Desidades
ISSN 2318-9282
TEMAS EM DESTAQUE
Entre músicas e rimas: jovens pesquisando jovens
Entre músicas y rimas: jóvenes investigando a jóvenes
Ana Carolina Videira Sant`AnnaI; Silvana Mendes LimaII; Suanny Nogueira de QueirozIII e Vanessa Monteiro SilvaIV
I Núcleo de Atenção às Crianças e aos Adolescentes Vítimas de Violência, Brasil.
II Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil.
III Centro de Referência de Assistência Social, Brasil.
IV Universidade Federal Fluminense, Brasil.
RESUMO
Este artigo situa alguns desafios frente à construção coletiva de um trabalho de pesquisa voltado a jovens residentes de uma região periférica da cidade de Niterói-RJ. Trata-se do Espaço Cultural da Grota, que trabalha com a formação musical desta população específica. Neste percurso, discorremos acerca dos labirintos e das saídas possíveis que povoam o encontro entre os aprendizes de música e o aprendiz-pesquisador, em especial a partir de um trabalho de pesquisa que escolheu chegar a campo sem a rima pronta. Como ferramenta metodológica, elegemos a pesquisa-intervenção (Rocha; Aguiar, 2003), que privilegia uma maneira de pesquisar interessada em partilhar coletivamente os impasses vividos por jovens de modo a localizar saídas frente às formas de vida vigentes. Nesta partilha, instaurou-se tanto para os aprendizes de música como para os aprendizes pesquisadores um trajeto com encontros consistentes que comportaram o inusitado e os desassossegos disparadores de novos movimentos.
Palavras-chave: juventudes, periferias, devir, arte, música.
RESUMEN
Este artículo coloca algunos desafíos ante la construcción colectiva de un trabajo de investigación orientado a jóvenes residentes de una región periférica de la ciudad de Niterói-RJ. Se trata del Espacio Cultural de la Grota, que trabaja con la formación musical de esta población específica. En este trayecto, transitamos por los laberintos y las salidas posibles que pueblan el encuentro entre los aprendices de música y el aprendiz-investigador, especial a partir de un trabajo de investigación que escogió llegar al campo sin rima preparada. Como herramienta metodológica, elegimos la investigación-intervención (Rocha; Aguiar, 2003), que privilegia una manera de investigar interesada en compartir colectivamente los impases vividos por jóvenes con vistas a localizar salidas frente a las formas de vida vigentes. En este compartir, se instauro tanto para los aprendices de música como para los aprendices-investigadores un trayecto con encuentros consistentes que compusieron lo inusitado y los desasosiegos disparadores de nuevos movimientos.
Palabras-clave: juventudes, devenir, arte, música.
Introdução
Não se importar com as rimas, como escreve o poeta, seria, talvez, insistir ou afirmar o caráter raro do igual ou do semelhante presente em qualquer forma de vida. Uma insistência que tomamos aqui de empréstimo, como uma espécie de emblema daquilo que nos propomos tematizar neste artigo, a saber, como fundar um trabalho de pesquisa com crianças e jovens aprendizes de música trazendo como um de seus desafios irmos a campo sem chegarmos, necessariamente, com a rima pronta.“Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.”
Fernando Pessoa – Alberto Caeiro (1996)
Mas, qual o problema de rimar?, desafiariam os rimadores
Segundo o dicionário Aurélio (Holanda, 2000), a rima é a uniformidade de sons em repetição no fim de versos, o que torna impossível rimar sem criar sentido ao verso, a não ser de modo arbitrário. Como não tencionamos pesquisar em psicologia arbitrariamente, apropriamo-nos da rima na impossibilidade de nos fixar a um plano de intervenção prévio, demandamos compor com o outro as nossas rimas. Aplicar conhecimentos programados, ou seja, chegarmos de antemão com a rima pronta, extinguiria a singularidade do encontro com os jovens e negligenciaria a dimensão coletiva que atravessa nossa pesquisa, uma vez que somos também jovens. Rimar, portanto, não é problema, desde que possamos compor.
