Desidades
ISSN 2318-9282
INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
A construção social do aluno: desafio da escola, da família e da vizinhança
“A escola e o mundo do aluno: estudos sobre a construção social do aluno e o papel institucional da escola”, de Marcelo Baumann Burgos (coord).
Ana Maria CavaliereI
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Palavras-chave: escola pública, educabilidade, construção social do aluno.
Palabras-clave: escuela pública, educabilidad, construcción social del alumno.
“A escola e o mundo do aluno” é um trabalho de fôlego e que nos leva necessariamente a pensar e repensar conceitos e percepções sobre a escola e as condições da educação pública. Trata-se de um estudo que caminha por muitas vertentes, sob a regência competente de Marcelo Baumann Burgos. Apresenta os resultados e as reflexões decorrentes de uma grande empreitada de pesquisa e extensão realizada de 2010 a 2014. Ela teve como núcleo um conjunto de nove escolas da rede escolar municipal da cidade do Rio de Janeiro, a partir do qual diversas outras dimensões relacionadas à realidade educacional foram sendo incorporadas. As escolas localizam-se no bairro da Gávea e na favela da Rocinha e recebem principalmente alunos moradores nesta última, que vem a ser um dos maiores conglomerados populacionais com estrutura urbana precária do país, onde vivem mais de 70 mil habitantes.
Como exemplo da riqueza do estudo, destaque-se que, no conjunto das ações relatadas no livro, estão presentes, atuando e colaborando em diferentes momentos, além da equipe de pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), a Secretaria Municipal de Educação, a equipe do Programa de Aceleração do Crescimento-Rocinha, a Associação de Moradores da Gávea, o Conselho Tutelar da Zona Sul e o Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora.
O encadeamento de textos, com seus 19 autores, se faz de modo coeso e coerente, levando o leitor a reviver a complexidade encontrada pela equipe e a compartilhar, com todas as tintas, os problemas e questões de pesquisa enfrentados.
Ao traçar como fio condutor a relação da escola com o mundo do aluno, o estudo lança mão das noções de “educabilidade” e “construção social do aluno”, que são a espinha dorsal epistemológica das ações de pesquisa e extensão realizadas. A constatação dos limites no cumprimento do direito à educação e a tentativa de compreender os desencontros entre os alunos, tal como são, e aquilo que a escola deles espera, são pontos de partida promissores.
Quando avançamos na leitura, percebemos o quanto as condições que favorecem a “construção social do aluno”, que estariam ancoradas nas relações entre escola, família e vizinhança, mostram-se frágeis nas escolas estudadas. De acordo com as análises empreendidas, essa fragilidade resulta em uma fraca institucionalização da vida escolar, tensionada pelos “efeitos do lugar”, mas sem diálogo com o lugar.
Ao mesmo tempo em que o estudo afirma a compreensão de que a questão educacional vai muito além da instituição “escola”, e envolve família, vizinhança e outros órgãos, a necessidade de um conhecimento mais qualificado e criterioso dos fenômenos que ocorrem no interior de cada escola se impõe, reforçando uma tendência da sociologia da educação brasileira em desenvolver uma sociologia da escola. Nesse aspecto, nos foi inevitável a lembrança do clássico texto de Antonio Candido (1987), “A estrutura da escola”, escrito nos anos 1950. Segundo ele, na vida escolar, “ao lado das relações oficialmente previstas, há outras que escapam à sua previsão, pois nascem da própria dinâmica do grupo social escolar” (p.107). Dessa forma, ainda segundo o autor, as escolas diferenciam-se umas das outras devido às características de sua sociabilidade própria. A percepção do que é único em cada uma delas é o que também permitirá compreender o que é comum a todas, e passível de interferência intencional.
