Desidades
ISSN 2318-9282
ESPAÇO ABERTO
A sociabilidade automatizada das crianças brasileiras nas redes sociais
La sociabilidad automatizada de los niños brasileños en las redes sociales
Entrevista de Amanda AntunesI com Renata TomazII
II Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil.
II Grupo de Pesquisa Juventudes Cariocas, suas Culturas e Representações Midiáticas, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil.
RESUMO
As redes sociais e as mídias interconectadas estão impondo uma nova realidade para a infância e a adolescência, abrindo novos e diferentes espaços de sociabilidade e de afirmação do próprio eu infanto-juvenil. Em um mundo dominado por conexões online, brincar e fazer amigos pode ir muito além de estabelecer relações afetivas, realizar atividades lúdicas, especialmente para quem busca ou já ganhou notoriedade em alguma das plataformas digitais que abrem espaço para a transformação de crianças e adolescentes em empreendedores do entretenimento e da propaganda.
Palavras-chave: crianças youtubers, sociabilidade automatizada, redes sociais, infância digital.RESUMEN
Las redes sociales y los medios interconectados están imponiendo una nueva realidad para la infancia y la adolescencia, abriendo espacios de sociabilidad y de afirmación del propio yo infanto-juvenil nuevos y diferentes. En un mundo dominado por las conexiones on-line, jugar y hacer amigos puede ir mucho más allá de establecer relaciones afectivas, realizar actividades lúdicas, especialmente para quien busca o ya ganó notoriedad en alguna de las plataformas digitales que posibilitan la transformación de niños y adolescentes en emprendedores del entretenimiento y de la propaganda.
Palabras clave: niños youtubers, sociabilidad automatizada, redes sociales, infancia digital.
Amanda Antunes – Conte um pouco sobre a sua formação, trajetória acadêmica e profissional e sobre como você se aproximou do tema da infância e mídia.
Renata Tomaz – Sou jornalista e fiz mestrado e doutorado na área de Comunicação. No mestrado, comecei a me interessar sobre o modo como as crianças eram representadas nesse início do século 21, e fiz uma pesquisa sobre subjetivação e adolescência, tentando entender quais são os recursos que a cultura contemporânea oferece para que o indivíduo se torne alguém. Posteriormente, no doutorado, trabalhei com a questão do uso que as crianças fazem das plataformas digitais, como é o caso do YouTube. Então, busquei entender como as crianças saem de um lugar periférico –socialmente falando – para um lugar de relevância social, para um lugar de protagonismo social.
Amanda Antunes – Os seus estudos de pós-doutorado também são desdobramentos dessas pesquisas?
Renata Tomaz – Sou pesquisadora do Núcleo de Estudos de Mídia, Emoções e Sociabilidades (Nemes), na UFRJ, e atualmente estou buscando compreender como as crianças estão mobilizando as emoções no ambiente digital – raiva, ódio, ansiedade e medo são emoções que estão circulando bastante pelas mídias sociais.
Amanda Antunes – Como você vê as diferenças e as aproximações entre as infâncias de algumas décadas e as de hoje, diante dessa avalanche de mídia? Como as novas mídias afetam a infância hoje?
Renata Tomaz – Quando comecei a investigação, estava buscando identificar justamente isso, as continuidades e descontinuidades dessas infâncias. Mas, conforme fui pesquisando, percebi que não era algo com fronteiras tão demarcadas. Na verdade, entendi que existiam muito mais tensões, um jogo de forças entre aspectos que ora diferem, ora se aproximam. O que mais chamou atenção foi a ideia das interações e das brincadeiras, da sociabilidade das crianças. Quando vamos pesquisar um tema assim, acontece de pensarmos que a criança que usa muito o computador, o tablet, o smartphone, é uma criança isolada, que fica no quarto trancada por horas, sem conversar com ninguém, sem usar seus brinquedos. Mas de fato, as crianças não estão se isolando. Elas estão buscando se conectar com outras crianças, com outras redes, com outros grupos, mas de forma bem diferente do tradicional. Em muitos casos, buscam até encontros face a face com crianças que elas conheceram nas redes digitais-sociais.
