11 
Home Page  


Desidades

 ISSN 2318-9282

     

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Quando e como a proteção da infância é um valor para os adultos

 

Cuándo y cómo la protección de la infancia es un valor para los adultos

 

 

 

Suzana Santos LibardiI

I Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

 

 


RESUMO

Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa sobre proteção da infância e relações intergeracionais, partindo dos estudos da infância e da abordagem geracional para pensar tal problemática. Considerando especificamente a realidade das crianças que correspondem a um modelo de infância “idealizada”, refletimos sobre a relação adulto-criança e como ela é impactada pela ideia de proteção. Participaram da pesquisa três grupos de adultos, com os quais foram realizadas reuniões inspiradas na metodologia dos grupos operativos, em duas cidades do sudeste do Brasil. A partir do trabalho de campo, foi possível perceber que a proteção não foi vista pelos adultos como um conceito pronto e fixo a ser aplicado, mas sim como um valor que será adequado às situações específicas envolvendo adultos e crianças. O fator geracional aparece circunscrito aos papéis profissionais ou parentais dos adultos; apontando limites do lugar geracional de adultos perante a infância no contemporâneo.

Palavras-chave: infância; proteção da infância; relações intergeracionais.


RESUMEN

Este trabajo presenta los resultados de una investigación sobre la protección de la infancia y las relaciones intergeneracionales, partiendo de los estudios de la infancia y de la perspectiva generacional para pensar tal problemática. Considerando específicamente la realidad de los niños que se corresponden con un modelo de infancia “idealizada”, reflexionamos sobre la relación adulto-niño y cómo ella es impactada por la idea de protección. Participaron en la investigación tres grupos de adultos, con los cuales se realizaron reuniones inspiradas en la metodología de los grupos operativos, en dos ciudades del sudeste de Brasil. A partir del trabajo de campo, fue posible percibir que la protección no fue vista por los adultos como un concepto acabado y fijo para ser aplicado, pero sí como un valor que será adecuado a las situaciones específicas que involucran a adultos y niños. El factor generacional aparece circunscrito a los roles profesionales o parentales de los adultos; señalando los límites del lugar generacional que ocupan los adultos frente a la infancia en la contemporaneidad.

Palabras-clave: infancia, protección de la infancia, relaciones intergeneracionales.


 

 

Introdução

O objeto de estudo deste trabalho é a proteção da infância, considerando especificamente as formas pelas quais tal proteção se produz no âmbito das relações intergeracionais de adultos e crianças no contemporâneo. A noção de proteção da infância e os seus impactos sobre as relações intergeracionais são explorados a partir de pesquisa de campo, de caráter qualitativo e exploratório, realizada com adultos.

A pesquisa partiu do campo interdisciplinar dos (novos) estudos da infância (Alanen, 1992; Sirota, 2007; Corsaro, 2011), adotando sua crítica às narrativas clássicas sobre a criança e a infância. Nesse campo de estudos, considera-se que a construção da infância decorre de processo social e histórico (Qvortrup, 2011a, 2011b) e que, no “mundo ocidental”, a construção da infância e o lugar social majoritariamente reservado para ela se alimentaram, por exemplo, das “verdades” produzidas pelas teorias do desenvolvimento, emergentes na Modernidade (Smolka, 2002; Gillis, 2011), e pelas teorias da socialização (Durkheim, 1982; Parsons, 1982).

A concepção ocidental (Stearns, 2006), ou melhor, europeia, de infância moderna (Qvortrup, 2005) produziu consequências para a construção da infância no Brasil e em outros países da América Latina e do mundo (Alanen, 1992; Heywood, 2001; Stearns, 2006); produziu também consequências para a experiência das crianças e impactou na maneira como esse grupo geracional foi tratado ao longo de diferentes momentos da nossa história. Este trabalho, então, busca somar-se ao esforço acadêmico de não dar continuidade às narrativas tradicionais de socialização e do desenvolvimento da criança, procurando pensar a infância em sua dimensão geracional, examinando um dos aspectos do trato da infância no Brasil, a saber: sua proteção.

