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Desidades

 ISSN 2318-9282

     

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Jovens e a precarização do trabalho: o caso do cuentapropismo1 em Cuba2

 

Jóvenes y la precarización del trabajo: el caso del cuentapropismo en Cuba

 

 

Karima Oliva BelloI

I Universidade de Havana, Cuba.

 

 


RESUMO

O presente artigo se deriva de uma pesquisa que visou a compreender como os processos de vulnerabilização relacionados à atualização do modelo econômico cubano afetam os jovens em desvantagem socioeconômica de Havana. Foca-se, sobretudo, no impacto subjetivo que esse processo acarreta para estes jovens quanto a seus projetos de realização pessoal e coletiva. Aos fins da presente publicação, focalizaremos especialmente a análise na problemática do trabalho, no caso dos jovens vinculados ao cuentapropismo, no setor não estatal. O modo como os jovens se vinculam ao cuentapropismo favorece, nesse contexto particular, a emergência de dinâmicas típicas de um padrão de instabilidade e precarização laboral. Por sua vez, as marcas simbólicas dos modos de subjetivação nesse contexto se caracterizam pela tendência à individualização, à mercantilização das expectativas de vida, à não identificação com as organizações existentes em alguns casos e a uma postura de evasão ou rejeição das questões políticas. A busca por melhores condições materiais de vida talvez seja a marca mais importante do processo de devir sujeitos no caso dos jovens entrevistados. Se essa busca vai se esgotar no privado, no individual, no consumo, ou poderá se inscrever e se realizar no curso de uma construção coletiva, é a grande questão levantada pela presente pesquisa.

Palavras-chave: jovens, trabalho, precarização, cuentapropismo.


RESUMEN

El presente artículo se deriva de una investigación que tuvo como objetivo comprender cómo los procesos de vulnerabilización relaciones con la actualización del modelo económico cubano afectan a jóvenes en desventaja socioeconómica de la Habana, sobretodo, el impacto subjetivo en esos jóvenes en cuanto sujetos. A los fines de la presente publicación focalizaremos especialmente en el análisis de la problemática del trabajo, en el caso de los jóvenes vinculados al cuentapropismo. El modo como los jóvenes se vinculan al cuentapropismo favorece en ese contexto en particular la emergencia de dinámicas típicas de un padrón de inestabilidad y precarización laboral. Por su vez, las marcas simbólicas de los modos de subjetivación en ese contexto se caracterizan por la tendencia a la individualización, la mercantilización de las expectativas de vida, la no identificación con las organizaciones existentes en algunos casos y una postura de evasión o rechazo por las cuestiones políticas. La búsqueda de mejores condiciones materiales de vida tal vez sea la marca más importante del proceso de devenir sujeto en el caso de los jóvenes entrevistados. Si esa búsqueda se va a agotar en lo privado, en lo individual, en el consumo, o podrá inscribirse y realizarse, en el curso de una construcción colectiva, es la gran cuestión levantada por la presente investigación.

Palabras-clave: jóvenes, trabajo, precarización, cuentapropismo.


 

 

O presente artigo se deriva de uma pesquisa que visou compreender como os processos de vulnerabilização, relacionados à atualização do modelo econômico cubano, afetam os jovens em desvantagem socioeconômica de Havana. Foca-se, sobretudo, no impacto subjetivo que esse processo acarreta para estes jovens quanto a seus projetos de realização pessoal e coletiva. Foi realizada uma imersão de 6 meses em uma comunidade de Havana com marcados indicadores de desvantagem socioeconômica. Foram entrevistados, de forma grupal e individual, 55 mulheres e homens, de cor preta, branca e mestiça, de rendas médias, baixas ou sem rendas, moradores na comunidade e em outros bairros em desvantagem socioeconômica de Havana. Além das jornadas de observações participantes na comunidade, foram realizadas 6 entrevistas grupais abertas, 15 entrevistas individuais semi-estruturadas em profundidade e uma sessão de trabalho grupal. Também foram realizadas três entrevistas a pesquisadores especialistas e duas entrevistas a atores locais. Além disso, foi importante a participação em uma oficina com jovens pesquisadores sobre as novas formas de gestão econômica e seu impacto para a juventude cubana. Finalmente, discursos e documentos oficiais foram analisados.

As diferentes ocupações dos jovens entrevistados permitiram o acesso a parte da diversidade da juventude cubana contemporânea: estudantes universitários; jovens recém-formados trabalhando no setor estatal; estudantes do ensino médio – técnicos, principalmente; técnicos empregados no setor estatal com salários muito baixos; empregados ou subempregados no setor não estatal com vínculo instável, informal e com pouca remuneração; e jovens desvinculados do estudo e do trabalho, vinculados a atividades ilegais, ou ex-presidiários agora desempregados. Não estabelecemos contato com os jovens através das escolas ou instituições de ensino, e isso fez com que a amostra de participantes incluísse jovens totalmente à margem das instituições, o que, ao mesmo tempo, determinou que suas falas diferissem daqueles depoimentos levantados em pesquisas feitas dentro do contexto escolar fundamentalmente.