Pude etnografar encontros presenciais e vi que as crianças estão tecendo outros laços nessas dinâmicas de se conectar umas às outras. E elas brincam, sim! Elas recuperam brinquedos: aquela boneca que não era tão usada começa a ser convocada para produzir um vídeo no YouTube e elas fazem brincadeiras para poder mostrar para as amigas. Aquele brinquedo ganho no aniversário, que não tinha mais utilidade, é convocado na hora de fazer os vídeos; ou então as crianças veem um vídeo que desperta uma nova forma com que um brinquedo pode ser utilizado.
Portanto, ao contrário do que se pensava, a ideia do brinquedo, dos laços, das interações está mantida. Porém, essas brincadeiras e jogos se distinguem do que observamos no passado, porque elas vão ser feitas para alguém ver. Nessa infância do século 21, familiarizada com as redes sociais, as crianças estão o tempo todo brincando com a câmera ligada. Elas fazem isso para que todos vejam como ela brinca, ou elas brincam – isso é muito curioso – como se a câmera estivesse ligada. Por exemplo, conversando com mães e crianças, ouvi relatos de crianças sobre esse comportamento: “Algumas vezes vou desenhar, estou brincando, e começo a falar: ‘e aí gente, tudo bem com vocês, tô aqui desenhando e brincando!’”. Mas acontece que não tem nenhuma câmera ligada! Então, existe esse modo de brincar, essa cultura lúdica voltada para alguém que vê a brincadeira, voltada para um outro olhar, para um outro.
Um segundo aspecto que desconstruí na pesquisa é a noção de que as crianças usam instintivamente as tecnologias e as mídias digitais, um pouco dentro daquela ideia de que as crianças são nativos digitais, que sabem usar as ferramentas tecnológicas melhor do que os pais, dando aula para os avós. Pude perceber que não é bem assim! De fato, as crianças estão mobilizando e utilizando equipamentos de uma forma sem precedentes, mas elas continuam precisando de pessoas que as ajudem nesse trabalho. Pesquisei, no doutorado, quatro canais de YouTube protagonizados por meninas entre 9 e 11 anos. Todas têm pelo menos um adulto na família que se dedica a ajudá-las. Sem isso, elas não teriam como dar conta de tantos equipamentos, programas, aplicativos, edição de música. Conversando também com as crianças, elas diziam: “Eu queria ter um canal. Mas não tenho quem me ajude; eu não sei fazer meu perfil; não sei inserir minha foto”. Então, de fato, elas estão demandando muita ajuda.
Um terceiro ponto que me chama atenção é o fato de que essa infância que a gente poderia chamar de infância digital continua acontecendo em sua maior parte no ambiente doméstico, na maioria das vezes, numa família nuclear. São elementos que a gente pode perceber no discurso que surge da interação de quem produz a mídia ou no de quem assiste. É uma infância que ainda é doméstica, porém, visibilizada, exposta, aberta. É um doméstico sem paredes. Essa abertura e visibilidade acabam trazendo novos interlocutores para as crianças, extrapolando aqueles que estavam na família, nos vizinhos, na escola. Essas crianças estão lidando com um entorno de interlocução sem limites.
Amanda Antunes – Talvez porque, tendo o YouTube a característica predominante do audiovisual, ele se aproxima muito da televisão. Então, as crianças herdam muitas coisas do conteúdo e formato televisivo que já são tão familiares e levam para o YouTube.
Renata Tomaz – Com certeza! As crianças já vêm de uma cultura audiovisual que expõe o mundo para elas. A televisão vem funcionando, nas últimas décadas, como se fosse uma janela para o mundo que as crianças utilizam. O YouTube, além de continuar sendo uma janela para o mundo, um dispositivo que permite às crianças verem para além das paredes da sua casa, para além da formação da sua própria família, é também uma câmera para dentro. Elas não só veem o mundo como são vistas por ele. É uma janela para elas também. É uma janela para a infância. É um modo de serem observadas e não só de observarem o mundo.
