Desidades
ISSN 2318-9282
ESPAÇO ABERTO
Jovens nas ruas: as manifestações no Chile, México e Brasil
Jóvenes en la calle: las manifestaciones en Chile, México y Brasil
Entrevista de Claudia MayorgaI com Rogelio Marcial e Oscar AguileraIII
IUniversaidade Federal de Minas Gerais, Brasil.
IIUniversidad de Guadalajara, México.
IIIUniversidad Catolica del Maule, Chile
Na última década temos presenciado, com periodicidade e constância, a ocupação das ruas e de espaços públicos por jovens estudantes do Chile, México e Brasil. Seja por questões ligadas à estatização do ensino universitário e à resistência à privatização da educação pública de nível médio e fundamental (Chile), seja pela bandeira da democratização das instituições e por melhores condições de educação (México), seja por uma variedade de pautas relacionadas a direitos – transporte, liberdade de expressão, moradia popular – temos visto as multidões de jovens e estudantes que tomam ruas, ocupam prédios públicos e universidades e reivindicam direitos.
No Brasil, mais recentemente, presenciamos as manifestações ocorridas no último mês de junho, durante a realização da Copa das Confederações da Fifa. As ruas foram tomadas por uma efervescência de manifestações populares, com uma participação expressiva e majoritária de jovens. Inicialmente, as reivindicações aconteceram em torno das exigências pelo passe livre, mas ao longo dos dias muitas outras causas foram sendo especificadas. Com jargões como "queremos saúde e educação padrão Fifa" ou ainda "um professor vale mais que o Neymar", que se misturaram entre as demandas pelo fim da corrupção, pelos direitos humanos, por uma reforma política imediata, milhares de jovens brasileiros interpelaram e buscaram interditar aquele que foi forjado como o grande evento da identidade nacional brasileira, a realização de uma Copa de futebol.
Embora grande parte da mídia oficial tenha se ocupado em diferenciar manifestantes “do bem” dos manifestantes “vândalos”, os acontecimentos colocaram mais uma vez em pauta questões importantes: a relação da juventude com a política, suas formas empíricas de atuação, sua relação com possíveis projetos de sociedade que estariam em formulação e em disputa, e a capacidade e legitimidade da juventude para participar da construção desses projetos. Na pauta, também, interrogações sobre a relação da juventude com a educação, a família, com instituições centrais da sociedade.
Ao mesmo tempo, temos acompanhado em outras partes do mundo, a ocupação intensa das ruas com bandeiras e reivindicações por vezes bastante semelhantes ao que presenciamos no Brasil. Movimentos como o Occupy Wall Street, 15 M, Primavera Árabe são alguns exemplos. Em países da América Latina, a efervescência de manifestações juvenis nas ruas e em ocupações de edifícios públicos também tem acontecido, com forte repressão policial e repercussão midiática.
Para conversarmos sobre as experiências contemporâneas de ativismo juvenil no México, Chile e Brasil, convidamos dois pesquisadores que têm se dedicado aos estudos sobre juventude: Oscar Aguilera Ruiz e Rogelio Marcial.
Acadêmico da Universidad Católica del Maule (Chile) e doutor em Antropologia pela Universidad Autónoma de Barcelona, Oscar Aguilera trabalha há seis anos, aproximadamente, em pesquisa sobre movimentos juvenis no Chile. É membro do grupo de trabalho do Clacso (Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales) Juventud y Tácticas Políticas en América Latina. Atualmente, através de uma bolsa acadêmica do Clacso, vem trabalhando para concluir uma pesquisa sobre o movimento estudantil no Chile entre 2006 e 2011. Desenvolve também uma pesquisa, apoiada pelo Fondo Nacional de Ciencia y Tecnología do Chile, sobre o modo como se constrói a ideia de juventude no século XX.
Nosso segundo convidado, Rogelio Marcial, é professor investigador do Departamento de Estudos de Comunicação Social, Centro Universitário de Ciências Sociais e Humanas da Universidad de Guadalajara no México, à disposição no Colegio de Jalisco. Doutor em Ciências Sociais, há 20 anos trabalha temas relacionados com as expressões da juventude e há quatro anos com temas sobre as expressões culturais da diversidade sexual. É membro do Sistema Nacional de Pesquisadores, Consejo Asesor del Sistema Estatal de Juventud de Jalisco e Consejo Estatal para la Cultura y las Artes de Jalisco. Pertence ao Consejo Iberoamericano de Investigadores en Juventud como representante do México. Entre suas publicações, destacamos Desde la esquina se domina, Jóvenes y presencia colectiva, La banda rifa y Andamos como andamos porque somos como somos: culturas juveniles en Guadalajara.
Aproveito também para apresentar-me como entrevistadora. Sou doutora em Psicologia Social pela Universidad Complutense de Madrid, professora e pesquisadora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. Coordeno o Centro de Pesquisa Conexões de Saberes e, nos últimos anos, dediquei parte dos meus trabalhos ao estudo sobre participação política juvenil, com atenção especial para a juventude negra e da periferia. Recentemente, participei de uma pesquisa que foi desenvolvida com a participação de pesquisadores de cinco estados do Brasil e culminou na publicação do livro Juventude e a experiência da política no contemporâneo (2012).
A conversa teve como tema central as manifestações juvenis com reflexões sobre quem são esses jovens, quais são suas bandeiras, como se articulam e qual a sua relação com as instituições políticas. Falamos também sobre as noções de juventude e política que podem estar emergindo nesse contexto efervescente e sobre qual tem sido o papel do Estado, da mídia e dos próprios jovens nessa redefinição. Conversamos ainda sobre o papel e importância das ciências sociais e humanas nesse contexto.
Claudia Mayorga: Nos últimos anos, os jovens da América Latina foram às ruas e espaços públicos com diversos protestos. Com reivindicações pela democratização e a não privatização da educação, a expansão do transporte público, a liberdade de expressão, a rejeição da corrupção na política e outras causas, a juventude está na rua. Como vocês viram as manifestações dos jovens no Chile e no México?