No grupo entrevistado, aparecem problemáticas vinculadas à juventude cujas experiências de vida podem ser situadas nos novos contextos emergentes da sociedade cubana. A nosso entender, torna-se cada vez mais importante colocar em perspectiva a diversidade da juventude em Cuba e quebrar a histórica ligação “jovem = estudante”. A ruptura dessa ligação, que fixa a categoria de jovem à de estudante, pode abrir uma brecha para a emergência de um conjunto de temáticas que antes não foram suficientemente associadas ao universo das questões tratadas acerca da juventude cubana, tais como pobreza, marginalização, desigualdade, ação, política, participação, subjetivação, autonomia, consumo.

O presente trabalho focaliza, especialmente, a problemática do trabalho, no caso, os jovens vinculados ao cuentapropismo, no setor não estatal, um dos temas destacados dentre os resultados da pesquisa. Queremos salientar que os resultados derivados da presente pesquisa dão conta, de forma ainda exploratória, da experiência de um grupo de jovens, e não podem ser generalizados a todas as juventudes cubanas, nem a todos os jovens vinculados aos empreendimentos do setor não estatal.

 

Jovens cubanos e as condições de trabalho no setor não estatal

Quanto ao trabalho no setor não estatal, um dos aspectos mais trazidos pelos jovens, no que se refere ao impacto da atualização do modelo, tem a ver com as novas formas de gestão econômica impulsionadas em Cuba. O cuentapropismo, em especial, sobressaiu-se. Trata-se de um termo usado dentro do contexto cubano para fazer referência àquela atividade de trabalho que não se encontra subordinada à administração do Estado, mas corresponde à iniciativa privada. As pessoas que trabalham nesse setor são chamadas de ʽtrabajadores por cuenta propiaʼ (trabalhadores por conta-própria). Trata-se de um leque muito diverso de trabalhadores, que inclui os donos dos negócios, como restaurantes, cafeterias etc., mas também os empregados contratados nesses estabelecimentos. Assim, os tamanhos, investimentos e rendimentos de cada negócio também variam muito. Podem ser pequenas cafeterias em lugares da periferia ou caros e luxuosos restaurantes em lugares privilegiados da cidade. Regras e condições de trabalho são acordadas individualmente de modo informal entre empregadores e empregados. Aspectos como salários, horários de trabalho etc. – que são estabelecidos de acordo com leis e pactos coletivos no setor estatal – são livremente determinados e estabelecidos pelos donos dos empreendimentos, sem regulamentação.

Aqui, o salário, em geral, é mais alto que no setor estatal, segundo explicam os jovens, e eles recebem maior renda, alegam usufruir de uma maior independência econômica e sentem uma maior satisfação nesse sentido. Não obstante, para além do salário, outras questões sobressaem quanto às condições de emprego no setor não estatal. Por exemplo, uma atividade representativa do setor não estatal prevalecente na comunidade em que jovens são empregados sem autorização são os ʽbicitaxisʼ3. Vários ʽbicitaxisʼ pertencem a um mesmo ʽdonoʼ4. Um jovem com quem falei dirige o dia todo, também de noite, enquanto houver demanda do serviço, segundo ele. O moço não tem férias, no entanto, se tiver algum problema, pode falar com o ʽdonoʼ e pedir autorização para não trabalhar nesse dia. O trabalho é cansativo demais, segundo informa. Entrega diariamente ao ʽdonoʼ uma quantidade fixa de dinheiro, às vezes consegue ficar com mais dinheiro para ele, às vezes com menos, dependendo da demanda do serviço, mas assim vai “resolvendo”5. Ele não é de Havana, é do lado leste do país e veio a Havana para “lutar”. Não está contente com as condições de seu emprego, mas foi o que encontrou. Mora com uma mulher e na sua casa nunca falta comida porque ele trabalha. Tem 22 anos.

A maioria dos ʽbicitaxerosʼ com quem conversamos era formada por jovens mestiços, quase sempre reunidos quando não tinham passageiros, esperando que estes chegassem, conversando sentados nos ʽbicitaxisʼ. Pode-se perguntar se eles conversam sobre suas condições de trabalho, situações que os descontentam e estratégias para negociar com os ʽdonosʼ melhores condições. A partir do depoimento deste jovem, verificamos que esses temas não são tratados.

