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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

 ISSN 2236-6407

     

https://doi.org/10.5433/2236-6407.2020v11n1p71 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O terapeuta suficientemente narrativo na clínica psicanalítica infantil

 

The sufficiently narrative therapist in the children's psychoanalytic clinic

 

El terapeuta suficientemente narrativo en la clínica psicanalítica infantil

 

 

Débora Trombini Comis; Camilla Baldicera Biazus; Ana Cristina Antunes Rezende Tolfo

Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões

 

 


RESUMO

A escrita dessa pesquisa movimenta quatro questões teóricas importantes no âmbito da clínica Psicanalítica: a infância, brincar e narrar. Buscar-se-á ao longo desse percurso tecer relações entre elas a fim de que seja possível refletir sobre o lugar e a função do psicólogo na clínica psicanalítica infantil partindo da noção de narração, a partir de um referencial teórico psicanalítico de abordagem winnicottiana. A pesquisa foi realizada com três profissionais da área, que são autores importantes dentro do cenário da clínica psicanalítica infantil e, que vem se ocupando atualmente, de reflexões acerca da função narrativa do psicoterapeuta. A coleta de dados deu-se a partir de um questionário estruturado e os dados foram interpretados pelo método de análise de conteúdo. A partir da pesquisa foi possível pensar em algumas especificidades da clínica psicanalítica infantil como o papel do brincar e o espaço dos pais no processo psicoterápico além problematizar a noção de narração no setting levando em consideração as especificidades desta clínica.

Palavras-chave: clínica psicanalítica infantil; brincar; narrar.


ABSTRACT

The writing of this research moves four important theoretical questions within the psychoanalytic clinic: childhood, play and narrate. It will be sought along this route to weave relations between them so that it is possible to reflect on the place and the function of the psychologist in the child psychoanalytic clinic starting from the notion of narration, starting from a psychoanalytic theoretical reference of Winnicottian approach. The research was carried out with three professionals of the area, who are important authors within the scenario of the child psychoanalytic clinic and, who is currently occupying, reflections on the narrative function of the psychotherapist. The data collection was based on a structured questionnaire and the data were interpreted by the content analysis method. From the research, it was possible to think of some specificities of the child psychoanalytic clinic as the role of play and the space of the parents in the psychotherapeutic process besides problematizing the notion of narration in the setting taking into account the specificities of this clinic.

Keywords: child psychoanalytic clinic; play; narrate.


RESUMEN

La escritura de esta investigación mueve cuatro cuestiones teóricas importantes en el ámbito de la clínica psicoanalítica: la infancia, jugar y narrar. Se buscará a lo largo de ese recorrido tejer relaciones entre ellas a fin de que sea posible reflexionar sobre el lugar y la función del psicólogo en la clínica psicoanalítica infantil partiendo de la noción de narración, a partir de un referencial teórico psicoanalítico de abordaje winnicottiana. La investigación fue realizada con tres profesionales del área, que son autores importantes dentro del escenario de la clínica psicoanalítica infantil y, que viene ocupándose actualmente, de reflexiones acerca de la función narrativa del psicoterapeuta. La recolección de datos se dio a partir de un cuestionario estructurado y los datos fueron interpretados por el método de análisis de contenido. A partir de la investigación fue posible pensar en algunas especificidades de la clínica psicoanalítica infantil como el papel del juego y el espacio de los padres en el proceso psicoterápico además de problematizar la noción de narración en el setting teniendo en cuenta las especificidades de esta clínica.

Palabras clave: clínica psicoanalítica infantil; jugar; narrar.


 

 

INTRODUÇÃO

A escrita dessa pesquisa buscou refletir sobre o lugar e a função do psicólogo na clínica psicanalítica infantil a partir da noção de narração. O verbo "narrar" vem do latim narrare, que significa: contar, relatar, expor um fato, uma história (Oliveira, 2009).

O conceito de narrativa usado nesse trabalho baseia-se, primeiramente, na concepção de do Filósofo Benjamin. Segundo o autor, em sua obra "O narrador" (1936/1987), a narrativa:

não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele (Benjamin, 1936/1987, p. 205).

Para o filósofo Benjamin (1936/1987, p. 197), "o narrador assimila a sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer". Dessa forma, Benjamin coloca a narração como um fazer que convoca aquilo que há de mais íntimo e singular no sujeito: a sua história - o que, consequentemente influencia a sua maneira de perceber e interpretar o mundo e as coisas. A arte de narrar possibilita uma gama de abertura de (re)significados, visto que "contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo" (Benjamin, 1936/1987, p. 205) além de proporcionar organização e sentido trazendo novos olhares e horizontes a partir de histórias. Segundo o pensamento de Benjamin, a narrativa não se importa com fatos concretos, informações, e sim com a criatividade, o autor reitera dizendo que "metade da arte da narrativa está em evitar explicações" (Benjamin, 1936/1987, p. 203).

A clínica psicanalítica infantil começa em Freud, embora ele não tenha se dedicado exclusivamente a pensar sobre as intervenções na infância. Dentre os diferentes textos que poder-se-ia citar ao longo da sua obra que, de alguma forma, produziram reflexões importantes para a prática psicanalítica infantil estão: "Escritores criativos e devaneios" (1907/1977) e "O caso do pequenos Hans" (1909/1973). No primeiro texto, Freud (1907/1977) discorre sobre a relação existente entre o brincar da criança e a escrita do poeta. Para o autor, ambos, poeta e criança, criam outra realidade na qual se torna possível elaborar e (re)significar seus conteúdos inconscientes, buscando alternativas outras para os conflitos neuróticos.

Já no texto em que Freud (1909/1973) irá discorrer sobre o caso do Pequeno Hans, observa-se, pela primeira vez na teoria freudiana, uma tentativa de pensar, planejar e colocar em prática um atendimento infantil. Hans não teve encontros pessoais com Freud, mas foi analisado a partir das anotações que seu pai levava para o analista. O pai de Hans era quem realizava as intervenções/interpretações recomendadas por Freud. Há quem diga que o caso serviu apenas como forma de Freud comprovar a existência da sua teoria sobre a sexualidade infantil. Mesmo assim, o pontapé inicial foi dado por ele, que a partir da sua clínica com adultos, concluiu que as primeiras causas dos transtornos se localizavam em fatos ocorridos na infância (Cintra & Sei, 2013). A clínica psicanalítica infantil não apresentou um desenvolvimento amplo com Freud, mas foi ele que provocou grandes reflexões que repercutem até a atualidade em novas teorias.

Anna Freud foi quem trouxe as primeiras contribuições dentro do campo psicanalítico tornando possível pensar o atendimento com crianças. De acordo com alguns autores (Cintra & Sei, 2013; Priszkulnik, 1995), a visão construída por Anna Freud para pensar as intervenções na infância era mais pedagógica. Nas sessões, Anna interpretava sonhos e desenhos, além de mediar conflitos e orientar pais, dando pouca ên-fase à atividade lúdica e sua interpretação (Cintra & Sei, 2013).

Outra autora importante dentro desse cenário foi Melanie Klein com seus estudos publicados por volta do ano de 1921 demonstrou, como referem Grana e Piva (2001), a valorização da interpretação dentro do setting, bem como da decodificação do brincar. Segundo os autores, Klein "sugere-nos uma decifração pontual do significado inconsciente embutido no material clínico produzido pela fantasia da criança" (p. 14). Seu objetivo, com isso, era atingir a camada mais profunda do inconsciente, onde estaria a angústia trazendo a ideia de uma clínica infantil com um cunho mais lúdico, pois optava pelo uso do brinquedo para acessar o inconsciente da criança, tendo como princípio básico de sua técnica aliviar a angústia do paciente.

As fundamentações teórico-técnicas de Anna Freud e Melanie Klein prevaleceram por alguns anos. Todavia, com o passar do tempo, ocorreu uma grande influência das ideias de Donald Winnicott no que diz respeito à clínica infantil (Grana & Piva, 2001). Winnicott utilizou a sua prática na Pediatria para acompanhar o desenvolvimen-to físico e emocional das crianças, destacando, a partir disso, o jogo/brincar como parte fundamental do tratamento analítico. Neste estudo, dar-se-á mais ênfase para as ideias de Winnicott, tendo em vista que é esse autor que sustenta as reflexões teóricas propostas na pesquisa.

