Estudos Interdisciplinares em Psicologia
ISSN 2236-6407
https://doi.org/10.5433/2236-6407.2020v11n3p196
ARTIGOS ORIGINAIS
A lógica do significante como um método de pesquisa em psicanálise
The logic of the signifier as a research method in psychoanalysis
La lógica del significante como método de investigación en psicoanálisis
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
RESUMO
A pesquisa em psicanálise é um tema recorrentemente debatido e possui um já extenso histórico no contexto brasileiro. Este texto parte de uma discussão a respeito desse tema, mais especificamente, de uma discussão suscitada pelo texto Pesquisa de tipo teórico, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, acerca da utilização do significante como modalidade própria de pesquisa psicanalítica. Para trabalhar tal questão, foram abordados os fundamentos do conceito de significante de Ferdinand de Saussure, bem como a sua passagem para a psicanálise, com o trabalho de Jacques Lacan. Com a elaboração da teoria do significante lacaniano, foi identificado que o significante não funciona como um conceito, mas como um método de abordagem, o que justifica compreendê-lo como uma lógica em detrimento de tratá-lo como um termo ordinário. Posteriormente, foram explorados o alcance e as implicações desse método de pesquisa, tendo como chaves de leitura importantes textos de Roland Barthes e Michel Foucault.
Palavras-chave: significante; pesquisa; método; Lacan; psicanálise.
ABSTRACT
The research in psychoanalysis is a subject frequently debated and has a very extensive history in the Brazilian context. This text starts from a discussion about this theme, more specifically, an argue raised by the text Pesquisa de tipo teórico, by Garcia-Roza, about the use of the signifier as an inherent modality of psychoanalytic research. To address this issue, the foundations of the concept of signifier were approached in Saussure's text, as well as its use in psychoanalysis, with the work of Lacan. With the elaboration of the Lacanian signifier theory, it was identified that the signifier works not as a concept, but as a method of approach, which justifies understanding it as a logic rather than dealing with it as an ordinary term. Then, the scope and implications of this type of research method were explored, having as key reading important texts by Barthes and Foucault.
Keywords: signifier; research; method; Lacan; psychoanalysis.
RESUMEN
La investigación en psicoanálisis es un tema recurrentemente debatido y tiene una muy extensa historia en el contexto brasileno. Este texto parte de una discusión sobre este tema, más específicamente, de una discusión planteada por el texto Pesquisa de tipo teórico, de Garcia-Roza, acerca de la utilización del significante como modalidad propia de la investigación psicoanalítica. Para trabajar tal cuestión, fueron abordados los fundamentos del concepto de significante, en el texto de Saussure, así como su transición para el psicoanálisis, con el trabajo de Lacan. Con la elaboración de la teoría del significante lacaniano, fue identificado que el significante no funciona como un concepto, sino como un método de enfoque, lo que justifica comprenderlo como una lógica en lugar de tratarlo como un término ordinario. En seguida, fueron explorados el alcance y las implicaciones de este método de investigación, teniendo como llaves de lectura textos importantes de Barthes y Foucault.
Palabras clave: significante; investigación; método; Lacan; psicoanálisis.
INTRODUÇÃO
O tema da pesquisa em psicanálise (ou pesquisa psicanalítica) tem sido objeto de estudo, demarcação, debates e eventos ao longo de vários anos, desde o incurso da psicanálise no terreno universitário brasileiro (ver, p. ex., Birman, 1994a; 1994b; 1996; Garcia-Roza, 1994; Mezan, 1993; 2000). O que muitas dessas discussões apresentam é que a relação entre psicanálise e universidade pode parecer controversa, porque ela pode causar, variavelmente, questões acerca da configuração de uma pesquisa que, ao mesmo tempo, realize uma interseção dos dois terrenos, sem, todavia, descaracterizar cada um dos elementos envolvidos.
A título de distinção provisória, a pesquisa sobre psicanálise, por exemplo, poderia ser compreendida a partir dos moldes clássicos de uma escrita acadêmica em ciências humanas - que possui sua forma de construção textual própria, que envolve um distanciamento adequado do objeto de pesquisa, para extrair, a partir de uma abordagem compreensiva,1 a sua dinâmica interna, em termos epistemológicos, históricos, culturais e filosóficos.2
Agora, aquilo que poder-se-ia entender, de maneira ainda bastante embrionária, como pesquisa psicanalítica (ou pesquisa em psicanálise) diz respeito (tomando por base alguns dos trabalhos mencionados no primeiro parágrafo) não só ao conteúdo explicitamente psicanalítico, mas também, de uma forma específica e irredutível ao modelo de trabalho acadêmico. Embora este possua o seu lugar e utilidade - como visto na exigência acadêmica de um rigor teórico-conceitual para a realização de qualquer pesquisa -, pode corromper a especificidade daquilo que intenta apreender ou transmitir - ao necessitar, por exemplo, de um tipo de forma determinada de apresentação do objeto de estudo. Em outras palavras, a ideia é que a pesquisa psicanalítica exigiria uma maneira diferente de lidar com o objeto (ou, em alguns casos, com a própria falta dele3), porquanto, com o método e (consequentemente?) com a escrita.
A relação entre esses dois "terrenos" pode ser motivo de intensa discussão, pois a introdução, por exemplo, mais explícita da psicanálise no terreno universitário pode resultar em um "contrato tenso", que incorreria em uma possível supressão da especificidade do campo psicanalítico. Não se pretende afirmar, com isso, uma impossibilidade da pesquisa psicanalítica na universidade. Intenta-se, antes, cernir algo que diz respeito a uma particularidade do campo psicanalítico que pode soar incompatível com os ditames acadêmicos. O presente texto busca situar e explorar um ponto específico da psicanálise que pode ser um dos motivos para essa "tensão".
Apesar de ter sido considerado um modo bastante reduzido de pesquisa em psicanálise por Renato Mezan (mas também por ter pensado que esta seria o único modo que o seu interlocutor considerava como legítima), Luiz Alfredo Garcia-Roza (1994) havia proposto um modelo de definição que pôde ser, no 1° Encontro Nacional de Pesquisa em Psicanálise, caracterizada como releitura. Esta serviria para produzir, a partir do texto pesquisado, um outro discurso de caráter transformador, a partir do que Garcia-Roza denominou de "textualidade do texto". A "ferramenta" necessária para provocar essa "releitura", também denominada por Garcia-Roza de "textualidade do texto", é o significante: tomar os termos do texto como significantes viabilizaria a abertura do texto para novas possibilidades de interpretação. Aliás, o fato de isso não ser exclusividade da pesquisa com textos, mas corriqueira também na clínica psicanalítica, levará Mezan a chamar essa abordagem de (quase) uma "clínica do texto" (Garcia-Roza, 1994, p. 16-17, 24-26).