A seção que apresenta a pesquisa realizada no interior das escolas traça um perfil dos alunos e das suas condições de escolarização em cada escola com base em informações da Secretaria Municipal de Educação. Aparecem, entre outros elementos, os níveis de distorção idade-série e a ocupação e grau de instrução dos responsáveis. No mais interessante aspecto dessa seção – e talvez do livro –, os autores mostram, com base em ‘survey’ dirigido a mais de 300 responsáveis, e no acompanhamento das reuniões de pais nas escolas, as diferenças existentes entre as percepções das famílias populares sobre a escola e as representações que os professores fazem dessas mesmas famílias. A partir desse momento, o estudo envereda por um esforço questionador, que fustiga o senso comum, não só dos profissionais das escolas, mas da sociedade em geral, pondo em xeque certas “verdades” ao cotejá-las com as informações oficiais do sistema de ensino, com os resultados do ‘survey’ e com as observações das reuniões de pais. Opiniões e representações recorrentes dos profissionais das escolas, como as de que os responsáveis são muito jovens, ausentes da escola e desinteressados pela educação dos filhos, as famílias são desestruturadas e recebem o Bolsa-família, as crianças ajudam no trabalho de casa, se mostraram pouco apoiadas na realidade e típicas de um movimento em que se toma a parte (às vezes bem pequena) pelo todo. Destaque-se o equilíbrio dos autores ao enfrentar tão delicada questão, sem vitimizar famílias, alunos ou profissionais da educação, compreendendo as dificuldades vivenciadas por todos como uma decorrência do padrão de educabilidade, que, por sua vez, é fruto das precárias condições institucionais de uma escola minimalista, inserida em uma sociedade ainda “pouco prevenida para suas responsabilidades com a educação” (Burgos, 2014, p. 68).
A equipe de pesquisa não deixou de aproveitar o recreio, momento de grande importância na vida escolar, onde as diferenciações entre sexo, idade, grupos associativos e status – para usar a tipologia de Antonio Candido – afloram e propiciam abordagens compreensivas. As observações desse momento da vida escolar mostraram a variedade de características entre as escolas e, particularmente, o grau de desenvolvimento de cada uma delas no processo de construção social do aluno, isto é, no maior ou menor sucesso obtido no processo de socialização escolar, sem ceder aos diagnósticos deterministas ou espetaculosos.
A seção seguinte tem como foco o papel desempenhado pelo Conselho Tutelar na articulação entre a escola e seus alunos. A evocação do Conselho pelos professores e a ausência de outras instâncias/instituições de articulação da escola com o mundo do aluno levaram ao “mergulho” dos pesquisadores neste órgão por onde passam justamente aqueles alunos com as piores condições de integração às lógicas e exigências do cotidiano escolar. Um conjunto de cinco capítulos nos introduz na história e características desses conselhos, bem como em suas dificuldades e pouca visibilidade social. O Conselho Tutelar, inclusive na região das escolas estudadas, mostrou uma atuação ainda periférica, mas, ao mesmo tempo, com grande potencial de vir a ser um importante parceiro da escola e da família no enfrentamento dos problemas que afetam a trajetória escolar de crianças e adolescentes.
Ainda nessa seção, o dramático caso do assassinato brutal de um aluno de uma das unidades escolares que integraram o estudo, com apenas 12 anos, ocorrido na região de sua escola e moradia, gerou um contundente capítulo, onde se constata a fragilidade das articulações entre a escola, a família, a vizinhança e o Conselho Tutelar. Cada uma dessas instâncias revela suas fragilidades próprias, muito bem percebidas pelo estudo: na escola, apesar de cursar o quinto ano, o menino não aprendera a ler e escrever e anteriormente fora reprovado por faltas; a família, monoparental e muito pobre, perdera a casa num temporal e a mãe estava desempregada; o bairro caracterizava-se como um caso típico de “cidade partida”, no qual riqueza e pobreza se veem mas não se tocam e, finalmente, o Conselho Tutelar não chegara a alcançar o menino, apesar do histórico de graves dificuldades escolares e sociais. A constatação evidente de que o fracasso é multidimensional, e assim precisa ser encarado, nos faz adentrar de outra forma à terceira seção do livro, dedicada às experiências de extensão que afirmam a ideia de que não há solução que passe apenas pela escola.