Segundo Loparic (2001), Winnicott introduziu uma mudança paradigmática importante no campo da Psicanálise, que determinou um paradigma alternativo ao tão famoso eixo central da Psicanálise: o Complexo de Édipo. Na visão de Loparic (2001), Winnicott movimenta esse eixo central da Psicanálise para pensar não mais o "bebê na cama da mãe", mas sim o "bebê-no-colo-da-mãe". Guiado por esse novo paradigma - mãe-bebê -, Winnicott passa a ver a clínica como uma metáfora dos cuidados maternos.

O setting, segundo o autor, deve possuir aspectos relacionados à mãe-ambiente, ou seja, o terapeuta oferece constância, previsibilidade e confiabilidade no ambiente físico e no cuidado pessoal. Winnicott (1993/2011, p. 28) afirma que "na terapia, tentamos imitar o processo natural que caracteriza o comportamento de qualquer mãe em relação à sua criança". O terapeuta deve reconhecer primeiramente as necessidades do seu paciente, respeitando sua singularidade, para somente depois saber que ambiente e relação deve oferecer.

Para Winnicott (1965/1982), a interpretação na análise também é relevante, só que em conjunto com o ponderoso brincar. Sobre o brincar, Winnicott (1971/1975, p. 63) afirma que "o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz os relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia" (Winnicott, 1971/1975, p. 63). Neste sentido, para o autor, o setting tem importante função no processo psicoterápico, pois permite ao paciente retomar sua criatividade com a emergência do gesto espontâneo. Winnicott apresenta o brincar como principal e fundamental característica da terapia.

Através das concepções que Winnicott trouxe de maneira inovadora para a Psicanálise, pode-se perceber uma nova maneira de funcionamento da psicoterapia, conforme bem descreve Hisada (2002). Para a autora, Winnicott compreende o setting como metáfora dos cuidados maternos e, assim, e o objetivo desse espaço passa a ser o favorecimento do desenvolvimento pessoal do paciente e não sua cura. Hisada (2002, p. 5) defende ainda que o setting "não é moldura, não é interpretação, não é a observação do fenômeno", o setting é, sim, um espaço potente, onde acontecem transformações e, por isso, vai muito além de algo fixo. Setting é movimento, é relação.

A comunicação na sessão psicoterápica infantil se dá de maneira distinta da sessão com adultos, pois sua base é não-verbal e particularmente marcada pela ludicidade. Para se compreender a comunicação da criança em sessão é necessário estar receptivo a isso, é preciso olhar o brincar e a clínica infantil com outros olhos, com os "olhos de dentro". Como declara Falcão (2006, p. 7), esses olhos são "os olhos que enxergam para dentro, (...) que veem as imaginações, as reminiscências, os sonhos, as ideias, as doidices que a gente pensa".

O encontro entre a narrativa e a Psicanálise é proposto pelo psicanalista Gutfreind (2010), que compreende ambos os fazeres enquanto espaços de produção de subjetividades e entende o processo psicoterápico enquanto encontro narrativo possibilita resgatar a função do narrar a partir de um ambiente em que se conta. Esse espaço pode ser capaz de fomentar a capacidade de contar, chegar ao imaginário e entrar no caminho de construção da subjetividade. Assim, a Psicanálise parece ser, no seu próprio ato de feitura, resultante de processos de narração, onde o setting, como palco do encontro de diferentes histórias e experiências, possibilita aos seus atores (paciente e terapeuta) usar-se da narração para atualizar sentidos e (re)significá-los dentro da relação.

Corso e Corso (2011, p.21) afirmam que "tende-se a subestimar a função da narrativa na construção e sustentação da nossa personalidade: geralmente a pensamos como acessória, como lúdica e muito poucas vezes como essencial". A narrativa é essencial no processo psicoterápico, pois ela se assemelha ao brincar, leva o paciente ao encontro de sua criatividade. Segundo os autores, as crianças "precisam de histórias para se compreender e se constituir" (Corso & Corso, 2011, p. 97).

O narrar e o brincar proporcionam olhar e viver com outros olhos a clínica infantil. Conforme Castro e Sturme (2009, p. 108), "o brincar pode ser entendido como texto narrativo que é pré-partilhado pela dupla, não existindo sentidos prontos, ou interpretações previamente saturadas pela mente do terapeuta" (Castro & Sturmer, 2009, p. 108). Segundo os autores, as narrativas vistas na clínica, hoje, são entendidas como insaturadas, pois "são abertas, plenas de vários sentidos e possibilidades, sem que o terapeuta "entregue" uma interpretação pronta. (...) não existindo sentidos prontos, mas a serem descobertos ou criados" (p. 91).

O brincar pode se dar de diferentes maneiras, mas sempre vai envolver processos de subjetivação, um espaço de produção de marcas, sentidos, expansão (Gutfreind, 2014). O brincar desperta no paciente e no terapeuta um universo de sentidos muito importante para a terapia e para o desenvolvimento do sujeito. As crianças desejam/necessitam viver novas experiências que podem ser descobertas por meio do brincar e, desse modo, o brincar vai possibilitar outras formas de ser e fazer, produzindo espaços para que o sujeito construa e encontre seus próprios sentidos para a realidade (Gutfreind, 2014).

Frente a essas considerações, torna-se possível dizer que por meio do brincar a criança demonstra seus afetos, sentimentos e desejos. Mas qual deve ser a postura do terapeuta diante dos conteúdos que a criança traz e expressa a partir do seu brincar? No começo da história da Psicanálise as intervenções na clínica eram sustentadas quase exclusivamente pela interpretação; contudo, hoje não mais o são, pois houve um movimento dentro da teoria (Grana, 2014). Atualmente, existe uma tendência a (re)pensar as intervenções prontas como a interpretação, pois houve uma mudança e rejeição do pensamento linear e positivista. A Psicologia está mais interessada nas possibilidades, processos, interações e influências recíprocas (Castro & Sturmer, 2009).

A mudança do paradigma da interpretação para o paradigma do diálogo transicional, conforme aponta Grana (2014), se deu pela perda progressiva do valor teórico/descritivo e pela perda da eficácia da interpretação. Notou-se que "o ser e a presença são condições de possibilidade de experiência de verdade" (Grana, 2014, p 56). Winnicott aparece como um reformador da técnica psicanalítica clássica, pois ele desconstruirá o estilo interpretativo "conduzindo-o ao extremo da simplicidade e da discrição, dando-lhe aos poucos a forma de um dito espirituoso, de uma piada, de uma interjeição ou, como preferia dizer, de um rabisco" (Grana, 2014, p. 22).

A técnica da Psicanálise não pode ser padrão, pois se deve permitir que cada paciente - através de sua subjetividade - indique os rumos e ritmos que a terapia tomará. Conforme ensina Kupermann (2008), o psicoterapeuta precisa se deixar ser usado e se oferecer como suporte para as manifestações afetivas do paciente, pois o processo psicoterápico exige a disponibilidade sensível do analista. Corroborando com isso, Resende (2013, p. 8) destaca que "a disponibilidade sensível do analista de escutar com o corpo, faz dele um analisador de sensações, e, da clínica, um laboratório poético". O terapeuta analisador de sensações tem o papel de escutar com o corpo da forma mais sensível que conseguir, viver o momento a partir de uma base teórica sólida e consistente que permita se movimentar em direção à singularidade do paciente.

Além de escutar com o corpo, existe outra característica fundamental do psicoterapeuta, principalmente na clínica infantil, qual seja: narrar. Brincar e narrar são necessários e fundamentais para o desenvolvimento dos sujeitos e de suas capacidades criativas (Cervi, 2014). Segundo Gutfreind (2010), a narrativa é a ponte que liga o eu e o outro e que fará sentir-nos existindo verdadeiramente, pois se faz ver/sentir pela experiência e pela palavra. Visto deste modo, é de fundamental importância se pensar na narrativa como lugar e função do psicoterapeuta na clínica com crianças.