Seria possível, aliás, abrir um breve parêntese para incluir um termo que se encontra com frequência na ordem do dia, a saber, o de desleitura. Talvez, entretanto, não se deva atribuir a ele a mesma função que a releitura. A desleitura é um termo atribuído ao trabalho de crítica literária (mais especificamente, da teoria da poesia) de Harold Bloom (1973/1997; 1975), que foi recentemente utilizado no campo da psicanálise para realizar uma crítica à apropriação milleriana do texto de Lacan (Goldenberg, 2018). Em Bloom, misreading recebeu algumas traduções: ora "má leitura" ora "leitura distorcida", na tradução de Marcos Santarrita (Bloom, 1973/2002), e "desleitura", na tradução de Thelma Nobrega (Bloom, 1975/2003). Além dessas traduções, pode-se utilizar também "leitura errada", para ser mais literal. Todavia, o termo "desleitura" tornou-se mais utilizado do que os demais. E algo curioso em relação a isso é o seguinte: a adoção desse termo possui um acréscimo de sentido, em relação aos demais, que convém para a proposta de Goldenberg. Desleitura possui uma conotação de "desfazer uma leitura" que os outros termos, mais literais, não possuem. Intencionalmente ou não, ao adotar desleitura, em vez de "leitura distorcida" ou "má leitura", tal acepção o auxilia na expressão do seu objetivo: tentar desfazer a leitura (para ele, distorcida) de Miller - se ele consegue, cabe ser discutido, com mais detalhes, em outro lugar.
Em Bloom, por sua vez, misreading, que pode ser chamado também de "apropriação poética" (poeticmisprision) (Bloom, 1973/1997, p. xxiii, 1973/2002, p. 24), não é exatamente um conceito (como apropriado por Goldenberg), mas uma palavra usual. Ela é uma ação executada por todo poeta "forte", capaz de empreender - em contraposição ao poeta "fraco", que tende a idealizar (Bloom, 1973/1997, p. 5), ser criterioso e justo (1973/1997, p. 19) com o texto - um ato de decisão do sentido do poema. Isso resulta, frequentemente, em uma leitura distorcida - mais adiante ficará mais evidente porque o emprego "leitura errada" parece inadequado - deste para fundar, a partir dele, um espaço para si, com uma leitura que carrega uma espécie de "correção criativa" da interpretação distorcida. No fundo, o autor decide a lógica do texto do precursor para, em seguida, propor uma leitura corretiva mais atrativa (ver, p. ex., Bloom, 1973/1997, p. 19, 30, 1975, p. 3-4).
Após apontar essa retomada atual do termo "desleitura" e introduzir a discussão levantada por Garcia-Roza e Mezan, o objetivo deste texto é elaborar uma explanação pormenorizada acerca da funcionalidade do significante, bem como seus fundamentos, enquanto método de pesquisa psicanalítica. Embora os autores tenham sondado essa "ferramenta" na ocasião, o formato como foi explorada -uma conferência em evento - não proporcionou um efetivo alcance das potencialidades de pesquisa, nem mesmo apenas estritamente teórica, como seria o caso proposto por Garcia-Roza. Posteriormente, a questão será abordada a partir do tratamento de uma hipótese acerca da forma como procedeu a "releitura" ou "desleitura" do texto freudiano por Lacan.
O SIGNIFICANTE: FUNDAMENTO E MÉTODO
Não é nenhuma novidade afirmar que a origem do significante no campo da psicanálise deriva-se do trabalho de Lacan. Inclusive, esse vocábulo possui uma posição privilegiada na obra do autor. Lacan não só o conceitualizou - é, entretanto, arriscado atribuir-lhe esse feito em sua acepção mais rígida, devido tanto ao seu estilo refratário à conduta universitária geral, ou ao seu temor pela fixidez, quanto à própria natureza que atribui ao termo (como se verá) -, dentro da psicanálise, como também operou esse termo em sua teoria (pesquisa e empréstimos terminológicos) e clínica. O significante, bem como o significado -este, porém, sendo relegado a uma posição secundária -, tornam-se, principalmente ao longo do projeto de "retorno a Freud",4 instrumentos que lhe servirão para reformular o estatuto epistemológico da psicanálise.
Contudo, antes de adentrar no modo como esse termo serviu como operador metodológico para Lacan e, por conseguinte, apurar a racionalidade concernente a esse método de pesquisa, seria mais adequado iniciar com uma concisa genealogia do termo. Isso, inclusive, auxiliará a ilustrar como a apropriação desse termo carrega consigo a sua natureza conceitual sui generis.
Aparecendo ainda, apenas de maneira tímida, no discurso de anúncio do seu programa de renovação da psicanálise,5 que delimita a sua posição epistemológica na radicalização da função da fala calcada em uma teoria da linguagem (Lacan, 1953/1998), o significante comporá uma posição central nos desenvolvimentos teóricos do autor a partir de então. O inconsciente é caracterizado não mais pelo mental, pelo libidinal, pelo instintivo, pelo psíquico ou mesmo pelo energético (ver, p. ex., Bowie, 1993, p. 71-72; Simanke, 2003, p. 280-284), mas pelo caráter transindividual, entendido como discurso do outro (Lacan, 1953/1998, p. 266) (que, rapidamente, em textos posteriores, se transformará em "Outro", a partir de uma diferenciação mais apurada das ordens do simbólico e do imaginário).
O significante não é, entretanto, um termo original de Lacan, embora a forma como o utiliza o seja, ou mesmo derivado de alguma parte do texto freudiano. É, antes, um termo advindo da linguística moderna, de Ferdinand de Saussure, cujos trabalhos influenciaram grande parte do meio intelectual francês ao longo de todo século XX. Inclusive, a leitura lacaniana de Saussure não foi "direta". Muitos tenderiam a pensar, até hoje, que Lacan teria realizado uma leitura saussuriana de Freud - bem como conservado os pressupostos biológicos deste -, mas, ao que tudo indica, outros autores foram mais cruciais para a constituição do edifício teórico de Lacan e sua reformulação dos conceitos freudianos. A leitura que Lacan realiza de Saussure passa, primeiro, por Claude Lévi-Strauss, cuja leitura não deixou de receber forte influência de Roman Jakobson (Bowie, 1993, p. 58-59; Nobus, 2003, p. 54).
Markos Zafiropoulos (2010) realizou uma pesquisa que se dedica a apresentar a importância dos trabalhos de Lévi-Strauss no ensino de Lacan da década de 1950. De acordo com ele, a forte influência de Lévi-Strauss e, de forma mais geral, das ciências sociais na obra de Lacan teria sido reprimida pelos psicanalistas - que privilegiaram o aporte filosófico das influências de Lacan. O objetivo do seu trabalho foi, com efeito, trazer à tona questões cruciais da teoria lévi-straussiana na releitura (ou desleitura) de Lacan, em seu "retorno a Freud", a partir de noções sobre a linguagem, a estrutura, a resistência, a interpretação etc. Assim como Lévi-Strauss utiliza a linguística moderna para reformular a antropologia, Lacan realiza o mesmo movimento no campo da psicanálise, com o objetivo de renovar o seu estatuto epistemológico. Acontece que o psicanalista não só realiza o mesmo movimento como também absorve alterações que o próprio Lévi-Strauss efetuou na importação da linguística para a sua disciplina. Dessa maneira, a terminologia da linguística de Saussure, ao ser inserida na psicanálise, teve a sua malha conceitual, ainda que nominalmente preservada, funcionalmente remodelada. Mas como isso se procedeu?
