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Desidades

 ISSN 2318-9282

     

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

A difusão do diagnóstico de transtorno bipolar infantil: controvérsias e problemas atuais

 

La difusión del diagnóstico de trastorno bipolar infantil: controversias y problemas actuales

   

 

Thais KleinI e Rossano Cabral LimaII

I Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil.

II Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente artigo visa, a partir de uma perspectiva normativista, a investigar a construção do diagnóstico de Transtorno Bipolar Infantil. A discussão em torno deste obriga a articular dois objetos de estudo: a infância e a psiquiatria. Traça-se um breve histórico da noção de infância, buscando caracterizá-la no contexto de surgimento do transtorno bipolar infantil. Paralelamente, acompanhamos o mesmo percurso no que concerne à psiquiatria infantil. O caso do Transtorno Bipolar Infantil evidencia um movimento mais amplo da psiquiatria infantil e da infância, uma vez que se trata de uma categoria diagnóstica destinada à idade adulta que passou a ser considerada uma afecção crônica. Por fim, este trabalho não tem como objetivo questionar a validade do Transtorno Bipolar Infantil, mas mapear e localizar o surgimento deste diagnóstico em um contexto sociocultural mais amplo, levantando as controvérsias e questionamentos suscitados por ele.

Palavras-chave: bipolaridade, psiquiatria, infância, medicalização, transtornos afetivos.


RESUMEN

El presente artículo tiene como objetivo, desde una perspectiva normativa, investigar la construcción del diagnóstico del trastorno bipolar infantil. La discusión en torno a éste obliga a articular dos objetos de estudio: la infancia y la psiquiatría. Se traza una breve histórica de la noción de infancia, buscando caracterizarla en el contexto del surgimiento del trastorno bipolar infantil. Paralelamente, acompañamos el mismo recorrido en lo que concierne a la psiquiatría infantil. El caso del trastorno bipolar infantil evidencia un movimiento más amplio de la psiquiatría infantil y de la infancia, ya que se trata de una categoría diagnóstica destinada a la edad adulta que pasó a ser considerada una afección crónica. Por último, este trabajo no tiene como objetivo cuestionar la validez del trastorno bipolar infantil, sino mapear y localizar el surgimiento de este diagnóstico en un contexto sociocultural más amplio, levantando las controversias y cuestionamientos suscitados por él.

Palabras-clave: bipolaridad, psiquiatría, infancia, medicamento, trastornos afectivos.


 

 

Nas últimas três décadas, o transtorno bipolar infantil, embora não sem controvérsias, se tornou alvo de discussões e passou a ser um diagnóstico amplamente utilizado. De acordo com estudo realizado por Blader e Carlson (2007), enquanto, em 1996, poucas crianças eram consideradas bipolares nos EUA, em 2004 este transtorno se tornou o mais frequente na infância. Logo, uma afecção, que até meados dos anos 80 não era discutida no âmbito da psiquiatria infantil, alçou grande popularidade nos últimos anos. Essa patologia, no entanto, não foi a única que ganhou visibilidade expressiva no campo da infância atualmente. O número de crianças que podem ser categorizadas como portadoras de uma doença mental dobrou entre 1970 e 1990, segundo dados da British Medical Association (Timimi, 2010). Frances (2013), coordenador da força tarefa do DSM-IV1, indica que este manual diagnóstico provocou ao menos três epidemias não previstas: o transtorno bipolar, o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade e o autismo. Enquanto os dois últimos têm como alvo principal a infância, o transtorno bipolar, conforme veremos, embora não originalmente relacionado a esta faixa etária, se expandiu para idades cada vez menores.

Diante deste quadro, o objetivo desta exposição é investigar a expansão do diagnóstico de transtorno bipolar em direção à infância, procurando delinear o contexto mais amplo, tanto da infância, quanto da psiquiatria, em que esta patologia passou a ganhar visibilidade.

De saída, faz-se importante especificar a referência epistêmica deste artigo. Diferente de uma perspectiva naturalista — também chamada de empirista, objetivista ou positivista — que considera normal e patológico designados por um fundamento racional valorativamente neutro (Gaudenzi, 2014), calcamo-nos na visão normativista sobre o normal e o patológico.