Incomodados, porém, com a uniformidade da rima e apostando em certo grau de pluralidade, buscamos novas definições. Foi no dispositivo online ‘Wikipedia’ que encontramos abrigo à nossa aposta. O ‘Wikipedia’ é uma enciclopédia construída coletivamente por internautas que compartilham saberes. Nele, a palavra rimar se refere ao ato de combinar, “estar de acordo com”, vinculada à ideia de homofonia, palavra de origem grega relativa à música. Na musicalidade, o rimar ganha diferenças em si mesmo: as vozes, segundo a enciclopédia, não precisam estar uníssonas na mesma melodia, desde que comportem a mesma duração e ritmo.
Logo, nos apropriamos da rima como aquela que comporta várias vozes em sintonia. Acreditamos ser possível, no ato de pesquisar, ir a campo sem a rima pronta desde que tal rima contemple o coletivo em seu paradoxo: o da composição de vozes em comum, mas que coexistam na diferença que cada voz porta do ponto de vista da sua singularidade. Apostamos na invenção de um comum que implique, ao mesmo tempo, no ‘com-um’: produções de desejos, investimentos, linguagens e corpos coletivos que entrelacem diferentes pessoas a um projeto.
Habitando o desafio próprio a esta lógica paradoxal, iniciamos, em 2010, um trabalho de pesquisa junto ao Espaço Cultural da Grota, uma Organização Não-Governamental situada na comunidade da Grota do Surucucu na cidade de Niterói-RJ. Seu objetivo é mobilizar talentos por meio da formação musical – mais especificamente a música clássica –, de modo a desenvolver habilidades junto a crianças e jovens através da identificação e potencialização de talentos e vocações, profissionalização e inserção no mercado de trabalho.
Selecionamos esse espaço por entendermos que condensava os critérios que orientavam as nossas escolhas de pesquisa, a saber: pelo alcance social e político presente em sua forma de atuação junto a crianças e jovens; pelo grau de inserção e integração à educação, seja ela formal ou informal; e, por fim, pelos modos de engajamento à comunidade local. Além do mais, os seus coordenadores avaliaram que seria potente a aproximação entre Universidade/Comunidade no sentido de juntos produzirmos formas coletivas de conduzir o projeto e de acompanhar suas atividades.
Do ponto de vista metodológico, estamos implicados em uma pesquisa-intervenção (Rocha & Aguiar, 2003). A questão é partilhar coletivamente uma análise do funcionamento dos diferentes modos contemporâneos de subjetivar que moldam diversos tipos de corpos, acompanhando especificamente os processos de produção de subjetividade de crianças e jovens aprendizes de música na periferia. Vale ressaltar que a subjetividade é, aqui, concebida como produção, sendo composta de diversos elementos, seja de natureza interna e/ou externa (afetivos, familiares, do corpo, da mídia, da linguagem, do desejo, entre outros). Essa heterogeneidade de elementos, em constante processualidade, faz da subjetividade uma instância múltipla indissociável de práticas sociais concretas (Caiafa, 2000).
Além disso, o sentido de periférico com que trabalhamos transita entre duas direções também coexistentes. De um lado, uma direção que denominamos de marginal e refere-se a pessoas que vivem à margem de um sistema de produção dominante, em que passam a ser cada vez mais segregadas. De outro, uma dimensão minoritária, ligada a um sentido de devir. Devir remete a tudo que é de ordem processual, daquilo que escapa aos sistemas de integração dominantes – um novo tipo de sensibilidade, de raciocínio, de ver e sentir o mundo – e, sobre esse aspecto, conjectura-se que
Há uma experimentação subjetiva que acontece nos grupos marginalizados ou oprimidos os quais, por manterem uma distância, ao mesmo tempo desejada e forçada em relação aos focos de poder, se descolam mais facilmente da subjetividade normalizada (Caiafa, 2000, p.68).
Em meio a essas duas direções, atentamos aos sentidos e valores que os jovens conseguem criar a partir das formas de engajamento aos projetos que lhes tomam como alvos de suas intervenções. Assim, não nos propomos apenas a pensar sobre eles, mas a falar com eles, compartilhando experiências que nos atravessam, nos unem e nos diferenciem, uma vez que somos todos jovens aprendizes.
