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 ISSN 2318-9282

     

 

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Aprendizagens e sociabilidades juvenis: a experiência das Torcidas Jovens cariocas

 

Aprendizajes y sociabilidades juveniles: la experiencia de las Torcidas  Jóvenes cariocas

   

 

Daniela Ramos de OliveiraI

I Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

Inúmeros estudos têm-se debruçado sobre o fenômeno da juventude na sociedade contemporânea, suas práticas culturais, formas de expressão e bandeiras de lutas. Problematizando as fronteiras etárias e a ideia de que se trata de uma fase da vida marcada por atributos comuns e universais, as pesquisas reafirmam o caráter histórico e socialmente heterogêneo da categoria juventude. Considerando, pois, que há múltiplos modos de viver a condição juvenil, neste artigo me proponho a discutir a experiência das Torcidas Jovens Cariocas. Na primeira parte apresento algumas das características do tipo de sociabilidade que promovem, situando-as como importantes espaços de pertencimento e interação social. Na segunda parte, discuto as novas faces do associativismo torcedor juvenil, as ações de resistência promovidas frente ao chamado processo de elitização do futebol e à criminalização desta cultura torcedora para defender o seu estilo de torcer.

Palavras-chave: Torcidas Jovens, futebol, aprendizagens, sociabilidades juvenis.


RESUMEN

Innumerables estudios han indagado sobre el fenómeno de la juventud en la sociedad contemporánea, sus prácticas culturales, formas de expresión y banderas de luchas. Problematizando las fronteras etarias y la idea de que se trata de una fase de la vida marcada por atributos comunes y universales, las investigaciones reafirman el carácter histórico y socialmente heterogéneo de la categoría juventud. Considerando entonces, que hay múltiples modos de vivir la condición juvenil, este artículo se propone discutir la experiencia de las Torcidas Jóvenes cariocas. En la primera parte, presento algunas características del tipo de sociabilidad que promueven, situándolas como importantes espacios de pertenencia e interacción social. En la segunda parte, discuto las nuevas fases del asociativismo torcedor juvenil, las acciones de resistencia promovidas frente al proceso de elitización del fútbol y frente a la criminalización de esta cultura torcedora para defender su estilo de torcer.

Palabras-clave: Torcidas Jóvenes, fútbol, aprendizajes, sociabilidades juveniles.


 

 

Introdução

Inúmeros estudos têm-se debruçado sobre o fenômeno da juventude na sociedade contemporânea, suas práticas culturais, formas de expressão e bandeiras de lutas. Problematizando as fronteiras etárias e a ideia de que se trata de uma fase da vida marcada por atributos comuns e universais, as pesquisas reafirmam o caráter histórico e socialmente heterogêneo da categoria juventude (Bourdieu, 1983; Pais, 1995). Esta diz respeito tanto aos significados atribuídos por uma sociedade a esse momento no ciclo da vida, quanto ao modo como é vivida pelos sujeitos. Tomar o jovem como sujeito social significa dizer que tem uma história, interpreta e age sobre o mundo “e nessa ação se produz e, ao mesmo tempo, é produzido no conjunto das relações sociais nas quais se insere” (Dayrell, 2003, p. 43).

Contudo, do ponto de vista do senso comum, a visão disseminada nas ruas e nos meios de comunicação tende a associar o jovem a uma fase de transição marcada por crises, irresponsabilidade e desinteresse. Para evitar generalizações arbitrárias é fundamental observar trajetórias, percursos, interesses, perspectivas e aspirações dos jovens (Pais, 1995). Assim, em virtude das grandes disparidades sociais, o mais apropriado seria falarmos em “juventudes” (Novaes, 1997) para enfatizar as diferentes e desiguais experiências que esta categoria recobre, particularmente se considerarmos as profundas transformações vividas pelas sociedades ocidentais nas últimas décadas (Giddens, 1991). Não se pode perder de vista que os jovens se diferenciam em termos de orientação sexual, gosto musical, pertencimentos associativos, religiosos, políticos, de lazer. Tais demarcadores identitários tanto aproximam jovens socialmente separados quanto separam jovens socialmente próximos, como se observa no tocante às torcidas organizadas de futebol.