Atualmente, no Brasil, a ideia de que crianças devem ser especialmente protegidas é garantida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990a), que formaliza uma definição de proteção ainda muito associada aos contextos de adversidade, onde ‘a criança já está sofrendo alguma violação de direitos’ e, por isso, Estado ou família são responsabilizados a prestar diversos tipos de assistência para retirar a criança de contextos ou práticas que lhe causem algum dano ou lhe imponham riscos. Apesar do documento refletir a doutrina de proteção integral (Arantes, 2009) e ter sido uma conquista importante da sociedade brasileira, o texto (Brasil, 1990a) traz a proteção enquanto medidas que devem ser aplicadas em situações onde a criança, por exemplo, está desprovida do convívio familiar, ou passa por maus tratos, ou está exposta ao trabalho, ou, ainda, quando ela é autora de ato infracional. Essa definição de proteção reflete a história do trato público dado à infância no Brasil e dos serviços aqui criados para atender a criança (Kramer, 1982; Pinheiro, 2006; Castro, 2012), por isso a proteção, enquanto uma normativa para as famílias e para o Estado, parece ser evocada apenas como algo que deve acontecer em situações “de exceção”.

Isso ocorre, entre outros fatores, porque a ideia de proteção foi sendo socialmente produzida no Brasil a partir de marcadores de raça e classe que caracterizam historicamente as infâncias que mais sofrem violações de direitos no país: as infâncias marginalizadas, vividas pelas crianças negras e pobres. Apesar dos ganhos em se tentar resguardar essas crianças e promovê-las ao status de sujeito de direitos, a proteção regulamentada no país não foi associada também a práticas cotidianas de cuidado com todas as crianças e ainda representa dificuldade de se concretizar para toda a geração da infância.

Tendo em vista então as limitações da definição de proteção enquanto norma, buscamos nesse trabalho conhecer a visão dos adultos sobre a presença (ou não) da proteção na vida comum de crianças que gozam de uma infância mais próxima da “idealizada”. Aqui, a proteção foi vista como um valor, pensada em um sentido mais amplo, e abordada de uma perspectiva geracional (Alanen; Mayall, 2001; Alanen, 2011), que percebe adultos e crianças enquanto sujeitos de grupos de geração (Freixa; Leccardi, 2010; Qvortrup, 2011a; Weller; Motta, 2010). Isso significa que tomamos a atuação desses indivíduos tendo em vista sua dimensão coletiva, considerando que suas possibilidades de ação provêm da posição de seu grupo geracional na estrutura da sociedade (Weller, 2010). Por relações intergeracionais, então, nos referimos às relações que adultos e crianças estabelecem entre si, tendo em conta principalmente que os papéis assumidos nessa relação emanam não somente das características individuais das pessoas envolvidas na relação, mas também das posições geracionais de uma geração perante a outra. Então, visto que a geração adulta tem um papel de responsabilidade com a geração da infância, a relação adulto-criança será atravessada por esse imperativo, quer ele seja exercido ou não. Adotamos a abordagem geracional no presente trabalho porque nos interessa conhecer as condições de possibilidade que permitem a construção de vínculos de responsabilidade e também de interdependência entre esses sujeitos, assim como observar a reciprocidade nessas relações, entre outras questões. Neste trabalho, portanto, a ideia de proteção é discutida dentro de uma reflexão mais ampla sobre as trocas entre a geração dos adultos e a geração das crianças na realidade brasileira, objetivando conhecer especificamente como elas são impactadas pela ideia de proteção.

Para isso, realizamos uma pesquisa de campo com adultos. Nossa escolha metodológica decorre da compreensão de que a proteção da infância – enquanto um valor ou enquanto uma norma – ressoa diretamente sobre os adultos e sobre o Estado, que são supostamente os provedores da proteção para gerações mais novas. Este trabalho mostra como sujeitos da geração mais velha veem a aplicabilidade da ideia de proteção e como se posicionam diante disso.