Segundo Saussure (1916/1975), o significante (ou a imagem-acústica) é o elemento material (sensorial) que compõe uma unidade linguística bipolar, denominada de signo (Figura 1). Enquanto o significante ocupa a posição inferior do signo, o significado (ou o conceito), que é o elemento abstrato, possui lugar no polo superior. Embora no centro seja visível uma barra na horizontal, que representa a não confusão entre os dois polos, existe entre esses polos uma relação de interdependência (indicadas pelas flechas). A elipse, por sua vez, refere-se ao caráter fechado da unidade. Dessa maneira, significante e significado estão conjugados, a partir do momento em que são partes integrantes de uma língua (Saussure, 1916/1975, p. 79-81). O único valor que cada um dos componentes do signo possui quando se encontram (hipoteticamente) separados seria a diferença - um som só se caracterizaria pela a diferença que possui com outro som; e da mesma forma aconteceria com a massa das ideias. A partir do momento que um signo se forma, tem-se uma unidade positiva (Saussure, 1916/1975, p. 130-131).
Existem dois princípios reguladores do signo: (i) ele é arbitrário; e (ii) o significante possui um caráter linear (Saussure, 1916/1975, p. 81-84). Começando pelo segundo, é possível afirmar que isso é razoavelmente evidente. O significante, por ser de natureza auditiva, só se apresenta em uma extensão delimitada pela linha do tempo. Já o primeiro princípio pode ser um pouco mais intrigante. Por mais que os elementos do signo reclamem dependência ao outro, a sua unificação é, inicialmente, arbitrária. Isso porque não existe qualquer relação natural entre a conjugação das imagens-acústicas com as ideias.
No entanto (e este é ponto intrigante para o escopo desta discussão), por mais que sejam arbitrárias, isso não quer dizer que as relações entre significado e significante possam ser facilmente refeitas ou desfeitas. Embora Saussure tenha levantado algumas questões relativas à mutabilidade dos signos ao longo do tempo e, paradoxalmente, atestado a imutabilidade dos signos - devido ao fato de que cada comunidade só recebe a sua língua pela geração anterior e que a esta depende, para ser eficaz, de uma ligação com a tradição (os fatores históricos) -, ele só demarcou esses pontos paradoxais para mostrar que essa mudança não é decidida pelo controle da "massa falante", ou seja, pelos indivíduos da sociedade. A língua é um sistema relativamente autônomo (Saussure, 1916/1975, p. 85-93).
É por esse motivo que o linguista genebrino caracteriza a língua como uma "carta forçada" (Saussure, 1916/1975, p. 85). Essa é uma expressão que se refere ao jogo em que o ilusionista coloca sua "vítima": ao pedir para ela escolher uma carta, a escolha, aparentemente livre, já teria sido determinada por ele. O mesmo acontece com o signo: por mais que se possa escolher livremente qual significante utilizar, a íntima relação com o significado (isto é, o signo), no conjunto da massa falante, já está definida por sua herança da geração anterior; ele escapa, de certo modo, à livre vontade do indivíduo.
A forma como, no entanto, o signo e, notoriamente, o significante, encontram-se na teoria saussuriana não seria útil para a psicanálise, tendo em vista que a linguística se pretende uma ciência da língua, enquanto um sistema fechado de valores e uma instituição social. Em Saussure seria, segundo Roland Barthes, impossível pensar, por exemplo, em uma ciência da fala (Barthes, 1964/2006, p. 1920), que implicasse uma teoria acerca da utilização particular (ou mesmo singular?) da língua (ou, mais apropriadamente se remetermos ao campo lacaniano, da linguagem - para não se deter exclusivamente na composição formal de um idioma). Portanto, o signo, pelo menos como descrito no Curso de Linguística Geral , não seria viável para a psicanálise em sua totalidade. Isso leva, aliás, Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe (1973/1991, p. 126) afirmarem que Lacan teria feito uma "linguística da fala". Para isso, porém, ele necessitou transformar, mesmo mantendo referência a Saussure, o esquema do signo linguístico em uma espécie de "algoritmo" (Lacan, 1957/1998, p. 500).
Tanto a referência ao signo saussuriano quanto as modificações aplicadas a ele -que o levaram a adquirir uma forma final de um "algoritmo", 4 , radicalmente avessa ao formato original, e que vêm firmar uma tentativa de compreender o inconsciente freudiano como uma "ciência da letra" - executam, ao mesmo tempo, o movimento paradoxal de aproximação e afastamento da linguística (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1973/1991, p. 44). Em síntese, Lacan tende a empréstimos da linguística, bem como de outras disciplinas, para cujos fins diferem, todavia, daqueles que lhes são designados no terreno de origem. Nancy e Lacoue-Labarthe (1973/1991, p. 97) fazem uma distinção entre a importação do conceitoe estratégia do desvio, que pode ser útil para entender o que acontece com Lacan. Diferentemente da importação do conceito - que pretende extrair o conceito para fazê-lo funcionar em um novo sistema, de maneira regrada -, a estratégia do desvio, posição adotada por Lacan, refere-se ao empréstimo do conceito sem o trabalhar e fazê-lo servir a outros fins. Enquanto a importação do conceito é, continuam os autores, uma passagem de "denotação em denotação", o desvio é um deslizamento conotativo. Como isso acontece em relação a Saussure?
As transformações implicaram uma renúncia implícita ao signo. Primeiramente, ao excluir as flechas, Lacan retira a interdependência dos componentes do signo e remove o paralelismo entre significado e significante, atribuindo maior preponderância a esse segundo termo, ao inverter os seus lugares nos polos - cujo motivo será elucidado adiante. Em segundo lugar, ao retirar a elipse, Lacan suprime do signo o seu caráter de unidade. Em terceiro lugar, o psicanalista substitui a analogia de Saussure de um signo como uma moeda, por suas duas faces, para um entendimento do signo como um algoritmo em duas etapas. Por último, a barra entre significante e significado é enfatizada (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1973/1991, p. 43).
Cabe apontar aqui a influência que Lacan recebeu de Lévi-Strauss, ao contrário do que faz parecer o texto A instância da ietra..., em algumas dessas modificações. Em Introdução à obra de Marcei Mauss (Lévi-Strauss, 1950/2003), é possível identificar semelhanças no tratamento lacaniano da relação entre significante e significado. Os seguintes excertos servem para ilustrar isso: "[c]omo a linguagem, o social é uma realidade autônoma (a mesma, aliás); os símbolos são mais reais que aquilo que simbolizam, o significante precede e determina o significado." (Lévi-Strauss, 1950/2003, p. 29, grifo no original);
o homem dispõe desde a sua origem de uma integralidade de significante que lhe é muito difícil alocar a um significado, dado como tal sem ser no entanto conhecido. Há sempre uma inadequação entre os dois, assimilável apenas para o entendimento divino, e que resulta na existência de uma superabundância de significante em relação aos significados nos quais ela pode colocar-se. (Lévi-Strauss, 1950/2003, p. 42-43)
Cada um desses trechos corresponde a duas alterações cruciais ao signo saussuriano, absorvidas por Lacan (ver, p. ex., Nobus, 2003, p. 55-56; Zafiropoulos, 2010, p. 158, 166-167, 196-199). No primeiro caso, encontra-se a ideia de que o significante não só antecede o significado, mas também o prescreve. Lacan falará disso também como "primazia" do significante (ver, p. ex., Lacan, 1955a/1998, p. 43). No segundo caso, verifica-se a inadequação entre significante e significado, que se manifesta, no texto lacaniano, por meio da ênfase atribuída à barra do signo. As outras modificações não deixam de ser deduções lógicas dessas duas - a exclusão do paralelismo e a inadequação entre significado e significante tornam contraditórias tanto a concepção do signo como uma unidade quanto a analogia da moeda.