Amanda Antunes – Nos programas de televisão com a participação de crianças, muitas vezes elas estão reproduzindo linguagens, práticas e interações dos adultos que são disseminadas por esses programas. Como você vê a participação das crianças no cenário midiático? Existe uma participação que não seja apenas voltada aos interesses comerciais dos adultos? Há espaços de criatividade e autonomia nessas novas mídias?
Renata Tomaz – Quando comecei a pesquisar infância e mídia, também fui olhar um pouco para a TV, pois é onde a criança começa a ganhar espaço como interlocutora da cultura, embora com uma fala constantemente customizada pelo adulto. Nesse aspecto, considero a atriz Maísa Silva um caso emblemático. Aos 3 anos de idade, ela chegou à televisão, onde está há mais de dez anos ininterruptamente. Começou no programa Raul Gil, vestindo-se como adulta, para fazer aqueles números de calouros. E ganhou espaço justamente porque os imitava bem. O mérito dela estava na capacidade de dançar, cantar e se comunicar como um adulto. Depois de ter passado pela Record e pela Band, Maísa foi para o SBT e fez mudanças significativas no seu visual. Lá, eles colocaram cachinhos, um vestidinho de babado, enfeitaram com meias e sapatos de boneca. Ela foi repaginada para parecer uma criança. Passa a ser explorada uma estética infantil e não adulta. Por exemplo, a diretora tinha o microfone aberto junto dela, e a menina falava o que lhe vinha à cabeça. Inclusive, na época, ela gravou uma música chamada “Tudo que vem na cabeça”. Ela se estressava com as crianças, mandava que se calassem, soltava pum, arrumava a calcinha, fazia coisas de criança.
O caso da Maísa nos mostra como a TV vai alterando a ideia de que a criança precisava se parecer com um adulto para chamar a atenção. Ela, então, representa a imagem de uma criança que pode aparecer na TV como criança. Mas, obviamente, o fato de ela não precisar mais aparecer na TV como adulto não quer dizer que sua imagem não esteja sendo explorada. A criança pode estar a serviço dos objetivos comerciais dos adultos, tanto parecendo criança, quanto parecendo adulto.
O conceito de imitação prestigiosa diz respeito a essa ideia de os indivíduos reconhecerem comportamentos e atitudes que são imitáveis, ou seja, admirados em determinado contexto. A criança é completamente capaz de perceber atitudes, práticas que são valorizadas pela sociedade. E então, ela as faz para conseguir espaço, para ser atendida, ouvida. Essa imitação traz um interesse por parte da criança, deixando ela vulnerável para ser explorada. Ela é capaz de perceber aquela figura admirada e aplaudida e tentar, de alguma forma, ser igual. É claro que isso, depois, pode ser capturado e comercializado pelos adultos. Mas também mostra uma capacidade da criança.
Amanda Antunes – Como você analisa as possibilidades trazidas pela internet para essas subjetividades infantis de que estamos falando?
Renata Tomaz – Trabalho com o conceito de subjetividade alterdirigida do David Riesman. Para ele, essa subjetividade contemporânea é alterdirigida porque convoca o outro. Convoco o tempo todo alguém para dialogar comigo e, nesse diálogo, vou produzir uma narrativa de mim. Vou produzir posições do sujeito, produzir minhas identidades no mundo a partir desse processo. Os indivíduos acabam se posicionando no mundo a partir dessa interlocução com o outro. Então, as crianças que utilizam a internet, seja no YouTube, no Facebook, no Instagram, estão produzindo textos visuais, verbais, audiovisuais delas mesmas direcionadas para esse outro. Elas estão participando ativamente como interlocutores dessas produções identitárias.
Amanda Antunes – Como estão sendo conduzidos os estudos sobre o fenômeno das crianças youtubers?