Como identificado nas entrevistas, destaca-se que os jovens entrevistados empregados no setor não estatal não realizam esta atividade de forma legal nem estão filiados ao regime de Segurança Social que rege esse setor desde setembro de 2011. Quanto a trabalhar de forma ilegal sem se filiar, os jovens nos contam:

É conveniente para ambas as partes, o dono não paga por te empregar e você também não paga à Secretaria Nacional de Administração Tributária (ONAT) por estar empregado [...] como não era um trabalho estável, não fazia muito sentido filiar-me sem saber quanto ia permanecer ali [...] trabalhar sem licença foi estressante pelo medo de ser punido pela polícia, mas não fazia sentido para mim assinar um contrato para realizar uma atividade temporária. (Fragmento da entrevista com Sofia6, estudante universitária que trabalhou no setor não estatal sem licença).

Já trabalhei por contrato e não faz muita diferença, os contratos nem sempre se respeitam, na verdade, é algo formal porque os donos fazem o que eles desejam [...] em todos os lugares as regras do jogo não são sempre as mesmas. Há lugares onde se assinam contratos, mas não se cumprem e, ao final, o trabalho não se organiza de acordo com o escrito no papel, enquanto tem lugares que nem existe o contrato. (Fragmento da entrevista com Nina, estudante universitária que trabalha como garçonete sem licença nem autorização da Universidade).

Prefiro não assinar contrato para não ter que pagar o imposto à ONAT. (Fragmento da entrevista com Roberto, jovem contratado no setor não estatal sem licença).

Em geral, existe entre eles um grande desconhecimento sobre o regime de Segurança Social e as leis vigentes para o trabalho no setor não estatal em que estão envolvidos. A filiação ao regime de Segurança Social – processo diferente de assinar um contrato entre empregador e empregado sem mediação do Estado – se materializa na solicitação da licença para trabalhar às autoridades competentes e, além de obrigatória, é indispensável para ser protegido no caso de “velhice, incapacidade total temporal ou permanente, morte de familiar ou gravidez”, segundo estabelecido no Decreto-lei 278 de 2011 (Cuba, 2011).

Em geral, a lei estipula que os trabalhadores devem pagar impostos sobre os rendimentos pessoais, bem como os empregadores pela utilização de força de trabalho, a saber, pelo número de pessoas contratadas. O cenário de ilegalidade descoberto nas entrevistas se coaduna com dados oficiais. Rodríguez (2017) informa que uma das manifestações mais comuns de evasão fiscal no setor não estatal se refere ao número de pessoas não inscritas como contribuintes que são contratadas de forma ilegal por proprietários com licença. Nesses casos, ambos, empregador e empregado, são sancionáveis segundo a lei.

Na verdade, o desinteresse dos jovens entrevistados sobre os direitos garantidos pelo regime de Segurança Social é resultado da avaliação de benefícios e custos da filiação. Poderíamos considerar que tanto empregadores quanto jovens empregados se beneficiam da evasão fiscal. Não obstante, os jovens ficam em condições vulneráveis, sem uma mediação legal para negociar suas condições de trabalho. Na verdade, trabalham sem um contexto normativo que garanta direitos:

Nada disso existe – se referindo a férias, licenças etc. (Fragmento da entrevista com Roberto, jovem contratado no setor não estatal sem licença).

Tudo isso é combinado com o dono. (Fragmento da entrevista com Maria, mãe solteira sem emprego que já trabalhou no setor não estatal).

O dono te explica as regras e se você não gostar vai embora. (Fragmento da entrevista com Javier, atualmente sem emprego, mas que já trabalhou no setor não estatal).

Nesse contexto, os jovens entrevistados empregados em negócios mais rentáveis narram ofensas verbais e abusos por parte do pessoal que administra o negócio ou dos donos – em sua maioria homens brancos, entre 40 e 50 anos, de alta renda:

Eles – os donos – têm um estilo de vida caro, casas grandes, roupa cara, bons carros e viagens [...]. Em todos os lugares onde já trabalhei sempre foi assim – se referindo ao maltrato verbal – quando não é no começo é no final, sempre te tratam mal, gritam com você, te ofendem. É bastante comum nesse tipo de negócios, é como para deixar claro que, se você não faz as coisas do jeito que os donos querem, você vai embora. Os donos se sentem com autoridade de dizer qualquer coisa, de ofender porque estão incomodados por alguma razão ou não gostaram do jeito que você fez as coisas. (Fragmento da entrevista com Nina, estudante universitária que trabalha como garçonete sem licença nem autorização da Universidade).

Eles maltratam e exigem, é certo que pagam mais, mas talvez nem pagam o que deveriam, só pensam em ter ganhos e lucrar. (Fragmento da entrevista com Javier, atualmente sem emprego, mas que já trabalhou no setor não estatal).