Talvez a alteração mais divergente do signo saussuriano seja a ênfase atribuída à barra, que é compreendida, por Lacan, como um obstáculo intransponível à significação. É precisamente isso que viabilizará a passagem do esquema para o algoritmo e que fornece ao significante a resistência à possibilidade de um referente. Com essa mudança, Lacan anula completamente aquilo que o signo possui como característica mais determinante, a saber, a capacidade representativa. E, por conta disso, realiza o movimento paradoxal de fazer referência basal à linguística, ao mesmo tempo em que "destrói" a teoria do signo (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1973/1991, p. 44).
No entanto, encontra-se implícito um interesse específico nessa "manobra". "Algoritmizar" - não como uma possibilidade de cálculo algébrico, que seria uma definição mais estrita de algoritmo, mas como uma espécie de formalização lógica6- possui uma função epistemológica para Lacan. Ela implica um artifício de cancelamento do valor positivo do signo em seu cunho representativo, que apontaria, com o significado, ao referente do significante. Ao destruir o signo linguístico por meio do algoritmo, Lacan tenta esquivar-se do problema que o signo evoca enquanto centrado no paradigma representacional (que incorreria em alinhar, por adequação, a palavra e a coisa) e questioná-lo. Feito isso, o signo é inserido (agora, como algoritmo) no paradigma lógico. O ponto crítico é suscitado ao levar em consideração a representação do signo da seguinte maneira: com a imagem de uma árvore no lugar da palavra "significado" e a palavra "arbor" (árvore, em latim) no lugar de "significante" (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1973/1991, p. 4748) - essa representação pode ser encontrada em Saussure (1916/1975, p. 81).
Que isso quer dizer? Se a função representativa do signo é cancelada, resta apenas o signo enquanto disposição significante, isto é, enquanto não significando nada além da marca da diferença com outro significante. Se a função representativa do signo é excluída, então o acento da teoria da linguagem, que Lacan está (re)fundando, recai sobre o significante. O algoritmo é, assim, o signo cancelado, não significando nada. Não é de se estranhar, por exemplo, que dois anos antes de A instância da ietra..., Lacan buscava compreender a natureza da linguagem humana na cibernética: as notações diferenciais e a combinatória comporiam o aspecto simbólico da linguagem. Isso ajudaria na distinção do que é simbólico e o que é imaginário na linguagem humana (Lacan, 1954-1955/1985, p. 345-365). Em suma, Lacan preserva de Saussure o valor negativo do significante e o radicaliza.
O algoritmo é entendido, então, como a "pura função significante, e isso equivale a dizer que ele "não tem sentido nenhum" (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1973/1991, p. 55, grifos no original). Trata-se de inscrições puramente formais, sem conteúdo intrínseco. Ora, tomar o significante desse modo implica não só suspeitar do significante como conceito, mas implica também considerar que as palavras, ao serem tomadas em um determinado discurso, só adquirem a sua significação em relação às outras palavras - contrapondo-se à ideia de que a palavra poderia ter um significado unívoco ou representar (apenas) uma coisa: "a palavra 'palavra', eu substituí pela palavra 'significante'; e isso significa que ela se presta a equívocos, isso quer dizer que tem sempre muitas significações possíveis" (Lacan, 1975, p. 34).
Com efeito, o significante ganha outro estatuto na teoria lacaniana. Enquanto no pensamento de Saussure ele era considerado um conceito importante, mas subordinado ao regime do signo, o significante lacaniano não é um termo técnico qualquer: ele "performa-se" nos outros termos, fazendo com que eles obedeçam a seu regime de funcionamento - por meio da "lógica (ou lei) do significante" (Bowie, 1993, p. 78-79). O empréstimo desse termo implica uma "artimanha" de imbricação de um "conceito" e um método de abordagem (ao mesmo tempo, clínico e de pesquisa), que se confunde, na "ciência da letra" de Lacan, com o próprio modus operand! do inconsciente freudiano. Por isso Lacan fala em "lógica do significante" e não estritamente em "conceito" de significante.
A propósito, o "significante" lacaniano não é exatamente o que Gilles Deleuze e Félix Guattari (1991/1997) entendem por "conceito". Estes entendem que o conceito possui um número finito de componentes. O conceito tem uma "endoconsistência", que implica uma inseparabilidade dos componentes em relação ao conceito, e uma "exoconsistência", ou seja, uma ligação com outros conceitos quando a sua criação implica pontes e zonas com outros conceitos. O conceito, dessa forma, é o ponto de condensação de seus componentes heterogêneos e fragmentários, possui uma história e cumpre determinada resolução de problemas em um plano discursivo. Assim, por mais que existam conceitos homônimos, cada um deles cumpre funções diferentes em determinado campo. Por mais que o significante possua uma história e cumpra funções diferentes em campos variados (seja na crítica literária, seja na antropologia, p. ex.), o seu funcionamento, na psicanálise, com a noção de algoritmo, intenta em anulá-lo e cortá-lo de sua própria história. Além disso, ao operar como uma lógica, não possui necessariamente um número finito de componentes. O significante pode ser o próprio regime de funcionamento de performar um esvaziamento do significado de um conceito, isto é, extrair do conceito os seus componentes e restituir uma relação com outros componentes, a partir de um corte pela ambiguidade.
Nesse sentido, o significante implica uma ambiguidade que se presta a uma dupla função. O significante é, ao mesmo tempo, (i) a marca diferencial e negativa, pelo fato de um significante sempre resistir a uma significação (como o algoritmo); e (ii) a potencialidade produtiva (como operação) (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1973/1991, p. 69-70). Se o significante não possui sentido algum em si mesmo, ele está sujeito a significações variadas na relação com outros significantes: "[d]onde desembocamos nesta verdade absolutamente manifesta da nossa experiência, e que os linguistas sabem bem, de que toda significação não faz senão reenviar a uma outra significação." (Lacan, 1953-1954/1979, p. 281).
