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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

 ISSN 2236-6407

     

https://doi.org/10.5433/2236-6407.2021v12n1suplp18 

ECA - 30 ANOS

 

A contradição entre proteção e violência na trajetória de adolescentes em medida socioeducativa

 

The contradiction between protection and violence in the path adolescents in socio-educational measure

 

La contradicción entre la protección y la violencia en la trayectoria de adolescentes en medida socioeducativa

 

 

Amata Xavier Medeiros; Fernando Santana de Paiva

Universidade Federal de Juiz de Fora

 

 


RESUMO

O presente artigo objetiva refletir sobre as experiências de adolescentes em conflito com a lei em suas trajetórias pela rede de atendimento socioeducativo de um município de médio porte brasileiro. A pesquisa foi realizada com 07 adolescentes do gênero masculino, em cumprimento de Medida Socioeducativa (MSE), na modalidade de Liberdade Assistida (LA). Foram realizadas entrevistas narrativas, empregando-se o método de história de vida. Diferentes formas de violência foram relatadas no cumprimento da MSE de internação, como humilhações, vergonha e privações. As ações realizadas pela LA, por sua vez, podem favorecer a construção de projetos de vida que se configuram como uma alternativa à violência vivenciada. Compreender as experiências dos adolescentes pode contribuir para superarmos práticas que se perpetuam no cenário das MSE, e, ao mesmo tempo, fortalecer o cuidado preconizado pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Palavras-chave: medida socioeducativa; liberdade assistida; violência; adolescência; psicologia social.


ABSTRACT

This article aims to reflect on the experiences of adolescents in conflict with the law in their trajectories through the socio-educational service network of a medium sized Brazilian municipality. The research was carried out with 07 male adolescents, in compliance with the Socio-Educational Measure (MSE), in the Assisted Freedom (LA) modality. Narrative interviews were conducted, using the life story method. Different forms of violence were reported in the fulfillment of the hospitalization MSE, such as humiliation, shame and deprivation. The actions carried out by LA, in turn, can favor the construction of life projects that are configured as an alternative to the violence experienced. Understanding the experiences of adolescents can contribute to overcoming practices that are perpetuated in the scenario of MSE, and, at the same time, strengthen the care advocated by the National System of Social and Educational Assistance (SINASE) and the Statute of the Child and Adolescent (ECA).

Keywords: socio-educational measure; assisted freedom; violence; teenager; social psychology.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre las experiencias de los adolescentes en conflicto con la ley en sus trayectorias a través de la red de servicios socioeducativos de un municipio mediano brasileno. La investigación se llevó a cabo con 07 adolescentes varones, de conformidad con la Medida Socioeducativa (MSE), en la modalidad de Libertad Asistida (LA). Se realizaron entrevistas narrativas, utilizando el método de la historia de vida. Se informaron diferentes formas de violencia en el cumplimiento de la hospitalización MSE, como la humillación, la vergüenza y la privación. Las acciones llevadas a cabo por LA, a su vez, pueden favorecer la construcción de proyectos de vida configurados como una alternativa a la violencia experimentada. Comprender las experiencias de los adolescentes puede contribuir a superar las prácticas que se perpetúan en el escenario de MSE y, al mismo tiempo, fortalecer la atención defendida por el Sistema Nacional de Asistencia Social y Educativa (SINASE) y el Estatuto del Nino y el Adolescente (ECA).

Palabras clave: medida socioeducativa; libertad asistida; violencia; adolescente; psicología social.


 

 

INTRODUÇÃO

As Medidas Socioeducativas (MSE) são regulamentadas pela Lei 12.594, implementada em 2012, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado pela Lei 8.069 em 13 de julho de 1990. A criação do ECA aconteceu em uma década marcada pela continuidade do processo de (re)democratização brasileira, em que conquistas advindas de lutas e pressões foram alcançadas, pautadas por diversos movimentos sociais, como o Movimento dos Meninos e Meninas de Rua, o Movimento feminista, as conquistas advindas das Reformas Sanitária e Psiquiátrica, bem como movimentos por moradia e o Movimento Negro (Silva & Silva, 2011). Esse importante marco legal tenta romper com uma lógica "menorista", tutelar e punitiva, representada até aquele momento pelas Fundações Estaduais para o Bem-Estar do Menor/ Fundações do Bem-Estar do Menor (FEBEM/FUNABEM). Apesar da intenção de ruptura, o ECA ainda guarda algumas características que representam certas continuidades em relação às legislações anteriores. Tais instituições adotavam ações no trato destinado às crianças e adolescentes, que se assemelhavam ao cárcere tradicional ainda vigente em nossa realidade social.

À época, as ações e políticas relacionadas à infância e à adolescência eram regidas pelo Código de Menores, sendo o primeiro instaurado em 1927 e o segundo em 1979. Em 1979 o Código de Menores passou por uma revisão, porém manteve-se alinhado com o que fora desenvolvido anteriormente, permanecendo o caráter da repressão e do assistencialismo no que diz respeito ao tratamento desses jovens. Importante salientar que essa reformulação do Código instaurado em 1979 ficou anos em tramitação, demorando a ser votada no Congresso Nacional. A exemplo disso, citamos a Comissão Parlamentar de Inquérito, realizada em 1975, que objetivava investigar a situação da criança desassistida ou problemas relacionados a crianças e menores carentes no país (também chamada de CPI do Menor). Frente a isto, objetivava-se na época uma mudança de paradigma: da Doutrina da Situação Irregular para a Doutrina da Proteção Integral, em que a criança e o adolescente passaram a ser portadores de todos os direitos inerentes à condição humana, inclusive aqueles que, porventura, tenham cometido algum ato infracional (Piombini, 2015).

Destaca-se que as medidas voltadas para os adolescentes em conflito com a lei devem materializar-se como forma de responsabilização, com caráter pedagógico e não coercitivo, tampouco culpabilizador ou punitivo do indivíduo e de sua família (Piombini, 2015). As MSE são executadas em sete modalidades: 1) advertência;2) obrigação de reparar o dano; 3) prestação de serviço à comunidade; 4) liberdade assistida; 5) programas de semiliberdade; 6) internação em instituição educacional e 7) qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI, que compõe as medidas de proteção à criança e ao adolescente, por exemplo, inserção em programas comunitários, encaminhamento para tratamentos em saúde (médico, psicológico ou psiquiátrico), matrícula em estabelecimentos educacionais, inserção em acolhimento institucional, inclusão no programa de acolhimento familiar, entre outras ações de cunho protetivo.