Como, quando, onde e com quem a pesquisa foi realizada

A pesquisa foi realizada em duas cidades do Sudeste do Brasil, uma de porte grande (com aproximadamente 6 milhões e meio de habitantes) e outra de porte pequeno (com aproximadamente 70 mil) - a qual se destaca na região por sua atividade mineradora, turística e pela vida universitária. O critério para a seleção dos participantes considerou a intimidade deles com o campo da infância – os debates no âmbito dos direitos da criança, como também o conhecimento e a experiência dos participantes no cuidado ofertado profissionalmente a essa geração. Sendo assim, os participantes foram escolhidos de modo a contemplar tanto sujeitos que trabalham com crianças como sujeitos que não trabalham com crianças.

Contamos com a participação de adultos divididos em três grupos. Os grupos, doravante nomeados ‘Grupo I’ e ‘Grupo III’, foram compostos por jovens adultos, estudantes de graduação em licenciatura nas áreas de exatas, ciências naturais e engenharia de duas universidades públicas. Estes eram os grupos de adultos que ainda não trabalham com crianças. Seus participantes tinham de 18 a 33 anos de idade, sendo 53,12% deles do sexo masculino e 46,88% do sexo feminino, a imensa maioria não tinha filhos e era graduanda nos cursos das engenharias. Já o ‘Grupo II’ foi composto por professoras de uma escola pública; adultas que tiveram formação acadêmica voltada para a infância e trabalhavam diretamente com crianças. Esse grupo foi composto por mulheres, oriundas de classes médias e populares, com idade entre 42 e 57 anos, e das quais 72,72% tinha pelo menos um filho. Assim, a pesquisa contou com um total de 43 adultos entre 18 e 57 anos, sendo 60,46% do sexo feminino e 39,53% do masculino.

Os adultos participaram da pesquisa apenas em situações de grupo porque não priorizamos sua opinião individual, mas sim o que o debate entre eles produziu enquanto um discurso mais coletivo do grupo sobre a proteção da infância. Adotamos na pesquisa a metodologia dos grupos operativos (Pichon-Rivière, 2005; Bleger, 2011). Foram realizadas nove reuniões com os Grupos I, II e III, denominadas ‘Oficinas’, ocorridas separadamente em três encontros com cada grupo – a ‘Oficina I’, a ‘Oficina II’ e a ‘Oficina III’. As Oficinas tiveram um roteiro semiestruturado de atividades que colocou tarefas diferentes para os grupos a cada encontro. As tarefas (Bleger, 2011) buscaram aproximar os participantes do tema da pesquisa, contemplando aspectos relacionados ao problema da proteção e das relações intergeracionais. Em uma Oficina foram usados relatos e memórias da infância dos próprios participantes e nas duas outras Oficinas foram usadas duas histórias fictícias. As histórias se desenrolavam em contextos diferentes e com personagens distintos – adultos e crianças. A narração das histórias continha lacunas propositais para que os participantes usassem a imaginação, criando várias possibilidades de continuação para elas e tentando justificar menos os comportamentos de cada personagem.

Todas as Oficinas tiveram o áudio da discussão gravado, com autorização de todos os participantes. Após a realização de cada Oficina, uma transcrição foi providenciada e, a partir dela, elaboramos um relatório para cada uma, descrevendo o andamento da atividade e como os participantes operaram a tarefa.

O estudo do material produzido no trabalho de campo – os relatórios – nos permitiu selecionar as passagens mais relevantes para a pesquisa. Esses dados foram organizados em categorias analíticas que são discutidas na tese de doutorado1 para a qual a pesquisa foi realizada. Por sua vez, no presente trabalho, apresentamos exclusivamente a visão dos adultos sobre a proteção, tendo em conta contextos nos quais as crianças gozam de uma infância mais próxima da “idealizada”, ou seja, trata-se da criança que frequenta regularmente a escola, usufrui de boas condições no ambiente doméstico para crescer e dedicar-se aos estudos, brinca bastante, está sob os cuidados dos pais, entre outras características.