O significante deixa de ser somente um conceito e passa a ser um amálgama entre conceito e método. Isto é, ele define o regimento não só do texto lacaniano (como também do próprio inconsciente) que, ao longo de sua obra, ressoará da seguinte forma: os "mesmos" significantes tomam conotações variadas devido à forma como estão dispostos no texto; principalmente, levando em conta as relações de contiguidade e similaridade ou, respectivamente, de metonímia e metáfora7("traduções" lacanianas dos mecanismos freudianos do inconsciente, deslocamento e condensação). Outros recursos utilizados para fazer expressar tanto o conceito quanto o método do significante são a ambiguidade homofônica, os chistes, os neologismos, os atos falhos. Tudo isso serve ao propósito de tensionar a produção das mais diversas significações, a partir dos significantes (ou da sua combinação e/ou mesmo sua fusão), e legitimá-las como formas de expressão do inconsciente e, por consequência, ilustrar as mais diversas formas de montagem pulsional. Em outras palavras, Lacan tensiona os mais variados sentidos semânticos que as palavras podem ter, em detrimento do seu sentido lexical (que, se para o sistema formal da língua é pertinente, é, pelo inconsciente, subvertido). A pergunta que, em algum momento, poder-se-ia fazer é se a sua linguagem indireta - do ponto de vista acadêmico, nada explícita - refere-se a uma tentativa de expressar a própria forma irredutível ao conteúdo; isto é, será que Lacan estaria, com isso, tentando transmitir o funcionamento do inconsciente sem utilizar recursos retóricos de explicação supostamente objetiva que tomariam o inconsciente um objeto distanciado e neutro, em relação ao qual o sujeito que fala não se encontra envolvido?
O que essa estrutura de cadeia significante revela é a possibilidade que eu tenho, justamente na medida em que sua língua me é comum com outros sujeitos, isto é, em que essa língua existe, de me servir dela para expressar algo completamente diferente do que ela diz. (Lacan, 1957/1998, p. 508, grifos no original)
Esse trecho ilustra que se Lacan resguarda certa funcionalidade do termo "carta forçada" de Saussure, é só para mostrar que seria possível jogar com a anterioridade das significações para fazer surgir significações até então inesperadas. A destruição do signo linguístico permite esse passo. Dito de outra forma, a linguagem enquanto res publica - expressão utilizada de maneira perspicaz por Bowie (1993, p. 93) - está fadada a ser sempre anterior ao sujeito que emerge nela e, por consequência, possui a capacidade de ser heterogênea às significações individuais. Essa perspectiva sugere que é só quando o sujeito fala que emerge a possibilidade de produção de um saber, a partir dos significantes que enunciou e da forma como o Outro vai lhe devolver a sua mensagem, sob forma invertida. É justamente essa dialética que o Esquema L ilustra (ver, p. ex., Lacan, 1955a/1998, p. 57-61, 1956-1957/1995, p. 10-11). A necessidade de tal dialética se contrapõe a uma condição reflexiva e estritamente individualista do saber, além de realizar uma crítica à forma de comunicação baseada em um emissor que conheceria a natureza do que diz - a intenção e o conteúdo, p. ex., em sua integralidade - e um receptor que supostamente entenderia a mensagem tal como o primeiro imagina que a elaborou.
Seguindo esse raciocínio, em vez de "carta forçada", seria necessário ater-se à "carta roubada" (Lacan, 1955a/1998): ao tensionar todas as ambiguidades semânticas, homofônicas, homonímicas, cujo exemplo a lettre volée pode ser o mais emblemático, Lacan determina a sua confiança no significante, mais do que no significado. Uma carta roubada é também "letra voada". Além disso, a homofonia de lettre com lêtre sugere outra possibilidade semântica que não poderia passar despercebida: a carta do conto de Edgar Poe lida com o crivo da ciência da letra de Lacan mobiliza uma ontologia específica.
A carta roubada é a instalação de um paradigma que entende a letra enquanto um "significante puro" (Lacan, 1955a/1998, p. 18), que sempre chega a seu destino, por não possuir um endereço de entrega: ela não pertence a alguém, embora cada um seja afetado por ela de alguma forma. A carta/letra roubada/voada é, para cada sujeito, o próprio inconsciente (Lacan, 1954-1955/1985, p. 247-248). Em outras palavras, a discursividade precede o sentido. Não é por falta de coerência ou de consistência, por exemplo, que diversas conotações são empregadas ao mesmo termo ao longo do ensino de Lacan. Talvez seja justamente para demonstrar a falta de coerência e de consistência do asseguramento do sentido: como a carta em uma revoada, que nunca toca o chão. Isso cumpriria a radicalidade da função do método do significante.
Aqui, o trabalho de Barbara Cassin (2017), que traça relações da obra lacaniana com a sofística, pode vir ao auxílio. O esforço de extrair todas as consequências de levar as coisas ao "pé da letra", como a lettre volée, é parte da função de insolência e indecência em relação ao sentido que a obra de Lacan e a análise exploram (Cassin, 2017, p. 58). O sofista, enquanto um anti-filósofo, possuiria a mesma tese (anti-)ontológica que o psicanalista: "o ser é um fato do dizer, 'é um fato do dito'." (Cassin, 2017, p. 66). Ao contrário do filósofo que pressuporia o ser em relação ao dizer, para o psicanalista e o sofista não existe uma realidade pré-discursiva sobre a qual se assentar: ao invés de ir do ser ao dizer, Lacan e o sofista vão do dizer ao ser (Cassin, 2017, p. 67).
IMPLICAÇÕES DO SIGNIFICANTE ENQUANTO MÉTODO
Há, evidentemente, algumas implicações radicais, ao tomar esse ponto de vista, no que se refere ao método de pesquisa. De certa maneira, seria preciso considerar uma suposição de que o autor (ou, de maneira análoga, o analisante) não é inteiramente o "dono" do seu texto (ou daquilo que fala). Ou seja, ele não teria o controle (ou estaria integralmente cônscio) das determinações e da capacidade de alcance do próprio texto. Isso tangenciaria uma noção suficientemente ilustrada por Barthes (1968/2004) no ensaio A morte do autor. O crítico literário se esforça em mostrar o quanto abordagens que determinam a explicação da obra pela biografia do autor são não apenas insuficientes como também infrutíferas.
Ao reduzir a obra à vida do autor, o agente dessa técnica produz, de acordo com Barthes, alguns efeitos indesejados, quais sejam: (i) o encerramento do sentido e uma neutralização da possibilidade virulenta da obra8; (ii) a crença de que a obra é fruto de um indivíduo dotado de faculdades geniais; e (iii) a designação do autor como aquele que melhor forneceria a chave de leitura para o seu texto. A obra estaria, por assim dizer, morta, presa à história de vida do autor, ou seja, a uma forma de decisão de sentido acerca de como deveria ser lido. O efeito do texto sobre o leitor e o próprio leitor são, portanto, neutralizados. A partir do momento que um texto é uma produção individual e derivada apenas dos contornos das experiências pessoais da figura do autor, o texto não precisa ter impacto.
A morte do Autor implica levar em consideração que é a linguagem que fala, e não o "eu" do autor (Barthes, 1968/2004, p. 59). Uma obra é uma combinatória de elementos já existentes na língua; um mosaico irrompido sob a pena de um "escriptor". Esse termo é utilizado por Barthes para substituir a conotação centrada no "eu" que "autor" possui. Essa perspectiva, com efeito, seria contraposta à ideia de que pesquisas biográficas explicariam as relações de contingências que determinaram o surgimento do texto e do autor. Isso retira, também, toda uma lógica da genialidade do indivíduo sobre a criação do seu texto e sobre a consciência de sua intencionalidade. Enquanto o Autor é concebido sempre com um passado que foi determinante para a emergência de sua obra (esta, então, seria um predicado da sua vida), a noção de escriptor preza pelo nascimento concomitante entre ele e seu texto. Dessa forma, escrever não se caracterizaria por uma operação de registro, de verificação ou de representação, mas um ato performativo no qual "a enunciação não tem outro conteúdo (outro enunciado) que não seja o ato pelo qual ela se profere" (Barthes, 1968/2004, p. 61). O texto pode ser então "um espaço de dimensões múltiplas" (Barthes, 1968/2004, p. 62).