Alguns caminhos diferentes foram trilhados nas atividades de extensão, todos eles envolvendo diversos setores da universidade e buscando uma nova relação entre a PUC-Rio e as escolas do seu entorno. A constatação da precariedade geral dos instrumentos de captação de dados e a necessidade de fortalecer a cultura da informação ensejaram a construção, em parceria com o Conselho Tutelar, de uma ferramenta de gestão da informação com vistas ao aperfeiçoamento da atuação desse órgão. Ainda entre as ações de extensão, é reportada a organização de duas edições de um festival artístico e esportivo das escolas do bairro da Gávea e da Rocinha. A iniciativa reuniu alunos das escolas públicas e privadas da região e foi um momento privilegiado para a observação da interação entre os estudantes desses dois tipos de escola, mostrando a recorrência dos movimentos de estigmatização e evitação, mas, ao mesmo tempo, constituindo-se num “encontro desconcertante” para ambos os grupos frente à vivência conjunta da condição comum de serem “alunos”.
O último projeto de extensão apresentado se fez em conjunto com a associação de moradores da Gávea com vistas à reforma das praças do bairro, a fim de torná-las espaços agradáveis de convivência. A iniciativa trouxe questões sobre as relações entre o bairro e a escola, entre o urbano e a educação, e a necessidade de se expandirem as fronteiras do chamado ambiente educacional.
A primeira parte do livro se encerra com dois capítulos que colocam os professores das escolas envolvidas em confronto com os achados da pesquisa. Num deles, profissionais das escolas avaliam os temas que se apresentaram na pesquisa. No outro, um integrante da equipe de pesquisa, que, ao mesmo tempo, é professor em uma das escolas estudadas, mostra o quanto a possibilidade do professor mergulhar no mundo do aluno depende das condições de trabalho de que ele dispõe.
A segunda parte do livro faz incursões teóricas relacionadas ao que se apresentou até ali. Possui quatro capítulos, sendo um deles escrito por Ralph Bannell, também coordenador da pesquisa, que debate a democracia e o papel da escola hoje. Os demais foram escritos por pesquisadores estrangeiros, que aprofundaram alguns dos temas que emergiram ao longo dos trabalhos de pesquisa e extensão.
A relação família-escola e os diferentes tipos de atuação dos pais na vida escolar são debatidos por Pedro Silva a partir de etnografia realizada em Portugal, que mostra também as dificuldades adicionais existentes entre as famílias de meios populares e as escolas. Benjamin Moignard problematiza a relação da escola com o território e discute o quanto o projeto francês de escola democrática e republicana vem sofrendo uma ruptura, dando sinais de fragmentação e isolamento. Estudando a realidade de escolas argentinas, Daniel Miguez analisa a tensão que se constrói quando os alunos passam a ser os protagonistas na regulação cotidiana da vida escolar devido à diminuição da capacidade dos adultos de fazer prevalecerem suas propostas.
Em suma, pesquisa, extensão e aprofundamento teórico combinam-se neste livro de maneira inspirada e muito bem-sucedida. Uma grande qualidade é a maestria com que seu foco foi mantido frente aos muitos autores e vertentes que se sucedem. A questão da construção social do aluno, desafio da educação brasileira desde a massificação da escolarização básica, desponta no livro, reafirmando-se como um ponto nodal do problema educacional brasileiro. Os colaboradores externos nos deixam ver que esse ponto não é apenas brasileiro, isto é, que o lugar da escola e, portanto, a construção da identidade de aluno, está em questão no mundo. Se isso, por um lado, aumenta o tamanho e a abrangência do problema, por outro, nos mostra que não estamos sozinhos e podemos cotejar experiências e somar esforços teóricos para descortinar esse significativo fenômeno social.
Referências
CANDIDO, A. A estrutura da escola. In: PEREIRA, L.; FORACCHI, M. M. (Org.). Educação e sociedade: leituras de sociologia da educação. 13. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1987. [ Links ]
BURGOS, M. B. (Coord.). A escola e o mundo do aluno: estudos sobre a construção social do aluno e o papel institucional da escola. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2014. [ Links ]
Data de recebimento: 26/03/2015
Data de aceitação: 28/05/2015
I Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. E-mail: anacavaliere@uol.com.br