Frente a essas considerações, seria possível pensar em um terapeuta suficientemente narrativo? Esse termo foi apresentado pela primeira vez por Diana Corso (2014), em seu texto que tem como título o próprio conceito. A autora, quando fala da importância de histórias bem contadas fala da capacidade narrativa:

por bem contadas entenda-se que não se trata de prêmios literários, mas da eficácia da narrativa. A Psicanálise como ciência é a arte da esperança, ensina-nos, e enquanto prática, insiste, em possibilitar o desenvolvimento da capacidade narrativa" (Corso, 2014).

Logo pensa-se, a partir da visão da autora, que um terapeuta suficientemente narrativo é aquele que possibilita o desenvolvimento da capacidade narrativa do paciente, a partir da sua própria capacidade de narrar. Corso (2014) deixa esse tema "quicando" no imaginário de quem lê, pois traz essa ideia no final de seu texto. Para ser um terapeuta suficientemente narrativo é preciso ser criativo e despertar um viver criativo no paciente - objetivo do tratamento psicoterápico de abordagem winnicottiana.

O termo "terapeuta suficientemente narrativo" lembra a expressão usada por Winnicott (1965/2011), "mãe suficientemente boa", e a expressão usada por Gutfreind (2010; 2014), "pais suficientemente narrativos". Segundo Winnicott (1993/2011, p. 26), a mãe suficientemente boa é aquela que consegue "despertar no bebê a capacidade de iniciar um processo de desenvolvimento pessoal e real". É uma mãe que apresenta o mundo ao bebê, o sustenta - não só fisicamente -, e contribui para a formação das noções de "real" e "irreal". Na ausência dessa mãe suficientemente boa o bebê não consegue aflorar para o seu estado original (Winnicott 1993/2011). Assim, o termo "suficientemente bom" parece fazer referência a um adjetivo que imprime qualidade, presença e cuidado à relação mãe-bebê, essa essencial para a constituição psíquica e o desenvolvimento emocional do sujeito. Usar o termo significa buscar uma aproximação com as especificidades e necessidades dessa relação, com o lugar e papel dessa mãe, que de acordo com Gutfreind (2012), pode ser compreendida como aquela pessoa que lê o mundo para o bebê, emprestando a sua capacidade de pensar e sentir. Uma mãe que narra histórias e fomenta a leitura possibilita que um dia o sujeito tenha coragem de ler e narrar por si mesmo, preservando internamente a imagem daquela pessoa que lhe possibilitou segurança e desejo para criar o mundo à sua volta.

Neste sentido, a expressão usada por Gutfreind (2010; 2014), "pais suficientemente narrativos", indica que: pais suficientemente bons são pais que narram suficientemente bem o mundo interno e externo da criança para a criança. Para esses pais terem essa capacidade de narrar eles precisam antes ter narrado as suas próprias histórias e, desse modo, os pais tecem no filho uma identidade costurada de palavras e histórias, permitindo, assim, o nascimento subjetivo da criança. Para que seja possível à criança narrar, ela precisa antes ter vivenciado a experiência de ser narrada. A narração exige reconhecimento das histórias que nos constituem, a partir da introjeção da função materna de ler: "a arte de chegar às palavras começa pela qualidade das primeiras relações corporais filho e mãe" (Gutfreind, 2012, p. 176).

A partir dos conceitos de "mãe suficientemente boa" e "pais suficientemente narrativos", apresentados brevemente acima, pode-se perceber que ambos carregam a característica de serem "suficientes". Esse atributo configura uma posição entre a plenitude e a falta que consegue comportar e sustentar as necessidades exigidas da "mãe" e dos "pais" de forma positiva. O termo terapeuta suficientemente narrativo vai ao encontro disso, de uma posição entre a plenitude e a falta que é capaz de apresentar e despertar a capacidade narrativa no paciente. Essa pesquisa explora esse conceito - que não está definido - na clínica psicanalítica infantil.

A clínica psicanalítica infantil exige do terapeuta movimentos constantes, anulando, assim, uma técnica padrão e fixa. O brincar e o narrar são dois métodos usados para a ludicidade que não permitem uma técnica padrão e proporcionam uma clínica de descobertas possibilitando a criatividade. A clínica é um espaço de simplesmente viver, conviver, ser e criar de uma maneira sincera e sensível. Isso não é simples.

A importância em se pesquisar e refletir sobre a clínica psicanalítica infantil justifica-se a partir de estudos desenvolvidos por Souza e Assis (2014), que comprovam a diminuição da prática do brincar e, consequentemente, dos espaços potenciais e da narrativa na infância contemporânea. As autoras ainda exaltam a importância do brincar e do narrar para a construção subjetiva na infância, pois a comunicação lúdica e a criatividade são marcas significativas nessa fase do desenvolvimento (Souza & Assis, 2014).

Olhar para a clínica psicanalítica infantil, hoje, repensando suas formas de intervenção e, também, a possível (re)atualização dos seus conceitos é uma necessidade. Segundo Armony (2013), os termos mudaram e, junto deles, as subjetividades. Nessa esteira de movimentos e transformações, a Psicanálise não tem como ficar indiferente ou pretender ser imutável, uma vez que a prática clínica é "uma janela pela qual olhamos a cultura e a sociedade" (Armony, 2013, p. 9), onde se apresentam as subjetividades de uma época com suas potencialidades e problemas que, por tantas vezes, distanciam-se dos livros fundadores da Psicanálise.

Dessa forma, acredita-se que essa pesquisa possibilita, não só refletir sobre as especificidades e dificuldades no atendimento clínico infantil, mas também problematizar o lugar do terapeuta frente ao brincar da criança, bem como a importância da narração enquanto dispositivo terapêutico.

 

MÉTODO

Este trabalho foi realizado dentro de uma abordagem qualitativa. A partir da concepção de John W. Creswell (2010), esta é uma abordagem interpretativa na qual o pesquisador tem como objetivo compreender seu objeto de pesquisa pelo que enxerga, ouve e entende, nessa ordem. Creswell (2010) lembra que a interpretação não pode sair do contexto, história e origem em que está inserida, possibilitando o surgimento de múltiplos sentidos que podem gerar do problema. Os dados coletados são descritivos e servem para a compreensão do problema.

 

PARTICIPANTES

Para pesquisa de campo foram convidados três profissionais da área de psicologia com experiência mínima de 10 (dez) anos na prática clínica infantil e que desenvolvem estudos acerca da importância da narração enquanto função do terapeuta no contexto clínico infantil.

Os critérios de inclusão para esse estudo são: profissionais de Psicologia formados há mais de 10 (dez) anos que trabalhem com a prática da clínica psicanalítica infantil e que desenvolvam estudos acerca da importância da narração enquanto função do terapeuta no contexto clínico infantil e os critérios de exclusão são os profissionais que não estão formados há mais de 10 (dez) anos ou que não trabalhem com a clínica infantil e/ou com a abordagem psicanalítica. A amostra utilizada na pesquisa foi a não-probabilística intencional, pois o tema da narrativa na clínica psicanalítica é pouco explorado e, por isso, escolheu-se 3 (três) profissionais conhecidos nacionalmente por estudarem esse tema para serem os participantes da pesquisa. O critério para escolha foi pelo voluntariado dos mesmos, ou seja, a partir do interesse de cada um. Assim, primeiramente foi feito contato, via e-mail, com os participantes a fim de fazer o convite e explicar a proposta e objetivos da presente pesquisa. Como forma de preservar a identidade dos participantes, adotar-se-á nesta pesquisa os seguintes nomes fictícios: Alice é psicóloga clínica, psicanalista, atualmente atende jovens e adultos além de escrever livros sobre a área da psicanálise infantil. Davi, é psiquiatra, psicanalista, autor de livros de psicanálise e de livros infantis. Lara, psicóloga clínica além escreve livros sobre a clínica psicanalítica infantil.

 

INSTRUMENTOS

Para a coleta de dados da pesquisa foi realizado um questionário estruturado com os participantes, via Google docs. O questionário foi enviado por Google docs. para cada um dos participantes, os quais responderam às perguntas de forma escrita e depois retornaram suas respostas, também via Google docs., para o e-mail da pesquisadora. O questionário se fundamenta como instrumento de coleta de informações, que segundo Gil (2008), essa é uma maneira da mesma pergunta ser apresentada da mesma forma para todos os entrevistados. As questões versavam sobre a clínica psicanalítica infantil, suas características e o uso da narração na clínica.