Uma história fictícia específica foi usada nas Oficinas para despertar o debate sobre o papel dos adultos para com uma infância “idealizada”. Nossa intenção foi criar um caso em que a personagem criança, que vive uma infância socialmente considerada “normal”, tem uma relação ativa com os adultos e lhes coloca questões e desafios, obrigando-os a refletir sobre como lidar com ela.

A história se passa numa escola privada, envolve uma criança de nove anos chamada Wilson (que tem desempenho regular na escola), a professora dele, os pais do menino (com quem ele vive) e a direção da escola. O “Caso Wilson” narra o incômodo da professora devido aos comportamentos e comentários do menino em sala de aula, se remetendo a sexo e drogas. A professora quer “se livrar” de Wilson. A diretora da escola quer que a família resolva a situação o mais rápido possível. Os pais estão decepcionados com a direção da escola. Eles também demonstram preocupação com o envolvimento de Wilson com colegas mais velhos e com os temas “maliciosos” e “precoces” que têm despertado o seu interesse, supostamente em decorrência dessa convivência. Inicialmente eles não sabem como agir, mas terminam mudando o filho de escola. Os pais não têm garantias de obter sucesso: não se sabe se Wilson mudará seu comportamento ou se ele estará bem na nova escola.

Para o presente trabalho, foram analisados os relatórios do trabalho de campo com resultados relativos ao “Caso Wilson”. Na seção seguinte, são apresentados, de forma resumida, os posicionamentos construídos pelos grupos de adultos sobre a ideia de proteção.

A proteção da infância e as relações intergeracionais

Apresentamos os principais resultados construídos pelos grupos de adultos quando debateram o seu papel perante a geração da infância, tomando o “Caso Wilson”. Os participantes precisavam decidir: o que fazer com essa criança? O objetivo da atividade foi verificar como a proteção aparece nos posicionamentos dos grupos de adultos.

Pais, professoras e a instrução da criança: o papel dos adultos para com uma infância “idealizada”

Primeiramente, destacamos que, em todos os grupos, houve a adesão dos participantes à avaliação apresentada na história: Wilson é muito pequeno para demonstrar interesse por temas como sexo e drogas – relatados na história – e, por isso, seu comportamento foi julgado como inadequado. Além de definirem Wilson pela sua pouca idade e suposta imaturidade, os participantes da pesquisa assumiram também a curiosidade como uma característica quase natural da criança, e com isso tentaram justificar o comportamento do menino da história.

O tema da proteção surgiu quando os grupos debatiam qual seria o papel dos pais no trato com os filhos. Os participantes da pesquisa defenderam que o adulto deve regular o acesso da criança a conteúdos inapropriados, especialmente para uma criança de pouca idade como Wilson. “Eu acho que deve é ser regulado o que ele fala e como ele fala. Então tem que explicar a situação e os momentos que ele não deve discutir certos assuntos”, disse Felipe2, integrante do Grupo III. A atribuição adulta seria regular os temas que interessam ao menino. Quando questionados nas Oficinas, os participantes revelaram que compreendem que a função dessa regulação é educativa e também se concretiza como uma medida de proteção, pois busca garantir que o menino conheça temas delicados, como sexo e drogas, da forma mais “adequada” e poupando-o de experiências danosas. Para exercer essa regulação, os adultos deveriam estabelecer diálogos com as crianças, já que “o diálogo minimiza riscos”, disse uma das participantes. Então, no “Caso Wilson”, seria melhor família e professora tratarem as demandas, dialogando com o menino sobre o assunto.