Oscar Aguilera: O primeiro ponto que poderia destacar é que a pergunta sobre o vínculo entre juventude e política havia praticamente desaparecido da pauta de pesquisa e reflexão nas ciências sociais e humanas. Poderíamos sustentar uma breve tese de que, de 1995 a 2005, na América Latina, se produz um tipo de invisibilidade de práticas políticas juvenis. Esta invisibilidade, obviamente ocorre em um contexto de auge do neoliberalismo na América Latina e, em paralelo, acompanha um relato sobre a sociedade que vai despolitizando-a progressivamente e isso atinge basicamente os jovens e o mundo infantil. Parece que os jovens, nesse período, não estavam preocupados com a sociedade e isso impactou a própria forma de compreender a juventude daqueles que estavam realizando estudos sobre ela. De fato, chegou-se a sustentar que este momento era como 68, mas ao contrário – enquanto 1968 marca o auge do compromisso político, de transformação social pela juventude, o período entre meados de 1990 e meados de 2000 constituiria sua outra face: o mínimo compromisso político com a sociedade e com a transformação das estruturas políticas e econômicas. Acho isso muito interessante, porque no Chile, assim como em outros países da América Latina, significa uma compreensão do mundo juvenil distanciado, apático com a política. Esse é o contexto em que eu, a partir do meu trabalho, tento começar a responder. O que eu observava em meu dia a dia de trabalho era que os jovens, homens e mulheres, estavam de alguma maneira constituindo, reconstituindo, um tecido associativo com forte territorialidade, ensaiando formas de gestão e organização que não reproduzissem modelos verticais ou adultocêntricos em um processo que é lento e vai se desenvolvendo em diferentes âmbitos. Um primeiro âmbito é o dos próprios movimentos estudantis. No Chile começa a se desenvolver um tipo de ciclo de manifestação social que chamo de movilización callejera (mobilização de rua), a partir do ano 2000, mostrando, basicamente, um aumento da massa, ou seja, muitos jovens protestando nas ruas. É, na verdade, um episódio, com duração limitada, no início do ano escolar, basicamente março-abril, e muito instrumental, ou seja, com reivindicações e petições muito específicas, nada estruturais. Esse processo se inicia em 2000 e vai crescendo como um repertório específico de protestos, impactando outros movimentos, nos quais os jovens também começam a participar. São exemplos o movimiento de pobladores (movimento popular pela moradia), que também desenvolve novas formas de mobilização, e, particularmente, todo um sindicalismo jovem concentrado em torno dos subcontratados das empresas mineiras de cobre. Dessa maneira, este ator jovem que vinha ensaiando formas de organizações, de mobilizações etc, começa a se expressar simultaneamente entre diferentes atores sociais: o mundo do trabalho, o mundo sindical, o mundo estudantil e o mundo dos sem-teto. O que acabou ganhando maior visibilidade e capturou o sentido global de tudo isso foi o movimento estudantil, que é onde se expressam como jovens esses sujeitos.
Rogelio Marcial: Aqui no México existem diversas manifestações juvenis centradas, em sua maioria, nas questões de democracia e inclusão. No entanto, há outros temas com os quais os jovens mexicanos também se preocupam, como a falta de oportunidades no sistema de educação pública, média e superior, as tentativas de privatizar esse sistema, a corrupção associada à presença de empresas multinacionais que não cuidam do ambiente e não outorgam direitos aos trabalhadores (através do outsourcing), a mobilidade urbana, a falta de espaço para as manifestações dos jovens, entre outros. As mobilizações são muito espontâneas, com críticas fortes ao sistema que costumam ser reprimidas pelo Estado mexicano.
Claudia Mayorga: As formas empíricas através das quais os jovens fazem política no México, Chile e Brasil têm elementos em comum... [Utilizo aqui a expressão de Oscar Aguillera em seu Tan jóvenes, tan viejos: los movimientos juveniles en el Chile de hoy (2003)] Há, na sua opinião, alguma relação das manifestações no México, Chile ou Brasil com os movimentos como Occupy Wall Street, 15M ou a Primavera árabe? Vocês identificam aspectos específicos da juventude latino-americana nesse processo?
Rogelio Marcial: Eu penso que a conexão com esses fenômenos está relacionada com a imposição autoritária dos modelos neoliberais de desenvolvimento econômico que precisam, para funcionar, de medidas sociais e políticas impopulares por parte dos governos locais. Ainda que essas medidas possam se referir a temas muito diferentes, segundo os contextos históricos, sociais e culturais de cada nação, a indignação da população civil se manifesta nas praças e ruas frente à obstinação de sistemas políticos estagnados e antidemocráticos, nos quais os políticos, os sindicatos oficiais, a Igreja católica (no México) e outras instituições não aceitam novas propostas, canais reais de debate e tomadas de decisões que afetam a todos e todas, como também a responsabilidade e a punição dos que, desde estas instituições, atuam afetando o bem-estar social. Vejo que as decisões centrais são tomadas nos lobbies da política formal, de acordo com as diretrizes estabelecidas pelos órgãos mundiais (OCDE, FMI, BID etc.) a fim de permitir que as nações sejam avaliadas positivamente e mantenham uma relação perversa de financiamento/endividamento que, finalmente, cobrará as faturas à população civil mediante a privatização de serviços, a falta de representação de todas as forças sociais na política formal, a alienação dos bens públicos, a retirada do Estado de suas obrigações inerentes a favor do bem-estar social, o desenvolvimento integral da população e o sistema de segurança contra o crime organizado, o investimento na saúde pública, educação, arte e cultura, geração de empregos dignos, com prestações de segurança social e, inclusive, delegação de decisões que afetam diretamente a soberania de cada nação. É cada vez mais evidente que as instituições formais do governo que tomam as decisões políticas (Congressos, Câmaras, Comissões) são meros “teatros” onde “encenam” processos democráticos e representativos de todas as forças sociais para legalizar decisões tomadas de antemão por um número reduzido de personagens políticos com interesses particulares, ligados, muitas vezes, aos interesses provenientes do outro lado da fronteira nacional, mas que são impostos como da população como um todo. Dentro de todo esse contexto, os jovens latino-americanos atuam dentro dos limites do possível sob pena de serem violentamente reprimidos se os transgridem; o que acontece cada vez com mais frequência. A história dos movimentos juvenis em nosso subcontinente, pelo menos daqueles em que a presença de jovens é significativa (trabalhadores, estudantes, guerrilheiros, grupos culturais indígenas, alternativos, dissidência sexual etc.), contêm uma herança radical política que em ocasiões é retomada, reelaborada e colocada em prática por alguns grupos e movimentos sociais.