Considerando, pois, que há múltiplos modos de ser jovem e de viver a condição juvenil, neste artigo me proponho a discutir a experiência das Torcidas Jovens cariocas. Na primeira parte, apresento algumas das características do tipo de sociabilidade juvenil que promovem, situando-as como importantes espaços de pertencimento, promovendo aprendizagens e a criação de laços sociais. Por serem associações heterogêneas, comportando indivíduos que diferem em idade, instrução, profissão, visão de mundo, origem social, estas torcidas não podem ser classificadas exclusivamente como agrupamentos juvenis. No entanto, diversos estudos demonstram a participação significativa de jovens (Murad, 1996; Teixeira, 2003; Toledo, 1996).

Por outro lado, é interessante sublinhar que os quatro principais clubes cariocas (Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco da Gama) têm, pelo menos, uma torcida organizada que se autodenomina JOVEM. Estas ganharam visibilidade pela criação de um estilo de torcer que atrai inúmeros jovens desde o final dos anos de 1960 e sintetizam de modo exemplar as principais características dessa experiência social, tanto quanto algumas das contradições vividas por estas agremiações na atualidade. Por tudo isto, quando falo em “torcida jovem” estou me referindo menos a uma faixa etária objetivamente definida e mais a um certo “espírito”, “estilo de vida”, que para esses torcedores caracterizam o pertencimento e explicitam como se entende a relação com o clube e com a torcida.

Na segunda parte, discuto as novas faces do associativismo torcedor juvenil, suas ações de resistência frente ao chamado processo de mercantilização do futebol. A legislação repressora e a transformação arquitetônica dos estádios para a realização dos megaeventos no país (Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas em 2016) favoreceram a constituição de redes mais amplas de coalizão para defender o seu modo de torcer.

Nesse sentido, tanto a Federação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (2008) quanto a Associação Nacional das Torcidas Organizadas (2014) vêm se engajando publicamente em divulgar os aspectos positivos destes grupos e na resolução dos problemas relacionados a episódios de violência envolvendo seus membros. Ademais, objetivam se afirmar como sujeitos de direitos e definir uma pauta de ações coletivas para expressar interesses comuns e estabelecer diálogos com o poder público.

 

As Torcidas Jovens cariocas: aprendizagens e sociabilidades

As torcidas organizadas de futebol têm se constituído ao longo da história deste esporte no Brasil em importantes espaços de interação social. As Torcidas Jovens cariocas constituem um fenômeno que se desencadeia no final dos anos de 1960 e início da década de 1970, nos quatro principais clubes de futebol: Torcida Jovem do Flamengo (TJF), Torcida Jovem do Botafogo (TJB), Força Jovem do Vasco (FJV) e Young Flu (YF). Registradas como Grêmio Recreativo Social e Cultural, organizam-se em torno de projetos comuns que norteiam suas ações. Distinguindo-se dos grupos torcedores existentes até então, desenvolvem uma sociabilidade em torno do futebol profissional, guiada pela compreensão de que a produção da festa nos estádios e o posicionamento crítico e contestador são parte da mesma experiência.

Desse modo, estas estruturas hierarquizadas inauguram um novo padrão de relacionamento entre si e com os dirigentes dos clubes, assumindo, ao longo da década de 1980, um aspecto cada vez mais profissional. A despeito de serem associações fluídas, caracterizadas pela grande rotatividade de torcedores, alguns indivíduos se engajam efetivamente no cotidiano das torcidas. Esse engajamento militante propicia aprendizagens e participação em relações sociais, favorecendo a criação de laços sociais, vínculos de amizade e de solidariedade, mas igualmente, relações de oposição e rivalidade.

A aprendizagem está sendo aqui considerada, na perspectiva de Tim Ingold (2010), como uma prática social relacionada à cultura, um fenômeno social-coletivo, que se desenvolve a partir da imersão dos indivíduos, em certos contextos, não sendo resultado da mera transmissão de informações passadas de uma geração à outra, de um conhecimento comunicado, mas, nos termos do autor, de uma “redescoberta orientada”, da “educação da atenção”. Isso significa que os próprios sujeitos constroem o conhecimento, “seguindo os mesmos caminhos dos predecessores e orientados por eles” (2010, p.19).

Os membros que possuem uma longa trajetória nas torcidas são admirados e vistos como “depositários” de um saber coletivo, de tradições que lhes conferem notoriedade, respeito e poder e, por isso mesmo, são referências no processo de iniciação dos novatos.