O principal critério em que se baseia esse trato desrespeitoso tem a ver, segundo os jovens, com a diferença de status econômico. Para eles, é a forma de o dono dizer: “esse aqui é meu negócio, sou eu quem tem poder e dinheiro, você não tem nada, é só meu empregado”, nas palavras dos jovens.

Por sua vez, os jovens relatam que existem critérios orientando os processos de seleção de pessoal em determinados negócios de luxo, como a aparência física, falar inglês, “ter charme”, segundo informam:

Eles te falam disso explicitamente, ou seja, te dizem “estamos buscando meninas com tais características”, olham para ti, como você leva o cabelo, teu corpo, tua aparência em geral. Também são muito demandados jovens universitários porque, em geral, falamos outro idioma, temos certa formação e isso faz com que tenhamos melhor preparação e charme para atender clientes estrangeiros ou de alta renda. (Fragmento da entrevista com Nina).

Em alguns ramos do setor, os critérios estéticos e de outro tipo estão operando como elementos discriminatórios quanto aos padrões de contratação com base em valores próprios de uma cultura patriarcal, autoritária, elitista ou racista. No dia 2 de julho de 2017, o jornal Trabajadores, da imprensa estatal cubana, denunciava um caso de discriminação racial. Uma jovem de pele negra foi agredida verbalmente e expulsa de um táxi particular pelo taxista, dono do táxi, que alegou que não gostava “dos negros e no seu táxi ele não transportava negros” (Pérez, 2017). Se relacionarmos este fato com as experiências dos jovens, o acontecimento revela o desafio que representa a abertura do setor não estatal em matéria dos valores aí emergentes e aqueles que visam a regular as relações humanas dentro de um processo que se propõe a construir o socialismo.

 

A necessidade de atualização das organizações sindicais em Cuba diante do novo contexto

Por sua vez, os depoimentos dos jovens mostram, como evidenciado nos estudos sobre o tema em Cuba, um cenário de reconstituição do modelo de relações laborais e de aparição de novos atores (Izquierdo, 2015). Assim, é claro que as mudanças das formas de gestão econômica e a consolidação do setor não estatal têm correlato em uma mudança das relações de trabalho e no surgimento de uma matriz diferente de valores atravessando essas relações, a saber, tem um correlato na emergência de novos modos de subjetivação.

Ainda que os jovens se queixem das extensas jornadas de trabalho, maltrato verbal, clima autoritário dos administradores, além de reconhecerem não ter direito a demandar nada mais do que o salário, eles se contentam em receber uma remuneração maior do que no setor estatal:

É certo que você tem que trabalhar muito, mas o dinheiro faz a diferença [...]. Tem vezes que eu nem quero acordar, mas preciso do dinheiro, olho para o teto da casa em mal estado e digo-me “tenho que seguir”. Sinto-me jovem, forte e com vontade de ganhar dinheiro. (Fragmento da entrevista com Erick).

Gosto de quebrar o tabu social existente em Cuba de que os pais têm que proteger e sustentar os filhos até eles se formarem e ainda depois disso. (Fragmento da entrevista com Nina).

Destacam-se aqui o sentido de autonomia no plano econômico, o respeito aos pais, inclusive a possibilidade de contribuir para a renda da família como motivos fundamentais para a vinculação do jovem a este tipo de trabalho. Quando perguntados se eles falavam entre si sobre suas condições de trabalho ou se alguma vez imaginaram como reclamar, no mínimo, melhores horários ou salários a seus empregadores, a resposta foi sempre negativa:

Para quê? Você tem que fazer o que o dono mandar senão você vai embora [...]. É duro o trabalho, mas te pagam mais do que no setor estatal e diariamente. (Fragmento da entrevista com Umberto).

Não existe nenhuma instância, eles não se subordinam a nenhuma lei sobre como administrar seu negócio. (Fragmento da entrevista com Nina).

Reclamar o que, se você nem tem contrato. (Fragmento da entrevista com Roberto).

A fala dos jovens nos lembra a referência que Luis (2017) faz a um escrito de dirigentes sindicais sobre o capitalismo cubano no século passado, “quando cada trabalhador reclamava individualmente ao patrão e ele podia não se preocupar com a queixa, ameaçá-lo com a expulsão, ou deixá-lo realmente sem emprego, pois sempre poderia encontrar um novo trabalhador”. Para Luis (2017), esta oposição entre os distintos atores laborais está reemergindo com nuances particulares no contexto laboral atual. Assim, o autor destaca que existe um “atraso” na transformação das organizações de massa com relação às dinâmicas atuais da economia e sociedade cubanas.