Oscar Aguilera: Para entender a onda de protestos globais que ocorreu e vem ocorrendo desde 2011 seria preciso distinguir os planos globais estruturais que permitiriam compreendê-la, e certamente o que une a maioria de todos estes processos é esse contexto neoliberal e de tensão neoliberal de políticas que provocam tensões entre formas culturais, formas específicas de vida localizadas, seja no mundo ocidental ou no oriental. Há uma variável que tem a ver com o modelo econômico neoliberal. Em segundo lugar, há questões relacionadas com os regimes políticos e aqui começo a encontrar talvez a especificidade geracional: não podemos perder de vista que, no conjunto dos protestos, o que é colocado diretamente em jogo pelas demandas juvenis é a profunda crítica a um modelo liberal representativo, ou monárquico liberal no caso dos países do Oriente, no qual as possibilidades de participação, deliberação, tomada de decisões, estão mediadas, delegadas por um conjunto de sujeitos chamados parlamentares, o chamado poder executivo, pelo qual a cidadania em termos gerais não tem grandes níveis de incidências, com exceção da participação nas eleições através do voto. Essa é uma crise muito mais política que estrutural. Seu princípio estaria fundamentado na inconformidade com o modelo democrático liberal representativo que funciona em quase todos os países que estamos relacionando à onda de mobilização de 2011. Nesse contexto de profunda crítica, a segunda questão já é muito mais crítica, que podemos traduzir em termos de que há uma subjetividade política juvenil que vai se alimentando e entrando em contradição com essa ordem e esses regimes políticos; estamos falando de uma subjetividade política juvenil que talvez não se traduza ou não esteja alimentada por algum programa forte em termos ideológicos, não há uma ideia de esquerda nestes movimentos, não há um projeto revolucionário pré-constituído, o que há é um profundo sentimento ético de indignação pela injustiça que estão experimentando as grandes maiorias de cada uma de nossas sociedades. Então, a velha ideia do reencantamento com a política a partir da ética seria o segundo momento ou esse segundo ponto em comum em boa parte destas experiências. São duas ideias provisórias e que formam parte de uma discussão que nesse momento estamos desenvolvendo junto com um grupo de pesquisadores de nove países em um projeto que se chama Geração Indignada, uma análise dos protestos globais de 2011.
Claudia Mayorga: Concordo com a análise de vocês, quando relacionam as manifestações com a insatisfação e profunda crítica ao modelo neoliberal. Entendo que no Brasil isso ocorre, mas de maneira mais específica, porque faz dez anos que temos governos federais vinculados ao Partido dos Trabalhadores, partido que tem uma ligação histórica com a perspectiva popular e de esquerda e abordou temas sociais importantes. No entanto, há uma forte posição liberal que parece constituir as democracias contemporâneas e o Brasil é um exemplo disso. Um elemento muito usado em nossos países, por exemplo, se refere à maneira como esse estado neoliberal se relaciona com os movimentos sociais. As manifestações populares e juvenis foram fortemente reprimidas e criminalizadas pelo Estado. A relação direta entre a delinquência, o vandalismo e a juventude foi incorporada com muita força. Como os Estados mexicano e chileno e a sociedade em geral se posicionaram ou reagiram às manifestações e organizações juvenis? Da perspectiva da delinquência, rebeldia e crítica? Rogelio argumenta algo a respeito em seu livro Andamos como andamos porque somos como somos (2006)…
Rogelio Marcial: No México também. Temos documentado a maneira como o Estado mexicano vem construindo e consolidando, há mais ou menos 15 anos, processos claros de criminalização da dissidência social. Acontece que aqui as mobilizações e protestos juvenis mais radicais se criam a partir de três processos, para mim muito claros e perversos, de controle social da juventude. O primeiro tem a ver com a criminalização do jovem. No México, desde o movimento estudantil de 1968 e seu contemporâneo relacionado com a cultura do rock, com diferentes matizes e ritmos parecidos ao movimento das ondas (vão e vem, mas não desaparecem), considera-se que se você é jovem é um criminoso em potencial, um delinquente que em qualquer momento prejudicará a paz pública e a harmonia social; por isso é preciso vigiá-lo, controlá-lo e castigá-lo. As “ondas” mais altas desse processo foram naqueles anos (1967-1975), durante um período de crise econômica e de governo (1985-1996) e durante a chegada da extrema-direita ao poder, representada pelo Partido Ação Nacional (2000-2012). O segundo processo tem a ver com a criminalização da pobreza. Desde a crise econômica dos anos 1980, se construiu um olhar mais atencioso ao pobre, que não possui o mais essencial, porque pode "arriscar tudo" a qualquer momento. Por isso também há que identificá-lo para controlá-lo e reprimi-lo através da marcação de características corporais (raciais e de vestimenta), ao estilo do racial profile nos Estados Unidos, que funciona como um “agravante” e semeia suspeita em determinados setores da população. Se bem que, na verdade, o racial afeta somente os que provêm diretamente dos grupos originários de nossa nação (o que não ocorre nos Estados Unidos, onde existe uma presença majoritária das chamadas “minorias étnicas”), junto com um olhar de desprezo que inclusive criminaliza os que com aspectos raciais (mestiços) se apresentam como pobres urbanos e rurais. Por último, temos o terceiro processo, o mais contemporâneo, de criminalização da dissidência social, que tem a ver com as medidas impostas pelos Estados Unidos e que são mascaradas como uma luta contra o “terrorismo internacional” que afeta sua “soberania” e, por isso, justifica o ataque além das suas fronteiras nacionais. Sob essa armadilha, foram consolidados os processos que criminalizam os movimentos sociais e os grupos guerrilheiros, como o Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN), que atuam de maneira fortemente repressiva e cometem delitos como “crime contra a nação”, “terrorismo”, “subversão”, “incitação à guerra”, “sedição” aos que expressam, desde seus direitos mais essenciais, sua dissidência em espaços públicos e sua possibilidade de se reunir e expressar a respeito. Tais “delitos” no México são graves e muitas vezes os que participam nas passeatas e comícios são acusados (além disso, sofrem processos judiciais cheios de armadilhas e irregularidades), podendo receber penas de prisão muito prolongadas e sem direito à fiança. Assim são as coisas, aquele jovem de baixa renda que decide, com todo direito, manifestar sua discordância é um sujeito altamente “perigoso” e merecedor da mais cruel repressão institucional. Tudo isso está blindado por meio da participação significativa dos principais meios de comunicação do nosso país, principalmente o que chamamos aqui de duopólio televisivo (Televisa y TV Azteca) e também a imprensa escrita, que constroem, difundem e naturalizam os processos de criminalização já mencionados e as ações repressivas tomadas pelo governo a respeito.
Oscar Aguilera: Em qualquer sociedade, imagino que o Estado deve tentar cumprir o mesmo papel: garantir uma relativa ordem. No entanto, existem margens de tolerância e permissão da mobilização política em termos gerais e especificamente da mobilização juvenil. No entanto, essa margem de tolerância está cada vez mais pressionada por um conjunto de políticas que já são diretamente criminalizadoras. No Chile, temos um projeto de lei custodiado pelo Executivo a respeito das mobilizações juvenis de 2011 e a violência desencadeada nesse contexto de mobilizações, que tem como finalidade garantir a ordem pública. E ali há duas questões fundamentais e que merecem uma reflexão um pouco mais profunda. A primeira delas é que o projeto de lei incluiu inicialmente como delito a ocupação nos estabelecimentos educacionais. Portanto, se penalizava e se judicializava a ocupação da escola secundária e da universidade, com o pretexto de que esses também eram atos de violência. Vinculado a isso, a atitude de cobrir o rosto com algum tipo de capuz, ou seja, o fato de cobrir o rosto no momento de uma manifestação ou de uma ocupação era considerado delito específico; portanto, esse primeiro projeto de lei continha uma reação absolutamente repressiva e criminalizadora dos movimentos juvenis e particularmente do movimento estudantil, e, por outro lado, o projeto de lei incluía uma penalização específica a todo aquele que insultasse verbalmente a polícia. É evidente que esse projeto, que está sendo discutido no parlamento e foi bastante questionado, tenha componente repressivo, limitando fortemente a liberdade de protestos e de associação. Se esse projeto não conseguiu avançar, não foi pela vontade dos parlamentares de direita, mas por haver sido interceptado no parlamento porque o próprio movimento estudantil e o conjunto de movimentos sociais se mobilizaram para tentar denunciar essa situação.