A condição de torcedor organizado envolve um conjunto de aprendizagens corporais e sentimentais que ocorrem nos estádios, nas sedes, nas viagens, nas festas de confraternização. Além disso, a imersão no cotidiano do grupo abrange a socialização em procedimentos relacionados às exigências da vida associativa, tais como: a divisão de tarefas, organização dos subgrupos, das caravanas, a definição de estratégias de ação e o desenvolvimento de projetos e campanhas sociais. Essas aprendizagens se tornam possíveis porque os sujeitos se situam em um contexto de práticas “em um mundo real de pessoas, objetos e relacionamentos” (Ingold, 2010, p.19).

Espaços marcadamente masculinos, agregam jovens entre 14 e 25 anos, de diferentes origens e trajetórias socioculturais. As Torcidas Jovens são valorizadas como espaços democráticos, abertos a várias idéias e pessoas, “uma amostra da sociedade”, “onde tem de tudo”, proporcionando experiências de alteridade, o encontro entre diferentes, unidos por um mesmo ideal – o amor ao clube -, que compartilham num dado momento, uma definição comum da realidade (Velho, 1994).

Tem vários torcedores aqui, vários componentes nossos que falam de política... outros já são mais do lado de Deus, e assim vai. Uns já são do diabo, falam que são, Deus que me perdoe. Tem vários tipos de componentes aqui, aqui tem de tudo.

Eu aprendi muita coisa, porque a torcida é uma amostra da sociedade. Tem pessoas ricas, com dinheiro, que são amamãezados, né? Ou aqueles que têm dinheiro e são revoltados, tem os sem grana que de repente fazem de tudo para se dar bem, e tem aqueles que são super honestos...
 
Tem um mundo de seres humanos ali: assaltante, drogado, pessoas de bem, trabalhador. Tem de tudo. Mescla tudo dentro de um meio ali e esse meio é o quê? O fanatismo pelo time, que une essas pessoas num mesmo pensamento, ideal (Teixeira, 2003).

Ser da Jovem implica assumir compromissos, acatando regras e formas de ação típicas desses agrupamentos: ir aos jogos, viajar, protestar, incentivar sempre, a partir de condutas orientadas pelas lideranças. Formas de se comportar e de se expressar estão no centro da experiência estético-corporal. Torcer é uma ação ritualizada. Gesticulando, gritando, batendo palma, mantendo-se de pé, desafiando com seus cânticos o rival, desfraldando e agitando bandeiras, numa sincronia e cadência marcadas pelo ritmo da bateria, os torcedores organizados tornam visível a sua forma de conceber e vivenciar o futebol. O estádio tem sido o palco de criação, atuação e experimentação para os personagens-torcedores encenarem sua paixão pelo clube, demonstrando relações de afeto e/ou hostilidade. Ser aceito e reconhecido como membro significa “vestir a camisa”, fazer parte de uma tradição, encontrar iguais, pessoas que se sentem do mesmo modo:

Eu era um torcedor solitário. Aí quando eu entrei para a Jovem eu senti que tinham muitos malucos iguais a mim, que eu não era o único (...) nego sacrificava trabalho, outros a vida. Por exemplo, a mulher que não gosta muito de futebol não vai assimilar você falar assim: “amor, vou viajar e voltar depois de uma semana” (Teixeira, 2003, p.120).

É através desse engajamento físico e emocional que a paixão pelo clube se converte pouco a pouco na idolatria da própria torcida. Tal sentimento é traduzido como dedicação, doação, sacrifício. Para alguns, a torcida é como uma religião, “pior que drogas”, um “vício”. Uma “irmandade” cujo afastamento provoca sofrimento e depressão:

É o seguinte, quando você entra na torcida é porque você gosta de futebol... A partir do momento que você entra na torcida, você já começa a gostar mais da torcida do que do próprio futebol.
A gente se deixa levar de uma tal maneira que quando você vê, tu tá só vivendo para aquilo, só para a Jovem (Teixeira, 2003, p.120).


Traduzida na linguagem do afeto, a torcida aparece como um valor fundamental na constituição da identidade desses indivíduos, norteando ações e representações. Funciona como um fio condutor que organiza as outras esferas da vida social.