É imperativo que se considere as circunstâncias e a gravidade da infração para o efetivo e adequado cumprimento de uma das medidas acima mencionadas (Brasil, 2012; Brasil, 1990). Trata-se de medidas destinadas a jovens entre 12 e 18 anos, tendo como objetivos: 1) responsabilizar o adolescente quanto às consequências do ato infracional, incentivando a sua reparação; 2) a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu Plano Individual de Atendimento (PIA); 3) a desaprovação da conduta infracional, tendo como parâmetro máximo a privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei (Brasil, 2012). Nota-se ainda que, apesar dos significativos avanços possibilitados pelo ECA, permanece a manutenção de uma lógica punitivista através das MSE, bem como uma dissociação entre as medidas protetivas e as medidas socioeducativas, o que incorre em uma polarização proteção x punição (Scisleski et al, 2015).

Os dados mais recentes sobre a situação dos jovens em cumprimento de MSE constam no Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) de 2016, publicado em 2018. Esse informativo versa especificamente sobre as medidas de internação e semiliberdade, além das internações provisórias e a internação sanção. Traz também informações sobre os atos infracionais cometidos, algumas informações a respeito das instituições que executam as medidas e uma breve descrição sobre as características dessa juventude. Até novembro de 2016 havia um total de 26.450 jovens entre 12 e 21 anos nas situações supracitadas, dos quais 18.567 estavam em medida de internação, 2.178 em semiliberdade, 5.184 em internação provisória, 334 em atendimento inicial e 187 em internação sanção (Brasil, 2018).

No tocante às experiências de adolescentes em cumprimento de MSE é comum encontrarmos trabalhos que abordam as múltiplas formas de violência vivenciadas por esses sujeitos no contexto de restrição de liberdade e no contato com a política de segurança brasileira. Podemos explicitar a violência física materializada por agressões e castigos, a privação de pertences básicos para sobrevivência, a exposição a condições insalubres, as experiências de humilhação e vergonha, o rompimento com laços familiares e comunitários, dentre outras situações (Tavares, 2018).

Nesse sentido, pesquisas como a de Scisleski et al (2015) apontam ainda que a doutrina da proteção integral não é plenamente executada, principalmente no que diz respeito a jovens em conflito com a lei. Os pesquisadores destacam que há uma cisão entre os jovens sob medida protetiva e os jovens sob medida socioeducativa. Para os primeiros há a tentativa de uma rede de suporte protetiva, já para o segundo grupo citado, há a culpabilização e a individualização do problema, violando seus direitos básicos em prol da manutenção da ordem e da segurança da população. A pesquisa aponta a semelhança entre instituições socioeducativas que executam a MSE de internação e as instituições carcerárias para adultos, desconsiderando o contexto do jovem e perpetuando a lógica da punição, da segregação em celas, das condições insalubres e dos espancamentos.

Quando inserido na dinâmica do conflito com a lei, este adolescente passa a ser visado pelo Estado, tornando-se mais vigiado e, de certa forma, mais suscetível à captura dos dispositivos de segurança do aparato estatal. A inserção no trabalho do jovem egresso, mesmo sendo uma das dimensões a serem desenvolvidas no Plano Individual de Atendimento (PIA), é precária. Em sua maioria os jovens não conseguem essa inserção ou conseguem apenas através do trabalho informal (Scisleski et al, 2015).

Silva (2007), em sua investigação com jovens em medida de internação, aponta, a partir do relato dos mesmos, as experiências de violência física, o sentimento de abandono e a vivência do desrespeito e sofrimento no período de cumprimento da medida. Tavares (2018) aponta com centralidade a conotação negativa que os adolescentes atribuem ao cumprimento da MSE de internação. A percepção da MSE de internação é semelhante à visão da prisão observada entre os adultos, participando de uma lógica punitiva, de castigo, incorrendo em adoecimento, rotulação e estigmatização deste jovem, fatores que dificultam, segundo estes autores, ainda mais a inserção no contexto sócio-comunitário bem como nos demais espaços e dimensões da vida, como na família, na escola e no trabalho, conforme aventado anteriormente.

Neste sentido, contraditoriamente, as experiências de violência, conforme aponta a literatura estudada, são um elemento central para se compreender o processo de cumprimento das MSE, especialmente no que se refere às medidas de internação, mas que também é evidenciada no período pós-internação, em cumprimento de medida de liberdade assistida e nas relações sócio-comunitárias. Violência que é compreendida no presente trabalho a partir de uma perspectiva psicossocial, fundamentada no trabalho de Ignácio Martín-Baró e no paradigma da Psicologia da Libertação, em consonância com a tradição da Psicologia Social Crítica latino-americana.

De acordo com Martín-Baró, para analisarmos a violência é preciso entender suas raízes, sua natureza e sua manifestação, entendendo que ela é um fenômeno social, que perpassa as relações sociais, não sendo possível que a analisemos sob um prisma meramente individual. O autor considera ainda que não existe algo como a "violência em abstrato", mas situações violentas e "atos violentos, formas concretas de se atuar violentamente" (p. 128). A violência, segundo ele, não deve ser adjetivada, mas substantivada, a fim de captarmos suas reais raízes e historicidade. Nesse sentido, compreender a violência a partir de uma perspectiva psicossocial incorre na necessidade de a avaliarmos como uma produção sociohistórica e política, que se materializa através de indivíduos ou grupos sociais mediante a aplicação da força para benefício da classe social dominante, ou seja, de quem detém o poder e utiliza de práticas violentas para sustenta-lo (Martín-Baró, 1990a).