Claudia Mayorga: Que situação!! No Brasil ocorreu algo parecido. Em algumas cidades estão elaborando projetos de lei para proibir e criminalizar as manifestações. No Rio de Janeiro, por exemplo, o governador sancionou o projeto de lei que proíbe mascarados nas manifestações e obriga que todo ato ou manifestação seja informado às autoridades policiais com antecedência. Protestos contra essa decisão ocorreram em todo o Brasil.
Oscar Aguilera: Com relação a isso, entendo que eu, como analista do social, não posso ignorar que no contexto das mobilizações são produzidas táticas de violência em vários níveis: violência simbólica, violência material contra propriedade privada e violência de enfrentamento de sujeitos entre si, manifestantes com a polícia etc. E, nesse contexto, em geral, a mídia tem sido muito habilidosa para nos saturar de informação sobre violência. Aqui no Chile foi muito comum que no contexto de mobilizações onde participavam cem mil estudantes em Santiago, não tenha sido noticiado que cem mil estudantes saíam às ruas de Santiago de maneira criativa, alegre, lúdica, mas que, desses cem mil, mil se dedicavam a atacar propriedades privadas, a enfrentar a polícia; ou seja, o que esse 1% fazia e realizava equivalia a 100% em termos simbólicos, e essa foi a estratégia da mídia, de maneira orquestrada a partir do sentido comum, que agravou esse tipo de situação. Tudo isso em um momento em que nossas sociedades vivem a questão da insegurança, esse tipo de prática de violência política entra também a reforçar parodoxalmente um discurso e uma ideia dominante de controle social.
Claudia Mayorga: Em recente pesquisa sobre a relação entre juventude e política, realizada por um grupo de pesquisadores de diferentes regiões do Brasil, analisamos a tensão, que em minha opinião é central nesse debate, sobre a participação da juventude nas instituições da política e na política da vida cotidiana. O segundo ponto, tomado como central em muitas organizações juvenis já pesquisadas, parece indicar uma preocupação da juventude em intervir nos processos e dinâmicas de reprodução das desigualdades, violências etc. Vocês entendem que as formas de organização e questionamento da juventude na atualidade são uma espécie de política da vida cotidiana? Os jovens estão produzindo respostas aos discursos socialmente hegemônicos?
Rogelio Marcial: Mais ou menos. Acho que as formas de organização coletiva e questionamento social por parte da juventude contemporânea se alimentam de uma política da vida cotidiana, os significados e as sensibilidades daquilo que consideram importante porque os afeta diretamente. É notável o desinteresse dos jovens pela política formal (sistema de partidos) porque já não acreditam nela (no México, não só os jovens deixaram de acreditar), mas a política no seu cotidiano é muito importante. Digo exatamente o que me disse um jovem punk de Guadalajara: “Para mim não importa quem nos governa, se é o PRI, o PAN, o PRD ou quem for. Todos são iguais e, além disso, eu sou anarquista. O que me interessa é que já não me detenham os policiais em cada esquina, que não me deem trabalho ou não me permitam entrar em certos lugares por causa da minha aparência, que não vigiem nosso centro comunitário porque pensam que somos delinquentes e distribuímos drogas”. A maioria não costuma participar de organizações civis que defendem o meio ambiente ou direitos humanos (tipo Green Peace, Human Rights, Amnistía Internacional), mas eles são muito sensíveis à degradação ecológica de seus ambientes ou comunidades e às ofensas contra seus contemporâneos por questões raciais, sexuais e culturais. Talvez prefiram não entender muito de macroeconomía, mas sabem que aqueles que dirigem este país estão fazendo algo errado, porque eles e elas materialmente falando não estão bem. Ou como me explicou um jovem de uma gangue de um bairro pobre e violento da cidade: “É que os governantes têm que entender que sem trabalho (emprego), não há futuro, nem sequer presente”. É essa política da vida cotidiana que permite posicionamentos daqueles que vivem em suas comunidades, e as saídas alternativas para isso ocorrem através da dissidência, só que dissidências no âmbito cultural, “politizando” a cultura, ou, no pior dos casos, na informalidade, na para-legalidade e ilegalidade. Aqui no México é possível detectar discursos contra-hegemônicos de questionamentos raciais e dissidências políticas nas expressões identitárias e culturais de alguns jovens, especificamente dos que se manifestam a respeito. O que acontece é que estes discursos dissidentes não se estruturam e se difundem por canais institucionais nos quais a sociedade pretende encontrá-los (política formal). Há que “buscá-los” e “encontrá-los” em práticas como o consumo cultural, o grafite, a música, as festas, suas identidades, expressões e referentes culturais.
Oscar Aguilera: Sem dúvida que, se há algo que está caracterizando as políticas juvenis, é seu sólido vínculo entre ética e política. A ética não funciona em um plano abstrato nem se localiza institucionalmente; a ética se vive, se experimenta. Dessa perspectiva, podemos compreender porque muitas das ações ocorrem principalmente a esse nível, intergrupal, grupal e intragrupal. Não necessariamente em termos de massa ou estrutura política, mas em termos de uma espécie de sociabilidade compartilhada em um contexto de privatização completa e de conversão da educação em um mercado específico, jovens desenvolvem pré-vestibulares populares no Chile, ou seja, jovens estudantes que têm “maiores capitais educacionais”, que puderam estudar numa universidade, preparam e auxiliam os jovens que não têm dinheiro para que estes possam ingressar em uma universidade. É um fenômeno que tem, sem dúvida, um caráter político forte: o de assumir uma questão que deveria ser um recurso do Estado, isso se faz por uma autogestão juvenil, mas está fundamentada em termos éticos. Não estamos dispostos a esperar que o Estado faça algo com relação a isso, nós o faremos. Vemos que esse tipo de práticas autogestionadas e fortemente éticas são expressas em planos distintos de luta: mais ou menos territorializada, o importante é entender que esta diversificação da forma expressiva da política não está mais ancorada exclusivamente no parlamento, na estrutura representativa, mas que começamos a experimentar diariamente em diferentes níveis. Há cinco anos, teria sido impossível que um dirigente estudantil se candidatasse a prefeito em um município ou que dirigentes estudantis decidissem participar nas próximas eleições como candidatos a deputado e isso hoje em dia é muito comum. Hoje temos cinco importantes dirigentes estudantis universitários de 2011 que são candidatos a deputados, três deles com muitas chances de serem eleitos, então, temos um leque de expressão política juvenil que vai desde o trabalho de base, o trabalho mais intergrupal, o trabalho de formação e de autoformação, até os níveis de atuação na política nacional através de estruturas representativas, ampliando a própria ideia de política e de possibilidade de outras realidades que contem essas práticas e estes discursos juvenis.
