Saúde & Transformação Social
ISSN 2178-7085
Resenha - Dissertação de Mestrado
Cogestão e processo de intervenção de apoiadores da Política Nacional de Humanização em Santa Catarina
Daniela Baumgart de Liz Calderon*; Marta Verdi**
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC - Brasil
A Política Nacional de Humanização (PNH) é norteada por bases ético-políticas como a valorização das dimensões subjetiva, coletiva e social em todas as práticas de atenção e gestão no Sistema Único de Saúde (SUS), fortalecendo o compromisso com os direitos dos cidadãos, o trabalho em equipe multiprofissional, a construção de redes cooperativas e de autonomia e protagonismo dos sujeitos individuais e coletivos1. Uma tríade de princípios articulados e indissociáveis fundamentam a PNH1: a inseparabilidade entre modos de gestão e de atenção; a transversalização de saberes, poderes e afetos na ação cotidiana dos serviços e das práticas de saúde e a aposta na autonomia e protagonismo dos sujeitos. A PNH atravessa as diferentes ações e instâncias do SUS e tem como objetivo provocar inovações nas práticas gerenciais e nas práticas de produção de saúde, propondo o desafio de superar limites e experimentar novas formas de organização dos serviços e novos modos de produção e circulação de poder2. A humanização, entendida como estratégia de interferência nas práticas de saúde, tem na metodologia do Apoio Institucional3 sua principal estratégia de mobilização de diferentes atores (gestores, trabalhadores e usuários) em torno da tarefa de construção de projetos cogeridos que atendam às necessidades dos diferentes grupos de interesse.
A partir de 2006, a PNH apostou na sua capilarização via processos de formação tendo em vista o fortalecimento e efetivação do SUS. Tais processos são fundamentados na inseparabilidade entre formação e intervenção. Foi a partir daí que surgiu a proposta do Curso de Formação de Apoiadores em Humanização da Atenção e Gestão do SUS como estratégia de implementação do eixo da PNH, produção e disseminação do conhecimento, que tem, como um de seus objetivos, incrementar a oferta de processos de formação, educação e conhecimentos sobre a PNH, buscando assim formar multiplicadores em gestão compartilhada do cuidado e apoiadores institucionais para processos de mudanças2.
No território de Santa Catarina, a iniciativa de formação de apoiadores da PNH, com essa estrutura, foi pactuada e desenvolvida em 2009. A estratégia visou formar sujeitos com capacidade de propor intervenções nas práticas de atenção e de gestão nos serviços de saúde, buscando fomentar e consolidar processos de mudanças com base no referencial da PNH.
Por isso, ao longo do curso de formação de apoiadores da PNH, como estratégia pedagógica, os participantes construíram e implementaram Planos de Intervenção, que consistiam em planos orientadores dos processos de reorganização de práticas/gestão nos serviços em seus respectivos locais de trabalho. A construção do plano de intervenção de cada apoiador ancorou-se em três processos articulados: o mapeamento das demandas do serviço ao qual se vinculava, a definição de uma das diretrizes da PNH que nortearia a intervenção e a pactuação da intervenção com os sujeitos envolvidos.
Como questão relevante neste processo de formação de apoiadores da PNH em Santa Catarina, pode-se apontar a concentração da escolha dos apoiadores na diretriz da Cogestão para o desenvolvimento de seus Planos de Intervenção. Chamou a atenção o fato de 29 dos 60 apoiadores que estavam fazendo o curso pautarem a temática da gestão como demanda de intervenção, visando à transformação das práticas vigentes.
Considerando a importância de se aprofundar o conhecimento em torno desta questão, o presente estudo buscou analisar os novos modos de gestão experimentados pelos apoiadores institucionais formados no curso da Política Nacional de Humanização em Santa Catarina, no ano de 2009, a partir da implementação dos planos de intervenção.
Trata-se de um estudo qualitativo, com design exploratório-descritivo, realizado junto aos apoiadores que participaram do Curso de Formação de Apoiadores da PNH do estado de Santa Catarina em 2009. Como sujeitos de pesquisa, selecionaram-se aqueles apoiadores que optaram por trabalhar a diretriz cogestão no plano de intervenção elaborado ao longo do curso. Considerou-se importante diversificar as experiências de intervenção desenvolvidas no território de Santa Catarina, selecionando aleatoriamente um apoiador de cada UP para participar do estudo, totalizando assim sete apoiadores que foram efetivamente os sujeitos desta pesquisa. A coleta de dados se deu em duas etapas: pesquisa documental e realização de entrevistas. A análise foi efetuada por meio do método hermenêutico dialético, de acordo com proposta de Minayo4. Conforme tal método, a interpretação qualitativa é operacionalizada seguindo as etapas de: categorização inicial, reordenação dos dados e análise final.
Para garantir os aspectos éticos no desenvolvimento de pesquisa com seres humanos, as Diretrizes e Normas da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde (CNS/MS) nortearam o desenvolvimento deste estudo. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sob o parecer número 161.475.
O processo analítico permitiu identificar três categorias temáticas: (1) Motivações para trabalhar cogestão, (2) Experimentando a cogestão e (3) Avanços e desafios relacionados à cogestão.
A primeira categoria de análise evidenciou que a distância entre a vivência de um modelo de gestão tradicional e a ideia de participação nas instâncias decisórias revelou-se um aspecto fundamental na problematização das práticas de gestão nos processos de trabalho dos apoiadores. A gestão tradicional vivenciada pelos trabalhadores no cotidiano dos serviços de saúde, revelada no modo de gerenciar o trabalho em saúde segundo regras tayloristas, normatização burocrática, supervisão direta e controle de horário, mostrou-se um elemento limitador da ideia de participação em espaços decisórios. Ao mesmo tempo a cogestão foi vislumbrada pelos trabalhadores como sendo a possibilidade de mudança dessa situação já instituída.