Michel Foucault, na mesma esteira, coloca sob suspeitas categorias como de "livro", "obra", "autor" (Foucault, 1969/2007, p. 24-34). Essas não são categorias dadas (naturalmente), mas sim interpretações a partir de certos enunciados que exercem determinada função. A extensão demarcada pela impressão material do livro enquanto unidade (e do número de páginas que lhe é dedicado) causa a aparência de seu encerramento - entretanto, ele é, antes, um "nó em uma rede" (Foucault, 1969/2007, p. 26). A indicação de que uma reunião de enunciados se denomina como "obra" de um autor não passa de uma escolha que determina um interesse específico (afinal, será que a "obra" deveria incluir as cartas, os manuscritos não publicados ou só os publicados, as entrevistas, as falas transcritas e editadas por outros, os rascunhos, os esboços abandonados etc.?). A individualização daquele que inscreve o nome sobre o título de enunciados não lhe determina como o monarca da própria obra. Não se tem noção exata do quanto outros textos estão entrelaçados a um texto. Barthes (1968/2004) comenta que "o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura." (p. 62).
A consequente morte do autor é a possibilidade de nascimento do texto às suas potencialidades de significações. E o lugar em que isso tem acolhida é na figura do leitor, que teria maior autonomia para determinar a interpretação do texto: "o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor." (Barthes, 1968/2004, p. 64). E, com isso, entende-se o motivo pelo qual falar em "leitura errada" para traduzir misreadíng, no campo de discussão que aqui se encontra, não seja pertinente - afinal, seria necessário haver alguém para dizer o verdadeiro ou o certo sobre a leitura. Isso é, inclusive, debatido por Bloom em seu intercapítulo "Manifesto pela Crítica Antitética" (Bloom, 1973/1997, p. 93-96; 1973/2002, p. 141144). Estendendo as associações: se a lettre não pertence a ninguém, logo ela pode ser de quem a recebe.
Por mais que o referido ensaio de Barthes tenha sido escrito em 1968, Lacan já havia, de certo modo, realizado uma série de releituras do texto freudiano anos antes. A perspectiva acerca do significante auxiliará Lacan, implicitamente, nas tentativas de expurgar os conceitos repisados na tentativa de recuperar a virulência do texto de Freud e de recompor a importância da fala e da linguagem no campo da psicanálise (ver Bowie, 1993, p. 47-49). Ou, como Simanke afirma:
Lacan vai manter, durante todo esse período [anterior a 1953] uma posição de exterioridade com relação à obra freudiana: por mais que a ela se refira, é sempre com a atitude de um observador externo, determinado a lançar sobre ela um olhar crítico e seletivo, destinado a separar o joio do trigo, e substituir os conceitos esclerosados por um novo instrumental, capaz de devolver vitalidade à teoria. (Simanke, 2003, p. 280-281)
Tal atitude continua a ser exprimida também de 1953 em diante, como, por exemplo, na recusa de um inconsciente psíquico, representacional, instintivo e/ou energético em prol de um inconsciente estrutural, ao substituir a noção de sujeito psíquico por sujeito do significante (Bowie, 1993, p. 71-72; Simanke, 2003, p. 280284).
Essa percepção poderia soar estranha para alguns psicanalistas. Afinal, se Lacan realizou um "retorno a Freud", como seria possível ele não falar a partir de um inconsciente psíquico? Para responder essa pergunta, sem pormenorizar exaustivamente a questão, bastaria fazer uma averiguação, por exemplo, nos Escritos para perceber que a menção à palavra "psíquico(s)" se apresenta reduzida principalmente nos textos posteriores a 1953 (o que poderia parecer contraditório se, de fato, Lacan estivesse falando a partir dessa perspectiva). Esse termo aparece nos contextos (i) de escritos anteriores a 1953 (22) (Lacan, 1936/1998, 1946/1998; 1950/1998); (ii) em que menciona outros autores (6) (Lacan, 1955b/1998, p. 342, 1959b/1998, p. 543, 574, 1959a/1998, p. 726, 729, 1960b/1998, p. 816) ou (iii) em que realiza ressalvas, aponta problemas ou levanta crítica à concepção do psíquico (8) (1953/1998, p. 243, 1957/1998, p. 518, 1960a/1998, p. 736, 1962/1998, p. 781, 1960b/1998, p. 809). Percebe-se que a referência ao termo diminuiu depois que anunciou o seu "retorno a Freud". Brevemente, como isso pode ser explicado?
"Psíquico" implica a existência de um "interno" que não se sustenta na abordagem estruturalista inicial de Lacan. O intuito com isso é retirar qualquer consideração que poderia haver do inconsciente como um baú em que se encontrariam os segredos do sujeito. Dessa forma, o inconsciente, tal como elaborado nesse período, não está do lado de "dentro" do sujeito.
Seguindo esse raciocínio, não seria incorreto dizer que Lacan tenta importar o que Lévi-Strauss disse acerca do inconsciente estrutural: "[o] inconsciente seria assim o termo mediador entre mim e outrem." (Lévi-Strauss, 1950/2003, p. 28); ou seja, enquanto estrutura que determina a relação entre os sujeitos. É identificável que Lacan posiciona o inconsciente como o discurso do outro (Lacan, 1953/1998, p. 266, 299) e como transindividual (Lacan, 1953/1998, p. 260). Sendo assim, não parece coerente entender o inconsciente como do indivíduo. A linguística e a antropologia estrutural servirão como epistemologias justamente para renovar a noção de um inconsciente freudiano como psíquico - que não deixa de possuir uma base biológica que Lacan procurou, nesse momento, esquivar-se. Com a substituição do sujeito psíquico por sujeito do significante, Lacan privilegia uma
concepção do simbolismo que tende ao formalismo e ao esvaziamento do símbolo de suas conotações expressivas e significativas, restando o significante (o 'significante puro', o 'símbolo zero' lévi-straussiano), em sua função de termo de composição da estrutura e elemento de operação combinatória, para, de alguma maneira, 'produzir' um sujeito. (Simanke, 2003, p. 282).
Aliás, o próprio Lacan concorda com a exposição de Foucault, na conferência O que é um autor?, quanto precisamente ao sentido de um "retorno às origens" de um pensamento como o de Freud (Foucault, 1969/2009, p. 297). Foucault explicará que autores como Freud e Marx são "instauradores de uma discursividade" e que isso significa que eles tornam possíveis discursos que, inclusive, por mais que tenham parentesco com o seu, possuem diferenças. Ou seja, existem discursos que estão filiados ao campo psicanalítico, mas que não implicam uma necessária semelhança e formalização em relação ao seu. Geralmente, afirma Foucault, reclamar um "retorno a" implica não um suplemento histórico que se acrescentaria ao discurso do precursor, mas um trabalho efetivo de transformação, mediante a seleção de enunciados pertinentes e a exclusão dos não essenciais (Foucault, 1969/2009, p. 280-285).