Sob o viés naturalista - ao defender uma anterioridade lógica do fato sobre o valor - a “descoberta” recente do transtorno bipolar infantil seria entendida como consequência de uma maior precisão, um aprimoramento na detecção de certas patologias. Do ponto de vista de uma perspectiva normativista, a discussão em torno do transtorno bipolar infantil nos obriga a articular dois objetos de estudo: a infância e a psiquiatria. Isto porque, dessa perspectiva, o contexto epistemológico é indissociável de um contexto mais amplo, histórico-cultural.

A referência epistêmica para este escrito é justamente o normativismo, que tem como precursor Canguilhem (1995)2. Deste ponto de vista, a ascensão do transtorno bipolar do humor infantil deve ser examinada em consonância com um contexto histórico-social relacionado aos valores que designam aquilo que se concebe como norma e desvio na infância.

Sendo assim, esse diagnóstico teve sua ascensão no contexto de uma determinada maneira de fazer psiquiatria infantil e de se entender a infância. Não se trata somente de uma relação de causa e consequência, mas de uma via de mão dupla: enquanto a psiquiatria se vincula a certa noção de infância, ela também a cria de maneira performativa. Iniciemos investigando as mutações sofridas pela noção de infância, enfatizando o estatuto desta nos dias de hoje.

As diferentes infâncias

A infância, entendida como uma entidade separada do adulto é, de acordo com Ariés (1987), uma invenção moderna. Como nos aponta o autor, até a Idade Média, por exemplo, não havia o sentimento de infância, ou seja, não havia particularidade infantil: as práticas de infanticídio para controle natal, bem como de abandono infantil, eram comuns nesse período. É importante ressaltar que a ideia de uma descoberta da infância é criticada por alguns autores (Wells, 2011; Elias, 2012). As críticas se colocam principalmente na direção de apontar a valorização excessiva de Ariés no que concerne a uma “ausência da ideia de infância” na Idade Média. Todavia, há certa concordância de que, antes do século XVII, a visibilidade e idiossincrasias atribuídas a este período da vida eram menores. Nesse sentido, muito embora não seja possível assegurar uma “descoberta da infância”, pode-se dizer de um processo no qual a criança ganha diferentes papéis na sociedade.

Na modernidade, a criança alça o papel de uma entidade que deve ser cultivada para se tornar um adulto, fato correlato ao nascimento da escola como meio de educação. Ela deixa de estar – tanto fisicamente quanto conceitualmente – misturada aos adultos, sendo direcionada para a escola que funciona como uma espécie de quarentena para que, posteriormente, possa participar do mundo social adulto. Desta forma, a criança torna-se algo que se deve cultivar e educar e não simplesmente modelar à força. Para usar os termos de Rose (1990), torna-se um “cidadão em potencial”. Nota-se que a associação do infantil a um traço a ser abolido para que se torne adulto remete a uma lógica que privilegia o desenvolvimento. Lógica esta que, conforme veremos adiante, é importante para a psiquiatria do século XX. A infância, portanto, tornou-se alvo de cuidado e olhar atencioso, principalmente no que diz respeito às possibilidades de desvio do desenvolvimento normal, sendo o papel da psiquiatria mapeá-los para tratá-los. Este processo atinge seu ápice a partir da primeira metade do século XX, quando a especificidade da infância é estudada pela psicanálise, psicologia, pedagogia e psiquiatria.

Diante desse quadro, configura-se o cenário que Nadesan (2010) denomina de “infância em risco” (p. 3): as crianças, sobretudo das classes mais altas da sociedade, passam a ser vistas como em risco no campo educacional, cultural e ambiental, requerendo cuidado parental e de instituições apropriadas desde a primeira infância. Com o crescente alarde em torno da vulnerabilidade desta faixa etária, uma série de profissionais se estabelece como detentora de saber sobre as crianças.

Este cenário foi se reconfigurando significativamente ao longo da segunda metade do século XX e principalmente no século XXI, o que coincide com uma reconfiguração do papel social da infância. A generalização de uma economia de mercado calcada principalmente no neoliberalismo, de acordo com os autores, obrigou a repensar a questão do risco na infância. Este novo cenário político-econômico influenciou de maneira clara a forma de se governar a infância: a política de proteção tornou-se política de direitos.  A ênfase recai na importância de reconhecer a agência da criança na constituição do seu mundo social e cultural (Wells, 2011). Ou seja, a criança, além de ser protegida, também passa a ser entendida como um ator social de direitos.