Portanto, podemos entender que a violência se apresenta de variadas formas, inserida e produzida a partir de um determinado contexto, facilitador ou não de sua perpetuação. Um ato violento inevitavelmente estará associado à sua justificação e, essa justificativa estará associada aos valores concretos e de interesse da sociabilidade vigente. Tratamos a violência não como um mero ato que se finda em si mesmo, mas como uma expressão das relações estruturais e de poder de nossa sociabilidade. Dessa forma, compreendemos a violência como uma expressão institucional e estrutural (Martín-Baró, 1990a).

Para Martín-Baró (1990a), a violência é justificada, e, assim legitimada, a partir de um processo de desvalorização, desumanização e, por vezes, animalização do sujeito, incorrendo na transformação deste em um inimigo que deve ser combatido ou punido. Assim chegamos à outra faceta da violência, que é a sua ideologização, recurso que tende a ocultar suas determinações estruturais, a partir do marco do conflito de classes.

Ao falarmos da juventude criminalizada estamos tratando de uma população que tem suas vidas construídas em intersecção com a violência. No entanto, não estamos falando de qualquer tipo de violência, mas de uma que se concretiza para beneficiar determinada classe social, assim sendo, para reprimir e controlar as massas populares (Batista, 2015). Nesse sentido, se explicita uma violência que é estrutural, institucional e simbólica, que se materializa por uma injustiça institucionalizada que esses jovens vivenciam em suas trajetórias de vida, sobretudo a face negra e pobre da juventude brasileira.

A partir do exposto, nos questionamos sobre quais os sentidos produzidos pelos adolescentes em seu percurso pela rede de proteção materializada pelas MSE, considerando que tal experiência é atravessada tanto por perspectivas emancipatórias que almejam a produção de projetos de vida alternativos entre os adolescentes, como também por diferentes expressões da violência que podem se reatualizar no contato destes sujeitos com a rede de proteção preconizada pelo Sinase e pelo ECA. Nessa perspectiva, o objetivo do presente artigo é refletir sobre as experiências de adolescentes em conflito com a lei em suas trajetórias pela rede de atendimento socioeducativo de um município de médio porte do Estado de Minas Gerais (MG).

 

PERCURSO METODOLÓGICO

A presente pesquisa é um estudo de abordagem qualitativa. Tal opção se fez pelo interesse em explorar de maneira aprofundada as narrativas dos adolescentes em relação às suas trajetórias na rede de atendimento socioeducativo. A pesquisa qualitativa permite que as narrativas produzidas possam ser compreendidas a partir de seus aspectos singulares, mas também entrelaçadas com a dimensão coletiva dessas histórias explicitadas (Minayo, 2012).

A pesquisa foi realizada em um Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), que, dentre outras atividades, desenvolve ações com adolescentes em cumprimento da MSE de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviço à Comunidade (PSC), sendo uma parcela destes, egressos da MSE de internação. O trabalho de campo teve duração de seis meses, ocorrendo entre dezembro de 2017 a junho de 2018, onde foi possível acompanhar e observar os atendimentos e intervenções realizados pela equipe técnica (psicólogos, assistentes sociais, pedagoga e advogado).

Após este período de observação, foram realizadas entrevistas narrativas com sete adolescentes do gênero masculino, com idades entre 15 e 19 anos, que estavam em cumprimento de LA no momento da pesquisa. Como critério de inclusão na pesquisa delimitou-se a participação apenas daqueles adolescentes que tivessem passado pela MSE de internação antes da LA ou da PSC. No município onde a pesquisa foi realizada, o Centro Socioeducativo responsável pela MSE de internação abarca somente o público masculino. As adolescentes que necessitam passar pela medida de internação são encaminhadas para uma instituição de outro município do Estado de Minas Gerais. Sendo assim, o público majoritário que estava em cumprimento de MSE em meio aberto era composto por adolescentes do sexo masculino e, por isso, os entrevistados se restringiram a este público. Ao longo da inserção no campo, foi possível observar que na maioria dos casos, os jovens que haviam passado pela medida de internação estavam, no momento da pesquisa, em cumprimento da medida de LA. Assim, entre os participantes da pesquisa, não houve nenhum entrevistado em cumprimento de PSC.

A construção da entrevista se baseou no método da História de Vida, compreendida dentro da abordagem biográfica. A opção por trabalhar com esta abordagem se fez pelo fato de o método possibilitar um alcance das representações, vivências e significados singulares que cada sujeito atribui a determinada situação, ao mesmo tempo em que, mediados por um contexto particular compartilhado, esses adolescentes, traziam relatos que enunciavam uma dimensão da totalidade social (Bertaux, 1999).

A partir das narrativas construídas por esses sujeitos sobre suas trajetórias de vida, tendo a MSE como um fio condutor, mas explorando também outros aspectos, se objetivava compreender suas percepções, sentimentos, experiências e reflexões sobre o seu percurso institucional e sobre os efeitos da MSE em suas vidas. Acredita-se que, ao mesmo tempo em que o adolescente criminalizado fala de si, ele também fala da história de um grupo social e, então, acaba por revelar ou explicitar uma estrutura social na qual estão inseridos (Bertaux, 1999).

A aposta na entrevista narrativa enquanto um recurso da linguagem e de construção do conhecimento se deu para aprofundar aspectos específicos desejados pelos objetivos da pesquisa, porém em um constante movimento de negociação com o que era desejado enunciar por parte do interlocutor. Dessa maneira, considera-se que os entrevistados ao narrar suas histórias e compartilhar suas experiências, de alguma maneira, estavam implicados em uma postura de participação na cena da pesquisa (Muylaert, Sarubbi, Gallo, Neto & Reis, 2014).

As entrevistas foram gravadas em áudio em um aparelho telefônico, com exceção de uma, em que o adolescente preferiu que não fosse gravada. Nesse caso, logo após o término da entrevista foi realizado um relatório que buscou recuperar o máximo de informações produzidas no diálogo realizado.

A definição da quantidade de entrevistas realizadas foi orientada pelo critério de exaustação/saturação, o qual indica o momento de encerramento. Esse fechamento se deu quando conseguimos obter uma teia de significados que respondesse de maneira satisfatória aos objetivos da pesquisa, que explanasse o ponto de vista dos sujeitos entrevistados, e que, novas entrevistas não apresentariam grandes mudanças aos dados já elaborados (Minayo, 2012). Abaixo segue uma tabela com algumas informações sobre os jovens entrevistados, utilizando-se nomes fictícios. E, como maneira de se preservar o discurso dos entrevistados, foram mantidos os regionalismos assim como o modo de falar de cada um deles.