Embora Foucault não esteja afirmando especificamente da função do significante, este não deixa de ser, também, o meio pelo qual Lacan aplicará o seu "retorno às origens" (e posteriores desenvolvimentos teóricos). Isso, inclusive, não deixa de poder incorrer na criação dos próprios precursores9. Ou seja, em uma ideia de criação dos interlocutores e dos próprios autores sobre os quais se baseia. Não seria sem razão afirmar, por exemplo, que Lacan precisa criar um Freud e atribuir a este determinadas questões que lhe são avessas, ou mesmo fazer ler em Freud algo que não estaria (até então) em seu texto (ver, p. ex., Roudinesco, 1994, p. 343344, 1998 p. 279), mas que seria "descoberto" nele, depois da leitura, ou, mais apropriadamente, da "desleitura".
Enfim, esse seria o caráter da "textualidade do texto", que encontraria na lógica do significante um instrumento de redefinição do sentido. Inclusive, isso concordaria com a réplica de Mezan à fala de Garcia-Roza. O primeiro autor afirma que o último teria sido acrítico em relação à leitura lacaniana de Freud (Garcia-Roza, 1994, p. 2223). De que forma? Ao invés de considerar que o psicanalista francês teria sabido escutar as perguntas de Freud, trata-se de pensar que, como vem andando toda a argumentação até aqui, Lacan teria imputado perguntas ao texto freudiano, que eram problemas teóricos derivados dos andamentos epistemológicos que estava empreendendo, para, então, responde-los. Como afirma Bloom (1973/1997) a respeito de um "poeta forte": "os poetas, no momento em que se tornaram fortes, não leem a poesia de X, pois os realmente fortes só podem ler a si mesmos." (p. 19). Por mais que a analogia não seja precisa, ela pode formar o tom aproximado da ilustração. Afinal, se essa analogia for estimada em sua integridade, isso significa que não tem nada que resguarda a psicanálise de ser uma teoria literária.
Como observa Antônio Teixeira (2007) acerca da característica ensaística de um escrito psicanalítico, o envelopamento estético, que serve para gerar sensibilidade na abordagem de uma nova perspectiva acerca do objeto, não pode ser um fim em si mesmo (como é o caso de uma ficção literária). O recurso estético precisa ser rompido pelo engajamento ético da transmissão da proposta conceitual, agora renovada.
O que essa exposição mostra são algumas indicações das possibilidades que o método de pesquisa que se detém na operatividade da lógica do significante possui para a psicanálise. O ponto principal é fazer perceber o quanto, especificamente, a lógica do significante é capaz de assumir a potência de um método que opera transformações no texto (ou fala), quando passa por uma tentativa de "corte", "tradução" ou "apropriação". No entanto, necessitaria, em algum momento, compreender os seus limites, ou ainda, "o momento de parar", haja vista que um perpétuo deslizamento significante poderia cair em um relativismo extremo e de nada proveitoso para a formação do campo.
Esse assunto já foi percorrido (igualmente, com um tom temerário) por outros autores, como um problema bastante comum. Isto é, qual o limite do uso do significante (ou, em outros termos em alguns lugares, qual o limite da interpretação?). A resposta de Birman (1994b, p. 17-26) a esse problema incide sobre a própria experiência analítica (que estaria, necessariamente, de maneira direta ou indireta, presente na pesquisa). Ela salvaria a psicanálise de ser uma teoria da especulação infindável e arbitrária (esquivando-se de ser, grosseiramente, um discurso teórico de cunho filosófico). Isso significaria que a clínica forneceria um "amparo" contra o fantasma do delírio especulativo - a crítica de Simanke (2003, p. 298) a esse respeito é precisa.
Em resposta a isso, pode-se situar o que Lacan (1957/1998, p. 506) chama de "ponto de basta" - ou "pontos de capitonê" (points de capiton) - como uma parada no deslizamento do significante em uma significação dada, contudo, de modo mítico (ver Nancy e Lacoue-Labarthe, 1973/1991, p. 62-63). Isso é o que impediria o risco de o significante ficar o tempo todo apartado de significação. O que fornece a segurança da operação simbólica é o que Lévi-Strauss chama de valor simbólico zero e o que Lacan, a partir da leitura do texto do antropólogo, denomina como Nome-do-Pai (Zafiropoulos, 2010, p. 158-159, 163-164). Como o próprio Lévi-Strauss (1950/2003, p. 43) aponta, é o significante de valor simbólico zero que fornece a função semântica que permite com que o pensamento simbólico se efetue mesmo com suas contradições. O Nome-do-Pai exerce uma função "mítica" que, paradoxalmente, garante uma concretude simbólica. Isso que faz com que nem todas as significações sejam possíveis.
Talvez isso seja o que distingue a via estritamente teórico-textual, da utilização dessa ferramenta, com o que se apresenta na experiência analítica enquanto contingente. Averiguar a função deste poderia auxiliar na composição dos limites dos deslizamentos ou, mais apropriadamente, sua baliza. Mas esse assunto requer uma exploração mais minuciosa em outro trabalho. Nesse caso em específico, o trabalho de Jeferson Pinto (2018) pode fornecer pontos elucidativos acerca dessa questão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste ensaio, inspirado na conferência proferida por Garcia-Roza, foi explorar, de maneira mais detalhada, os fundamentos e os possíveis alcances do recurso à lógica do significante como método de pesquisa em psicanálise. Compreender o significante como método, e não simplesmente como um termo qualquer, permite que a sua operacionalidade se adentre nas vísceras do texto e esvazie as palavras de sua substância imaginária, com o intuito de provocar uma mudança na significação. Assim, para que seja possível fazer surgir uma nova significação, é necessário primeiro esvaziar o sentido relativamente consagrado do termo e jogar com a sua ambiguidade (homofônica, semântica) e/ou se servir de metáforas e metonímias.
Alinhar isso à forma de funcionamento do inconsciente permitiria uma espécie de legitimação aos jogos estilísticos de Lacan, geralmente estranhos à maneira como se procede um texto acadêmico. Tal artifício não privilegiaria a tentativa minuciosa de uma transmissão do conteúdo (como seria uma forma pragmática), mas valorizaria, por outro lado, a forma (às vezes, bastante idiossincrática) do enunciado - ou seja, a sua enunciação. Não é à toa que Lacan constrói uma linguagem própria e que acaba se confundido com a teoria da linguagem que elabora. Isso serve para mostrar que a forma mesma é uma tentativa de transmissão daquilo que se refere ao funcionamento do inconsciente. Lacan mesmo considerava que nenhuma linguagem ainda era capaz de "(re)expressar" o campo do desejo do inconsciente freudiano (Bowie, 1993, p. 43).