DESENCONTRÁRIOS
“Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.
Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército, para conquistar um Império extinto.”
Paulo Leminski (1987)
Entre rimar e sonhar, nos deparamos, como aponta a poesia de Leminski, com muitos labirintos. Interessa-nos, do ponto de vista de uma pesquisa que é, igualmente, intervenção, compreender e dar visibilidade ao modo como os jovens aprendizes produzem sentidos e afirmam valores relacionados, por exemplo, a ser jovem na periferia, participante de projeto social, aprender música clássica e sobreviver como artista.
Ao longo do tempo de convivência com os diferentes projetos, a ONG da Grota – assim passamos a chamá-la – começou a nos mostrar toda a arquitetura de seu funcionamento. Um local que destoa completamente da região onde se insere, posto que se situa em um bairro nobre da cidade, e que, sobretudo, se volta ao ensino da música clássica. Os instrumentos que dominam os ensaios e povoam a imaginação dos frequentadores são, principalmente, nesta ordem, a flauta doce, o violino, a viola e o violoncelo.
Os aprendizes experimentadores destes instrumentos tornaram-se, paulatinamente, e em alguma medida, conhecidos por nós e vice-versa. Em pequenos e grandes grupos, compartilhamos nossas experiências e nos misturamos. Em Rodas de Conversas ou Brincadeiras, falamos do viver em comunidade e do viver no asfalto; do estudar música e estudar na Universidade; da necessidade de trabalhar ou não; de vontades, expectativas, dificuldades e gostos. O mais interessante é que, em inúmeros momentos, inventamos um modo próprio de nos misturarmos e, nessa mistura, não fomos de um lado, jovens universitários e, de outro, jovens de periferia – até porque muitos ali também são universitários. Em muitos de nossos encontros, fomos jovens pesquisando jovens, jovens falando com jovens sem, com isso, negligenciarmos as diferenças e disparidades de ordem social e econômica presente entre nós.
Na sintonia que fomos criando, passamos a considerar importante avaliar, coletivamente com a ONG, a natureza de seus projetos, bem como a natureza de nossas intervenções junto aos aprendizes e coordenadores. Nesse percurso de análise nos tornamos, todos, aprendizes. Aqui tomamos por empréstimo a acepção grega de aprendiz experimentador de si (Lima; Minayo-Gomez, 2003). Tal compreensão lança o aprendiz para além das significações dominantes, sendo o aprendizado um leque de possibilidades a ser continuamente inventado. Invenção que teve como desafio apostar no encontro com o outro, em meio aos labirintos e embates que eles nos conferem.
Sobre os labirintos que cercam o corpo do pesquisador
Um labirinto consiste em um conjunto de percursos embaralhados, criados com a intenção de desorientar aquele que o percorre. Segundo um antigo mito grego, o famoso Labirinto de Creta foi criado por Dédalo para alojar Minotauro (Ferreira, 2008), um monstro metade homem, metade touro, a quem eram oferecidos regularmente jovens que devorava. Esses jovens tentavam, sem sucesso, sair do labirinto. Conforme conta o mito, Teseu conseguiu derrotá-lo e escapar do labirinto desenrolando, ao longo do percurso, o fio de um novelo dado pela jovem Ariadne.
Tal como nos conta a mitologia, poderíamos nós, como pesquisadores, adotar também a estratégia de Teseu, na qual toda rota é registrada e anotada de forma a ser possível percorrer o caminho de volta com exatidão. Em nosso caso, diferente de Teseu, não nos interessaria tal exatidão, pois, enquanto pesquisamos, fazemos outro uso do fio de novelo, a saber, como memória. Isto porque entendemos que é a partir da reconstrução dessa memória que podemos compreender o que se passou para inaugurarmos novas configurações a partir da produção de sentidos outros (Deleuze; Guattari, 1996). Quando se trata de um percurso que prima muito mais pelo ato de percorrer, pode-se avançar labirinto adentro, tecendo caminhos, voltando e recriando rotas. A importância está na qualidade de como fazemos e percorremos esse caminho. Mas afinal, iríamos sós, sem nenhuma diretriz e nenhuma estratégia, como que perdidos no labirinto? Sem rima pronta?