 

 

Para análise dos dados das entrevistas realizadas, foi utilizada a Análise de Conteúdo do tipo temática possibilitando a análise em profundidade do material (Gomes, 2008). As categorias analíticas foram determinadas a priori e a posteriori da realização da pesquisa de campo, a partir da literatura estudada, da observação participante e do diário de campo. Por fim, os dados encontrados foram analisados por uma dupla de pesquisadores, com suporte do Software Atlas.ti. (6.2)

A pesquisa foi submetida e aceita pelo Comitê de Ética em Pesquisa Humana sob o parecer de número 2.638.633. Além disso, a submissão e execução da pesquisa respeitou as diretrizes éticas concernente a pesquisa com seres humanos conforme consta na Resolução n° 466/12 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados se ancoram na produção de três eixos construídos a partir da análise das entrevistas efetuadas com os adolescentes, sendo eles: 1) Os sentidos da internação: humilhações, vergonha e privações como expressões da violência; 2) O processo de inserção social: estigma, medo e a violência que se perpetua; e, 3) Liberdade Assistida e projeto de vida: perspectivas para o futuro e uma alternativa à violência.

OS SENTIDOS DA INTERNAÇÃO: HUMILHAÇÕES E PRIVAÇÕES COMO EXPRESSÕES DA VIOLÊNCIA

O contato dos entrevistados com o sistema e os atores de justiça, segurança e socioeducação, enquanto estavam sob a MSE de internação, é marcado por um contínuo de experiências com forte teor de violência, o que corrobora outros estudos realizados no Brasil. Trata-se de vivências permeadas pela violência institucional que se materializa ainda na violência física, na punição e privação de direitos básicos, operando também a partir da imposição de experiências de humilhação e vergonha.

Foi possível perceber, a partir do relato dos adolescentes, que, entre eles, vigora uma concepção que aproxima o sistema destinado à MSE de internação ao sistema prisional destinado para adultos. Nota-se uma estrutura orientada pelo sentido máximo da restrição de liberdade, organizada em uma rotina ociosa e sem atividades produtivas/com sentido, como podemos observar quando Marcos narra sua experiência: "Ficava sentado, parasitando, sem nada pra fazer praticamente, cadeia mesmo, nada pra fazer". Gustavo, outro adolescente entrevistado, também explicita tais dinâmicas em seu relato: "Ah, lá é ficar preso mesmo, não tem isso de rolê não. Fazia nada não, é ficar no barraco mesmo, ficava cuidando dos bichos, mas agora nem tem isso não (...) cadeia é muito ruim, ficar preso é foda.".

Tais relatos sinalizam que apesar da mudança paradigmática de tratamento ofertada à população infanto-juvenil, concretizada pela criação do ECA, ainda pode ocorrer em espaços destinados a adolescentes, a reprodução de práticas tradicionalmente ocorridas no sistema penitenciário. A privação de itens básicos de higiene, a estadia em locais insalubres e a restrição à cela, também foram relatados pelos adolescentes entrevistados, evidenciando, além da privação de liberdade, a privação de direitos sociais básicos, como o direito à saúde e à integridade física, psicológica e moral (Zappe et al, 2011).

A partir das narrativas dos adolescentes, identificamos que essas privações, diversas vezes, estavam associadas a uma punição impetrada pelos agentes, que tinha como finalidade a repreensão a uma briga ou descumprimento de uma ordem. Isto evidencia a perpetuação da lógica do castigo em detrimento da perspectiva socioeducativa e conscientizadora. Ou seja, na medida em que o adolescente expressa algum comportamento que contrarie as regras e normas institucionais, tal ação violenta pode ser empregada como mediação, como aponta o relato de Samuel:

Todo mês tem direito a ficar três dias em casa, se ocê brigar, acontecer alguma coisa assim, lá tem câmera, eles vê quem que brigou, quem que tiçou, aí eles vai lá e corta seu induto, que o induto é saidinha/aí cê fica 60 dias de castigo, fica sem ver a mãe, eles pode cortar também a visita, se a mãe assim brigar com a gente, aí eles corta(...) Lá é obrigado a estudar todo dia, seis horas, seis e meia, eles chama pro café obrigado. Se você não for, cê não vai em casa, pega tranca.

Os sentimentos de humilhação e vergonha são também componentes que surgem a partir das experiências cotidianas narradas pelos adolescentes, desde sua chegada à instituição de internação até sua saída.

Só grade, cê ia cagar tinha que cagar na frente deles. Tomar uma água, cê tinha que pedir eles. Tudo cê tinha que pedir eles. Tomar um banho, cê tinha que pedir eles. Ah, lá é doidera. Cê só sai tem que tomar revista, toda hora tem que tomar revista, toda hora(...) Cê chega lá dentro não é tranquilo não, é tapa na cara mesmo, não obedece pro cê vê, eles te algema, junta um montão no cê, te bate. Lá dentro, ninguém vê isso, eles te bate, te faz covardia, eu vi. Um dia eu tava no salão de visita, eles chamaram o adolescente, algemaram o adolescente, só tapa na cara e pezada nos peito. Covardia. Covardia mesmo. (Samuel)

Os caras lá é ruim vei, porque foi assim, os caras me deram colchão assim que tava jogado no lixo assim ó, um montão de colchão assim do lado de fora assim, tudo sujo, cheiro de mofado com a algema assim presa na mão assim apertada, mandando nois pegar assim ó, eu fiquei foi bolado fio, eu falei assim "que isso, que isso", "ce já quer chegar aqui, ja quer mandar?", eu falei "né não aí, olha só a minha mão tá presa como é que você quer que eu pego um colchão e o cobertor e eu com a mão presa?". Ele fez nois pegar o colchão e o cobertor com a mão presa assim ó e levar assim carregando, ninguém ajudou nois, ou, os colchão tudo veio era assim ó, aaa sabe aqueles colchão ta ruim?!(Vinicius)

Observando as contínuas experiências de violência, humilhação e discriminação, a MSE de internação pode fragilizar a possiblidade de uma transformação da realidade desses jovens, podendo contribuir para a manutenção da lógica da reincidência e criminalização (Oliveira & Miranda, 2019). Vejamos a resposta de Marcos para a seguinte questão "O que você sentia e pensava enquanto estava por lá?": "Quando eu tava lá? Ah, revolta né. Muita revolta. Muita tristeza. Tinha dia que eu pensava, a se eu ficasse aqui, sei lá mano, tinha dia que eu pensava se eu ficar aqui eu ia tocar pro foda-se.".