A filiação sindical, embora esteja legalmente concebida para esse setor, não interessa aos jovens entrevistados. O modelo atual sindical é inoperante diante das novas dinâmicas sócio-produtivas não estatais de gestão do trabalho e não projeta estratégias efetivas para a resolução dos conflitos que podem estar emergindo nesse contexto. A filiação segue uma lógica mecânica de inserção que não favorece a participação sindical nesses espaços (Izquierdo, 2015).

Filiar-se não é um mecanismo aproveitado pelos jovens entrevistados, mesmo se tratando do fato de que a filiação sindical talvez pudesse dar conta de um debate público sobre os alcances e limitações das novas formas de gestão econômica: seja explicitando possíveis conflitos entre os atores laborais emergentes, seja criando condições de legalidade para relações laborais mais justas, assim como ações para reivindicar direitos laborais.

No entanto, a fala dos jovens corrobora o já afirmado pela Secretaria Geral do Comitê Provincial da Central de Trabalhadores de Cuba quando destaca a falta de compreensão por parte dos trabalhadores não estatais da importância de pertencer a essa organização (Forteza, 2016). É claro que não basta enunciar essa falta de compreensão dos trabalhadores, mas é preciso analisá-la como uma questão chave. A descoletivização, o enfraquecimento dos coletivos sindicais e sua cooptação, é uma das ameaças mais importantes que enfrentam os trabalhadores nas sociedades capitalistas contemporâneas, e um dos fatores chaves para compreender os processos de vulnerabilização nesses contextos. No caso cubano, a problemática sindical, com suas singularidades, deve levar a uma análise profunda sobre o papel dos sindicatos nesta sociedade e o modo como eles devem se atualizar e se reinventar na nova conjuntura.

No Congreso Internacional de Investigadores sobre Juventud, celebrado em Havana, em março de 2016, os jovens pesquisadores evidenciaram que o modelo de organização sindical tradicional presente no setor estatal, onde são outras as relações de trabalho e outros os atores envolvidos, e no qual, às vezes, existe até um solapamento entre “sindicato e instituição”, talvez não se adeque às características do novo contexto. Assim, eles defendem o critério de que, diante das novas formas de gestão econômica, a discussão sobre a função dos sindicatos tem que ser retomada, em especial, discutir sobre seu papel na defesa dos direitos desse novo grupo de trabalhadores e sua importância nesse sentido.

Por sua vez, não existe um sindicato que agrupe de maneira particular os trabalhadores ʽcuentapropistasʼ, categoria que, além de, na narrativa oficial, nomear tanto proprietários como empregados, abriga grandes diferenças entre os grupos existentes onde pode haver conflitos de interesses (Luis, 2017). Dentre os jovens entrevistados, incluiu-se, por exemplo, a vivência de uma jovem empreendedora entrevistada como dona da sua “própria empresa” junto ao seu companheiro. Essa vivência é a de uma jovem que constrói um espaço para “inovar, criar”, nas suas palavras. A jovem descreve seu novo contexto laboral como um espaço de total autonomia e autodeterminação. Diferentemente de outros jovens empregados no setor não estatal que, ao invés, relatam a vivência daqueles que falam desde uma posição subalterna, esta jovem fala de liberdade e autonomia.

Os jovens utilizam o termo ʽcuentapropistaʼ para nomear, em geral, a nova forma de gestão econômica, mas, ao falarem de situações concretas ligadas ao trabalho, ou se referirem a seus empregadores em particular, usam o termo ʽdonoʼ. Os resultados desta pesquisa chamam a atenção sobre como o uso da categoria ʽcuentapropistaʼ, de modo homogeneizador, a nosso entender, contribui para ofuscar tanto as diferenças entre atores laborais distintos como as contradições e complexidades das relações entre estes novos atores, sem que conflitos de interesses existentes possam ser nomeados.

É claro que o papel dos sindicatos nas sociedades contemporâneas dá margem para uma análise muito polêmica, sobretudo na cena atual, em que políticas neoliberais têm precarizado ao máximo o mundo do trabalho e, concomitantemente, atacado as entidades sindicais e qualquer forma de organização coletiva. Como parte desses mecanismos de varrer o poder de resistência e luta dos sindicatos, líderes sindicais também são comprados por grupos de poder e respondem a seus interesses, distorcendo a função sindical. Muitos sindicatos servem aos fins dos interesses privados, fazendo parte de suas estruturas de controle. Isso é um fato. Assim, qualquer análise sobre a necessidade de reinventar o papel das organizações sindicais em Cuba tem que ser uma análise contextualizada que leve em conta as problemáticas e perigos acima referidos.