Acreditamos que estar no campo com o corpo permeável ao que se dá no encontro não se refere a ir vazio ou partir do zero. Contamos isto sim, com uma “caixa de ferramentas” e um desafio – o desafio de relançar a vida na sua processualidade – que nos servem como condição de caminhar de modo a produzir outras travessias possíveis (Foucault; Deleuze, 1979).
Por meio da pesquisa-intervenção, que compõe nossa caixa de ferramentas, é possível percorrer diferentes entradas, porém o mais importante é que as saídas sejam múltiplas e abertas às mudanças de curvas e velocidades (Rolnik, 1989). Isso significa que percorremos o labirinto não para escapar, mas para experimentá-lo. Indica, portanto, um abandono à ideia de ter necessariamente um caminho pré-determinado, que comporta nele mesmo a intenção de um ponto de partida e um ponto de chegada, um destino já previsto e calculado. O que nos interessa é, portanto, inventar mapas provisórios e, principalmente, afirmar que possa haver outras rotas, diferentes das marcadas e catalogadas.
Por isso, não chegamos com a “rima pronta”. É notória a diferença de se chegar com a rima pronta, como um planejamento encerrado em si mesmo, e de se chegar com rascunhos que, no encontro com o campo, podem se metamorfosear. Como pesquisadores, imersos em um labirinto, nós nos deixamos contaminar pelas diversas forças e misturas que vivemos não só no espaço da Grota, mas também em nossos encontros com a Universidade, com as ruas da cidade, com a arte, entre outros. Assim, do encontro com o espaço da Grota, novos movimentos surgiam, desmanchando territórios e fronteiras e criando novas paisagens.
Sobre as paisagens e labirintos que acompanham a construção de um trabalho coletivo
No contato diário junto à ONG percebemos que, inicialmente, toda a demanda dirigida à equipe de pesquisa composta por estudantes de psicologia referia-se a expectativa de atendermos “crianças e jovens-problema”, a partir de um enquadre mais tradicional que compreendia uma atuação essencialmente clínico-individual. De um modo geral, foram inúmeras as solicitações de atendimentos individuais às crianças que, segundo os participantes do projeto, mereciam encaminhamentos urgentes. Considerando que essa demanda traduz, de certo modo, um conjunto de forças que tornam os especialistas “psis” peritos na solução de problemas de natureza psicológica, buscamos, então, utilizar uma ferramenta cara à corrente de pensamento francesa nomeada de Análise Institucional. Dentre os conceitos, tal corrente propõe o da “análise da encomenda” (Baremblit, 1992).
Analisar a encomenda consiste em desdobrar os pedidos feitos pela ONG, expondo, mesmo que de forma incipiente, o emaranhado de forças contidas no pedido. A partir desta atitude crítica é que aparece a demanda de análise cuja intervenção consiste em montar e ampliar novas direções no próprio ato de intervir.
Embora a equipe de pesquisa não tenha se furtado a ouvir os casos, considerados emergenciais, pudemos colocar em análise tal encomenda e propormos outras formas, mais coletivas, de compreensão e condução das questões que atravessam a vida de inúmeros aprendizes que compõem o projeto.
A partir da aposta na construção de dispositivos de coletivização, passamos a acompanhar de perto alguns projetos da ONG. Nas rodas de conversas, por exemplo, a fala de cada componente ganha legitimidade em um processo de ensino-aprendizagem e de reconhecimento uns dos outros com seus saberes, suas opiniões e valores sobre assuntos como arte, violência e formação. Fazer parte da roda permite que os jovens se sintam acolhidos, porque ali se encontram pessoas com quem podem se identificar e, também, se estranhar de alguma maneira. Com esse dispositivo, a partir da coletivização e circulação da palavra, traçamos tanto o que é considerado comum a todos os que participam do projeto, como aquilo que é vivido na sua diferença, criando redes de cooperação.