Como abordado por Ximenes, Moura e Sarriera (2013), as atitudes de desrespeito, condutas impositivas e a consequente retirada da possibilidade de escolha pelo sujeito, bem como as práticas de inferiorização e discriminação, compõem a experiência de humilhação, que também é caracterizada como uma violência. Quando há a introjeção e concordância dessa percepção negativa pelo sujeito alvo da violência, também se evidencia o sentimento de vergonha. Ademais, Martín-Baró (1990a) contribui para analisarmos a situação em tela, uma vez que, conforme anteriormente explicitado, este autor considera que a violência também se expressa de maneira simbólica, a partir das relações sociais e institucionais vivenciadas em uma situação concreta. Portanto, os relatos dos adolescentes apontam para a produção de experiências que são mediadas por violências, e, ao mesmo tempo, expressam certa naturalização no tratamento ofertado a segmentos historicamente subalternizados, e, neste caso, que carregam a insígnia de "criminosos".

Tais experiências narradas pelos adolescentes ocorrem no interior de uma instituição total, de acordo com a designação de Goffman (2011). Esse autor, ao estudar tais instituições, identificou o processo de mortificação do eu que fora vivenciados por diferentes sujeitos. Trata-se de um processo de homogeneização e busca pela padronização dos indivíduos que são confinados em determinados locais, como prisões, asilos e conventos. No cenário pesquisado, as narrativas dos adolescentes explicitam situações nesta direção:

Falei "que isso ow", eu já sabia, isso foi mais mesmo por graça, pow nem precisava disso não, foi, fiquei foi mais triste quando eles cortou meu cabelo, sério. Até chorei vei, nossa até chorei vei. O primeiro dia que eu cheguei o agente não cortou não porque eu não tinha máquina não vei. O agente falou comigo assim "vou cortar seu cabelo amanhã", eu falei "pow agente não precisa não vei, que eu vou sair vei". Pro'cê ver, cortaram meu cabelo pra ficar 12 dias lá vei, meu cabelo já era pra tar muito maior do que o seu, ou maior do que isso. Nossa, chorei vei, chorei meu fi, fiquei pensando na escola, fiquei pensando na muié. (Vinicius)

Todo dia lá é a mesma coisa. Todo dia mesma coisa, todo dia cê acorda, cê já sabe o que vai fazer, precisa nem de, só muda os agentes de plantão né. Todo dia a mesma coisa, muda não, todo dia a mesma coisa(...)Ah, lá é mó paia, só banho gelado 6h da manhã. Lá não dá não. Nego morre lá, lá é assombrado, é nego gritando só nome ruim. Mas eles fica assim, lá cê vive o dia inteiro assim. Banho de sol 15 minutos, se pegar castigo cê só não sai pra atividade, não tem refeitório, não tem nada. Só uma marmitex, no barraco o dia inteiro e cê tem direito a 15 minutos de banho de sol e te guarda de novo. (Samuel)

Os relatos acima apresentados contribuem para explicitar a conotação negativa e contraditória no que diz respeito ao cumprimento da privação de liberdade. Esse cenário culmina no seguinte questionamento, feito por Jaden: "Que socioeducativo que é esse?". A partir desta indagação, seguiremos elencando os possíveis efeitos da experiência de privação de liberdade em relação à vivência em liberdade assistida, assim como na construção de possíveis projetos de vida entre os adolescentes entrevistados.

O PROCESSO DE INSERÇÃO SOCIAL: ESTIGMA, MEDO E A VIOLÊNCIA QUE SE PERPETUA

O processo de inserção social dos adolescentes é atravessado por dificuldades que se relacionam com a experiência de internação anteriormente suscitada, bem como novos desafios que se apresentam. Um elemento que emergiu durante as entrevistas com os adolescentes é a marca deixada quando passam pela instância da justiça juvenil, isto é, quando cumprem a MSE. Relatam que após saírem da instituição de internação, são frequentes as abordagens policiais, mesmo quando não estão em situação de ilegalidade, evidenciando a dinâmica da estigmatização e criminalização desses jovens (Zappe et al, 2011). Esse processo pode ser entendido através de uma lógica estigmatizante, em que se perpetua relações de opressão, dominação e cerceamento vivenciados pelos jovens. Essa dinâmica se insere em uma reatualização das relações de opressão e controle já experenciadas por esses sujeitos, produzindo a continuação de uma violência simbólica, em que há a legitimação das relações estruturalmente desiguais.

Os relatos a seguir explicitam a lógica perversa em que esses adolescentes são imersos quando passam pelo contato com a justiça, dinâmica que os torna ainda mais "capturáveis" por esse sistema e por vezes reforça sua desproteção. Gustavo relata que é comum o cerceamento de sua circulação pelo bairro em que vive: "Ah, eles tentam tirar uma né (se referindo à abordagem dos policiais), pagar de, mas faz nada demais não. Mas agora eu nem to ciente mais dessas coisas não, não fico fora de casa, então nem vejo." Nesta mesma direção, Samuel relata que:

Sobem direto atrás de arma, e se ocê não dá eles, eles te forja, quando cê faz 18 anos eles fica falando "espera cê fazer 18 anos". Forjar é o que? É eles colocar droga no seu bolso, cê ter, eles faz isso, se ocê não da eles. Uma hora eles fica, porque eles sabe que cê tem dinheiro, eles sabe que a vida do crime dá dinheiro.