Todavia, ao problematizar a noção de ‘diálogo’ entre os grupos, parte dos adultos se referiu mais à ideia de que eles devem falar com a criança para ‘instruí-la’, não se tratando então do estabelecimento de um ‘diálogo’ propriamente dito – visto que o adulto seria aquele que fornece adequadamente informação para a criança, restando pouco espaço para ele também escutar o que ela tem a dizer. O papel dos adultos de instruir, e não exatamente dialogar, deixa transparecer a passividade com que adultos percebem as crianças, principalmente nos episódios onde se julga que a instrução ajudará a criança de alguma maneira. Ao mesmo tempo, a orientação oferecida à criança seria uma maneira do adulto protegê-la via instrução.

Os participantes da pesquisa concordaram a respeito de qual seria, em termos gerais, o papel dos adultos – regular conteúdos e instruir Wilson – e consideraram que cada um dos personagens adultos ‘deve’ agir para tentar ajudar o menino. Todavia, os grupos adotaram posicionamentos distintos quando discutidas as ações específicas que caberiam a cada personagem, e qual a responsabilidade de cada adulto, como mostramos a seguir.

  

Pais ‘versus’ professora: quem cuida da criança?

Os adultos envolvidos na pesquisa acreditam que uma intervenção dos pais deve buscar solucionar “os pontos que não estão sendo bons pro desenvolvimento do Wilson”, disse Vitor, integrante do Grupo III, denotando que, na opinião dele, o padrão de desenvolvimento infantil é uma referência importante para o cuidado com a criança. Por isso, o comportamento de Wilson tentou ser contornado por todos os participantes da pesquisa.

Segundo eles, a ação dos pais de buscar proteger a criança decorre de sua capacidade de prever os perigos aos quais seus filhos estão expostos. “Sempre gira em torno da questão de proteção, né? (...) Porque eu acho que os pais têm esse tipo de preocupação. ‘Pra que eu vou deixar meu filho se queimar, se eu sei que fogo queima?’”, argumentou Judite, integrante do Grupo I. Outros participantes também alertaram para o fato de que pais preocupados com os filhos pensam antecipadamente no que pode ocorrer com eles. Desse modo, devem agir sobre o comportamento dos filhos, protegendo-os.

Os grupos dividiram opiniões quando o debate entre os participantes versou sobre o que caberia aos outros adultos do “Caso Wilson”, como a professora. Os Grupos I e III responsabilizaram mais ela e a direção da escola. O Grupo II não.

Considerando os personagens da história, os Grupos I e III exigiram mais responsabilidade das educadoras do que dos pais. A nosso ver, eles tentaram “repassar” ao menos uma parte da responsabilidade dos pais de Wilson para um profissional, no caso a professora. Os Grupos I e III, compostos por pessoas que não trabalham em educação, tentaram responsabilizar mais a professora e delegar para ela o protagonismo do trato com a criança. Por sua vez, o Grupo II, formado por adultas que são professoras, responsabilizou muito mais os pais da criança do que a personagem da professora ou a direção da escola.

Os participantes da pesquisa tentaram “empurrar” mais a responsabilidade para outros adultos que não ocupam, na história, um papel semelhante ao deles na vida real. Esse movimento dos participantes materializou o “jogo de empurra”, tão comum em nossa sociedade.

O Grupo II demonstrou identificação total com Josefa, a professora do “Caso Wilson”. “Eu acho que todo mundo já passou por isso aqui”, disse uma das participantes. Durante o trabalho de campo, este grupo defendeu arduamente Josefa – apesar de, na história, também constar sua postura eticamente duvidosa – e fez menção aos “Wilsons” com que já depararam na escola – meninos “precoces” ou mal comportados. Tais participantes elencaram inúmeros defeitos das famílias atendidas pela escola onde trabalham, mais do que os erros e defeitos da família do personagem Wilson. Seguem algumas falas transcritas: “A mãe tentava até fazer alguma coisa, coitada, mas não conseguia. Também não era uma pessoa, assim, sensata, que se dedica a criar a família não”; “(...) Com essas famílias mal estruturadas, a meu ver é isso. Porque hoje a mãe casa com um, com outro, então o menino não tem referência de pai e às vezes nem de mãe”; disseram algumas integrantes do Grupo II.