Renata Tomaz – A produção de conhecimento sobre esse assunto é recente, assim como o próprio fenômeno. Nos anos 90, período em que o computador pessoal se populariza e se consolida nas casas, ocorre um certo pânico moral sobre os impactos negativos que essas tecnologias teriam sobre a vida das crianças e dos adolescentes. Buscando dar conta dessa insegurança, surgem pesquisas que se empenham em entender se o problema estaria em ter o computador em casa e a criança ter acesso a ele ou no uso que ela faria dele. Se o uso do computador pela criança, de forma adequada, instruída, supervisionada, seria algo positivo ou negativo.
Nessa época, houve um incremento dos estudos que apontam maneiras de as crianças usarem a tecnologia positivamente. O termo media literacy aparece em 1993, cunhado no livro “Towards new literacies”, escrito por David Buckingham. É o primeiro criado para dar conta dessa ideia de ler o mundo e produzir textos sobre ele por meio de outras formas que não o letramento tradicional. Mas a Unesco utilizava o termo media education desde os anos 1970 para dar conta da necessidade de a escola, em especial, utilizar as mídias nos processos formais de educação. Em 2011, a Unesco passou a adotar o termo media and information literacy, reconhecendo a necessidade de processos voltados para uma alfabetização midiática e informacional.
Começaram a surgir muitos estudos tentando descobrir maneiras de as crianças usarem a tecnologia positivamente. Especialmente nos países de língua inglesa, crescem, no final do século XX e início do século XXI, os apelos a que se invista na educação para os media, pensada muitas vezes de forma sinonímica às expressões literácia mediática, competência mediática, media literacy e, mais recentemente, como proposto pela Unesco, media and information literacy – alfabetização midiática e informacional, em português. No Brasil, essa corrente de estudos ganhou bastante força nos últimos anos – sobretudo no campo da Educação – discutindo o que chamamos de mídia-educação. Essas pesquisas buscam analisar as competências midiáticas das crianças, quer dizer, o que elas podem realizar por meio dessas novas linguagens. Intencionam construir modos de investigar, mas também propor ferramentas que permitam o bom uso das novas tecnologias pelas crianças.
Os usos e as possibilidades que as crianças têm a partir da sua inserção no mundo digital também passaram a ser fortemente tematizados em investigações sobre novas formas de identidade e de inserção social. De repente, aquele menino que não tem tantos amigos na escola, que não consegue fazer tantas amizades, não consegue encontrar um grupo adequado para se aproximar, encontra, no jogo online do Minecraft, um modo diferente de se inserir socialmente. Os jogadores vão procurar por ele no mundo virtual, vão requisitar suas dicas, ele vai ser elogiado, aplaudido.
Por fim, há cada vez mais investigações sobre os riscos que esses usos vão trazer. O que a Sonia Livingstone fala é que não dá para a gente pensar nas oportunidades sem pensar nos riscos que elas trazem. Existe uma produção acadêmica crescente para analisar as questões de bullying, a temática da pedofilia e a superexposição das crianças, entre outros desafios, que seriam os riscos mais potentes no mundo da internet.
Amanda Antunes – Falando justamente dessa visibilidade e sobre exposição pública das crianças, muitas vezes excessivas, que análise que você faz da fama das crianças e das implicações que isso teria para elas?
Renata Tomaz – Um ponto importante que atravessa essa relação é a fama e o mérito. A fama está ligada ao mérito em duas coisas: o mérito porque alguma coisa importante foi feita, você realizou alguma coisa muito importante e por isso você está sendo entrevistado e aparecendo na capa das revistas. O outro mérito é que a pessoa é famosa porque possui um talento, canta muito bem, dança muito bem, interpreta muito bem. Isso te coloca em um lugar de destaque socialmente. Mas, nas últimas décadas, o que a gente pode ver – e as crianças também enxergam isso – é que você amplia muito tudo isso por meio dos aparatos midiáticos. Em um contexto em que você tem uma cultura midiática que pode produzir infinitamente informações sobre alguém, você também amplia a possibilidade dessa pessoa ficar famosa. E o que as crianças perceberam – que não é diferente do que a gente também percebe – é que quanto mais se produz notícia, imagem, texto, narrativas sobre alguém, mais famosa essa pessoa pode ficar!