Esta reconfiguração também pode ser entrevista por meio dos estudos sociais em torno da criança. Segundo Prout e James (1997), a história dos estudos sociais da criança é marcada pelo silêncio em relação à criança. Os estudos baseados na teoria da socialização de Emile Durkheim, que abordavam a infância como apenas um campo sobre o qual os adultos praticam uma ação de transmissão cultural, deram lugar a perspectivas de assimilação cultural, ou de interações sociais com significado. Ainda que não haja um acordo dos destinos da sociologia da infância, há ao menos um consenso: a “nova” sociologia da infância visa, grosso modo, a dar voz à infância, evitando pensá-la estritamente em relação à família e negativamente, em comparação aos adultos.

A nova matriz teórica dos estudos sociais da infância ajudou o abandono da ideia de um modelo naturalista de socialização e desencadeou críticas em relação à noção de desenvolvimento universal e linear: ao invés de conceber a criança como um tipo universal, esta foi pensada como um intérprete competente do mundo social. Na mesma direção, Castro (2013) afirma que a lógica desenvolvimentista, presente tanto na psiquiatria quanto na sociologia da infância no século XX, foi deslocada, dando lugar para as noções de agência e competência.  Enquanto a noção desenvolvimentista buscava enfatizar a diferença entre o adulto e a criança, a nova sociologia da infância “tenta minimizar a diferença para fazer de adultos e crianças igualmente competentes na sua aquiescência ao sistema” (Castro, 2013, p. 20). De uma perspectiva normativista, se pensarmos o normal e o patológico como indissociáveis de um contexto mais amplo, essas reconfigurações da noção de infância são paralelas a mudanças no campo da psiquiatria infantil. Seguiremos, então, com uma breve incursão na história desta especialidade (ou subespecialidade) médica.

 

A psiquiatria infantil da idiotia ao transtorno bipolar

Tendo em vista as considerações levantadas anteriormente sobre as mutações na maneira de se conceber a infância, faz-se importante pensar na forma em que as descrições clínicas interagiram com a noção de criança em cada período da história.

Desta perspectiva, assim como a infância não tinha um lugar de destaque na sociedade antes da modernidade, a psiquiatria infantil como especialidade ou subespecialidade médica se consolidou tardiamente (Bercherie, 2001). Uma psiquiatria da infância, que levasse em consideração as idiossincrasias desta faixa etária na formulação de suas noções, surgiu somente no século XX, em conjunção com uma maior visibilidade que a criança alçou neste período. Com isto não queremos dizer que a criança não fazia parte da psiquiatria antes do século XX; pelo contrário, conforme aponta Foucault (2001), o par infância/infantilização das condutas foi essencial para a formação da psiquiatria moderna. Este protagonismo se deu principalmente pela questão da idiotia, uma vez que tal patologia remete à infância, mas diz respeito, sobretudo, a um ponto de parada no desenvolvimento infantil, correlato, portanto, à noção de infância como um momento que deve ceder lugar progressivamente à fase adulta. No contexto de constituição da psiquiatria moderna, a criança teve um papel importante, mas apenas enquanto uma preparação para o adulto, ou seja, sem levar em conta as idiossincrasias desta fase.

Um segundo estágio da constituição do campo da psiquiatria infantil trata do período que vai da segunda metade do século XIX até o primeiro terço do século XX. Este intervalo é marcado pela criação de uma clínica psiquiátrica da criança, que consiste basicamente na transposição da clínica e da nosologia elaboradas em relação aos adultos durante o mesmo período. Neste contexto, são feitos os primeiros debates em torno das faculdades mentais infantis visando destacar aquelas passíveis de desvio no desenvolvimento.

A ideia de uma patologia infantil passa a não mais se restringir, nesse período, à idiotia. Inúmeros trabalhos publicados no final do século XIX são marcados pela tentativa de encontrar na criança, ao lado da idiotia, um apanhado de síndromes mentais presentes no adulto. É somente a partir da terceira década do século XX, de acordo com Bercherie (2001), que nasce a clínica “pedo-psiquiátrica”, marcada pela interação entre a psiquiatria com crianças e a pediatria. Nesse período, muitos estudos com crianças passaram a ser desenvolvidos, configurando um panorama bastante distinto dos séculos anteriores. Observa-se um amplo interesse em relação à infância, levando o século XX a ser chamado de o século da infância, por Ellen Key, em 1909 (Kanner, 1935/1971). Diferente de buscar na criança certas patologias relacionadas ao adulto, o enfoque passou a ser as vicissitudes da infância. No entanto, trata-se ainda de um interesse biográfico, a infância segue sendo uma espécie de “antologia das reminiscências” (Nadesan, 2010, p. 31).