Houve certa facilidade de as profissionais julgarem a forma com que crianças são educadas por suas famílias e a maneira como essas famílias se organizam propriamente. A nosso ver, houve também grande culpabilização da família – em especial, da mãe – sobre as experiências “precoces” vivenciadas por crianças de classe popular. O trabalho de campo com esse grupo revelou a necessidade das professoras terem mais espaço para falar sobre as dificuldades do fazer profissional, especialmente sobre a relação com as famílias das crianças – visto o total descrédito demonstrado, o que dificulta a construção de parcerias com tais famílias.

No que tange ao papel da professora, os Grupos I e III, como dito anteriormente, criticaram profundamente a postura dela e da instituição escolar relatadas no caso.

Eu acho também que o menino tirou um pouco a professora da zona de conforto dela. Ela poderia ter tido uma postura de, sei lá, falar ‘não pode ficar falando isso aqui’ e não sei o quê. Realmente podia ter conversado com os pais, mas ela simplesmente falou que o papel era dar aula (...). Ela não pensou muito em nada, ela só pensou nela! (Conceição, integrante do Grupo III).

Essa e outras falas dos participantes avaliaram que a postura da professora foi errada, porque ela se preocupou mais consigo e com seus interesses do que em intervir junto à criança. Eles recriminaram o desejo da professora de querer “se livrar” do aluno. A insatisfação dos Grupos I e III existiu porque esperavam que a personagem, por ser professora, fizesse mais para com Wilson. Demandaram que ela deveria se responsabilizar pelo que estava acontecendo, apesar do problema extrapolar a sala de aula.

Os Grupos I e III foram unânimes em avaliar mal o desempenho da Josefa por ela ter se negado a assumir uma dimensão mais ampla da educação de Wilson. A professora estaria falhando com seu papel de educadora e alguns participantes afirmaram que ela deveria “estar preparada para lidar com todos os assuntos”, como argumentou um integrante do Grupo I. Aqui já começava a ficar subentendido que o julgamento sobre os pais, por parte dos Grupos I e III, não seria o mesmo que o julgamento sobre a professora. A fala transcrita a seguir ilustra bem esse entendimento: “Os pais vão aprendendo e tal, mas, pro professor, pro educador, acho que, se a pessoa escolheu essa profissão, ela tem que tá preparada pra isso”, disse David, integrante do Grupo I, diferenciando as expectativas em torno de profissionais e pais. Estes últimos não foram demandados na mesma intensidade nem nos mesmos termos que a profissional, porque estariam “aprendendo a ser pais”, e então foram facilmente “perdoados” pelos adultos dos dois Grupos mencionados.

Obviamente, o Grupo II, composto por profissionais da educação que trabalham com crianças, produziu posicionamento totalmente diferente sobre a personagem da professora. Na análise do Grupo II, houve tentativa de justificar a postura da personagem, apesar de as participantes reconhecerem que ela agiu errado. O motivo mais forte listado para a negligência da professora foi a sobrecarga de trabalho. “É porque muitas vezes os pais deixam, assim, a dificuldade na mão da escola e querem que a escola resolva, mas a escola não tem condições. Sem os pais, não tem condições, né?”, disse uma das participantes. Segundo elas, as professoras atualmente estão muito sobrecarregadas e por isso não conseguem se ater com demandas “extras”, como elas julgam que foi a de Wilson. Usaram vários exemplos do cotidiano para mostrar que são convocadas a fazer tarefas que não deveriam fazer – se tivessem apoio das famílias dos alunos – e assim justificam a sobrecarga de trabalho.