Um conceito que uso da crítica da mídia é o conceito de sociabilidade automatizada, da crítica de mídia holandesa, José Van Dijck. Ela afirma que a diferença desse tipo de sociabilidade é que a gente vem de uma época em que o importante era saber quem você conhece. Mas, na contemporaneidade, ocorreu uma mudança em que o importante é saber quantas pessoas você conhece, ou melhor, quantas pessoas conhecem você. Nas plataformas digitais, eu posso saber quantas pessoas estão me vendo. E é possível fazer isso enquanto estou produzindo essas narrativas e informações a meu próprio respeito.
A implicação imediata dessas possibilidades é a responsabilização das crianças pela produção de conteúdo que vai não só produzir fama, mas mantê-la, dependendo do caso. É muito comum elas se preocuparem por não estar produzindo seus vídeos. Quando saem de férias ou estão em semana de prova, por exemplo, elas se desculpam com sua audiência: “Olha, gente, desculpe por não estar postando vídeos”; “Eu estava viajando”; “Eu tive prova”, explicam. É perceptível que elas se sentem extremamente responsabilizadas em administrar, gerir e produzir essas informações a respeito delas mesmas. Afinal, a fama não é um dado, a fama é resultado da produção dessa informação. A fama é uma condição que depende dessa produção contínua. A responsabilização, por sua vez, acaba provocando uma grande competição entre as crianças produtoras de conteúdo, por mais visualizações, mais curtidas, mais inscritos, mais likes e assim por diante.
Amanda Antunes – Como você avalia o papel dos pais e da escola em todos esses acontecimentos?
Renata Tomaz – Bom, nesse universo digital, eu diria que eles são muito coadjuvantes, mas têm um papel importante em determinados aspectos. Nenhuma dessas meninas que fazem os canais que investigo pode abrir mão da presença de um responsável para ajudá-las nisso. É um trabalho muito grande. É um trabalho hercúleo: conceber uma ideia, produzir, gravar, editar. Elas precisam o tempo todo da presença dos pais.
A escola também vai colaborar com esse processo de alguma forma. A partir do momento em que essas crianças têm infinitos compromissos, a escola acaba se adequando à vida digital delas. As crianças começam a justificar as faltas para a escola, que passa a colaborar e a contribuir com essa jornada das crianças youtubers na produção do seu protagonismo social e de sua fama.
Amanda Antunes – O que você diria sobre as consequências desse processo de visibilidade na interação da criança com a escola e a família?
Renata Tomaz – A gente vive em um mundo em que ser e estar visível é desejável, agradável, valorizado. As crianças percebem isso, elas não estão alheias. Elas estão tentando se valer de seus recursos, poucos ou muitos, com poucos ou muitos brinquedos, muito ou poucos dispositivos para gravar, elas estão se valendo do que é possível para produzir modos de estar visíveis no mundo. Essas crianças estão criando um modo performático de ser. Performático no sentido de que elas estão no mundo e estão aprendendo que tudo que fazem é para alguém ver. Alguém está observando e, se não está, é preciso fazer alguma coisa para que isso aconteça. É preciso estar visível! Certa vez, a mãe da youtuber Juliana Baltar precisou explicar que não estava divorciada do marido. A informação começou a circular nos comentários do canal depois que, em outro vídeo, Juliana disse que tinha uma bicama para a mãe dormir com ela. Mãe e filha esclareceram, então, que o pai tem um trabalho que exige periodicamente sua ausência de casa. Tudo que a família faz e vive entra na pauta dos vídeos, ampliando a interação social de todos os membros da família.
Amanda Antunes – As novas mídias desencadeiam um processo de configuração de novas subjetividades infantis? Ou seriam apenas novos espaços para essas afirmações?