Para Bercherie (2001), foi por meio do interesse e da influência da psicanálise que finalmente se consolida uma psiquiatria voltada para a infância, configurando, a partir de 1930, o terceiro momento na formação da psiquiatria infantil como uma especialidade ou subespecialidade médica. A estruturação de uma clínica psiquiátrica da infância, no entanto, não é tão evidente neste período, uma vez que esta permanece atrelada intimamente à psicanálise. No entanto, observa-se outro movimento dentro da psiquiatria infantil, a saber: o estímulo a pesquisas em psicofarmacologia devido a avanços do uso de fármacos para epilepsia.  Pode-se dizer que a partir da metade do século XX, nota-se o início da separação da psicanálise infantil e da psiquiatria, que será consagrada somente com o DSM-III, em 1980, e que se relaciona com profundas transformações internas da própria psiquiatria.

Os dois primeiros DSM, no entanto, são ainda marcados pela psiquiatria dinâmica. As patologias infantis neles presentes são apoiadas na ideia de transitoriedade e plasticidade, contidas, em sua maioria, na seção “Transient situational disturbances”. Em sua descrição, afirma-se que a seção é reservada para reações que são mais ou menos transitórias e que consistem em sintomas agudos sem aparente distúrbio de personalidade subjacente. O cenário é parecido no DSM-I (1952) e no DSM-II (1968); neste ultimo, observa-se que, embora a noção de reação tenha desaparecido do restante do manual, nesta seção ela foi preservada.

O DSM-III (1980), conforme indicado anteriormente, marca uma cisão e um novo paradigma da psiquiatria americana. Muito embora não caiba no escopo deste artigo um maior aprofundamento nas transformações engendradas por este3, faz-se importante destacar que, no que concerne às categorias infantis, o manual possui quatro vezes mais categorias diagnósticas do que a segunda versão (Silk et al., 2000). Estas estão em sua maioria no novo capítulo “Disorders Usually First Evident in Infancy, Childhood and Adolecence”, que pretende abarcar patologias iniciadas na infância. Observa-se que há diferença semântica no nome desta categoria para aquela destinada à infância no DSM-II. Enquanto na segunda versão, sugere-se que as patologias possuem algo específico da infância calcado no seu caráter de transitoriedade, na terceira versão indica-se que estas são amiúde diagnosticadas na criança, mas que há grande probabilidade de se estenderem na vida adulta. Esta mudança, a nosso ver, foi um passo significativo para que, em meados do século XX e início do XXI, a discussão em torno do transtorno bipolar infantil fosse empreendida. Isto porque, a partir do DSM-III, observa-se a substituição da ideia de transitoriedade dos transtornos infantis para a de continuidade entre as patologias da infância e dos adultos. Essa perspectiva se mantém no DSM-IV, chegando ao seu ápice no DSM-5.

Trata-se, por um lado, do aumento das categorias diagnósticas destinadas à infância e, por outro, mas também na mesma direção, do fim da especialização dos transtornos infantis. Este panorama é consolidado através do fim da seção direcionada exclusivamente à infância no DSM-5. Esta seção, que desde a segunda versão do manual corresponde ao primeiro capítulo, desaparece. Na quinta edição, a primeira parte é denominada “Neurodevelopmental disorders” (Transtornos do neurodesenvolvimento). Neste capítulo está alocada grande parte dos transtornos antes pertencentes à seção extinta. Com o fim de uma seção específica para a infância, uma série de patologias antes restritas aos adultos é atribuída também à infância, bem como certos transtornos, antes restritos à infância, são estendidos para os adultos, como o TDA/H4.

A noção de neurodesenvolvimento remete à ideia de que as patologias estariam relacionadas a uma disfunção cerebral, ou seja, a um desvio do desenvolvimento neurológico normal, que ganha um caráter crônico. Enquanto o desenvolvimento passa a ser discutido apenas em sua dimensão cerebral, permite-se que na infância sejam diagnosticadas condições mais estáveis e duradouras.

Tal contexto é indissociável do papel que a criança galgou nos últimos anos sendo vista, conforme comentado anteriormente, como ator social com certa autonomia. É justamente neste contexto que a discussão em torno do transtorno bipolar infantil emerge.