As emoções, sendo produto de um conjunto de representações e relações sociais, relacionam-se aqui a noções de risco e segurança, (auto)controle/ descontrole. Desse modo, ao contrário de universais, naturais e internos, os sentimentos não são refratários à ação da sociedade e da cultura (Rezende; Coelho, 2010). Trata-se de expressões coletivas que o indivíduo aprende a experimentar a partir do repertório cultural dos grupos de referência (Mauss, 1979), das comunidades de sentimento nas quais se está engajado. É nesta perspectiva que a paixão pelo clube de futebol e pela torcida torna-se, muitas vezes, o lado subterrâneo da experiência torcedora. A disposição para a luta na defesa do agrupamento apoia-se em certos padrões de masculinidade, difundidos neste meio, que valorizam a honra, a coragem, a virilidade como qualidades fundamentais. Quando a adesão é encarada de forma incondicional, a paixão pode se tornar duplamente perigosa seja porque abre-se a possibilidade de levar o torcedor a romper com relacionamentos familiares, amorosos e profissionais, ou ainda ao confronto físico, cujas consequências não podem ser previstas. Historicamente, as intolerâncias subordinam-se a uma rede de alianças que se estabelece entre torcidas amigas e inimigas. Às inimigas reserva-se a hostilidade e às amigas, apoio e solidariedade. No entanto, tensões também ocorrem entre torcidas de um mesmo clube e, às vezes, no interior da mesma torcida, como tem sido observado mais recentemente em virtude de disputas financeiras e territoriais por prestígio e/ou poder. 

Entre o final dos anos de 1980 e início da década de 1990, uma série de embates entre integrantes de torcidas rivais e, destes, com as forças policiais, colocaram estes grupos na mira dos meios de comunicação e das autoridades. O caso mais emblemático foi a chamada “Batalha campal”, confronto envolvendo integrantes da torcida Mancha Verde, do Palmeiras, e da Tricolor Independente, do São Paulo, ocorrida no gramado do estádio do Pacaembu, em São Paulo, em 1995. A partir de então, observou-se um crescente processo de criminalização do torcer. Consideradas um problema social, a punição e a repressão tornaram-se as estratégias privilegiadas pelo poder público para o enfrentamento da questão.

 

A nova face do associativismo juvenil: as torcidas organizadas na luta por direitos

Inúmeros são os desafios vividos por estas associações na atualidade. As mudanças arquitetônicas nas praças esportivas de todo o país, a legislação repressora, tendo em vista a realização dos megaeventos no Brasil (Copa 2014, Olimpíadas em 2016), e a criminalização das torcidas estimularam a criação de coalizões mais amplas, de âmbito estadual e nacional, que revelam uma nova face do associativismo torcedor.

A reforma de antigos estádios e a construção de novos, seguindo o modelo das arenas europeias, limitou a atuação das torcidas organizadas, culturalmente habituadas a assistir ao jogo em pé para encenar coreografias e produzir suas ritualizações, pois “os assentos tornam-se um obstáculo, e até, um problema de segurança” (Curi et al, 2008, p.36). Tais mudanças vêm exigindo adaptações no estilo de torcer, reinvenções, em suma, novas aprendizagens e habilidades (Ingold, 2010).

Espaços vigiados e monitorados pelas câmeras, as arenas representam o processo de elitização em curso, com redução da capacidade e elevados preços dos ingressos, que excluem as classes populares do espetáculo futebolístico e afetam práticas culturais inventadas e consagradas nas arquibancadas.

No tocante à legislação, a Lei 12.299 promoveu modificações no Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei 10.671/03), inserindo dispositivos que responsabilizam as torcidas organizadas pelos danos causados por seus membros dentro e fora dos estádios. Assim, a proibição de comparecer a eventos esportivos é aplicada tanto ao coletivo (torcida organizada) quanto aos associados. O Estatuto do Torcedor privilegia a presença do torcedor “espectador”, ou seja, aquele que se relaciona com o jogo como um produto a ser consumido mediante pagamento, sem participar na sua construção. Isto se deve ao fato de as torcidas organizadas serem vistas como um problema cuja solução passa invariavelmente por medidas repressivas. Tal concepção está alicerçada sobre a suposição de que tais grupos são patológicos e perigosos (Douglas, 1991). Ao essencializar e reduzir a ocorrência de episódios de violência à existência das associações, as interpretações disseminadas perdem de vista que elas dão visibilidade a problemas sociais que precisam ser mais bem analisados.