 

ANÁLISE DE DADOS

O método utilizado para a análise de dados foi o de análise de conteúdo. Para Bardin (1977, p 19), a análise de conteúdo é "uma técnica de investigação que tem por finalidade a descrição objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação". Com essa concepção, leva-se em conta que as informações colhidas do público alvo dessa pesquisa serão analisadas por meio da metodologia da análise de conteúdo, obedecendo aos objetivos propostos por esse tipo de análise.

De acordo com Gomes (2002), esta metodologia envolve três fases: a primeira é uma pré-análise, que recai sobre a organização do material a ser analisado, exigindo uma leitura do material para ter contato com a estrutura, definindo a unidade de registro, os trechos significativos e as categorias; a segunda fase trata do material, onde se aplica o que foi definido na fase anterior. Esta fase é mais longa por exigir a releitura do mesmo material; já a terceira e última fase se dá pelo tratamento dos resultados obtidos e a interpretação. É nessa etapa final que se revela o conteúdo subjacente, o que está manifesto a partir da discussão teórica voltando-se para as tendências, ideologias e fenômenos em análise.

Para a realização da pesquisa foi enviado via Google docs., um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para cada participante. Os participantes, após leitura e concordância com o termo, assinaram e ficaram com uma cópia do documento, enviando outra cópia digitalizada via Google docs., para o e-mail da pesquisadora desse estudo. Com a finalização da pesquisa foi realizada uma devolução escrita aos participantes, além de ser informado o local de acesso do trabalho já finalizado. É indispensável reforçar que a pesquisa só teve início após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões por meio do CAAE n°. 63442416.0.0000.5353.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir de uma análise dos dados coletados e do objetivo deste estudo que foi -compreender qual a importância/papel da capacidade narrativa do terapeuta na clínica psicanalítica infantil de abordagem winnicottiana e quais as contribuições disso para essa prática- foram estruturadas três categorias de análises, sendo elas: a clínica infantil e suas especificidades, terapeuta suficientemente narrativo, brincando e narrando a clínica psicanalítica infantil.

 

A CLÍNICA INFANTIL E SUAS ESPECIFICIDADES

A clínica infantil é composta por dois personagens principais, quais sejam: paciente e psicoterapeuta. Eles interagem brincando, de acordo com as características singulares de cada personalidade. A sensibilidade do psicoterapeuta torna-se extremamente necessária de modo a se adaptar de acordo com as necessidades do paciente e se atentar para as especificidades e diferenças da clínica psicanalítica infantil em relação à clínica com adultos. Uma dessas diferenças é a inclusão de outros personagens importantes na cena, os pais.

Sobre a presença dos pais no atendimento dos filhos, os participantes destacam:

Davi - [...] um grande desafio é encontrar o lugar dos pais na clínica dos filhos. [...] Isso faz com que os terapeutas de crianças precisem hoje ser verdadeiros terapeutas familiares.

Lara - Na clínica psicanalítica com crianças acho que a maior dificuldade são os pais. Trabalho numa abordagem winnicottiana assim é possível atendê-los concomitantemente em Orientação de Pais.

Nota-se, a partir das ideias de Davi e Lara, que um dos principais desafios dentro da clínica psicanalítica infantil são os pais. A presença dos pais/cuidadores no processo psicoterápico é fundamental e muito importante para o sucesso do tratamento das crianças. É necessário que o psicoterapeuta consiga ouvir as angústias, medos e fantasias dos pais/cuidadores para conseguir entender melhor a dinâmica familiar, pois as vivências da criança são atravessadas pelos pais/cuidadores. Mas qual é o lugar dos pais no processo psicoterápico? Entende-se que o papel dos pais se relaciona àquele de coadjuvantes, ou seja, são extremamente importantes para que a cena aconteça, mas são os atores principais - paciente e psicoterapeuta - que movimentam, brincam e dão sentido à cena.

Uma característica necessária do terapeuta infantil, hoje, segundo Davi, é ser um terapeuta familiar, de modo a não olhar apenas a criança, mas a todas as pessoas que compõe a sua rede. Isso implica refletir acerca do atendimento de crianças e buscar um conhecimento além do que se manifesta na relação terapeuta-paciente. Na clínica com crianças, trabalha-se com pacientes que dependem física e emocionalmente dos pais e diante disso, é uma falha do psicoterapeuta não incluir essas pessoas (que sustentam as crianças) no processo psicoterápico. Não há como atender crianças pensando no atendimento como uma ilha, na qual a relação terapeuta-paciente estaria isolada de todas as influências e atravessamentos fora do setting, pois essa é uma ilusão que só atrapalha a prática clínica, que a distorce e que acaba por distanciar a clínica da verdadeira realidade da infância. Atender crianças hoje implica sair dos lugares-comuns que nós criamos como forma de nos defendermos da impotência e angústia que sentimos frente à realidade de dependência da criança. É dever do terapeuta de crianças buscar para além da teoria que usa na clínica construindo uma visão mais abrangente do paciente e de todas as pessoas e sistemas que os atravessam, usufruindo de uma visão mais integral e globalizante.

Os pais ocupam um papel fundamental no processo psicoterápico infantil, porém não se pode perder a dimensão de que a questão central é o sintoma infantil. Por isso exige-se um olhar minucioso e um trabalho muito cuidadoso, pois os sentimentos dos pais influenciam diretamente no processo psicoterápico da criança e o caminho que o tratamento vai seguir: a permanência - ou não - da criança no tratamento, a preservação do setting, a diminuição do sofrimento infantil, entre outros fatores, estão vinculadas à eficácia do tratamento e dependem de questões relacionadas aos pais da criança e de sua relação (dos pais) com o tratamento (Silva & Reis, 2017).

Outra especificidade da clínica psicanalítica com crianças, segundo a participante Alice, é caracterizado pelo desejo exacerbado por diagnósticos que justifiquem o uso, cada vez maior, de medicações. Sobre isso, Alice discorre:

Alice - Considero que hoje o maior desafio que se impõe nessa área diz respeito à pressa em diagnosticar síndromes e quadros, quer seja neurológicos ou comportamentais, que justifiquem o uso da medicação e economizem o questionamento do sentido dos sintomas daquela criança, naquela família e escola específicos.

Vê-se na cultura contemporânea o uso de diagnósticos para crianças como forma de enquadrar as características, ditas ruins, da criança e justificar seus comportamentos desadaptativos. Após o diagnóstico fechado, a medicação torna-se necessária para diminuir os comportamentos e melhorar a qualidade de vida, em maior parte, dos pais. Diante disso, torna-se importante um espaço de reflexão com - pais, professores, psicólogos, médicos - para pensar o processo de diagnóstico e o uso de medicação.

Como afirma Jerusalinsky (2016, p. 1) "viver no mundo da luan perdeu a sua poesia!", pois presencia-se uma "epidemia" crianças diagnosticadas - muitas vezes pelos pais ou professores - com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e estão incentivados pela mídia a buscar os medicamentos que são prescritos para o tratamento. Afinal, qual é o lugar da infância da criança na vida dos pais? É possível perceber pais cada vez mais distantes de suas responsabilidades em relação aos filhos, terceirizando cuidado, amor, presença. Sempre foi característica da infância a inquietude com aquilo que surpreende, desperta curiosidade ou com o que não consegue transmitir em palavras; porém, o que se vê hoje é uma busca incessante de uma patologização por uma sociedade sem tempo para brincar, despertar criatividade ou suportar a criatividade da criança. Desse modo, as crianças acabam por ser caladas naquilo que estão tentando transmitir aos pais/professores/sociedade, por um ideal de normalidade que na verdade não existe. Essa busca incessante por diagnósticos na infância mostra o quanto as relações estão frágeis na contemporaneidade e o quanto os cuidadores não estão conseguindo fornecer o amparo e a sustentação que a criança necessita para o desenvolvimento.