O transtorno bipolar infantil: controvérsias e problemas atuais

O caso do Transtorno Bipolar infantil é paradigmático do contexto da psiquiatria infantil contemporânea, investigada no tópico anterior e indissociável das mutações que a noção de infância sofreu nos últimos anos. Em relação à psiquiatria infantil, observa-se que a bipolaridade marca uma linha de continuidade entre a psicopatologia infantil e a do adulto, de uma perspectiva que difere da noção desenvolvimentista tradicional.

Até meados dos anos 90, no entanto, não se falava da possibilidade de encontrar esse quadro na criança. Segundo Withaker (2010), entre os anos de 1995 e 2003, observa-se um aumento de quarenta vezes no número de crianças diagnosticadas com este transtorno nos EUA. Healy (2008), por sua vez, indica que este aumento significativo é bastante surpreendente quando olhado de uma perspectiva histórica. Muito embora o Transtorno Bipolar infantil nunca tenha sido incluído como uma categoria diagnóstica autônoma no DSM, os diagnósticos feitos em crianças em sua maioria são rotulados como transtorno bipolar não especificado (NOS)5.

Cabe ressaltar que grande parte dos diagnósticos feitos nos dias de hoje são realizados através de um questionário semelhante ao aplicável em adultos para mensurar as oscilações de humor. Este é distribuído amplamente por companhias e organizações de pacientes, como a Juvenile Bipolar Research Foundation. O questionário, que contém sessenta e cinco itens, é usualmente respondido pelos pais, sendo por meio dele que muitas crianças passam a iniciar o tratamento.

A popularização deste diagnóstico é também sustentada por hipóteses discutidas em centros de pesquisas renomados nos EUA. Em 1996, Bárbara Geller esboçou a primeira lista de critérios para o diagnóstico do transtorno bipolar do humor no âmbito de estudos do Instituto Nacional de Saúde Mental norte americano – National Institute of Mental Health (NIMH). O estudo apontava para a necessidade de aprofundamento teórico sobre esta afecção, uma vez que muitas das crianças que apresentavam uma condição que poderia se encaixar nesses critérios teriam sido diagnosticadas com TDA/H ou esquizofrenia infantil – quando os sintomas se apresentam de maneira mais severa. A partir deste estudo, desenvolveu-se, em 2001, uma mesa redonda no encontro da NIMH sobre transtorno bipolar pré-puberal. De acordo com Olfman (2007), desde então, qualquer publicação, seja ela de caráter crítico, ou até mesmo com teor cético, ajudou a inflamar a discussão em torno deste diagnóstico.

Naquele momento, as questões principais quanto à bipolaridade infantil giravam em torno da diferença entre os sintomas manifestados no adulto e aqueles referentes à infância. Ao contrário de sua sintomatologia no adulto, a bipolaridade infantil se manifestaria através de oscilações de humor que podem ocorrer ao longo do dia. A bipolaridade infantil elimina a noção de um tempo mínimo para os episódios de mania: os chamados de ciclos ultrarrápidos que a caracterizam podem oscilar entre alguns minutos ou dias. Ademais, sugere-se que o curso da doença tende a ser crônico e contínuo, diferente da versão adulta, caracterizada por episódios agudos e esporádicos.

No entanto, encontramos controvérsias dentro do próprio campo da psiquiatria infantil no que concerne aos sintomas que caracterizariam a mania na infância. Geller e Luby (1997) indicam que a mania na infância se manifesta por euforia, grandiosidade, falta de sono, hipersexualidade e outros sintomas associados à definição clássica de mania. Já para outro psiquiatra – Joseph Biederman – que lidera pesquisas pioneiras sobre o transtorno bipolar infantil, a mania se apresenta de maneira diferente na infância. Biederman e seus colaboradores (1996) afirmam que os episódios de mania nas crianças apresentam uma sintomatologia distinta daquela descrita no contexto adulto, mas, diferente de Geller, elegem outros sintomas como indicadores desta condição. Segundo eles, a mania na infância é caracterizada por “irritabilidade” e “afetividade tempestuosa” (Biederman et al., 1996, p. 998).  Os autores, todavia, concordam com Geller e Luby (1997) que um grande número de crianças diagnosticadas com TDA/H estaria sendo vítima de um equívoco, uma vez que possivelmente seria portadora do transtorno bipolar do humor.