O medo e a insegurança relacionados a alguma resposta violenta durante sua circulação no território comparece no relato de Samuel. Aqui podemos observar tanto essa reação de medo, - que na fala de Samuel comparece como uma precaução - mas também o estigma evidenciado pelos olhares de outros moradores do território que conhecem a história do adolescente.

Eu ando na rua agora, eu venho pra cá, eu não ando tranquilo, eu tenho que ficar olhando pra traz, pensa que tem alguém seguindo pra te matar. Aí cê não anda tranquilo, cê tem que mudar muita coisa. Aí as pessoas te vê "Ah ele lá, já saiu, já saiu". (Samuel)

A partir do exposto nesses relatos é importante questionar qual a conotação que os adolescentes atribuem à vivência do cumprimento de MSE, bem como os efeitos produzidos em suas vidas durante a medida e até mesmo após seu encerramento. Quando questionamos sobre tentativas de inserção profissional ou de formação, evidenciamos possíveis marcas explicitadas por uma cadeia violenta, em que o adolescente entende que, por já ter participado de uma ação violenta, vive na iminência de sofrer a consequência desse ato, conforme questiona Jaden: "Será que eu vou ter inteligência pra fazer isso tudo? Será que eu vou tá vivo, até lá? Porque o futuro continua, mas o passado ninguém esquece". Assim, o estigma é um dos fios condutores das relações vivenciadas no reencontro com a liberdade.

É. Amigo, pessoas da rua te olha assim meio torto né, com medo. Igual uns tem medo porque cê já matou, outros não liga. É, tipo assim que eu falo, as pessoas, os morador te olha torto, até vê que cê mudou de vida. Eu sou novo ainda, tenho que mostrar muito coisa. (Samuel)

As limitações relacionadas à presença desses adolescentes em seu bairro colocam questões relacionadas ao território, que explicitam uma face do não direito a cidade, seja pelo estigma daqueles que lá vivem, seja pela dificuldade de reinserção em seu próprio local de moradia. A realidade de conflitos entre grupos rivais na criminalidade também evidencia ainda mais essa dificuldade de reinserção. O relato de Vinicius sobre seu retorno para casa evidencia esse processo: "No Santo Antônio. Lá, porque rolou um desacerto lá, os caras lá, aí os caras falou que ia me matar eu, ai eu tive que sair de lá, por causa disso que eu saí de lá.".

Outro elemento comum nas narrativas dos adolescentes é o medo de serem presos novamente e o entendimento dessa possibilidade enquanto uma ameaça cotidiana, seja pelo perigo de serem "forjados", como Samuel disse acima, seja pela ocorrência de um novo problema. Vinicius, por sua vez, demonstra certa vigilância para com suas ações, quase como uma resposta à vigilância também experimentada por ele através das instâncias de segurança.

Tipo assim, não rolar um desacerto, não arrumar problema com alguém, implicar com ninguém, porque eu não precisar de ser preso ou acontecer alguma coisa, ou os homi me pegar na rua fazer uma coisa errada, me prende...É isso que eu tô falando. (Vinicius)

Ainda sobre a produção dos sentidos em relação ao cumprimento da MSE e seus efeitos, a privação de liberdade aparece como um processo de violações em suas mais variadas dimensões e também enquanto uma vivência que reatualiza a dinâmica da violência, incutindo no jovem o medo de retornar para o CSE. Nesse sentindo é possível perceber que, por vezes, o efeito gerado nesses adolescentes é o inverso do que se pretende alcançar com a Doutrina da Proteção Integral. Tomamos como exemplo a fala de Gustavo: "Ah, ficava cheio de ódio, cada dia que passava eu ficava mais cheio de ódio", o que nos faz pensar que essa vivência pode não necessariamente se configurar enquanto um espaço de promoção de desenvolvimento pessoal, familiar e comunitário, mas como algo associado a sentimentos de revolta, tristeza e repulsa (Coelho & Rosa, 2013).

Esses sentidos expressos pelos participantes da pesquisa nos fazem lembrar do que Martín-Baró chamou de trauma psicossocial, quando se referia aos cenários de guerra em El Salvador. Mesmo em outro contexto, podemos encontrar semelhanças, como a insegurança frente ao próprio destino e a carência de propósitos futuros (Martín-Baró, 1990b). Esses elementos acabam por produzir significados presentificadores, conforme a fala de Jaden: "Tava falando semana passada acho, dos meus sonhos, meus sonho são muito difícil. Não sei se eu vou alcançar.", em que projetos futuros parecem não ser coerentes com o modo de vida experimentado por esses sujeitos.

Meu sonho é ser jogador. Agora não tenho mais sonho não, acho que a minha vonta..., não é sonho, minha vontade mesmo é ser alguém na vida. Só isso a minha vontade agora, porque antes eu queria ser jogador e não consegui, agora é seguir minha vida do jeito que eu consigo né. (Marcos)

A experiência de cumprir a MSE soma-se às condições de vida pré-existentes à internação de tal forma a produzir sofrimento, insegurança, violência, bem como estigmatização no cotidiano dos adolescentes. A MSE não inaugura essas experiências, mas pode reforçar essas condições que os recortes de classe social e aspecto étnicos, raciais e de território já colocavam em cena. Os relatos também demonstram a naturalização de práticas violentas no contexto de cumprimentos de MSE e no processo de retorno e inserção nos espaços coletivos. A perspectiva pedagógica e de responsabilização pode estar fragilizada em detrimento das práticas institucionais permeadas por diferentes expressões de violências que são sentidas pelos adolescentes, e, que necessitam ser compreendidas para que possamos nortear a ação direcionadas a esses sujeitos.

LIBERDADE ASSISTIDA E PROJETO DE VIDA: PERSPECTIVAS PARA O FUTURO E UMA ALTERNATIVA À VIOLÊNCIA

A trajetória dos adolescentes na rede de proteção social perpassa as ações desenvolvidas no âmbito do CREAS, na modalidade de LA. Em relação a estas atividades, os adolescentes apontam algumas mudanças, especialmente, em relação ao CSE. Jaden destacou a possibilidade de diálogo encontrada no contato com a equipe que o acolhera: "Ah eu percebi uma mudança, tipo assim, não foi uma mudança que eu percebi. Eu percebi que tipo assim, eu não estava sozinho, eu precisava mais de dialogações, eu não sou de dialogar. Só quando é preciso.".