Enquanto a segunda categoria de análise aborda os dispositivos utilizados e as facilidades e dificuldades encontradas para experimentar a cogestão. Dentre os dispositivos escolhidos para efetivar a diretriz da cogestão, o Grupo de Trabalho em Humanização (GTH) foi proposto por quatro dos sete apoiadores entrevistados. Os apoiadores utilizaram o método da roda para colocar em prática suas propostas de cogestão. O método da roda se propõe a trabalhar objetivando a constituição de coletivos organizados, o que implica em construir capacidade de análise e de cogestão para que os agrupamentos lidem tanto com a produção de bens ou serviços, quanto com sua própria constituição.
A terceira categoria discute os efeitos da intervenção no território resgatando os avanços e desafios da cogestão. A intervenção contribuiu para alguns avanços, como a criação de espaços coletivos para a gestão, entretanto, desafios como a concentração de poder e a limitação da participação do trabalhador dos espaços decisórios ainda permanecem.
Para viabilizar este novo modo de gestão, foram criados horários para encontros periódicos do coletivo com tempo para reuniões ordinárias dentro do período normal de trabalho, ou seja, o planejamento e a reflexão fazendo parte do processo habitual de trabalho. Em tais espaços, a equipe discute necessidades de saúde, divisão de tarefas, elaboração de planos e faz reflexão acerca de seu processo de trabalho de maneira que mudanças possam ser sugeridas. E este é um efeito emancipatório, a ampliação da autonomia de uma pessoa depende sempre da ampliação de sua capacidade de compreender e de agir sobre o mundo e sobre si mesma.
Os movimentos disparados pelas intervenções dos apoiadores nos serviços com relação à cogestão foram importantes para promover mudanças em processos anteriormente cristalizados. Os processos de intervenção possibilitaram criar estratégias para enfrentar desafios, quais sejam: articulação de iniciativas de humanização do SUS, até então isoladas; mapeamento do processo de trabalho nos serviços de saúde, identificando pontos críticos e elaborando estratégias de superação; criação de rodas de conversa incluindo trabalhadores, gestores e usuários para reflexão a respeito do processo de trabalho e da assistência nos serviços de saúde; organização de fluxos de atendimento, melhorando acessibilidade e identificando ações a serem implementadas, no sentido de possibilitar atendimento em saúde com resolutividade. Os planos de intervenção dispararam rodas de conversa nos serviços, interferindo nos modos de gestão e atenção instituídos. Os apoiadores indicam que o curso lhes permitiu ampliar suas caixas de ferramentas, qualificando ações já disparadas, ampliando a capacidade de análise dos profissionais da saúde.
Pode-se dizer, a partir dos discursos feitos pelos apoiadores formados no curso, que essa ação se constituiu como oportunidade de problematização da experiência de trabalho vivenciada como profissionais da saúde, uma vez que privilegiou o compartilhamento de experiências entre tais atores, e destes com os profissionais de saúde atuantes nos serviços em que as intervenções se deram, e os usuários do SUS.
Desse modo, o plano de intervenção foi um dispositivo que provocou mudanças, fomentou grupalidade e redes esfriadas em função de isolamentos das ações no campo da Saúde, permitiu construção de redes novas e colocou a humanização das ações de saúde em pauta.
Pode-se observar que a cogestão de coletivos organizados para a produção depende de vontade política e de condições objetivas. A proposta é trabalhar sujeitos e instituições. Um movimento interferindo e modificando o outro.
Pensar novos valores e uma nova ética é se organizar de uma vida material que estimule a lógica da cogestão e não a outra, da dominação. Pensar não em dispositivos de controle, mas na capacidade de instituir compartilhamento, pois a base da cogestão é ninguém governar sozinho. Tomar o compromisso e a autonomia do Sujeito como uma relação dialética, uma relação indissociável do modo como se opera a relação entre democracia e instituição.
Movimentos inovadores e criativos por parte dos trabalhadores já estão em curso, em princípio não precisando ser estimulados, mas fortalecidos como potência. Todavia, há que ressaltar que no trabalho atual em saúde vivem-se pressões e controle que têm oprimido, desvalorizado e desestimulado os movimentos e a potência dos coletivos.
A reflexão até aqui desenvolvida indica que a construção de espaços coletivos é um modelo de gestão que possibilita e favorece, mas não garante a autonomia dos sujeitos. Acredita-se que ambas as pretensões dependem de trabalhadores que reflitam e tomem decisões, ou seja, depende de sujeitos éticos e políticos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Brasil. Política Nacional de Humanização: Documento base para gestores e trabalhadores do SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. [ Links ]
2. Brasil. Projeto do Curso de Formação de Apoiadores Institucionais para a Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. [ Links ]
3. Campos GWDS. Um Método para Análise de Coletivos. 3ª ed. São Paulo: HUCITEC; 2007. [ Links ]
4. Minayo MC. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; 2004. p. 20-70. [ Links ]
Endereço para correspondência
Daniela Baumgart de Liz Calderon
Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Ciências da Saúde
Campus Universitário - Trindade
CEP: 88040-900. Florianópolis, SC – Brasil
Email: danielabliz@yahoo.com.br
Artigo encaminhado 05/10/2014
Aceito para publicação em 13/11/2014
Notas