Uma dificuldade que encontramos logo de início dizia respeito à seguinte questão: enquanto jovens aprendizes e estudantes de psicologia como nos misturaríamos com aqueles jovens aprendizes da ONG? Em que direção iria nossas intervenções?
Neste sentido, pudemos partilhar agonias comuns, por exemplo, a de estarmos em processo de formação. Nós, imersos em uma formação de Psicologia, eles, em Música. Frequentamos, às vezes, os mesmos lugares, desde os ambientes universitários, passando por alguns espaços de lazer, o que traz o sentido similar a “somos todos iguais”. Porém as diferenças também se fazem presentes, dentre elas, o fato de serem residentes de regiões periféricas da cidade. Residentes em uma zona de pobreza, herdeiros de uma histórica disparidade de renda que os impele, incessantemente, a sofrer desigualdades de diversas ordens – cultural, escolar, de lazer, de trabalho –, esses jovens insistem em buscar perspectivas que funcionem como um antídoto à indiferença a que são, cotidianamente, relegados. Mas, é, justamente, entre pontos e demandas, ora convergentes, ora divergentes, que mais uma vez o exercício de rimar se faz potente. Potente porque viabiliza, entre nós jovens, um revezamento de ideias, de troca de saberes e de afetos que forjam, ao mesmo tempo, a perspectiva de juventudes no plural e no ensejo da produção do comum.
Mas como produzir o comum a partir do lugar que nos é dado a ocupar: o de pesquisadores? A perspectiva teórica da pesquisa-intervenção nos traz outra valiosa ferramenta para pensarmos sobre como lidar com essas questões: a análise de implicação (Rodrigues; Souza, 1987). Ela permite colocar em análise o lugar de onde somos chamados a responder e nos abre à possibilidade de inventar outro lugar possível. Este conceito-ferramenta confirma que nosso fazer jamais está dissociado da política, afinal agimos em nome de uma ética e produzimos verdades no mundo.
Fazer a análise de implicação é, em certa medida, nos perguntarmos em que mundo queremos viver; quais rupturas buscamos produzir; quais outros processos de subjetivação queremos afirmar. Mas isto significa sustentar certo plano de indeterminação e, por que não dizer, algumas agonias.
Em vários momentos questionamos nosso trabalho na ONG. Algumas vezes sentíamos que não estávamos produzindo absolutamente nada. Atravessou, em nós, um sentido de inutilidade que se tornou matéria-prima de pensamento. O efeito expresso na inutilidade de nossos afazeres coadunava-se com um outro sentido, muito singular, que rondava os músicos do Espaço Cultural da Grota: o de uma Arte que “não serve para nada”.
Para eles, o sentido de inutilidade é experimentado por meio do seguinte embate: da arte enquanto produto para o mercado; e da arte como um operador potente de transformação dos modos de vida – que combatem a clausura da arte à perspectiva mercadológica.
Para nós, pesquisadores no campo da psicologia, o sentido de inutilidade faz pensar sobre o mercado dos saberes psis. Um mercado de variedades terapêuticas que por vezes, como supostos antídotos, espalha-se na promessa de uma resposta a tudo, que permita à vida nunca sucumbir ou obter a cura imediata para todo sofrimento, de tal modo que o profissional psi é visto como aquele que detém a verdade sobre o outro. Para esse consumo, não nos interessa servir.
Talvez seja esta a nossa maior agonística, sendo ela tão fundamental para nosso exercício crítico: habitar, também, o lugar de aprendiz e, na sustentação desta posição, afirmar que o conhecimento é de natureza híbrida, já que comporta diferentes experiências, perspectivas e referenciais e advêm, ainda, dos encontros que se fazem entre nós e os outros na direção de uma aposta: a constituição de um comum.
As rimas que construímos são de feitio coletivo. Rimas, por sua vez, que nem sempre seguem o que se entende tradicionalmente por rimar. São rimas que destoam, diferem, produzem outros sons, outros ritmos, outras velocidades, outros sentidos. Rimas coletivas.