Claudia Mayorga: Ao mesmo tempo em que a política está sendo revisada e há uma forte crítica com relação às formas institucionais de pensar e fazer política, as noções acerca da juventude estão se reconfigurando. Vocês aceitam que esses eventos e todo o contexto contemporâneo estão produzindo uma certa ideia de juventude? Quem são os principais atores que têm participado dessa construção no Chile e no México? O Estado, as ciências humanas e sociais, os próprios jovens?
Rogelio Marcial: Acredito que podemos responder essa questão com o que mencionei sobre criminalização da juventude (particularmente, da juventude dissidente e empobrecida), cujo processo vem sendo construído pelo governo e pelos meios de comunicação de massa, e que é replicado pela sociedade em geral através da criação de estigmas e etiquetas sociais para o jovem em geral e para alguns estilos de vida juvenil em particular.
Oscar Aguilera: Há uma ideia que eu sustento de que a preocupação com a juventude passou por distintos lugares institucionais de produção e que esses lugares estão fortemente determinados pelo contexto sociopolítico que os habilita como lugares para produzir conhecimento sobre a juventude. Na década de 1980, no contexto da ditatura, onde não há o desenvolvimento das ciências sociais de maneira sistemática nas universidades, produto da repressão e da censura, os que ocuparam o lugar de produtores de conhecimento sobre a juventude foram precisamente as organizações não governamentais, que produziram um tipo de conhecimento eminentemente qualitativo e orientado, precisamente, a pesquisar a rebeldia ou os protestos juvenis no contexto da ditadura. Com o fim da ditadura e a transição para democracia, quem ocupou o lugar de produtor de conhecimento sobre a juventude foi o Estado, especificamente as políticas sociais do Estado. Isso permite compreender também a particularidade dos discursos hegemônicos sobre a juventude, porque quando assume o primeiro governo de transição democrática, faz um reconhecimento explícito que existe uma dívida social a ser paga aos jovens. Jovens que se comprometeram na luta contra a ditadura, que não puderam continuar com seus projetos de vida devido ao ambiente de repressão, de expulsão das universidades, de não terem trabalho etc, e o Estado, através de suas políticas sociais, o que faz é decidir se estes são jovens têm danos psicológicos. É como os caracterizou: jovens com um dano psicossocial aos quais nossas políticas devem reparar, então, quem começa a produzir conhecimento sobre a juventude será basicamente o Estado através das políticas sociais e das políticas públicas. Ali também se produz uma mudança metodológica porque não serve ao Estado, em termos gerais para seu plano de política, o estudo qualitativo de caso, mas ele requer informação que tenha possibilidade de ser generalizada a toda população jovem. E aí é onde, por exemplo, nascem pesquisas nacionais de juventude. O Chile é o único país da América Latina onde, de maneira sistemática e durante aproximadamente 20 anos ou mais, vêm sendo realizadas pesquisas nacionais de juventude. Essa particularidade é muito interessante. Em paralelo, vai se produzindo um momento em que as ciências sociais ficam presas a um discurso que é bem mais midiático no sentido comum de respeito às manifestações culturais dos jovens. Então, o que se enfatiza em um período muito curto, mas de maneira muito intensa, foram as dimensões espetaculares ou culturas espetaculares que caracterizam a juventude. Estamos falando dessas culturas, dessa ideia de tribo urbana que se instala de modo midiático muito forte e no qual as ciências sociais entraram para reproduzir essa ideia de juventude,, com o acréscimo de que todo esse período de jovem debilitado psicossocialmente, de jovem tribo urbana, o que continha no fundo era um tipo de semantização da juventude como impossibilidade política. O que definia essas modalidades era precisamente que não podiam ou não queriam se vincular, ativar-se politicamente. Isso começa a romper em meados de 2000/2006, especificamente com a revolta dos estudantes do ensino médio, a Rebelión de los Pingüinos (Rebelião dos Pinguins), como a chamei em algum momento, porque o que aparece na cena é basicamente uma comunidade de pesquisadores de ciências sociais e humanas que começam a se perguntar sobre o próprio discurso que haviam construído e ajudado a construir na década passada – este discurso de uma despolitização juvenil.
Claudia Mayorga: Sim, sim… Vivemos uma reconfiguração da experiência política juvenil com questionamento sobre a ideia política de juventude. E, de fato, todas essas manifestações, esse contexto contemporâneo tem implicações epistemológicas e metodológicas para o campo de estudo sobre a juventude. Concordam? E aproveito para perguntar a vocês: quais são as metodologias com as quais trabalharam em suas pesquisas sobre jovens estudantes chilenos e os jovens tapatíos (de Guadalajara, Jalisco, ou relativo a esta cidade e estado mexicano)?
Rogelio Marcial: Concordo totalmente. Os marcos interpretativos sobre as juventudes contemporâneas devem ser repensados e reformulados. Muitas das práticas e discursos juvenis obrigam a pensá-las e analisá-las de acordo com olhares mais amplos que estejam abertos a muitas coisas que não “esperamos” encontrar em campo. Tratei de resolver isso através de um esquema que considera como ponto de partida que na arena social se encontram e se enfrentam diversas identidades, e muitas vezes estes encontros não são harmônicos. O tema de poder deve ter um papel central na análise porque a relação institucional a que está submetida a juventude é hierárquica e impositiva. A partir disso, trato sempre de identificar os discursos públicos destas identidades juvenis que costumam iniciar um diálogo coerente com o discurso público dos agentes de governo e suas instituições. Mas é necessário indagar os pontos de choque entre ambos. É aí que se movem as dissidências juvenis e é aí que tratam de impor uma visão de controle por parte do governo e dos meios de comunicação de massa. As referências teóricas que guiam meu esquema provêm de autores como Norman Long, Olivier de Sardan, Michel Foucault, Anthony Giddens, James C. Scott, Jacques Rancière, Robert Lechner, entre outros.
