Desidades
ISSN 2318-9282
INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
Da vida à reflexão: três chaves de leitura
“Jóvenes investigadores en infancia y juventud, desde una perspectiva crítica latinoamericana: aprendizajes y resultados”, de Sara Victoria Alvarado e Jhoana Patiño (coords).
Danay Quintana NedelcuI
IFlacso-México.
“Só é possível captar a lógica mais profunda do mundo social com
a condição de se submergir na particularidade de uma
realidade empírica, historicamente situada e datada.”
Pierre Bourdieu, 1997
Chave de leitura número um: do universal e do particular
Em 1989, o sociólogo Pierre Bourdieu, diante de um público japonês, incitava os seus ouvintes a compreenderem o seu trabalho sobre a França fazendo uma análise universal do seu estudo específico e não uma leitura particularizante e reducionista. Falar a propósito de um caso específico, dizia o pesquisador, não significa se fechar nele: ele é universal e particular ao mesmo tempo, uma vez que as pesquisas mobilizam teorias, modelos, categorias e métodos gerais em realidades empíricas concretas, claramente situadas histórica e culturalmente.
O raciocínio anterior nos leva a pensar que, quando observamos questões específicas sobre lugares concretos, realmente estamos diante da possibilidade de ’ler’ situações universais a partir da nossa própria particularidade. O livro ‘Jóvenes investigadores en infancia y juventud, desde una perspectiva crítica latinoamericana: aprendizajes y resultados’, coloca os seus leitores justamente diante da possibilidade da qual falava Bourdieu (1997): “compreender as experiências concretas que se perscruta não como leituras substancialistas independentes das suas práticas referenciais, e sim como indagação sobre as particularidades de histórias coletivas diferentes” (p. 13). Assim vista a pesquisa social, os cenários de partida dos trabalhos do livro aqui comentado - Brasil, Colômbia, México, Venezuela, Chile, Argentina - falam de si mesmos ao mesmo tempo que falam do todo. E mais. O histórico conflito armado da Colômbia, a consequente migração familiar forçada, a condição de extrema vulnerabilidade de crianças de comunidades rurais, os docentes de Medellín, os meninos e meninas de Caracas, os estudantes universitários da Argentina, os jovens da Região de Maule no Chile, a criação das crianças ao sul da Cidade do México, entre outros, são os problemas que aborda este livro, um compêndio de diversas experiências de pesquisa-formação de jovens cientistas sobre problemas críticos que as sociedades latino-americanas compartilham.
Chave de leitura número dois: a metodologia do aprendizado
Uma segunda possível leitura do texto que editam as pesquisadoras Sara Victoria Alvarado e Jhoana Patiño, nos leva a refletir sobre a lógica da formação-pesquisa daqueles que escrevem os capítulos do livro. A premissa de aprender-fazendo é um dos fios condutores que os leitores encontram ao longo das 255 páginas da publicação. Os trabalhos das autoras e dos autores, como bem se especifica no prólogo, foram construídos “a partir do mundo vital das experiências de formação de jovens pesquisadores mediante um trânsito, que marca rumos de andanças e dizeres de infâncias e juventudes expectantes e que constroem com outros as suas tramas de intersubjetividade e identidade, a partir do silêncio e do burburinho das periferias” (Salazar. In: Alvarado & Patiño, 2013, p. 7). Os trabalhos dos autores são, mais do que verdades conclusivas, interpretações críticas nas quais a práxis foi o ponto de partida, e a teoria, a ferramenta para a análise. Deste modo, a prática se converte em atividade pensada. O processo de formação-pesquisa se converte na compreensão e interpretação da experiência, que implica necessariamente em compartilhá-la, comunicá-la e confrontá-la tanto com a produção teórica (que neste livro se destaca pela sua pluralidade de enfoques, por exemplo, sobre os conceitos transversais do texto: infância e juventude) quanto com outras experiências. Tudo isso significa que, ao repassar o texto, o que se está produzindo é um verdadeiro diálogo de significados entre o leitor e as experiências de vida-pesquisa dos autores, que por sua vez interagiram com outras vidas, todas elas atravessadas pelos âmbitos político, econômico, histórico-cultural e subjetivo.
Chave de leitura número três: a própria vida como ‘objeto’ de pesquisa
A leitura dos 11 trabalhos que compõem o índice de conteúdos do livro nos lembra o tempo todo que o propósito dos autores é discutir sobre as problemáticas das crianças e dos jovens como experiências vitais. Isto é, sobre a própria vida dos seres humanos mais vulneráveis (crianças e jovens), em condições de extrema contradição, como acontece na nossa região latino-americana. Nas palavras de Sara Victoria Alvarado, na introdução do livro: um continente de paradoxos. E é justamente a partir desse lugar - a contradição, a injustiça, a discriminação, a pobreza, a violência, a dominação, o desamparo, a vulnerabilidade, as incertezas; o esforço, a curiosidade, a imaginação, a reflexão, o sorriso e o desejo - onde se colocam os autores para refletir sobre as suas experiências de pesquisa, porque é, definitivamente, o lugar comum do qual eles também são parte, junto com “os seus objetos” de pesquisa.
Um dos alcances mais meritórios das pesquisas destes jovens latino-americanos é que eles compartilham os seus aprendizados sobre as realidades estudadas sem perder a vitalidade da qual emanaram. E isso não é uma questão menor, pois é bem sabido que a pesquisa social está o tempo todo diante do risco de converter em ‘coisa’ a substância do seu estudo: transformar o sujeito em objeto, alertava Paulo Freire. Os pesquisadores procuram superar este desafio dando voz às crianças, aos jovens, aos pais e educadores com quem dialogam. O diálogo, no sentido freireano, é o método através do qual os ‘pesquisandos’ podem não só escutar, mas também participar ‘pronunciando o mundo’: sendo no mundo. Assim começa o processo de transformação, porque só se pode estar sendo. E realizar pesquisas nas quais crianças e jovens falam sobre si mesmos e o mundo, nas quais as suas vozes são componente essencial de um diálogo onde são escutados, é um elemento crucial de uma lógica cognoscitiva que, em vez de coisificar a informação, humaniza-a.