Diante do exposto, nota-se que o cenário da clínica psicanalítica infantil exige do terapeuta outra forma de comunicação e ação dentro do setting, diferentemente do adulto que já tem a comunicação verbal como principal meio de expressão. Assim, quando fica frente a frente com a clínica infantil, o terapeuta se encontra em um novo mundo cheio de dúvidas, anseios, desafios e novas responsabilidades. A vivência lúdica dentro do setting é necessária e responsável pelo processo psicoterápico quando esse tem como foco a infância.

Neste sentido, o brincar é visto pelos participantes não apenas como mais uma das especificidades da clínica psicanalítica infantil, mas como a própria possibilidade deste fazer existir e acontecer. Assim, o brincar é a característica mais presente na clínica infantil e acaba por ser a principal ferramenta de comunicação nesse espaço que promove trocas sensíveis e torna possível o processo psicoterápico. Sobre o brincar na clínica infantil e o papel do terapeuta frente ao lúdico, os participantes destacam que:

Lara - O brincar é o passaporte para a saúde mental. [...] O papel do terapeuta é possibilitar à criança o resgate da capacidade de brincar que foi perdida ou bloqueada.

Alice - Brincar é para a criança um modo de falar com as mãos, com vozes que não assume a princípio como suas, é fazer de qualquer ambiente um cenário onde se dramatizam seus dramas. É como a arte (já explicaram isso extensamente Freud e Winnicott, entre tantos), onde podemos expressar algo sem que seja assumidamente autobiográfico.

Davi - Não conseguiria definir sob pena de perder o espírito lúdico (risos sérios). Mas se precisasse introduzir uma palavra diria que o brincar é tudo. [...] Cabe ao terapeuta, eu acho, acompanhar isso, entrando na brincadeira sem tentar ser inteligente (Winnicott) e sim ou acompanhando simplesmente (e é complexo) a criança que deseja e já pode brincar sozinha.

Pode-se observar, nas palavras de Lara, que o brincar é visto como um passaporte, um espaço de entremeio, um possibilitador de saúde através das aberturas que o lúdico apresenta para os mais diversos sentimentos/pensamentos da criança. O brincar é visto aqui como o meio que permite o acesso à clínica infantil e também à saúde mental. É necessário passaporte para entrar na clínica infantil porque é preciso viajar e o brincar é o dispositivo que permite que a viagem (sem rumo e destino certos) seja feita e criada a partir da relação.

A participante Alice, de uma maneira lúdica e poética, consegue descrever o brincar como "um modo de falar com as mãos", pois a criança expressa todos os seus desejos, sentimentos, pensamentos e afetos através do brincar - e não por meio de palavras como o adulto. Brincar é o modo como a criança vê o mundo, as coisas, os sentidos e também descobre eles, exigindo a presença de corpos e não só de mentes, exigindo integração, entrega e disponibilidade do terapeuta. A relação que Alice faz do brincar com a arte faz pensar sobre uma das características de uma obra de arte: a expressão do mundo interno do artista que só ganha sentido quando compartilhada com o outro. Do mesmo modo, o brincar só ganha sentido quando compartilhado na relação terapêutica, quando entendido, sentido e narrado.

Já Davi aponta que não consegue definir o brincar. Talvez não consiga justamente porque é muito singular e depende do modo como se dá o encontro consigo mesmo e com o outro, pois o brincar ganha forma no próprio ato de feitura. Definir o brincar é tentar conter o lúdico dentro do espaço terapêutico prejudicando a capacidade criativa e o gesto espontâneo do paciente. O brincar exige um terreno propício para se desenvolver, que definitivamente, não é o dos conceitos e definições, mas sim das vivências e experimentações.

Na sequência, Davi afirma que "o brincar é tudo" na vida e na clínica infantil. O papel do terapeuta frente a esse brincar é "apenas" (o que é complexo) entrar na brincadeira ou, muitas vezes, proporcionar e trazer o pequeno paciente para o mundo do "faz de conta", mas para isso o psicoterapeuta precisa estar sensível à relação, somente - e isso é muito - brincando. O psicoterapeuta infantil precisa ser sensível e viver cada momento "simplesmente" brincando e para que isso ocorra, o psicoterapeuta necessita sair do mundo adulto para alcançar o mundo lúdico e simbólico da criança.

Segundo Winnicott (1971/1975), o ato de brincar é essencial, universal, íntimo, conduz à experiência cultural, facilita a comunicação, é espontâneo e promove a criatividade, não se limitando apenas à criança, mas estendendo-se aos adultos. A teoria winnicottiana propõe uma sessão analítica aproximada do brincar, tendo como base a confiança e a entrega para o processo psicoterápico (Winnicott, 1971/1975).

Vê-se a clínica como um espaço de ludicidade e descoberta - para paciente e psicoterapeuta. Sendo assim, é papel do psicoterapeuta estar integralmente ali, junto com a criança, brincando. Por meio do brincar criativo o psicoterapeuta se torna uma sustentação (holding) para que a criança consiga projetar na brincadeira seu mundo interno, suas angústias, seus medos, suas dores e suas alegrias. Com isso, a criança consegue (re)significar, (re)organizar e (re)ver possibilidades e sentidos outros para a sua história.

A partir das concepções apontadas pelos participantes, é interessante pensar que a interpretação não está, ou pelo menos não aparece, diretamente relacionada ao brincar no setting psicanalítico. Ao contrário do que por muitos anos parece ter caracterizado a técnica da psicanálise infantil, atualmente o brincar passa a ser compreendido muito mais como uma vivência/experiência compartilhada entre terapeuta e paciente, do que propriamente a algo que necessita ser nomeado ou decodificado.

A participante Alice lembra que "brincar é para a criança um modo de falar com as mãos, com vozes que não assume a princípio como suas, é fazer de qualquer ambiente um cenário onde se dramatizam seus dramas". Na clínica infantil, o terapeuta precisa adotar uma posição diferenciada, mais lúdica e de modo a proporcionar um encontro mais intenso que permita/desperte a narração. Essa posição se aproxima do conceito de diálogo transicional trazido por Grana (2010) à clínica psicanalítica infantil. O diálogo transicional é uma forma de comunicação indireta, através de personagens, dramatizações e metáforas, que pode ser usada em vários momentos, inclusive nos de retraimento. Esse tipo de comunicação possibilita a criatividade e aproxima-se mais da imaginação da criança por meio de personagens e histórias permitindo que paciente e terapeuta criem e narrem. Essa posição do terapeuta no setting possibilita de uma maneira mais simples o vínculo e a relação terapêutica deixando a criança em um espaço acolhedor e mais comum a ela.

Assim, poder-se dizer que, ao invés de interpretação, o brincar, na clínica infantil, exige que o terapeuta crie e compartilhe, junto com o paciente, de um espaço potencial, no qual o brincar adquira sentido na sua própria ação dentro de uma relação segura e viva no setting analítico. A presença do psicoterapeuta, o seu papel de sustentar, estar presente e viver o momento funciona como o eixo central do processo psicoterápico. Ainda sobre o lugar do psicoterapeuta na clínica psicanalítica, Grana (2014, p. 37) dispõe: "estamos ali presentes, e o paciente brinca... sozinho. Brinca porque estamos ali! Porque o vemos, o escutamos, o pensamos... também brincando, discreta e silenciosamente", ou seja, a relação é o mais importante dentro do processo psicoterápico, pois a partir dela é possível brincar, narrar e viver verdadeiramente Como nos defende Winnicott (1971/1975) "o brincar é por si mesmo uma terapia" (p. 75) pensando que um brincar compartilhado dentro do setting tem maior efeito terapêutico que a própria interpretação. Nesse sentido, o brincar é visto não só como um mero produto da sublimação dos instintos, mas também como uma forma básica de viver, universal e própria da saúde, facilitando o crescimento e estimulando as relações sociais.

A partir das falas dos participantes expostas nesta categoria, nota-se a importância de viver e compartilhar o momento junto com o paciente deixando em segundo plano a exaustiva interpretação psicanalítica, para enfatizar a criatividade e ludicidade dentro do setting por meio do brincar, produzindo assim sentidos/sentires e gerando novos modos de subjetivação. Nota-se que a clínica infantil não existe sem o brincar, pois ele é possibilitador e criador do setting, da relação e do processo psicoterápico.