O desafio está em abrir as organizações existentes a novas discussões, muito mais amplas, afinadas com as problemáticas e contradições que emergem no novo setor, onde os atores laborais emergentes possam encontrar um fórum efetivo de debate. Isso significa que os espaços de discussão e agendas devam se circunscrever ao rumo dos interesses dos atores envolvidos, ao terem que enfrentar o posicionamento de grupos alinhados com novos ou antigos poderes econômicos, focados em interesses individuais e de lucro de determinados setores, em menosprezo dos interesses coletivos.

No atual modelo de ajuste econômico cubano, parece necessária a captação das contradições emergentes das novas formas de gestão econômica para os espaços de debates coletivos frente à possibilidade de assistir ao desenvolvimento de uma fratura social; ao mesmo tempo, parece necessária a criação de condições para que as organizações possam se revitalizar, reinventar-se como mecanismos de democratização, trazendo à tona as novas condições sócio-históricas. Eis aí uma grande questão. Os problemas dos novos atores – emergentes no contexto das novas relações laborais –, têm que ser socializados. Sobretudo porque, como contexto para a produção de novos padrões de subjetivação pública, as novas formas de gestão econômica podem estar condicionando – na dimensão subjetiva – um avanço mais radical e irreversível endereçado à privatização dos sujeitos na sociedade cubana. A saber, a preocupação com o lucro, com o ganho individual em desprezo do coletivo, a adesão a estilos autoritários nas relações laborais, entre outros aspectos, por não serem discutidos, por não mobilizarem uma resistência coletiva, podem ser grandes ameaças para qualquer projeto social de coletivização.

Não queremos demonizar o cuentapropismo cubano, pelo contrário, ele pode estar gerando um dinamismo social interessante, potencialmente favorável. No entanto, queremos trazer à tona as contradições que atravessam sua existência frente aos valores e interesses coletivos. Se, como medida econômica, pode ser bom, gerar certo dinamismo econômico, beneficiar a determinados grupos da população cubana, gerar novas fontes de emprego para alguns setores, de um ponto de vista ideológico, político e público, pode ser potencialmente ruim.

Potencialmente não é necessariamente. A diferença entre um e outro está na medida em que sejamos capazes de captar, recriar, reinventar as lógicas próprias de produção de subjetividades de um espaço privatizado pela relação mercantil para fins de um processo social que assume como seu escopo e objetivo o bem-estar coletivo. Ao menos, seria necessário “dominar o demônio” que tais lógicas de produção contêm. As entrevistas com os jovens nos levam a pensar que o primeiro passo poderia ser ventilar publicamente discussões sobre esses temas com os atores envolvidos e a população em geral. É necessário um poder de imaginação e invenção que somente poderá ganhar força como um processo de construção coletiva.

 

Crise do sentido do trabalho para jovens empregados no cuentapropismo

Além de corroborar as pesquisas atuais sobre o tema, os depoimentos dos jovens nos revelam outra ordem de questões: a falta de uma perspectiva crítica que dê conta de sua condição laboral, de seu devir como ator político que se importa com as formas de articulação coletiva e os mecanismos de reivindicação de direitos. Junto à lentidão das organizações para responder frente aos novos desafios, existe um atraso na reação dos jovens diante da reconfiguração das relações laborais em matéria de resposta política. O correlato subjetivo da emergência desta relação entre os novos atores “proprietários” e “contratados”, no que se refere aos jovens em uma posição subalterna, esgota-se na recompensa econômica que percebem e na queixa individual. Os jovens não se importam com as condições de trabalho nem com os conflitos explícitos ou latentes entre eles e seus empregadores, pois tudo parece se resumir a “ganhar mais”. E isso está apontando para uma crise importante do sentido do trabalho dentro da sociedade cubana para o setor da juventude: a mercantilização do trabalho.

Esse enfoque de cunho liberal, identificado nos depoimentos dos jovens entrevistados, coincide com a caracterização que Torres e Ortega (2014) fazem da cultura política de um grupo de ʽcuentapropistasʼ cubanos. As autoras afirmam que, no caso dos sujeitos da sua amostra, tudo se resume a “trabalhar mais para ganhar mais”, sem uma análise política sobre as condições de trabalho no novo contexto. Para as autoras, o anterior diz respeito às carências econômicas que, desde a década dos noventa, afetam grande parte da população dentro de um contexto de desigualdades, bem como à ênfase do discurso oficial nos aspectos econômicos da atualização do modelo, que conduz à desarticulação entre as noções de economia e política no imaginário social.

Analisando a situação dos coletivos laborais nas sociedades capitalistas contemporâneas, Alves (2010) salienta que,

[...] a ofensiva do capital significou a vigência da ideologia do individualismo na vida social. Desvalorizam-se práticas coletivistas e os ideais de solidarismo coletivo [...] disseminam-se na cultura cotidiana influenciada pela mídia, publicidade e consumo, os ideais de bem-estar individual, interesse pelo corpo e os valores individualistas do sucesso pessoal e do dinheiro. É nesse mesmo contexto histórico-cultural que ocorre a degradação da política, no sentido clássico, e a corrosão dos espaços públicos enquanto campo de formação da consciência de classe contingente e necessária (Alves, 2010, p. 11).