E, em meio aos sons, ritmos e velocidades feitos de rimas, percebemos que o simples fato de estar lá, experimentando o que se passa por nós no encontro com eles, já produz algo. O processo de intervenção se efetua das mais diversas formas: quando valorizamos o que os jovens expressam sobre si mesmos; quando a partir destas expressões deixamo-nos afetar por elas e, nesse movimento, vamos constituindo nosso próprio corpo-pesquisador; quando nos propomos a compartilhar o que aprendemos juntos em outros espaços da sociedade, dentro e fora da academia; quando participamos de seus processos de formação, através de nossas intervenções no campo.
Aprendemos muito com eles. Os encontros possibilitam o surgimento de sentidos outros com relação, por exemplo, ao que significa ser jovem numa periferia. Há uma ordem hegemônica injusta e desigual que coloca os jovens residentes da periferia na condição genérica de pobres, vadios e ociosos, perspectiva acrescida à criminalização da pobreza e de seus efeitos. Na contramão desses olhares, os jovens que encontramos na Grota entendem que condições precárias de existência não necessariamente se coadunam com tais categorias. Isto porque, além do Espaço Cultural da Grota promover novas formas de sociabilidade, a própria convivência comunitária no bairro aponta para a criação de outras redes de produção do comum que tais categorias invisibilizam.
Nessas redes, a situação de vulnerabilidade é convertida em formas de solidariedade que inventam outras maneiras de integração à vida social expressas nos modos de compartilhar os cuidados com os filhos, de se relacionar entre eles, de trabalhar e de morar. Desse modo, o periférico não condiciona necessariamente uma experiência de falta e da carência, mas também de produção de reexistências (Heckert, 2004) no arranjo de outras formas materiais e imateriais de se sustentar e se reinventar. Quando é operada a inversão de uma periferia lançada em guetos de exclusão para uma periferia formada por redes em que a falta é convertida em outras presenças, o sentido de periférico ganha nova expressão. Uma expressão de periferias em devir na sua potência minoritária. Potência esta que abre e, ao mesmo tempo, tece um horizonte pautado na produção de sonhos comuns possíveis.
No entanto, a constituição de sonhos comuns se apresenta, também, a partir de um dilema que aparece estampado entre os jovens monitores do projeto. Um dilema que consiste, de um lado, em traçar uma perspectiva artística que porta uma forma de trabalho pautada em valores coletivos e de ajuda mútuos e, de outro, que tende a garantir “nichos de mercados” relativos ao oficio de músico pautado, unicamente, na lógica de “cada um no seu quadrado”.
Acerca dos valores coletivos, entendemos que para os jovens a grupalidade funciona como um recurso de aglutinação e reflexão a respeito do modo como desempenham suas atividades. Estar em grupo torna-se, dessa maneira, uma fonte produtora de energia e confiança, e os conflitos e divergências, advindos do convívio diário, provocam a busca de saídas coletivas para os impasses.
Apropriando-se do grupo como parte de um processo educativo, verifica-se a construção de relações de solidariedade, de cuidado e de convivência com as adversidades – dividindo dúvidas e incertezas, compartilhando e comemorando acertos – por meio de elementos que não fazem parte, necessariamente, dos ideais de sucesso e de consumo que atravessam de forma significativa os empreendimentos artísticos empresariais.
Mesmo quando almejam a profissionalização e tornam legitimo para si mesmos serem, por exemplo, músicos de uma grande orquestra, não vêem a profissionalização como finalidade última. Ao contrário, apropriam-se do projeto e de suas atividades enquanto um investimento educativo e de socialização. Assim não sucumbem, de vez, à tentação crescente aos valores individualistas, competitivos e de consumo apregoados nos modos de vida vigentes, resistindo e afirmando, nas formas de ser artista, sua potência coletiva e criadora.
A confecção de rimas e sonhos possíveis
Ir sem rima pronta para confeccionar novas rimas. Eis o exercício! Um exercício cujo percurso é feito de labirintos e de todas as suas paisagens. Paisagem híbrida, desassossegada (Pessoa, 1982) e que, por isso mesmo, constrói, no processo de pesquisar, sonhos possíveis.