 

O TERAPEUTA SUFICIENTEMENTE NARRATIVO

Além de brincar, torna-se necessária também ao terapeuta a capacidade de narrar o brincar, movimentando histórias, sentidos e personagens. Narrar o brincar se aproxima - e muito - de uma vivência literária e poética, em que o importante não é decifrar conteúdos inconscientes, mas compartilhar do território do outro a fim de se criar uma experiência sensível, produtora de novos modos de subjetivação (Comis, Tolfo & Biazus, 2016). Partindo dessa premissa, os participantes falam sobre a função e importância da narrativa dentro da clínica infantil:

Lara - No atendimento com crianças é muito importante utilizar os elementos do espaço potencial para poder comunicar-se com elas. É fundamental a presença do ser humano, narrador, pois o contar histórias resgata uma das formas mais antigas de transmissão da experiência humana, que é o encontro entre o narrador e o ouvinte. As histórias buscam o crescimento.

Alice - A narrativa associada ao brincar é parte da cena. [...] assim como para traduzir o que eles precisam dizer sem saber que estão dizendo, nesse sentido tem as características do sonho.

Davi - Fundamental. O desenvolvimento da criança depende de interações adequadas, ricas, continentes com seus cuidadores. Para isso algumas condições são necessárias como espargir fantasmas (não historiados) da história dos pais, estar o mais livre possível para olhar, tocar, cuidar, acompanhar e poder banhar a criança com narratividade. A narrativa permite isso, é um mediador, um objeto cultural, um entre dois que permite, na transferência, recuperar a qualidade das interações e relançar a criança no interesse por si mesma (Diatkine) e o mundo.

Analisando as palavras de Lara, pode-se perceber que ela traz a visão de narrar como um espaço potencial onde é possível promover encontros entre humanos, na clínica e na vida. Assim, a psicoterapia pode ser vista como um encontro narrativo, o qual oferece oportunidade de redescobertas a partir de um ambiente que "conta". Para a participante, a narração é vista como o contar histórias e como elemento do espaço potencial. A narração enquanto elemento do espaço potencial exige uma relação próxima e muito segura dos envolvidos - paciente e terapeuta - na qual seja possível reconhecer a diferenciação eu-outro para então, se utilizar desse espaço. Criar uma ponte entre a realidade interna e externa, que permita ao sujeito significar e sentir como real a sua existência nesse mundo.

Considerando o texto de Alice, é possível aproximar a noção de narração e de sonho, visto que ambos movimentam o mundo interno e brincam com seus sentidos. O sonho tem a capacidade de fazer acontecer - através de nosso inconsciente - os fatos mais impossíveis sem ter que torna-los reais, se aproximando muito da narração onde também é possível fazer acontecer, criar, dar sentido a fatos e sentimentos do dia-a-dia, transformando-os a partir do desejo daquele que narra.

Partindo do discurso de Davi, que define a narrativa como fundamental, pensa-se nela como condição para existir, ser e se constituir; diante disso, talvez nada exista sem a narração pois para algo existir precisa ser narrado por outro alguém que consiga e tenha a capacidade de narrar. Para essa narração ser possível é necessário, como refere Davi, "estar o mais livre possível para olhar, tocar, cuidar, acompanhar" e ser verdadeiramente si mesmo. A narrativa é a possibilidade de um encontro significativo entre o dentro e o fora. Davi, nesse sentido, se aproxima muito da narrativa enquanto espaço potencial da Lara, pois vê a narrativa como "um entre dois", o que aproxima e faz acontecer o viver clínico.

É importante destacar que as crianças desejam encontrar sentido para as suas experiências, bem como para os seus sentimentos, o que por meio do narrar se torna possível, visto que a narrativa permite que as angústias sejam projetadas, dando outras alternativas para a criança lidar com o seu sofrimento. Por isso a clínica infantil exige do psicoterapeuta inúmeras características e posturas que vão muito além do que meramente interpretar os conteúdos da brincadeira. Essa clínica exige que o psicoterapeuta participe ativamente, de modo a viver junto com o paciente cada momento presente envolvendo a singularidade da criança e do terapeuta. O brincar é justamente aquilo que torna a clínica infantil possível e, que convoca o psicoterapeuta a vivê-la na sua intensidade. O uso da narrativa na clínica permite dar vida ao brincar e as experiências de vida, compartilhando com o outro todas as emoções e sentimentos contidos nessa experiência e, assim, mobilizando sentidos.

As reflexões dos entrevistados acerca da função e importância da narrativa dentro do setting os conduz também a analisar o desuso ou escassez dela e de espaços que a produzam na contemporaneidade. Sobre isso afirmam:

Lara - A arte de narrar está ligada a arte de intercambiar experiências na relação humana. E na contemporaneidade estamos carecendo de trocas experienciais de alteridade, em que você necessita ser visto pelo outro. [...] É a questão tão importante do olhar.

Davi - Paradoxal. [...] um encontro mais sossegado, mais profundo e mais afeito à elaboração, portanto, narrativo.

Para Lara, a narração está vinculada à relação humana. Para narrar, é preciso ter relação e trocas experienciais, onde seja possível criar um campo compartilhado entre terapeuta e paciente, composto por aquilo que os singulariza e também por aquilo que se dá a partir desse encontro e que, desse modo, é próprio dessa relação. Diante disso, nota-se que a narração exige o olhar. É necessário que o terapeuta olhe para o paciente e o reconheça na sua singularidade; e que o paciente olhe para o terapeuta e o perceba como diferente de si, pois o olhar e o narrar são elementos essenciais para a constituição psíquica e fundamentais dentro do setting. Tendo como base o referencial psicanalítico Winnicottiano sabe-se que o bebê quando nasce só passa a existir verdadeiramente quando o outro narra o mundo para ele e apenas a partir disso é possível significar o que está na sua volta nos primeiros meses de vida. No setting, a narração é de extrema importância, pois sem ela o brincar e a relação se encontram vazios de sentidos, mas para que a narração ganhe espaço na clínica tem que existir um encontro efetivo e afetivo entre terapeuta e paciente.

Davi descreve o encontro narrativo como um espaço mais sensível, intenso, delicado e sossegado onde é possível acontecer trocas intensas e verdadeiras para que, então, aconteça a elaboração. De acordo com o participante esse espaço de sossego onde intensidades se cruzam está cada vez mais incomum de encontrar. É por meio do brincar que envolve uma ação compartilhada fértil em novos sentidos e afetos que faz deslizar não só o sintoma do paciente, mas também as histórias desses personagens que se encontram no setting e inauguram novas conexões teóricas, pessoais e existenciais.

Vindo ao encontro da fala de Davi, autores importantes da Psicanálise que trabalham com a prática clínica infantil enfatizam a importância de a narrativa estar presente nesse espaço. Em seus escritos, Gutfreind (2010) traz a narrativa como fundamental e afirma que ela se dá através de contos, cantos, relatos de vida ou conversa-fiada produzindo uma ponte de toque, olhar, atenção e afetos entre quem narra e quem ouve.

Sendo a narrativa elemento essencial para o acontecer humano e, também, para o acontecer clínico, pensa-se na possibilidade de construção de um conceito teórico, já nomeado por Corso (2014) de "terapeuta suficientemente narrativo". Se fosse possível pensarmos no que consistiria tal definição, já que a mesma se encontra em aberto, que sentidos poderiam ser mobilizados? Foi com esse intuito, que o objetivo principal dessa pesquisa nasceu. Assim sendo, os participantes foram convidados, por meio do questionário, a pensar sobre o que seria um "terapeuta suficientemente narrativo". Sobre esse conceito os participantes trazem as seguintes definições:

Alice - [...] Acho que é um profissional que não tem medo de misturar histórias em seu trabalho, não só as deixa vir como de certa forma as promove.

Lara - [...] mais intervenções do que interpretações.

Davi - [...] aquele que está disposto a receber, acolher, olhar, tocar e, sobretudo, ouvir e contar. Aquele que não teme transferências e contratransferências complexas e doloridas e próprias de todo encontro a que se dispõe estar presente sem sedar-se ou sedar.