Não conseguimos fazer nosso trabalho bem feito e ainda nos sentimos, assim, um pouco frustradas, porque poderia ser melhor, mas a sobrecarga é tão grande que a gente não consegue o resultado que a gente almeja. É tanto projeto, é tanta cobrança, avaliação de desempenho em cima da gente (Joana, integrante do Grupo II).

As dificuldades do exercício profissional soaram como justificativas para impedir que elas se envolvessem no caso de Wilson, por exemplo. Com a participação do Grupo II na pesquisa, foi possível refletir sobre quais os custos que os adultos têm para proteger as crianças.

Conclusões

O trabalho de campo realizado com adultos refletiu na pesquisa o “jogo de empurra", observado comumente em nossa realidade, por adultos que tentam repassar para outrem uma parcela da responsabilidade que têm para com a criança. Desse modo, a pesquisa nos permitiu escutar os discursos e, principalmente, os incômodos dos adultos acerca do exercício do seu papel diante da geração da infância. Apesar de reconhecerem a relevância de a proteção ser provida cotidianamente, os participantes destacaram a dificuldade de fazê-lo. Com isso, eles apontaram as dificuldades dos adultos darem conta da educação, de proverem proteção, gerando em parte dos participantes uma vontade de demandar de outro adulto tal compromisso.

No que tange à ideia de proteção, pelo menos para uma infância próxima da “idealizada”, ela apareceu na relação adulto-criança por meio da regulação adulta sobre a vida das crianças e por meio da instrução fornecida a elas sobre os assuntos e as experiências aos quais elas têm acesso. A proteção, portanto, estaria diluída no cuidado doméstico que adultos têm com crianças. Para essa infância, a noção de proteção compartilhada pelos participantes da pesquisa é da proteção como um valor que pauta a forma como eles pensam que devem se relacionar no cotidiano com essas crianças. Essa posição dos participantes da pesquisa aponta dois relevantes aspectos para se pensar a proteção da infância hoje: 1) para as crianças que correspondem a uma visão “idealizada” da infância, a proteção se concretiza fluidamente por meio do cuidado e da educação, seja no contexto doméstico ou escolar; 2) a proteção provida pelo adulto depende fundamentalmente da relação que há entre eles; portanto, percebe-se a diferenciação dessa noção de proteção da sua definição mais normativa e institucional garantida pelas regulamentações nacional (BRASIL, 1990a) e internacional (BRASIL, 1990b) dos direitos da criança.

Assim, a proteção não foi vista pelos adultos como um conceito pronto e fixo a ser aplicado por eles, mas sim como um valor que vai se adequar às situações específicas envolvendo eles e as crianças; especificamente ao ‘tipo’ de relação que mantêm com as crianças. A pesquisa indicou que os adultos compreendem que seu papel perante as crianças, enquanto membros de uma geração, guarda especificidades da relação parental ou profissional que não dizem respeito a um compromisso geracional propriamente. Assim, o fator geracional aparece circunscrito aos papéis profissionais ou parentais dos adultos, apontando limites do lugar geracional de adultos perante a infância no contemporâneo.


Referências bibliográficas

ALANEN, L. Modern childhood? Exploring the ‘child question’ in sociology. Publication serie A. Research Report 50. Jyväskylä: University of Jyväskylä, Institute for Educational Research, 1992.

______. Generational Order. In: QVORTRUP, J.; CORSARO, W. A.; HONIG, M. (Org.). The Palgrave Handbook of Childhood Studies. London: Macmillan, 2011. p. 159-176.         [ Links ]

ALANEN, L; MAYALL, B. Conceptualizing child-adult relations. London, New York: Routledge, 2001.         [ Links ]

ARANTES, E. M. de M. Proteção integral à criança e ao adolescente: proteção versus autonomia? Psicologia Clínica, v. 21, n. 2, p. 431-450, 2009.         [ Links ]

