âmbito do Projeto Desenvolvimento de Técnicas de Operação e Gestão de Serviços de Saúde em uma Região Intramunicipal de Porto Alegre – Distritos da Restinga e Extremo-Sul, de acordo com o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), firmado entre o Ministério da Saúde e a Associação Hospitalar Moinhos de Vento, por meio do termo de ajuste de número 05/2011, assinado em 31 de dezembro de 2011. Financiada também pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (processos nº 454758/2012-0 e 476289/2013-0).

II. O projeto de pesquisa levou em consideração todos os aspectos éticos determinados na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS, tendo sido aprovado sob o número 152.518 em 8/11/2012.