A concepção de Alice sobre o terapeuta suficientemente narrativo vai ao encontro do que Grana (2014) nomeia como "testemunho presencial". Esse conceito refere-se ao fato do terapeuta conseguir viver cada momento dentro do setting na sua intensidade, sem medo de estar ali ou de misturar histórias pessoais, afinal, como o próprio autor apresenta, somos todos tecidos por histórias. O "testemunho presencial" fala de uma presença viva do analista no setting, da possibilidade de se permitir "estar ali" sem dar muita ênfase a questões teóricas ou à necessidade de interpretação dos conteúdos trazidos pelo paciente. Com a definição de "testemunho presencial" tem-se um terapeuta com uma postura mais ativa e viva dentro do setting, não mais tendo que assumir uma "postura-espelho", que apenas refletia o que o paciente trazia, buscando manter a neutralidade do terapeuta.

Junto do conceito de "testemunho presencial", Grana (2014) também apresenta o conceito de "diálogo transicional", que busca falar não de uma postura, mas de uma forma de fazer do terapeuta. A concepção de diálogo transicional diz da comunicação (lúdica) adotada no setting, que ocorre de forma indireta e usa o que é mais comum para a criança: a imaginação. Este diálogo acontece por meio de personagens e histórias que são narrados à criança trazendo mais sentido para o paciente.

As características dispostas por Alice vêm ao encontro das atribuídas por Lara ao terapeuta suficientemente narrativo, sendo este uma pessoa mais humana e menos detentora do saber, que deve viver o momento com mais intervenções, brincadeiras e narrativas do que interpretações. Para Lara o terapeuta suficientemente narrativo é o terapeuta real que não permite se esconder atrás de teorias e, sim, experienciar e se abrir para o imprevisível. Trata-se de um terapeuta que sustenta a sua prática muito mais na ação e no sentir, do que na teoria e nas explicações. No mesmo sentido, Alice vê o terapeuta suficientemente narrativo como aquele que não tem medo de fundir histórias e pensar a sua própria história dentro do setting, não se escondendo atrás da neutralidade, mas se colocando inteiramente no setting. O terapeuta suficientemente narrativo para Alice enxerga a clínica como um espaço de promoção de invenção e, por isso, descarta a existência de verdades absolutas. Ao invés de interpretações, talvez fosse possível falar de versões, isto é, possibilidade de sentidos e não sentidos únicos. Essa postura liberta o terapeuta de uma prática limitante que reduz o sujeito à jargões teóricos e interpretações clichês. Assim, falar de um terapeuta suficientemente narrativo, é falar de alguém que assume uma postura co-vivencial e que mais do que intervir se reconhece como parte da situação analítica e como elemento essencial para sustentá-la.

Corroborando com o pensamento de Alice e Lara, Davi descreve esse psicoterapeuta como uma pessoa aberta e humana que está na clínica vivenciando, aprendendo, absorvendo, ouvindo, olhando, tocando e narrando. Assim, Davi parece pensar a clínica como um espaço de intensidade, trocas, sensibilidades e desafios que tem como objetivo resgatar a vivacidade da vida, ou seja, experimentar diferentes modos de existência através de outras possibilidades criativas, sendo uma delas, a narração. Neste sentido, pensa-se que o "terapeuta suficientemente narrativo", definido aqui pelos participantes da pesquisa, se aproximaria do que Kupermann (2008) nomeou como a "Clínica do Sensível", um espaço de encontro entre paciente e psicoterapeuta onde é possível a criação de um ambiente brincante no qual são produzidas sensações, afetos e sentidos que geram novos modos de subjetivação.

O terapeuta suficientemente narrativo, visto por Davi, não teme reconhecer que a sua história e a sua singularidade são partes essenciais e significativas do processo psicoterápico. Ele está disposto a se relacionar com tudo que uma relação implica não temendo expressar/movimentar suas posições dentro da relação.

Estar sedado enquanto terapeuta - segundo Davi -significa não viver a clínica em sua intensidade, desse modo o terapeuta suficientemente narrativo é aquele que está presente sem sedar o paciente ou sedar-se na relação analítica pensando que os principais sedativos dentro da clínica infantil podem ser: a teoria - quando usada de uma maneira dogmática e generalista sem a flexibilidade necessária pensando a subjetividade e diversidade da clínica; a própria história do terapeuta quando não cuidada em análise pessoal; e a onipotência de acreditar saber tudo sobre uma vida que não lhe pertence. Pensar um terapeuta suficientemente narrativo livre desses sedativos é pensar alguém que valorize o encontro humano de modo a acreditar que os sentidos não estão dados, mas sim criados a partir de cada relação singular. Narrar é a possibilidade para viver esse encontro de maneira intensa e não sedativa.

Diante do exposto nessa categoria, vê-se a narração na clínica psicanalítica infantil passa a ser um instrumento fundamental para auxiliar a criança nas complexas relações interpessoais e para entrar no mundo da cultura. Narrar possibilita a criança organizar discursivamente relações de causalidade, pois a narrativa permite que a criança procure semelhança com a vida, estabelecendo assim um tipo de causalidade diferente do argumento lógico.

Frente a essas considerações, nota-se que é indispensável o terapeuta ser suficientemente narrativo nas vivências clínicas com o paciente de modo a ser uma pessoa humana, aberta e sensível as trocas da/na clínica estando disposto a afetar e se deixar afetar com as intensidades dessa relação terapêutica, não estando unicamente preocupado em manter uma postura técnica diante de tamanha ludicidade e criatividade. O terapeuta suficientemente narrativo é o terapeuta que está disposto a viver a clínica infantil em toda a sua intensidade valorizando o encontro, as trocas e os sentidos/sentires. Pode-se dizer ainda, que o terapeuta suficientemente narrativo é aquele que desenvolve uma sensibilidade mais porosa e menos blindada dentro da sua prática e que não faz uso apenas da teoria para entender o paciente, mas também do seu olhar, da sua história, da sua imaginação.

A narrativa proposta aqui não está com interesse de transmitir uma informação e sim promover o encontro e a ludicidade bem como nos propõe Benjamin (1987) quando afirma que a narrativa é uma prática que imprime de forma natural a marca do narrador por ser algo muito íntimo e singular do sujeito. Dessa forma, pode-se inferir que na postura do "terapeuta suficientemente narrativo", o setting é vivenciado como uma área de experimentação, onde se produz algo a partir da presença dos corpos e das histórias, mediante um olhar que não vai procurar o que está escondido, mas que vai ver e participar do que está acontecendo. Ao invés de resgatar conteúdos reprimidos, busca-se criar e inventar e caminhos de forma compartilhada, tomando a sessão como um jogo e não como um mistério à espera de ser revelado.

A clínica psicanalítica infantil clama por um espaço potencial com afetos e trocas sensíveis que muitas vezes não são possíveis nos outros ambientes que a criança vive. A clínica exige que o terapeuta ofereça seu corpo como território para o paciente (re)criar o seu mundo, transformando a si mesmo com isso. Para o terapeuta conseguir entrar no mundo da criança é necessária uma outra configuração de leitura, de escuta, de posição e de lugar.

 

BRINCANDO E NARRANDO A CLÍNICA PSICANALÍTICA INFANTIL

Para pensar a clínica infantil de uma forma mais lúdica e também narrativa foi proposto para que os participantes criassem uma narrativa como a intenção de deslocar eles da teoria para uma posição mais próxima do "diálogo transicional". Permitindo assim o uso da imaginação, criatividade e do lúdico para criar, a partir das suas vivências e dos seus sentimentos.

O resultado foi muito interessante, pois através das histórias criadas, os participantes conseguiram levar a clínica psicanalítica infantil para além da teoria, mobilizando suas vivências, experiências e sentimentos. Assim, as histórias criadas foram:

Lara - "Divertida mente". Filme da Disney e da Pixar que conta a história de Rilley uma garota de 11 anos que enfrenta uma série de mudanças ao mudar-se de Minnesota para S. Francisco. Gênero: aventura e fantasia. Personagens principais: as cinco emoções como a alegria, tristeza, medo, raiva e nojo que são responsáveis por armazenar as nossas memórias. Enredo: Que não existe sentimento melhor ou pior. Que a tristeza também é necessária. Que o medo nos faz sobreviver. Que muita alegria é ruim. Que temos memórias bases em que estão guardados os momentos especiais da vida de Rilley como a brincadeira com os pais, os jogos com a amigas. Esses momentos bons e especiais é que possibilitam a confiança no ambiente. Final: assim como nas Histórias eu não costumo colocar final principalmente como as Fábulas que ainda coloca uma frase final de moral. Prefiro acreditar que o final é construído ao longo da vida com as ferramentas que fomos adquirindo.