Oscar Aguilera: Sem dúvida que tem implicação metateórica, porque trabalhamos com teoria. O que acontece é que o modo como temos utilizado essas teorias não tem sido o mais pertinente, e acredito que o próprio exemplo de definir o que é uma prática política e o que não é expressa precisamente essa reflexão sobre as categorias e as teorias com as quais trabalhamos e o modo como as utilizamos. Sem dúvida, o que vem ocorrendo de 2006 em diante tem sido uma revisão do próprio arsenal de categorias teóricas com as quais vínhamos trabalhando, voltamos a perguntar sobre seu uso e a utilizá-las sem a redução que empregamos em algum momento. É uma primeira consideração que tem um impacto direto e que está em um plano bem mais epistemológico, recuperam-se os sujeitos e se lhes dota de capacidade reflexiva. Durante muito tempo o que fizemos foi conceber o sujeito jovem como fonte de informação e o que vem sendo feito durante o último ano, em distintas experiências no Chile e América Latina, é considerá-lo um co-construtor do processo, do conhecimento produzido, um sujeito político ao final de contas. Para conhecê-lo como um sujeito político com capacidade de refletir sobre seu ambiente, as próprias metodologias com as quais vimos trabalhando vão se orientando para esses modelos mais de pesquisa/ação participativa, inclusive, que tinham desaparecido dos nossos modos de fazer ciência social ou humanas, então há um componente metateórico que tem uma especificidade epistemológica e metodológica inegável em todo este processo. Ora, isso não se produz de modo homogêneo, temos que reconhecer não só a ênfase disciplinar, mas a produção de síntese e articulações interdisciplinares, que há dez anos teriam sido impensáveis. Há dez anos ainda existiam sólidas muralhas que separavam o que é sociologia, antropologia e psicologia, citando apenas três disciplinas. Hoje em dia essas muralhas, em boa parte dos que se dedicam a estudar juventude e movimentos sociais, estão muito debilitadas. Esses muros estão a ponto de cair em algumas situações, e o que surge é uma nova sensibilidade pesquisadora que assume precisamente que produzir conhecimento sobre a juventude supõe um compromisso com a transformação das mesmas condições que vivem os jovens, não somente em termos de denúncia, mas também em termos de ações cotidianas de transformação. No Chile temos experiência, por exemplo, de participação em liceus e escolas autogestionadas, que começam a se desenvolver a partir do movimento estudantil de 2006. A universidade começa a sair da universidade e a se abrir e se instalar na sociedade, realizando atividades de extensão ou de formação específica. Os próprios movimentos sociais começam a desenvolver processos específicos de formação, nos quais alguns pesquisadores e acadêmicos também participam. E nesse contexto há muita experiência de comunidades pesquisadoras que desde o compromisso militante, inclusive com os movimentos juvenis, estão produzindo conhecimento. Isso não acontece de maneira global na comunidade pesquisadora. Há uma especificidade também nos próprios pesquisadores mais jovens.
Claudia Mayorga: No Brasil, nos últimos meses, essa multidão de jovens que ocuparam as ruas, universidades e instituições públicas expressa causas muito heterogêneas, que é um pouco o que vocês também falam. Há questões específicas dos jovens de subúrbios, universitários, jovens feministas, gays, lésbicas e muitas vezes essas bandeiras são antagônicas. De fato, tal diversidade é algo que percebemos desde os anos 2000, quando presenciamosm apelo permanente à sociedade civil para a construção de uma cidadania participativa e acho que algo semelhante acontece no Chile e no México. Vocês pensam que é possível identificar distintos projetos de sociedades e concepções nas manifestações e organizações juvenis na atualidade? Seria possível identificar quais são esses projetos ?
Rogelio Marcial: Aqui também encontrei que, frente às solicitações ou bandeiras muito delimitadas a problemas concretos, muitas vezes se antepõem as visões de uns e outros jovens. No México, existem jovens com visões ainda muito conservadoras e receio que representem a maioria. Algumas de suas solicitações giram em torno de questões relacionadas com educação, ecologia e insegurança pública. Às vezes, podemos vê-los nas manifestações sobre mobilidade urbana (particularmente, o uso seguro das bicicletas e a extensão de tempo no transporte urbano de circulação) e direito à cultura. Temos outras mobilizações parecidas realizadas por estudantes, principalmente os da universidade pública (Universidad de Guadajalara), que têmreconhecimento da instituição (porque entre os alunos existem várias organizações alternativas à oficial). Estes jovens, com melhores rendas, ensino superior e mais visibilidade social, costumam entrar em conflito com outros jovens que se expressam e se manifestam através de temas como o matrimônio gay e o direito à diversidade sexual, contra a penalização do aborto, a legalização da maconha, a laicidade do ensino público e algumas expressões culturais alternativas. Os tapatíos construíram uma sociedade diferenciada, classista e de tradições conservadoras. Muitos jovens continuam com essa tradição, ainda que muitos outros (menor número) busquem rompê-la e isso costuma gerar alguns conflitos.
Oscar Aguilera: Eu acredito que a diversidade de projetos (inclusive de sociedade) no mundo juvenil é fato. A questão seria como se expressam esses vários projetos sociais com os grupos de jovens existentes. Como se relacionam e com que outros projetos entram em conflito ou aliança para tratarem de impulsionar suas próprias políticas. E aqui há outra questão que nós, como pesquisadores, deveríamos atentar: sempre que falamos de compromisso, de política ou das práticas políticas dos jovens, assumimos que essas políticas são progressistas e o que fazemos aí é apagar uma boa parte da juventude que não está relacionada à política progressista. Temos aqui um antecedente que é muito concreto. Quando, há seis ou sete anos, se discutiu a entrega de pílulas anticoncepcionais de emergência, nos sistemas públicos de saúde, para jovens que tinham feito sexo sem proteção e que corriam risco de engravidar, os principais grupos juvenis que se mobilizaram foram grupos conservadores que não estavam dispostos a permitir que essa política liberal definisse o significado da sexualidade. E esse é um movimento pouco estudado e conhecido. No Chile estamos a poucos dias de comemorar mais um ano do que ficou conhecido como Matança do Seguro Operário (Masacre del Seguro Obrero). Foi um acontecimento político ocorrido em 1938 em que um grupo de mais de 100 jovens nacional-socialistas chilenos ocuparam o prédio da Intendência de Santiago e o governo ordenou expulsá-los a tiros. Morreram 63 jovens. Isso ocorreu em 5 de setembro de 1938. Todo ano nesta data, até hoje, os jovens nacional-socialistas realizam uma comemoração, uma romaria, nos lembrando de que eles também existem e que não são vistos entre os grupos juvenis. Aí entendemos porque há guerras, por exemplo, de baixa intensidade entre grupos ou culturas jovens específicas, como skinheads, punks etc. Resulta que quando estudamos, estudamos somente um e não os outros. Essas duas situações são expressões de que as comunidades pesquisadoras muitas vezes focalizam só um setor da juventude, invisibilizando o outro, e o que acontece é que estes projetos antagônicos se expressam em distintos lugares.