Para enfrentar este cenário adverso, as torcidas organizadas passaram a atuar politicamente na defesa de seus direitos, promovendo ações coletivas de resistência e negociação. Assim, em 2008, as lideranças das Torcidas Jovens cariocas iniciaram uma série de diálogos que resultaram na criação da Federação das Torcidas Organizadas de Futebol (FTORJ), visando a dar trégua às suas desavenças e interromper o histórico ciclo de vinganças que têm pautado suas relações, para construir uma agenda comum de reivindicações (Hollanda; Medeiros; Teixeira, 2015). O trabalho realizado pela FTORJ, buscando sensibilizar as autoridades, meios de comunicação e lideranças de torcidas de outros estados do país, contribuiu para o surgimento da Associação Nacional de Torcidas Organizadas (ANATORG), em 2014. Ao invés de um inexorável processo que levará à extinção das torcidas organizadas, talvez estas estejam diante de uma oportunidade de reinventar, de se constituir em uma importante força de resistência ao processo de mercantilização do futebol. Está em jogo a capacidade de abstraírem rivalidades e consolidarem os pactos firmados, para serem reconhecidos como atores sociais legítimos na elaboração das políticas públicas de prevenção da violência que lhes são destinadas.


Considerações finais

Este artigo pretendeu demonstrar que as Torcidas Jovens constituem espaços estratégicos de socialização para inúmeros jovens. Neles, aprendem técnicas corporais, experimentam sentimentos (alegria/ tristeza; euforia/raiva, medo/coragem) e aceitam princípios coletivos de convivência e padrões de comportamento. Nas arquibancadas, produzem e transmitem saberes e símbolos, ritos para demonstrar a paixão clube-torcida (Teixeira, 2003). O compartilhamento consciente de experiências e a intencionalidade da participação favorecem a constituição de laços de pertencimento.

Vendo, ouvindo e atuando, inaugura-se um processo de descobertas, de engajamento físico e emocional, através do qual aquela identidade coletiva vai-se fortalecendo. Segundo Marcel Mauss (1974, p.198) todos os fenômenos sociais, são também e, ao mesmo tempo, fisiológicos e psicológicos “no fundo, corpo, alma, sociedade, tudo se mistura”. Desse ponto de vista, as torcidas podem ser consideradas, na linguagem maussiana, fenômenos totais “em que não apenas o grupo toma parte, como ainda, pelo grupo, todas as personalidades, todos os indivíduos na sua integridade moral, social, mental e, sobretudo, corporal ou material” (p.198).

Por outro lado, os participantes das Torcidas Jovens se veem aprisionados em uma identidade deteriorada. Acusados de “vândalos”, desviantes”, em decorrência dos confrontos violentos que têm pautado a sua história, procuram se desvencilhar do duplo estigma: “ser jovem e da Jovem”. A tarefa não é fácil. A representação social dominante, disseminada pelos meios de comunicação, reafirma seu caráter perigoso, emocionalmente instável e problemático (encontrando eco em algumas ideias correntes sobre a juventude como fase da vida) e condena a existência desses agrupamentos. Tal interpretação perde de vista que se trata de importantes espaços de socialização e pertencimento para inúmeros jovens. Por outro lado, a repressão como alternativa isolada para o enfrentamento da questão da violência por parte do poder público não tem sido capaz de dar uma resposta adequada ao problema. Para fazer frente a esse cenário adverso, e temendo a possibilidade de extinção dos agrupamentos, a Associação Nacional das Torcidas Organizadas vem realizando encontros, incentivando os integrantes a darem trégua em suas rivalidades para lutar pelo reconhecimento dessa identidade coletiva e pelo direito de existirem sem serem discriminados.

 

 

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Data de recebimento: 10/10/2016
Data de aceite: 30/11/2016



I Doutora em Antropologia (PPGSA-UFRJ). Pós-Doutora em Antropologia Social (Museu Nacional – UFRJ). Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil. Autora do livro “Os perigos da paixão. Visitando jovens torcidas cariocas” (Annablume, 2003), resultado da dissertação de mestrado agraciada, em 1999, com o Prêmio Carioca de Monografia (Secretaria Municipal das Culturas do Rio de Janeiro) e  do livro “Krig-ha Bandolo! Cuidado Aí Vem Raul Seixas” (7 letras, 2008), tese de doutorado que recebeu dotação da FAPERJ. E-mail: rosanat@.id.uff.br

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