Alice - "A história sem fim", Michael Ende. Escrevi (em parceria com o Mário Corso) um capítulo inteiro sobre isso em Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia. Ali, o vir a ser de uma criança é mediado por um mundo mágico que lhe coloca todos os impasses, questões e oportunidades que gostaríamos de oferecer aos pequenos pacientes em um bom percurso terapêutico. Também no capítulo dedicado aos livros "Jardim secreto" e "Pipi meias longas", um lugar e uma menina mágicos, falamos bastante sobre o espaço potencial que as crianças precisam constituir e habitar, que é também o cenário de suas terapias. (Grifo da participante)

Davi - Nome: "Vamos brincar" é ótimo. Gênero: ficção, certamente, de tão real. Personagens: Bichos, objetos, monstros, fantasmas, ogros, lobos, fadas, bruxas, mas todos os demais estão convidados. O enredo: em aberto à espera do próximo paciente, digo, criança, digo, roteirista. Ele e o terapeuta é que vão escrever, sem roteiro nem mapa prévios. O final? Depende do enredo, mas que seja feliz por ensinar a lidar com a infelicidade.

Lara constrói sua história fazendo uma relação com o filme "Divertida mente" e traz características da clínica infantil falando das emoções que habitam o imaginário na infância. A participante afirma (com base na sua relação com a clínica e no filme) que "momentos bons e especiais é que possibilitam a confiança no ambiente", o que faz pensar que é dever do psicoterapeuta oportunizar esses momentos em sessão para a criança se sentir acolhida e confiante no espaço do setting. Sobre o final da história, Lara afirma que é construído com as ferramentas que adquirimos ao longo da vida dando a ideia de que depende do terapeuta e do paciente a construção desse final, se é que ele existe.

Já Alice, discorre sobre a importância de mundos mágicos para conseguir estar e viver na clínica infantil. Entrar no mundo da criança e conseguir dialogar com ela só é possível a partir da criação de um espaço potencial. O papel do psicoterapeuta é (re)ativar o mundo mágico do paciente de modo que o "vir a ser de uma criança" seja mediado pela imaginação e pelo lúdico, lugares esses onde os sentimentos, emoções, medos e angústias podem ser (re)significados, possibilitando a construção de novas versões e histórias.

Davi traz a ideia de uma clínica real, onde permeiam propriedades do mundo infantil, personagens do universo da criança, um lugar onde é fundamental olhar atentamente para as características do paciente e só existe a partir dele. Um espaço no qual a criança é o ator principal e a história é repleta de imprevistos, acasos e surpresas (boas e ruins), pois não é possível ter roteiros. O trajeto é construído, reconstruído e destruído pelas pessoas que vivem cada encontro. Desse modo, o fim da história é sempre incerto, pois depende do trajeto, das vivências, das pessoas.

Os participantes discorrem que a clínica é uma construção conjunta entre paciente e terapeuta onde é possível, por meio da construção de um espaço potencial, proporcionar à criança um final "feliz por ensinar a lidar com a infelicidade", como diz Davi. Assim, percebe-se, que todos os participantes construíram uma história sobre a clínica psicanalítica infantil tendo como base as suas experiências, a sua imaginação, as suas histórias. Como afirma Benjamin (1936/1987, p. 197) a narrativa imprime de forma natural a marca do narrador "como a mão do oleiro na argila do vaso".

Pensa-se serem estes os elementos que compõem a postura narrativa do terapeuta dentro do setting: história, imaginação, autoria, singularidade. Benjamin (2002, p. 115) questiona se "a narração não criaria, muitas vezes, o clima apropriado e a condição mais favorável de uma cura? Não seria toda doença curável se ela se deixasse levar pela correnteza da narração até a foz?" Acredita-se que sim e por isso pensa-se em uma postura diferenciada na clínica psicanalítica infantil, a de um terapeuta que consiga, de forma suficientemente, narrar.

Portanto, quando se fala de um terapeuta suficientemente narrativo, acredita-se estar falando de alguém que consegue se perceber dentro da prática clínica, de forma autêntica e sensível, sem se prender às teorias, mas buscando construir um espaço singular de encontro com o outro, onde a relação é o principal dispositivo para movimentar sentidos e histórias deixando-se "levar pela correnteza da narração" (Benjamin, 2002, p. 115)

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da realização desta pesquisa tornou-se possível refletir a função/postura do terapeuta suficientemente narrativo por meio das especificidades desta clínica e descobrir que esta é uma postura possível e necessária na clínica infantil. Nota-se que a clínica infantil é diferenciada e exige do psicoterapeuta uma postura sensível e criativa, pois o atendimento infantil só acontece por meio da relação, do brincar e da presença ativa dos cuidadores no processo psicoterápico, logo, é necessário que o terapeuta seja, verdadeiramente, um terapeuta familiar, de modo a adotar uma função de psicoterapeuta infantil descobrindo/mostrando o lugar dos pais nesse processo. Portanto, é de extrema importância (re)pensar o ser e o fazer do psicoterapeuta infantil para além da teoria.

O brincar - que é fundamental na clínica infantil - deixa de ser simplesmente um verbo para se tornar um modo de ser e fazer, convocando a singularidade do terapeuta e da criança no processo. Como apresenta os resultados, o brincar deixa de ser interpretado para ser vivenciado enquanto experiência na clínica convocando o psicoterapeuta a participar de maneira ativa e viva da relação -que é considerada o ponto mais importante do setting.

Com base nos resultados dessa pesquisa pode-se dizer que o terapeuta suficientemente narrativo é aquele que vive com intensidade e está presente em cena (testemunho presencial) mas principalmente, aquele que consegue adotar uma comunicação lúdica e sensível com a criança (diálogo transicional) (Grana, 2014). Portanto, ser um terapeuta suficientemente narrativo na clínica infantil psicanalítica na atualidade é um imenso desafio para qualquer terapeuta, uma vez que se vive em um mundo acelerado, onde é notável a diminuição do experimentar e, consequentemente, do narrar. O resultado da última categoria de análise - brincando e narrando a clínica psicanalítica infantil - mostrou que é possível falar sobre a clínica para além das suas teorias imprimindo, de modo muito genuíno, a subjetividade e singularidade daquele que narra.

Com base nisso pode-se afirmar que o psicoterapeuta tem o dever de tornar esse ambiente (da clínica) narrativo desenvolvendo a função narrativa em si para então oportunizar a capacidade narrativa em seu paciente. A narração em si é um processo psicoterapêutico, pois provoca movimento e reflexão, possibilitando a elaboração da vida psíquica e proporcionando um suporte ao crescimento.

Desse modo, o terapeuta suficientemente narrativo é um terapeuta com uma sensibilidade mais porosa, não fazendo uso apenas da teoria para acessar e entender o paciente, mas também do seu olhar, da sua história, da sua imaginação e da sua criatividade. Esse termo/postura/função começou a ser lapidado nesse trabalho e continuará a ser esculpido em cada prática clínica sensível, aberta, reflexiva e narrativa. Essa postura aparece nos momentos que o psicoterapeuta se permite viver e sentir o momento sem medo, valorizando a relação, a imaginação e as histórias.

 

REFERÊNCIAS

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Bardin, L. (1977). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

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Recebido em: 29/11/2017
1ª revisão em: 17/06/2018
Aceito em: 06/12/2018

 

 

CONFLITOS DE INTERESSES
Os autores declaram não haver conflitos de interesse.
SOBRE AS AUTORAS
Débora Trombini Comis é psicóloga pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões.
E-mail: deboracomis@hotmail.com
Camilla Baldicera Biazus é psicóloga pelo Centro Universitário Franciscano, mestre Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e doutora em Linguística pela Universidade Federal de Santa Maria.
E-mail: camillabiazus@yahoo.com.br
Ana Cristina Antunes Rezende Tolfo é psicóloga pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões.
E-mail: anatolfo@hotmail.com

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