Claudia Mayorga: Sim, sim, concordo. Bom, a possibilidade de reconhecimento e de voz do sujeito subalterno em sociedades com histórias marcadas pelo colonialismo, imperialismo, como são as nossas sociedades – Brasil, Chile, México – foi problematizada por alguns autores da atualidade e muitos fizeram tais críticas desde a América Latina. Assim, pergunto a vocês: Como as bandeiras manifestadas por jovens chilenos e mexicanos emergiram na esfera pública, ou seja, quais são as estratégias que projetaram para que suas bandeiras, reivindicações e vozes fossem reconhecidas? Há uma procura pela institucionalização, por exemplo?
Rogelio Marcial: Tais bandeiras levantadas pelos jovens no México costumam ser introduzidas, como disse, em âmbitos e espaços sociais que a sociedade define como “apropriados” para manifestações juvenis. São muitas vezes construídas e difundidas através de redes informais criadas pelos jovens e, usualmente, têm a ver com algum assunto ou problemática muito concreta e específica. A partir disso, aparecem surpresas na esfera pública na medida em que os próprios jovens vão se dando conta de que seus pontos de vista, críticas e propostas devem tratar de “fazer eco”, socialmente falando, para poder transcender a página do Facebook, o território do bairro ou o espaço físico do coletivo. As estratégias de posicionamento buscam provocar a reflexão da sociedade através de práticas lúdicas, festivas, alegres e o que menos pretendem é se apresentarem como protestos, comícios e marchas tradicionais. Isto porque na sociedade mexicana há pouquíssima tolerância com as manifestações políticas em nossas ruas. Graças ao trabalho dos meios de comunicação de massa, a sociedade mexicana está em sua maioria “enclausurada” em sua problemática cotidiana e está “treinada” a partir dos meios de comunicação, principalmente a televisão, a ver como “preguiçosos” e “vândalos” os que saem às ruas para protestar. Por isso, muitas manifestações juvenis buscam novas formas de estarem presentes na esfera pública e “conquistar” a solidariedade social. É claro que em nosso país existem os extremos radicais, como o “branco” e o “negro”, de mobilizações que costumam se articular desde o início com a política formal para “assegurar” que serão escutados, até o outro extremo de grupos que se negam a estabelecer um diálogo ou relação com qualquer instância do governo ou partido político. Mas, em sua maioria, existe uma grande variedade de “cinzas” que se movimentam entre a aproximação e a autonomia com as instituições do governo, segundo as problemáticas que enfrentam cada um. Detectei que, principalmente sobre o tema de mobilidade urbana e as agendas de movimentos intelectuais, na cidade de Guadalajara se envolveram ativamente os jovens que têm estreitas relações, muitas vezes familiares, com os representantes do governo; e graças a isso, conseguiram negociar e avançar com algumas medidas em beneficio da sociedade. Mas diria que algo que define a imensa maioria destas mobilizações é sua rejeição à institucionalização.
Oscar Aguilera: Ao analisar o ano 2006, o início mais público deste ciclo de mobilização juvenil, utilizei a noção de acontecimento, que é uma noção teórica de Michel de Certeau, etnólogo francês, historiador da cultura e antropólogo. Quando ele falava de acontecimento, precisamente se referia à posição dos sujeitos em assumirem a voz no discurso que deixa em evidência a estrutura simbólica de uma sociedade, e o que ocorreu em 2006 é precisamente isso. Os estudantes secundários começam a se posicionar, a falar, estudantes de 15, 16 anos, que inclusive não são cidadãos políticos e nem maiores de idade. E despojaram o rei. Isso foi o que aconteceu em 2006. Deixou claro o modelo, o sistema e a sociedade em que estávamos. E os que fizeram isso foram precisamente os mais subalternos dos subalternos. E também estudantes secundários de distintos lugares, não somente de colégios que aqui chamamos emblemáticos, importantes, mas de colégios que ninguém sabia que existiam então. Dessa perspectiva, sem dúvida que houve uma recuperação da palavra no discurso por parte dos jovens atores e especificamente dos atores estudantes do movimento secundário. Esse processo seguiu se desenvolvendo no tempo, com distintos ritmos, com distintas intensidades. Em 2011 se preocupa em homenagear geracionalmente esta tomada de palavra, porque quem participa em 2011 são os de 2006 com cinco anos a mais de experiência política no corpo. Portanto, já não despem o rei, o deixam desnudo como em 2006, mas agora se está tentando construir uma peça de roupa, ou seja, uma forma de sociedade, elaborar um discurso sobre uma melhor forma de sociedade que a que temos e esse é o projeto e essa é a discussão que temos hoje em dia. É uma discussão em que o que está em jogo é fundamentalmente a possibilidade de construir hegemonia com respeito ao tipo de sociedade em que se quer viver. Aí, efetivamente, os líderes estudantis e movimento de estudantes secundários são atores e a discussão presidencial hoje entre as candidatas e os candidatos à presidência da República está caracterizada por se quem faz a política é a rua e os movimentos sociais ou se são eles, a classe política. Portanto, a pergunta não é se o subalterno pode falar. Parece que hoje em dia devemos perguntar como o subalterno está conseguindo a hegemonia. Há cinco anos era impossível pensar na ideia de gratuidade da educação. Hoje não somente podemos pensar, mas há um consenso na opinião pública de que a educação gratuita e de qualidade é necessária para o país. Nisso falamos dos trânsitos, da capacidade de articulação discursiva, do amadurecimento do projeto político que os movimentos juvenis desenvolveram e o que em seis, sete anos conseguiram ampliar e ultrapassar limites que não poderíamos ter previsto. Já não estamos discutindo se é necessário ou não, agora estamos discutindo como implementá-lo e isso marca uma diferença radical.
Claudia Mayorga: E na mesma linha de reflexão, o que vocês pensam que revelam os eventos e organizações juvenis atuais sobre as instituições sociais centrais como as instituições educativas, religiosas ou políticas? E, por outro lado, o que estimula os jovens a fazer o que fazem, como Oscar já havia perguntado?