Sem que possamos utilizar essa análise como marco referencial para compreender as dinâmicas emergentes no contexto cubano, chama a atenção a emergência do sentido utilitário e mercantilista do trabalho para os jovens em Cuba, sem considerar o significado político das novas relações laborais no setor não estatal.

 

O desafio de privilegiar formas de produção mais coletivistas e locais

Por outro lado, a pouca referência às cooperativas por parte dos jovens nos leva a pensar que essa forma de gestão econômica, que tem a ver mais com um projeto de participação coletiva, é pouco visualizada por eles dentro de seus horizontes. Não obstante, é um modelo de gestão desejado por alguns deles. Nas entrevistas grupais, as jovens que fazem um curso como cabelereiras se questionam com incômodo porque antigos locais estatais de cabelereiros e barbeiros do bairro passaram a ser arrendados por particulares que, segundo elas, “privatizaram o serviço”:

A melhor opção era entregar esse local a um grupo de nós da comunidade e nos ajudar com alguns recursos para juntas empreender o negócio e brindar o serviço a todos. (Fragmento das falas das jovens nas entrevistas grupais).

Para as jovens, o arrendamento faz com que “o que antes era do povo, de todos, passa a ser de um dono, que tem dinheiro para investir e brindar um serviço de maior qualidade do que o Estado, mas não favorece o “povo” porque os preços são muito caros e o dono só pensa em seus ganhos”, segundo elas relatam.

Consideramos que o incômodo com o modelo de privatização e a reclamação da possibilidade de se empreender iniciativas de cunho mais coletivo é um aspecto positivo que poderia instigar as autoridades competentes a compreender a importância de privilegiar, estimular e alavancar, dentro das novas formas de gestão econômica, a cooperativa como modelo de produção coletiva mais de acordo com um projeto de sociedade mais colaborativo e solidário.

No entanto, autorizações para o desenvolvimento do cooperativismo no país têm acontecido em um ritmo lento. Uharte (2016) informa que “em parte, existe um temor compreensível a respeito dos riscos do cooperativismo já que foi a forma encoberta que assumiram negócios privados na transição ao capitalismo na antiga URSS, segundo advertem analistas cubanos”. Se bem que o cooperativismo pode dar lugar ao estabelecimento de alianças estratégicas de determinados atores em Cuba com poderes econômicos e interesses corporativistas, mas isso dependerá, em todo caso, da forma como esse tipo de empreendimento coletivo seja implementado em parceria com o Estado cubano.

Trata-se de uma forma de produção com um grande potencial para favorecer relações de colaboração e coletivismo encaminhadas ao bem-estar comunitário, como demonstrado pelas experiências de cooperativas em Cuba e em outros contextos, em que o cooperativismo nas comunidades constituiu-se um fator chave no desenvolvimento de formas de vida e produção anticapitalistas.

A demanda que os jovens fazem de formas de gestão econômica mais coletivas indica uma valorização do carácter coletivo da atividade produtiva. Isso é algo positivo e avisa sobre a importância de se balancear o correlato político das medidas econômicas com o correlato subjetivo e social: não somente se trata de produzir, senão, quem e como se produz. Torres e Ortega (2014) informam como as políticas têm favorecido formas de gestão econômica que, como o cuentapropismo e os arrendamentos, privilegiam relações não colaborativas, mas mercantis. Hoje, já estão autorizadas as cooperativas não agropecuárias, única forma permitida de cooperativismo que existia no país até dezembro de 2012.

A fala das jovens entrevistadas, a saber, “o que antes era do povo agora passou a ser de um dono”, traz luz sobre o fato de que a tomada de decisões cujo escopo é a rentabilidade econômica tem um impacto na esfera política. Nos depoimentos das jovens, a partir do seu conhecimento empírico, se reconectam política e economia em um sentido crítico. Enquanto no discurso oficial afirma-se que, para além das transformações econômicas o caráter socialista do sistema político cubano vai seguir sendo exatamente o mesmo, as jovens nos lembram que, para isso acontecer, deve seguir-se uma estratégia que atenue o impacto de medidas que favorecem um sistema de relações não socialistas.