Estes dados, no entanto, não foram recebidos sem críticas. Healy (2008), por exemplo, aponta que o estudo apresentado por Biederman não se baseia em entrevistas com as crianças, não se calca em critérios específicos de mania pré-puberal e utiliza instrumentos feitos para estudar a epidemiologia do TDA/H. Todavia, afirma que a mensagem foi passada, ecoando no meio acadêmico e na cultura como um todo: casos de transtorno bipolar do humor não estão sendo diagnosticados e muitas vezes são confundidos com TDA/H. De acordo com o autor, tendo em vista que muitas crianças diagnosticadas com TDA/H não respondem bem ao uso de estimulantes, o estudo de Biederman surgiu como um bom pretexto para os psiquiatras abraçarem um novo transtorno e outros medicamentos.

Uma série de pesquisas foi realizada, principalmente na direção de teste de tratamentos medicamentosos. Este tipo de pesquisa se tornou bastante popular no contexto americano, na medida em que é mais atrativo para as indústrias farmacêuticas financiar acadêmicos para desenvolverem pesquisas clínicas com medicamentos do que submeter seus dados à aprovação da Food and Drug Administration (FDA), devido a restrições mais severas que este órgão impõe. Os artigos escritos por acadêmicos seriam suficientes para impulsionar o uso de medicamentos na infância. Isto porque, a possibilidade de uso off-label6 permite que os mesmos medicamentos utilizados para tratar o transtorno bipolar na fase adulta fossem receitados para crianças e adolescentes. O fato é que, a partir de então, uma série de drogas, em sua maioria anticonvulsivos e antipsicóticos, como a olanzapina e o risperidona, passou a ser usada em larga escala para tratar crianças nos EUA. Nota-se um grande interesse das indústrias farmacêuticas na direção da difusão deste diagnóstico e do seu tratamento medicamentoso, uma vez que se trata de um diagnóstico de um transtorno mental crônico, que se estenderia para vida toda.

Diante desses dados, Withaker (2010) levanta a hipótese de que a epidemia de bipolaridade na infância, assim como a do adulto, estaria ligada a um efeito iatrogênico de certos medicamentos. Baseado no fato de que o TDA/H e a prescrição de estimulantes para crianças se difundiram bastante a partir dos anos 80, ele afirma que tanto o uso de antidepressivos quanto de estimulantes é capaz de provocar episódios parecidos com aqueles diagnosticados como mania na infância. De acordo com o autor, “toda criança medicada com estimulantes se torna um pouco bipolar” (Withaker, 2010, p. 238).

Embora este caso seja paradigmático do que ocorre na psiquiatria infantil contemporânea, é importante ressaltar que, de uma maneira geral, o transtorno bipolar do humor infantil ainda é um fenômeno eminentemente norte-americano. No entanto, é impossível negar a influência que a psiquiatria norte americana exerce sobre o contexto brasileiro. Não demorou muito tempo para que este transtorno também passasse a ser discutido no nosso país. Algumas publicações enfocando a temática vêm sendo feitas no Brasil. Na base “LILACS”, localizam-se 19 artigos brasileiros através dos descritores “Transtorno bipolar” e “infância”. Já na base “Scielo”, foram detectados 12 artigos com os mesmos termos em inglês e 15 em português7.  Além disso, uma série de livros abordando o transtorno foi lançada, em sua maioria organizada por um grupo de São Paulo, liderado pela psiquiatra Lee Fu-I, e do Rio Grande do Sul, sob a direção de Tramontina e Rodhe. Estudos epidemiológicos, no entanto, são mais raros. Destaca-se uma pesquisa realizada por Tramontina et al. (2003), no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), entre 1998 e 2001, que, além de apresentar a taxa de 7,2% de prevalência do transtorno, visa descrever a sintomatologia e analisar a prevalência da bipolaridade infantil no Brasil. Os autores indicam que “em uma amostra clínica de pacientes externos de uma unidade psicofarmacológica pediátrica no Brasil, encontramos uma alta prevalência do transtorno bipolar juvenil” (Tramontina et al., 2003, p. 1046). Além disso, conclui-se que os jovens diagnosticados com bipolaridade apresentaram irritabilidade ou irritabilidade combinada com elação do humor e um alto índice de comorbidade com o TDA/H. Nesse sentido, o padrão dos sintomas maníacos encontrados na amostra pesquisada é bastante similar ao descrito pelos pesquisadores norte-americanos. Nota-se, portanto, que este transtorno não surge no Brasil como um fenômeno próprio, mas importado da psicopatologia norte-americana, bem como importamos com bastante frequência outros diagnósticos supostamente ‘universais’ presentes no DSM.