No caso de nosso plano de pesquisa, uma paisagem periférica que se faz não obstante da força de segregação às camadas pobres da população, na invenção de periferia em devir. Periferia a qual, apesar dos processos de exclusão às formas materiais e sociais de existência vigentes, comporta forças minoritárias que escapam e, ao mesmo tempo, criam outras maneiras de sentir, viver e estar no mundo.
Para afirmar a dimensão periférica em seu sentido minoritário e, por isso, dissidente, nos firmamos em procedimentos éticos e estéticos que atravessam o ato de pesquisar. Éticos porque referendados na criação de uma rede de sustentação baseada em alianças (políticas, institucionais, familiares, entre outras) capazes de abrigar os jovens que sofrem um contínuo processo de ruptura com o vínculo social. Estéticos porque toma essa produção, histórica, de suscetibilidades das mais diferentes ordens (econômica, social, familiar entre outras) como matéria a ser transformada em atitudes e movimentos que intervenham nesse processo contemporâneo de subjetivação dominante, dando passagem ao novo.
Contudo, agenciar ética à estética requer, num primeiro momento, separar ética da moral colocando-a não mais ao lado do dever, mas ao lado da potência de poder ser, sentir, agir e de pensar, da potência capaz de travar um combate perpétuo contra tudo que subordina o corpo aprendiz a valores contemporaneamente referidos e encaixados aos ditames do mercado.
Nesta direção, o Espaço Cultural da Grota se torna um lugar de um valor inestimável quando inventa formas de convivência e de passagem com seus ritos de iniciação para crianças e jovens aprendizes. Sobretudo para o adulto jovem das periferias, incluso, quase exclusivamente, em um processo de iniciação que visa adaptá-lo e transformá-lo, o mais cedo possível, em um corpo apto para o trabalho secundário, que não exige qualquer tipo de formação especializada e se dá, comumente, em condições indignas e precárias. A música emerge como uma possibilidade de transpor a instituição do trabalho precário que persegue a vida como se fosse “aquela cerca viva” que condiciona seus passos.
Além disso, vemos o quanto desempenhar e desenvolver atividades marcadas pela interferência da arte e da cultura comporta um trabalho imaterial, já que neste campo não se trata apenas de executar tarefas, mas, sobretudo, concebê-las, criá-las. As matérias criadas produzem, por conseguinte, coisas imateriais: sons, ritmos, performances, imagens, serviços, incidindo sobre algo imaterial: a subjetividade humana. Ao ampliarmos essa análise, assinalamos que a condição de trabalho imaterial, assim como o seu conteúdo e resultado, consiste na própria produção de subjetividade que atravessa tanto o processo de trabalho como o seu produto.
Somos, enfim, todos permeados por essa potência imaterial. Jovens aprendizes de música e jovens pesquisadores num plano de afetações mútuas sem rimas prontas, instaurando caminhos desviantes, uma morada coletiva e expressiva consistente que pode comportar o inusitado e disparar novos movimentos.
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Data de recebimento: 29/04/2015
Data de aceitação: 13/12/2015
I Graduada em Psicologia e Bacharel pela Universidade Federal Fluminense, Brasil. Especialista em Assistência a Usuários de Álcool e Drogas no Programa de Estudos e Assistência ao Uso Indevido de Drogas – PROJAD/IPUB. Psicóloga na ONG Movimento de Mulheres, em São Gonçalo, e no Programa NACA - Núcleo de Atenção às Crianças e aos Adolescentes Vítimas de Violência, Brasil. E-mail: anavideira@hotmail.com
II Doutora em Ciências da Saúde pela FioCruz e Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: sm.lima1960@uol.com.br
III Graduada em Psicologia e Bacharel pela Universidade Federal Fluminense, Brasil. Psicóloga Clínica. Atua em Instituição de Acolhimento infanto-juvenil e no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS)/Rede SUAS (Sistema Único de Assistência Social), Brasil. E-mail: suannysales@gmail.com
IV Psicóloga Clínica e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, Brasil. E-mail: vanessams_psi@yahoo.com.br