 

Considerações finais

Em suma, no caso dos jovens empregados no setor não estatal, os principais interesses e motivações se esgotam na remuneração econômica – que consideram maior do que no setor estatal –, sendo evidente uma tendência à mercantilização do sentido do trabalho. Ao mesmo tempo, vivenciam insatisfações e incômodos a respeito das condições de trabalho e das relações com os empregadores, mas não existe uma postura política que contribua para fazer uso dos dispositivos coletivos como a sindicalização para articular demandas e reivindicações coletivas de direitos perante seus empregadores. Isso nem é imaginado. Assim, tanto a frustração das expectativas de mobilidade social com base no trabalho estatal, como a mercantilização e despolitização do seu sentido no setor não estatal indicam a existência de uma crise dos sentidos que conectam os jovens a essa dimensão da experiência.

As medidas tomadas como parte do processo de atualização do modelo econômico se sobrepõem às desvantagens socioeconômicas de partida, fazendo com que emerjam ou se aprofundem dinâmicas sociais com um importante potencial de vulnerabilização que perpassa a condição de vida dos jovens entrevistados. Assim, novas possibilidades de empreendedorismo e consumo aprofundam e tornam mais perceptíveis as diferenças socioeconômicas vividas.

O modo como se desenvolvem as novas formas de gestão econômica dentro do setor não estatal favorece, nesse contexto particular, a emergência de dinâmicas típicas de um padrão de instabilidade e precarização laboral. Por sua vez, as marcas simbólicas dos modos de subjetivação no contexto de mudanças se caracterizam pela tendência à individualização, à mercantilização das expectativas de vida, à não identificação com as organizações existentes em alguns casos e a uma postura de evasão ou rejeição das questões políticas.

O reconhecimento dos jovens do direito a desfrutar serviços gratuitos de educação, saúde, bem como o direito ao trabalho e ao desfrute de um clima de segurança social, são também características da dinâmica da sociedade cubana. Elas dizem respeito à motivação e sentimento de valor pessoal com que os jovens – que dizem não se sentir vulneráveis, apesar das desvantagens – se representam a si mesmos, outra característica dos processos de subjetivação revelados. A busca por melhores condições materiais de vida talvez seja a marca mais importante desse processo de devir sujeitos que atravessa os jovens entrevistados. Se essa busca vai se esgotar no privado, no individual, no consumo, ou poderá se inscrever e se realizar no curso de uma construção coletiva, é a grande questão levantada pela presente pesquisa.

 

 

Referências

ALVES, G. Trabalho, subjetividade e capitalismo manipulatório - O novo metabolismo social do trabalho e a precarização do homem que trabalha. Disponível em: ˂http://www.giovannialves.org/artigo_giovanni%20alves_ 2010. pdf˃. Acesso em: 20 out. 2017.         [ Links ]

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Data de recebimento: 29/09/2017
Data de aceite: 28/12/2017

 

 

1 Termo usado dentro do contexto cubano para fazer referência àquela atividade de trabalho que não se encontra subordinada à administração do Estado e corresponde à iniciativa privada. As pessoas que trabalham nesse setor são chamadas de ʽtrabajadores por cuenta propiaʼ (trabalhadores por conta-própria). / Término usado en el contexto cubano para designar aquella actividad de trabajo que no se subordina a la administración del Estado y se corresponde con la iniciativa privada. Las personas que trabajan en ese sector son llamadas trabajadores por cuenta propia.

2 A presente pesquisa foi realizada com o apoio do Programa de Estudantes-Convenio Pós-graduação (PEC-PG) - CAPES, Brasil. / La presente investigación fue realizada con el apoyo del Programa de Estudiantes-Convenio de Posgrado (PEC-PG)- CAPES, Brasil.

3 Taxi que é uma bicicleta.

4 Modo como os jovens se referem aos proprietários de carros, bicitaxis, restaurantes etc. dentro do cuentapropismo. Dado muito interessante, porque enquanto na narrativa oficial se usa o termo ʽcuentapropistasʼ ou trabalhador por conta própria, para se referir a todos aqueles envolvidos no setor não estatal de forma homogênea, no imaginário dos jovens se expressa uma clara distinção entre os proprietários e os que são simplesmente empregados. A saber, na narrativa dos jovens se perfilam dois atores sociais com condições de vida e interesses bem diferenciados em função da propriedade.

5 Usamos as aspas nesses casos para sublinhar expressões ou palavras próprias dos jovens extraídas literalmente das suas falas.

6 Todos os nomes de jovens que aparecem no texto são fictícios.

 

 

I Karima Oliva Bello: Mestrado em Psicologia Educacional pela Universidade de Havana, Cuba, e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista do Programa de Estudante-Convênio de Pós Graduação (PEC-PG)-CAPES (2014-2018), Brasil. Professora de Psicologia da Universidade de Havana (2005-2014). Pesquisadora do NIPIAC e Editora Assistente da Revista DESidades. E-mail: koliva2009@gmail.com

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