Considerações finais

O transtorno bipolar infantil diz respeito a um fenômeno relativamente recente (últimas três décadas), com raízes eminentemente norte-americanas – muito embora, tenha sido importado como categoria diagnóstica pela psiquiatria em outros países. A discussão em torno deste diagnóstico não se deu sem controvérsias, sendo também articulada a uma série de fatores distintos, como os interesses das indústrias farmacêuticas, dos meios de divulgação midiáticos e um possível efeito iatrogênico causado pelo uso extensivo de psicotrópicos. Ademais, a discussão em torno deste transtorno está intrinsecamente articulada a uma reconfiguração da noção de infância, bem como a certa forma de se fazer psiquiatria infantil.

O caso do transtorno bipolar infantil, nesse sentido, evidencia um movimento mais amplo da psiquiatria infantil, uma vez que se trata de uma categoria diagnóstica antes destinada à idade adulta e que passou a ser considerada uma afecção crônica. Este movimento consiste no apagamento das fronteiras entre as patologias relativas à infância e aquelas direcionadas aos adultos e um consequente alargamento das categorias diagnósticas nesta faixa etária.

Este trabalho teve como objetivo mapear e localizar o surgimento da bipolaridade infantil em um contexto sociocultural mais amplo. Trata-se de um transtorno intimamente atrelado a um novo lugar que a criança ganha na sociedade. No entanto, esta nova perspectiva, que concebe a criança como agente, mas também como passível de portar transtornos psiquiátricos crônicos, exige que levantemos algumas questões no âmbito da psiquiatria infantil: não seria importante investigar outros interesses que se interpõem à prática e à teoria psiquiátrica, que se distanciam propriamente da escuta daqueles que sofrem? Nesta mesma direção, não seria necessário levar mais em consideração o discurso das crianças sobre o seu próprio sofrimento? O que este escrito pretendeu foi justamente apresentar um panorama mais amplo da noção de norma e desvio na infância contemporânea, com enfoque no caso do transtorno bipolar infantil, pois é sempre importante lembrar, conforme aponta Canguilhem, que é, sobretudo, a partir daquele que sofre e nos conta sobre seu sofrimento que se pode distinguir o que é normal e patológico.

 

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Data de recebimento: 16/02/2017
Data de aceite: 04/06/2017

1 DSM é a sigla inglesa usada para designar o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) publicado pelo American Psychiatry Association (APA) pela primeira vez em 1952. Suas cinco versões (a última publicada em 2013) foram pouco a pouco se transformando em uma espécie de bíblia da psiquiatria.

2 Canguilhem procurou afirmar a contribuição da análise filosófica no que concerne a conceitos médicos principalmente no âmbito do normal e do patológico. Décadas depois da publicação do trabalho de Canguilhem, uma literatura filosófica, principalmente anglo-saxônica, tomou corpo e assumiu o desafio de dar continuidade à problemática concernente à definição dos conceitos de saúde e doença.

3 Para tal ver Mayes; Horwitz (2005).

4 Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).

5 “NOS” é a sigla inglesa utilizada para designar a expressão “Not Otherwise Specified”. Em português “não especificado”. Trata-se de uma subcategoria presente nos manuais psiquiátricos que permite consolidar o diagnóstico sem que, no entanto, todos os sintomas ou critérios descritos anteriormente tenham sido preenchidos.

6 O uso off-label diz repeito à possibilidade de utilizar certos medicamentos para transtornos distintos daqueles em relação aos quais a droga foi aprovada legalmente.

7 Pesquisa realiza em 07/11/2015.

I Thais Klein, Psicóloga formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ (IMS-UERJ) e em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ (PPGTP-UFRJ). Bolsista CAPES. E-mail: thaiskda@gmail.com

II Rossano Cabral Lima, Doutorado em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil (2010), com doutorado sanduíche no Instituto Max Planck de História da Ciência (Berlim, Alemanha). Foi Professor Visitante do NUPPSAM/IPUB/UFRJ (2011) e atualmente é Professor Adjunto e Vice-Diretor do Instituto de Medicina Social da UERJ. E-mail: rossanolima1@gmail.com

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