O livro começa quando termina
Mas um texto não transcende se não é fértil, assim como um aprendizado não se cristaliza se não se traduz em ação. E neste sentido, o principal valor deste livro, que convidamos a estudar, ainda está por acontecer. As mais de 200 páginas contém informação extremamente valiosa para ser incorporada às agendas de organizações sociais e dos realizadores de políticas públicas para atender os problemas urgentes das crianças e dos jovens da nossa região. O conteúdo do livro não é um inventário de problemas sobre a infância e a juventude na América Latina; é um conjunto de pistas que podem ser colocadas como foco de atenção, a partir múltiplos referentes, de maneira responsável e realista, tanto pelas famílias, quanto por pesquisadores, professores, comunidades, organizações e governos. É um instrumento de intervenção inestimável para os chamados ‘policymakers’, que se nutrem do conhecimento que a pesquisa gera em prol da resolução dos problemas públicos.
É de amplo conhecimento que o campo da política não incorpora como deveria o conhecimento gerado a partir da pesquisa. E não é por falta de informação, e sim por pouca vontade política e conflito de interesses. Só por mencionar um caso, um dos exemplos atuais de interdisciplinaridade mais interessante, inovador e frutífero tem a ver com a Psicologia e as Políticas Públicas, como campo de estudos sobre a esfera pública. Neste encontro, os saberes do particular e do geral, do micro e do macro, do que tradicionalmente tem sido associado ao privado e ao público se entrelaçam de maneira complexa e fértil, desmoronando pressupostos históricos e gerando novas perguntas de pesquisa. No entanto, as contribuições da Psicologia para o conhecimento sobre as políticas públicas não têm conseguido suficiente reconhecimento. Muitas aplicações no campo das políticas públicas estão diretamente associadas a descobertas realizadas a partir da Psicologia, mas sem terem o devido crédito: compreensão da complexidade do comportamento humano; influência dos preconceitos e da discriminação na formulação e implementação das políticas públicas; o lugar das interações sociais, as relações interpessoais de cooperação e o valor do conflito na ação social; decisões e ações em situação de vulnerabilidade (na pobreza, na infância, na discriminação, na diferença de gênero, na guerra…) entre outros (Shafir, 2013).
O que foi dito anteriormente, só como pequena amostra das contribuições da Psicologia aos estudos e análises de políticas, levou a que uma das mudanças mais recentes nos estudos de políticas (policy study) seja na direção da compreensão das mesmas com ênfase na variável individual, isto é, com o foco no sujeito. Como os indivíduos afetam os resultados das políticas públicas? Tanto realizadores (empreendedores de políticas) como “receptores” delas são estudados profundamente para se compreender em que medida são variáveis que intervêm, desviam, afetam o desempenho das políticas e interferem nos resultados esperados. Depois de acreditar que era o desenho das políticas, das decisões, da implementação, da sofisticação dos instrumentos de avaliação de impacto, a ‘volta ao sujeito’ (outra volta) reaparece na cena analítica das políticas e na política. Hoje vemos que o mais básico dos manuais sobre políticas bem-sucedidas (‘policy succes’) reconhece a relevância de elaborar as políticas com, a partir de e para as pessoas (McConnell, 2010).
Com este compromisso, o enfoque das políticas públicas dirigidas ao universo infantil e juvenil implica em desafios adicionais. Como bem é destacado no livro, é hora de mudar a associação que se faz entre infância e juventude e longo prazo como temporalidade para a resolução dos seus problemas, para assumir que as crianças e os jovens vivem e padecem aqui e agora, e que a gravidade das situações que vivem não são importantes (somente) porque eles serão os homens e mulheres de amanhã. Atender a partir do próprio discurso das políticas à particularidade da infância e da juventude em tempo real é um primeiro passo.
Neste sentido, o conjunto de descobertas proporcionadas pelas pesquisas do livro referido ao longo deste escrito é de grande relevância, pois fornece, com autoridade, conteúdo, real e atual, analítico e vital, para se realizarem possíveis recomendações de política pública e ações de intervenção para atender a problemas urgentes a partir da própria voz das crianças e dos jovens, famílias, comunidades e sociedades da América Latina.
ReferênciasALVARADO, Sara Victoria e PATIÑO, Jhoana (Orgs.). Jóvenes investigadores en infancia y juventud, desde una perspectiva crítica latinoamericana: aprendizajes y resultados. Manizales: Centro Editorial Cinde - Childwatch - Universidad de Manizales, 2013. 255 p. [ Links ]
BOURDIEU, Pierre. Razones prácticas: sobre la teoría e la acción. Barcelona: Ed. Anagrama, 1997. [ Links ]
FREIRE, Paulo. “La esencia del diálogo”. Em M. Alejandro Delgado, M. I. Romero e J. R. Vidal Valdez (orgs.), ¿Qué es la Educación Popular?, pags. 87-103. La Habana: Ed. Caminos, 2008. [ Links ]
MCCONNELL, Allan. Understanding policy success: rethinking public policy. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2010. [ Links ]
SHAFIR, Eldar. The behavioral foundations of public policy. Princeton University Press, 2013. [ Links ]
I Docente no Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei (Universidade Anhanguera de São Paulo - UNIAN/SP/Brasil), coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Adolescente e Gestão Pública (NEPAG) da mesma universidade. E-mail: irandip@gmail.com