Samuel ressaltou a possibilidade de reflexão: "Ajudou. Ao mesmo tempo que ajudou não ajudou, mas eu acho que ajudou a refletir, né, muito né. Às vezes é poucos que reflete né". Para Marcos, a participação dos encontros ofertados no CREAS possibilitou um espaço para seu amadurecimento: "Ajudou ué. Estou vendo as coisas de um jeito bem diferente agora, não vejo mais as coisas do jeito que eu via antes. Amadureci mais." Vinicius, por sua vez, também destacou a dimensão do diálogo: "Tipo assim, eu me envolvi mesmo, tipo assim, mas também é bom também que tipo assim, cê conversa[...}conversa assim, cê começa a conversar, trocar ideia, aí vai vei, tendeu?". É importante destacar que no espaço do CREAS, durante o cumprimento da LA, os jovens retrataram experiências que apontam para uma prática mais dialógica e acolhedora nos encontros realizados neste serviço. Percebe-se também que no contato com os atores deste espaço os adolescentes são estimulados a pensar sobre seus projetos de vida e, mesmo que com limitações objetivas, há uma busca dos profissionais ali presentes na construção dessas perspectivas futuras.

Outro ponto que chamou a atenção são falas relacionadas aos questionamentos sobre planos futuros e projetos de vida, as quais explicitam incertezas e medos com relação a um futuro que não está sob o controle dos participantes, permeado por marcas e consequências de ações anteriores a MSE.

Será que eu vou tá vivo, até lá? Porque o futuro continua, mas o passado ninguém esquece. Tipo assim, não adianta cê ser um traficante lá atrás e querer dar uma de certinho aqui na frente e esquecer dos seus problemas do passado. Se a pessoa for ruim mesmo, ela tira sua vida. (Jaden)

Ainda na sequencia dos relatos associados ao projeto de vida, podemos observar a internalização de percepções relacionados ao trabalho que elucidam a inserção dos adolescentes em uma lógica de valores socialmente disseminados, como a meritocracia e a visão liberal e individualista de homem.

Tô aí pra trabalhar, não tem jeito, a gente tem que trabalhar pra gente ter as coisas né. Já que quem não faz nada, nada fica, fica em casa atoa. Tem que trabalhar pro cê comer, tem que trabalhar pro cê beber, tem que trabalhar pro cê tomar um banho, ter uma luz. Tudo nessa vida tem que ter um suor. Nada é em vão, tudo que cê faz tem um troco, tudo que cê faz tem um troco. Tudo que cê planta vai nascer um dia. Hoje cê rouba um boné, amanhã cê é roubado. Hoje cê rouba um carro, amanhã te rouba o carro. Essa vida é assim, tudo tem um troco na vida, eu vi que tudo tem um troco. Hoje cê mata, amanhã cê pode morrer. (Samuel)

Não sei não, a pessoa tem que ter força de vontade de mudar. Conselho, sempre precisa de alguém, alguma pessoa pra dar conselho, mas nem todo mundo que dá um conselho a pessoa muda né?! Tem que ter força de vontade também né pra mudar. (Jaden)

A respeito da visão de futuro dos adolescentes, alguns elementos comparecem mais significativamente em suas falas. A constituição de uma família e o alcance de um trabalho digno aparece como valores centrais e elementares quando pensam em seus projetos de vida. Essas falam nos indicam a tentativa da construção de um projeto orientado por valores societários compartilhados e que podem marcar a separação da trajetória pautada pela violência vivida até então. Como observamos no relato de Breno: "Quero tá tranquilo né, ter minha família, filho. Tá com um serviço bom". Em alguns casos o término/continuação dos estudos também é colocado em perspectiva.

Ah, imagino daqui uns anos? Imagino. Imagino bem né. Ah, eu imagino tranquilo de vida né, com a minha família, o tempo, ficar no serviço, comprar um lote, levantar uma casa, parar de pagar aluguel, ajudar minha mãe. Penso só nisso mesmo." (Samuel)

Por isso que hoje em dia eu tô tranquilo, quero ficar tranquilo, arrumar um trabalho, depois terminar os meus estudos aí, terminar meus estudos, vou ser alguém na vida, só isso mesmo (...) Mas só que eu quero terminar meus estudos mesmo, entrar na Faculdade de Educação Física, ficar tranquilo." (Marcos)

Ah eu imagino bem, com meu filho crescendo, tipo assim, construindo uma família, trabalhando, estando de bem, comprar uma casa, ter um carro, tipo assim mano, pra alcançar essa meta ai tem, tem que trabalhar, o que eu quero mesmo é arrumar um serviço vei, fazer uma coisa que que eu ganho dinheiro tendeu?! An, falei com meu pai, queria fazer um curso de segurança. Aí também é bom né, recebe bem. (Vinicius)

O trabalho apresenta-se como uma forma de acessar bens, o que significa a materialização de mudanças em seu atual momento de vida. Essas mudanças são efetivadas pela via do consumo (Oliveira & Miranda, 2019). Além do mais, essas conquistas significam, para eles, amadurecimento e desenvolvimento. É importante destacar que esses valores desejados são elementos que perpassam o imaginário social e constituem o que é idealizado por grande parcela social, não apenas pelos adolescentes neste trabalho citados.