BLEGER, J. Temas de psicologia: entrevistas e grupos. 4. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.         [ Links ]

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da criança e do adolescente. Brasília: Presidência da República, 1990a.         [ Links ]

______. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Brasília: Presidência da República, 1990b.         [ Links ]

CASTRO, L. R. The Idea of development and the study of children in Brazil as a developing society. Psychology and developing societies, v. 24, n. 2, p. 181-204, 2012.         [ Links ]

CORSARO, W. A. Sociologia da Infância. Porto Alegre: ArtMed, 2011.         [ Links ]

DURKHEIM, E. Childhood. In: JENKS, C. (Org.). The Sociology of Childhood: essential readings. Great Britain: Batsford Academic, 1982, p. 146-150.         [ Links ]

FREIXA, C.; LECCARDI, C. O conceito de geração nas teorias sobre juventude. Revista Sociedade e Estado, v. 25, n. 2, p.185-204, 2010.         [ Links ]

GILLIS, J. Transitions to Modernity. In: QVORTRUP, J.; CORSARO, W. A.; HONIG, M. (Org.). The Palgrave Handbook of Childhood Studies. London: Macmillan, 2011, p. 114-126.         [ Links ]

HEYWOOD, C. A history of childhood: children and childhood in the west from Medieval to Modern times. Cambridge: Polity Press, 2001.         [ Links ]

KRAMER, S. História do atendimento à criança brasileira. In: ______. A Política do Pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982, p. 49-91.         [ Links ]

PARSONS, T. The socialization of the child and the internalization of social value orientations. In: JENKS, C. (Org.). The Sociology of Childhood: essential readings. Great Britain: Batsford Academic, 1982, p. 139-145.         [ Links ]

PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes, 2005.         [ Links ]

PINHEIRO, A. Criança e adolescentes no Brasil: por que o abismo entre a lei e a realidade. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2006.         [ Links ]

QVORTRUP, J. (Org.). Studies in Modern Childhood: society, agency and culture. Basingstoke, Hampshire, GBR: Palgrave Macmillan, 2005.         [ Links ]

______. Nove teses sobre a “infância como um fenômeno social”. Pro-Posições, v. 22, n. 1, p.199-211, 2011a.

______. Childhood as a Structural Form. In: QVORTRUP, J.; CORSARO, W. A.; HONIG, M. (Org.) The Palgrave Handbook of Childhood Studies. London: Macmillan, 2011b, p. 21-33.         [ Links ]

SIROTA, R. A indeterminação das fronteiras da idade. Perspectiva, v. 25, n. 1, p. 41-56, jan./jun., 2007.         [ Links ]

SMOLKA, A. L. B. Estatuto de sujeito, desenvolvimento humano e teorização sobre a criança. In: FREITAS, M. C.; KUHLMANN JR., M. (Org.). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002, p. 99-129.         [ Links ]

STEARNS, P. N. Childhood in world history. New York: Routledge, 2006.         [ Links ]

WELLER, W. A atualidade do conceito de gerações de Karl Mannheim. Revista Sociedade e Estado, v. 25, n. 2, p. 205-224, maio/ago., 2010.         [ Links ]

WELLER, W.; MOTTA, A. B. Apresentação: A atualidade do conceito de gerações na pesquisa sociológica. Revista Sociedade e Estado, v. 25, n. 2, p.175-184, 2010.         [ Links ]

 

Data de recebimento: 28/02/2016
Data de aceitação: 30/04/2016
 

 

1 LIBARDI, S. S. A proteção da infância e as relações intergeracionais a partir da perspectiva dos adultos. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Trabalho orientado pela professora Lucia Rabello de Castro, professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.

2 Todos os nomes próprios utilizados neste trabalho são fictícios para garantir o anonimato dos participantes da pesquisa. Felipe é um nome fictício.

I Psicóloga, Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: suzana.libardi@gmail.com

II Apoio: FAPERJ (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, Brasil.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License