Rogelio Marcial: A meu ver, as instituições mais importantes (educativas, religiosas e políticas) são desafiadas fortemente pelos jovens (mas não só por eles e elas). Hoje as escolas servem somente para que muitos jovens encontrem seus cuates (amigos). Não representam para eles segurança alguma para uma ascensão social, graças à obtenção de matrículas e pedagogias existentes, para eles a escola é extremamente chata e totalmente desvinculada da realidade em que vivem cotidianamente. Apesar de praticarem crenças religiosas, muitos jovens costumam se distanciar das igrejas e de seus representantes, não coincidem com suas valorizações morais explícitas e se afastam cada vez mais do recinto dedicado aos rituais sagrados. Os partidos políticos, os sindicatos e boa parte das associações civis costumam gerar desconfiança e desinteresse. É evidente um processo de desinstitucionalização juvenil em muitas das esferas de sua vida cotidiana – por imposição, no que se refere à oportunidade de se inscrever na educação formal e aceder a empregos com contratos e prestações de lei, e por eleição, no que se refere às relações amorosas em coabitação, sem necessidade de casamento, e em participações de redes informais de apoio e expressão cultural e política. As pessoas em geral estão cada vez mais distantes destas instituições sociais, mas são os jovens que tornam este processo mais constante na conjuntura atual.
Oscar Aguilera: Há várias considerações a serem tomadas sobre as relações dos jovens com as instituições sociais. Há um primeiro dado que é importante assinalar que é o movimento pela educação, que evidenciou, precisamente, uma busca por uma melhor qualidade de vida para todos seus integrantes, para todos os que compõem e estão aos cuidados desse Estado, todos os cidadãos. E essa crítica aponta diretamente a desigualdade, que no país se manifesta também frente ao sistema de trabalho. Não é por acaso que o movimento de trabalhadores e o movimento sindical onde existe maior participação dos jovens tenha se desdobrado nessa forma contemporânea de trabalho, que é o trabalho precário e o trabalho terceirizado; e aí estamos falando de duas instituições básicas. Está sendo questionado o sentido de trabalho e o sentido da educação. Hoje em dia neste modelo de sociedade, portanto, há uma profunda crítica ao conjunto de instituições sociais; há mudanças menos perceptíveis, mas que são igualmente potentes: a instituição social chamada família que conhecemos há alguns anos, está mostrando signos evidentes de modificação, não somente em suas características, ou seja, já é muito difícil encontrar casais com filhos, com vários filhos, mas também está mudando o sentido e o tipo de relação específica que existe dentro dessas novas unidades familiares. O quanto está mudando é que haveríamos que investigar, quer dizer, quão diferente em termos qualitativos é essa família de hoje em relação à de ontem. Haveria que averiguar, mas aí há três instituições sociais básicas que estão em pleno processo de mudança e não poderia ser de outra maneira. A sociedade não é nunca a mesma, as sociedades se movem também a partir dos sujeitos que a compõem e, nesse contexto, as novas gerações, os jovens de amanhã, vão produzindo certos efeitos na organização social mais ampla. E já se viveu na educação, se está vivendo no trabalho, está experimentando na família, isso como uma primeira consideração de que sociedade está mudando sem dúvida. Seja o que acontecer com a proposta de educação que reivindicaram os estudantes com as reformas educacionais, se o próximo governo enfrenta essas reformas, se as desenvolve, isso será um ponto muito forte para que em outras instituições sociais as críticas que vêm sendo desenvolvidas também sejam produzidas.
Claudia Mayorga: É muito vigente uma posição sobre a juventude como sujeito do futuro, muitas vezes reforçada pela ideia de juventude como tempo de moratória social ou psicológica. Falou-se muito disso nos estudos e tal perspectiva está muito presente também no campo das políticas públicas. Os jovens com quem interagiu em seus estudos têm abordado esta questão? Isso é uma pergunta para eles?
Oscar Aguilera: Cada vez que alguém quer enviar a juventude para o futuro, sinto que estou na presença de um fenômeno adultocêntrico. Porque não enviamos um adulto ao futuro, somente enviamos os jovens e as crianças, e se suspende tudo em função de um futuro. O que está acontecendo hoje em dia é que muitos jovens se dão conta de que o futuro é uma construção ideológica um pouco perversa, que os impede de viver da melhor forma o presente, sendo assim muitos estão nesta tensão de saber que o que estão fazendo é vital hoje e não para o futuro. É vital hoje para eles, já descobriram perdão, vida, potencial vital hoje em dia e também percebem e assumem que muito dessa potência vital e essa capacidade do presente, da transformação do presente, poderia permitir um futuro compartilhado, não só para eles, mas para outros que virão depois; mas o principal, na minha opinião, é que a desconfiança no futuro, o não futuro dos punks, está mais vivo que nunca. Do ponto de vista dos sujeitos jovens, é um recurso ideológico derivar no futuro tudo que por impotência não podemos concretizar no presente e os jovens se revoltam profundamente contra essa ideia. Acredito que o que estamos vendo no Chile, e no nível global, é uma profunda rebelião ética frente a essa impotência de ter no presente uma vida melhor e uma melhor sociedade para todos e todas.
Rogelio Marcial: Na verdade, este é um dos discursos que sustentam a relação de custódia para a juventude. Porque se encontram em uma “etapa de transição” da vida e porque devem “semear” para “colher” no futuro. Em sua qualidade de “etapa”, todas as fases do desenvolvimento do indivíduo são transitórias (qualidade própria das etapas). Se somente é uma moratória social que cobrará sentido no futuro, então se impõe um critério de que o jovem é incapaz de decidir sobre seu presente. E o pior, realmente não é suscetível de direitos humanos, sociais e culturais até chegar à etapa adulta. De alguma forma isto preocupa muitos grupos de jovens em Guadalajara. Não é que visualizem isso nesses termos, mas expressam isso quando argumentam que como jovens querem viver e experimentar sua juventude de acordo com seus gostos culturais. É uma preocupação central em muitos destes jovens de hoje que é em sua juventude que precisam e querem ter acesso a diferentes questões e não quando forem adultos e precisarem enfrentar compromissos de outra índole. Ainda que em muitas políticas do governo se possa ler nas entrelinhas esta concepção do século XIX de moratória social e sujeitos do futuro, para os jovens isso não está de acordo com o que vivem.
Claudia Mayorga: Para mim está claro que na América Latina estão ocorrendo perspectivas críticas muito interessantes sobre tudo o que se relaciona à juventude e política, e o trabalho de vocês é um exemplo disso. Acredito que nós que nos interessamos por esse tema temos bons problemas que exigiram reconfigurações do campo de estudo sobre a juventude e a política com caráter de urgência. O que é urgente, diferente de tudo que falamos, é a reflexão sobre como produzimos, comunicamos e tornamos público o conhecimento científico. Estamos em um momento muito importante. Muito obrigada aos dois.
Rogelio Marcial: Obrigada, você!
Oscar Aguilera: Obrigada, Claudia.
I Professora e pesquisadora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas de Universaidade Federal de Minas Gerais, Brasil.
II Professor e pesquisador do Departamento de Estudos de Comunicação Social, Centro Universitário de Ciências Sociais e Humanas da Universidad de Guadalajara, México.
III Acadêmico da Universidad Catolica del Maule, Chile.