Ah eu vejo uma mudança na minha vida, mudou muito né. Querendo ou não, quem me vê assim com essa calça, com essa bota não acredita né. "Po, ele tá trabalhando". Eu passo, nego fica me olhando, vou pro serviço nego fica me olhando. Eu acho que tá mudando né, não mudou ainda não. Mas que Deus tá mudando, to mudando, devagarzinho vou mudando. Vou amadurecendo né. (Samuel)

Imagino um montão de coisa né. Ter meu carro, minha moto, ter um trabalho, igual eu te falei, ter minha faculdade que eu quero fazer e isso mesmo, ter um trabalho digno(...)Só isso mesmo. Mais nada não. Ajudar a minha família, tem muita coisa não. (Marcos)

Que eu vou fazer, mas isso aí por enquanto, quando eu tiver ralando de servente, porque quando eu arrumar um serviço de carteira assinada também, já vai ser pagamento, já vou ter uma conta, já vou ter uma coisa, também vai ser diferente, também já vou ter um cartão pra tirar as coisas, aí já é mais tranquilo também, entendeu? Tipo assim pro pro'cê alcançar sua meta, tá ligado? Tipo assim, cê quer comprar alguma coisa, se se você não tiver trabalhando você não compra não ué(...)Pá! você recebe bem, mas você mano, porque eu quero arrumar um serviço bom, tipo assim, porque eu penso assim né, o que eu não tive, meu filho, eu vou eu eu eu vou dar pro meu filho né mano, tipo assim tem hora que eu penso assim, quando meu filho tiver aí pow, eu posso comprar uma motinha elétrica pra ele, tipo assim, é um dinheiro que, cê tem que ter um serviço pra comprar isso, não é fácil comprar. (Vinicius)

Apesar das dificuldades vivenciadas no trabalhado realizado no CREAS, os adolescentes consideram fundamental a dimensão dialógica que encontraram neste espaço para pensar sobre suas experiências relacionadas à criminalidade, e, sobretudo, relacionadas à construção de projetos de vida em uma perspectiva mais criativa, em que ganha relevo a dimensão do trabalho. O trabalho no âmbito das MSE, em razão mesmo da natureza dos temas abordados, e, especialmente, em razão do público atendido (jovens pobres e majoritariamente negros), pode naturalizar certas práticas que são altamente violentas e necessitam ser superadas. Entretanto, é imperioso destacar que os jovens sinalizam algumas pistas que devem ser incorporadas em nosso quefazer profissional, na medida em que salientam a importância de espaços acolhedores e encontros que possibilitem a construção de outros projetos possíveis para suas vidas. Neste sentido, o caráter educativo empregado pelo SINASE e o ECA ainda se fazem ouvir, e, devem cada vez mais orientar as ações nesta área.

A trajetória destes sujeitos em meio à rede de proteção é conformada a partir de múltiplas experiências. As violências que são por eles nomeadas devem ser devidamente escutadas e compreendidas para que possamos efetivamente superá-las no processo de cuidado ofertado aos adolescentes em MSE. É essencial que esse processo possa ser mediado por relações mais dialógicas e humanizadas, colocando em perspectiva a centralidade daquele adolescente nesse percurso. Convidar esse adolescente a falar de si, sobre suas experiências e sentidos, pode auxiliar os profissionais a visualizarem em conjunto com os jovens as estratégias de ação. Podemos observar que o espaço do CREAS, a partir da realidade analisada, orientado pela política de Desenvolvimento Social, pode contribuir para esse convite, favorecendo então para a não perpetuação - e quiçá na provocação de uma fissura - da lógica punitiva, mesmo que saibamos da continuação de tal relação em demais esferas da sociedade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou apresentar algumas reflexões relacionadas às vivências narradas pelos adolescentes a partir de seus encontros com os diferentes atores que conformam a rede de atendimento socioeducativo. A trajetória dos adolescentes é marcada por diferentes experiências, que vão desde as variadas expressões de violências até a possibilidade de encontros em que se percebe a possibilidade de ações pautadas pela dialogicidade e a tentativa de produção de novos projetos de vida.

O processo de internação no CSE apresenta um forte significado na vida dos adolescentes entrevistados, que são intensamente sentidos, inclusive, no processo de reinserção, a partir do contato com suas redes comunitárias e outros atores da segurança pública, como o aparato policial. Por outro lado, a LA é percebida pelos adolescentes como uma modalidade que possibilita a construção de vínculos, os quais podem contribuir para o estabelecimento de uma rede de suporte social e comunitária mais efetiva.

É importante ressaltar que o SINASE e o ECA devem ser compreendidos como marcos normativos que pautam a proteção integral dos adolescentes em nosso país. Entretanto, em razão da estrutura social marcada por uma grande desigualdade, bem como um histórico de violações de direitos destinados a determinados grupos sociais, consideramos que os preceitos preconizados por tais dispositivos apresentam grande dificuldade em se concretizar. Nesse sentido, apenas a existência da doutrina de proteção integral não será suficiente para modificar efetivamente o conjunto de determinações sociais e políticas que tornam determinados adolescentes mais vulneráveis e expostos a condições de vida extremamente precárias.

Avaliamos que pesquisas futuras devam investigar os sentidos e as práticas dos diferentes profissionais que conformam a rede de atendimento socioeducativo, bem como os policiais que são fundamentais na mediação destes jovens em seu processo de inserção social. Tendo em vista os sentidos produzidos pelos adolescentes desta investigação, que se assemelham a outras pesquisas já realizadas, é fundamental investir em processos de qualificação profissional. Devemos focalizar em processos de formação em serviço que contribuam para superarmos práticas violentas que possam estar indevidamente naturalizadas, ao passo que consigamos fortalecer a construção de alternativas mais emancipatórias. Indubitavelmente, para que isto ocorra, a participação dos adolescentes é fundamental. É necessário que eles sejam ouvidos e que os sentidos que eles produzem a respeito destas experiências possam favorecer o processo de aperfeiçoamento das práticas realizadas e políticas a eles destinadas.

 

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Recebido em: 10/08/2020
1ª revisão em: 20/05/2021
Aceito em: 05/06/2021

 

 

FINANCIAMENTO
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
CONFLITOS DE INTERESSES
Não há conflitos de interesses.
SOBRE OS AUTORES
Amata Xavier Medeiros. Psicóloga pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Mestra em Psicologia com ênfase em Processos Psicossociais em Saúde pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
E-mail: amata.medeiros@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001 -9762-8467
Fernando Santana de Paiva. Psicólogo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Docente do curso de graduação e pós-graduação do Departamento de Psicologia da UFJF. Coordenador e pesquisador do Núcleo de Pesquisa sobre Sujeitos, Política e Direitos Humanos (Nupsid).
E-mail: fernandosantana.paiva@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-6030-9777

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