Para encerrar, enfim, caberia reanimar uma reflexão acerca das características inerentes a um escrito psicanalítico, desenvolvida por Birman (1996). Talvez, a partir do que foi apresentado, seja possível delinear uma pontuação acerca do assunto. Birman afirma que alguns elementos seriam necessários para que um escrito psicanalítico seja denominado como tal. Dentre eles, o autor destaca a evocação da experiência do inconsciente como principal, mas ela apenas não seria suficiente (pois outros tipos de textos podem provocá-la). Mas como isso seria feito? Ele lança possibilidades como: a "escrita automática", utilizada pelos surrealistas inspirados pela "associação livre" freudiana; a capacidade que um texto possui de provocar a sensação de Unheimiche etc. Por mais que tais elementos sejam possíveis de serem encontrados em textos não-psicanalíticos, devido ao encontro singular que o leitor tem com o texto, o escrito psicanalítico teria, (ideal e) universalmente, para ele, uma composição própria, que permitiria uma montagem "virtual" capaz de incitar uma experiência do inconsciente (Birman, 1996, p. 72-73). Ele conclui que o escrito psicanalítico deveria ocasionar essa experiência e tematizar a psicanálise por meio da inscrição do desejo singular do analista que escreve o texto (Birman, 1996, p. 85-86).
Um texto sobre psicanálise, por sua vez, exigiria um distanciamento, por parte do autor, a partir de um aporte acadêmico-crítico, da teoria psicanalítica, bem como uma definição clara do objeto a ser tratado. Um texto psicanalítico dependeria de uma imersão no cabedal teórico e a sua devida aplicação; além de uma aceitação da impossibilidade de distinção nítida entre autor e "objeto de estudo". Evidentemente, seria levado em consideração o critério de Birman de enlaçamento da experiência singular do próprio analista ao tematizar a psicanálise.
Um texto sobre psicanálise (geralmente, acadêmico) exigiria um recorte ou uma conceitualização do conceito e sua "mortificação" (por estabilização); algo, necessariamente, incompatível com a estética do discurso psicanalítico, ao menos de vertente lacaniana. Por isso, Lacan desconfiava, ou melhor, apontava a limitação da tentativa de o discurso universitário apreender a sua teoria (Lacan, 1969/2003, p. 399).
Dito isso, retoma-se o texto de Birman. Existe um aspecto em seu escrito que parece tocar em um ponto fundamental da característica de um texto psicanalítico, que permanece, porém, obnubilada pelas questões discorridas posteriormente. A partir dos termos tratados no presente texto, pretendeu-se recuperar o ponto perdido da argumentação de Birman. Se há algo que um texto psicanalítico que segue o método esboçado aqui pode proporcionar é a subversão. Um texto psicanalítico, nesse sentido, tende a "jogar" com a intuição do leitor para mostrar-lhe o quanto ela é enganosa e o quanto a análise - como uma sofística (Cassin, 2017) - escancara acepções contraintuitivas. Ou seja, isso implicaria pensar que, por mais que existam sentidos cristalizados em determinados assuntos, ou mesmo em conceitos, é possível extrair deles algo que, a princípio, não parecia ali residir. Em suma, tudo isso implica dizer, grosso modo, que na lógica do significante subjaz uma praxis subversiva.
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Recebido em: 07/05/2020
1ª revisão em: 05/08/2020
Aceito em: 25/11/2020
AGRADECIMENTOS
O autor agradece aos colegas da turma de 2019 da disciplina "Seminário Avançado em Metodologia de Pesquisa: métodos clínicos" do Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPG-PSI) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), à professora Dra. Cassandra Pereira França, encarregada pela disciplina nessa ocasião, e ao Danty Marchezane, pelos atenciosos comentários de uma primeira versão do texto. O autor agradece também aos pareceristas pelas observações e à Ana Luiza Amaral Venâncio pela leitura de pontos centrais do texto a partir de um lugar de alteridade.
CONFLITOS DE INTERESSES
Não há conflitos de interesses.
SOBRE O AUTOR
Bernardo Sollar Godoi é doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), bacharel em Psicologia pela Univiçosa. Docente dos Cursos de Psicologia do Centro Universitário de Viçosa (Univiçosa) e da Faculdade Dinâmica do Vale do Piranga (FADIP).
E-mail: bernardosollar@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-2514-5217
1 Como um método das ciências humanas, em distinção do método mais explicativo das ciências da natureza, como entendido por Wilhelm Dilthey (Sass, 2019).
2 O trabalho minucioso de Richard Simanke (2002) pode ser um exemplo de pesquisa sobre psicanálise, dentro da universidade, que se difere de uma pesquisa psicanalítica.
3 Ilustrado pela posição teórica de Jacques Lacan. Cf., p. ex., Lacan (1956-1957/1995, pp. 24-39). Ou, como vai afirmar posteriormente, por um objeto cuja relação com o sujeito é de exclusão interna e que marca a própria divisão do sujeito (Lacan, 1965/1998, p. 875).
4 Para questões epistemológicas acerca do "retorno a Freud", cf. Simanke (2003). Para dados históricos, cf. Elisabeth Roudinesco (1988, pp. 242-272). Pode-se considerar que o anúncio explícito de um retorno às origens do pensamento psicanalítico seja uma forma de o autor demarcar a necessidade de ruptura em relação aos seus contemporâneos (mais especificamente, com a ego psychology e a psicanálise da relação de objeto).
5 Em O simbólico, o imaginário e o real (1953/2005), primeira conferência de Lacan na Sociedade Francesa de Psicanálise, o termo "significante" nem mesmo é mencionado. É só em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953/1998), proferido poucos meses depois, que o termo ganha presença.
6 Esta, aliás, fica mais evidente na segunda parte do texto A instância da letra..., quando Lacan (1957/1998) propõe "fórmulas" lógicas, a partir de uma fórmula geral do significante, para aquilo que ocorre como metonímia, cuja figura principal seria o desejo, e a metáfora, que remeteria ao sintoma (p. 518-519, 522).
7 E a alusão que Lacan faz a Jakobson (1954/1975), ao utilizar esses termos, mesmo que de forma mais extensiva, é evidente. Lacan exclui a ideia de que a metáfora e metonímia seriam apenas figuras complementares à linguagem, e as colocam em um patamar cuja prevalência é absolutamente ampliada como leis da linguagem. Para isso, ver Nancy e Lacoue-Labarthe (1973/1991, p. 80-85, p.123-124).
8 Aliás, esse mesmo motivo é uma preocupação expressa de Bloom (1973/1997, p. 43), na teoria da poesia. Ele propõe que se abandone a leitura de um poema como uma entidade em si mesma, e que se busque, ao invés, aprender a ler um poema como um ato deliberado de desleitura (como explicitado no início do texto) por parte do poeta em relação a seu precursor. Isso permitiria que o poema não perdesse sua força pela aquisição do conhecimento sobre ele. Bloom (1973/1997, p. 9396) escreve um manifesto em prol dessa perspectiva.
9 É de maneira análoga que Jorge Luís Borges (1951/2007) diz a respeito de Franz Kafka: "[n]o seminário crítico a palavra precursor é indispensável, mas seria preciso purificá-la de toda conotação de polêmica ou rivalidade. O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, assim como há de modificar o futuro. Nessa correlação, nada importa a identidade ou pluralidade dos homens." (p. 130, grifos no original). Isso também é mencionado por Goldenberg (2018).