Renata Tomaz – Eu acredito que existem, sim, subjetividades sendo produzidas nesse movimento das novas mídias. Como são essas subjetividades? Quais são as variáveis que estão inseridas na sua estruturação? Entender a construção histórica da infância moderna e de um indivíduo invisível é fundamental para compreender as mudanças que ocorrem atualmente. As crianças estão buscando formas de se tornar gradativamente mais vistas, o que incide na forma delas estarem e serem no mundo. Essas mudanças vão influenciar no tipo de brincadeira das crianças e no tipo de roupa que elas usam.
Nesse caminho, a criança é exposta a múltiplos significantes que, muitas vezes, geram conflitos e tensões. Por exemplo, uma youtuber vai mostrar a boneca que ganhou de presente de Natal, ela diz: “Olha, gente, eu ganhei essa boneca da minha avó... ou... uma loja me mandou”. Mostrar brinquedos é uma coisa que essas crianças youtubers fazem muito. No entanto, quando a gente vai ver a repercussão nos comentários, vai ter muitas crianças parabenizando, mas também comentários dizendo que essas meninas são muito exibidas, metidas, que elas se acham melhores do que as outras. É claro que alguns pais vão colocar filtros para tentar amenizar esses inúmeros sentidos que serão produzidos a partir da imagem das suas filhas na internet. Mas não há um controle sobre isso e essas crianças vão ter que lidar com as múltiplas imagens que são produzidas a partir de si mesmas.
Amanda Antunes – O que se observa com o aumento do protagonismo infantil na televisão e na internet é um processo de influência social das crianças como um papel de referência para os seus pares, sobretudo em relação ao consumo. Como você avalia esse papel das crianças enquanto influenciadoras de seus pares?
Renata Tomaz – É muito perceptível como as crianças vão se tornar também essa referência para outras crianças no mundo do consumo. Cresci em um tempo em que as minhas principais referências de ser alguém eram adultos: mãe, tias, professoras, amigas da mãe. O adulto era essa figura influenciadora da criança. Que tipo de pessoa você quer ser? Que tipo de adulto você vai ser? Esses são tipos de pergunta que a gente faz para a criança. Mas, nas últimas décadas, a gente vê uma valorização muito grande da figura do jovem. Quer dizer, existe uma juvenilização da sociedade que faz com que os mais velhos queiram parecer mais novos e vão em busca desse tipo de comportamento. Isso tudo também vai produzir um movimento na outra ponta: as crianças que irão parecer jovens. Mas aí, do lado das crianças, o movimento é diferente, porque para elas ser como os jovens, elas precisam crescer. Esse processo de juvenilização da sociedade vai fazer com que as crianças queiram ser adolescentes. O que a gente pode observar com essa presença cada vez mais massiva das crianças na internet é elas próprias se tornando essa referência para outras crianças.
Quando a gente perguntava para as crianças o que elas queriam ser, elas diziam que queriam ser youtubers, igual à Bel ou à Júlia Silva. É claro que, em alguns momentos, elas diziam que queriam ser como figuras um pouco mais adultas como a Kéfera, do canal 5Minutos. Mas, uma maioria significativa dizia que queria ser igual aos seus pares. Por que isso acontece? Porque elas perceberam que, embora essas meninas sejam crianças como elas, conseguiram um lugar de protagonismo social. Elas chegam à conclusão de que não precisam crescer. A pergunta da minha tese é essa: o que você vai ser antes de você crescer? Porque é claro que você vai ser alguém quando crescer. Mas a criança também pode ser alguém antes de crescer.
É evidente a associação disso tudo com a prática do consumo. As crianças não mostram apenas produtos que elas recebem de empresas para fazer uma forma de merchandising dos fabricantes, das marcas. Também estão fazendo, de uma forma diferente, uma prática bem mais antiga que é mostrar o que elas têm. Quem convive com criança sabe que quando você chega em uma casa onde a criança tem um quarto, a outra criança pergunta: “posso ver seu quarto? Posso ver o que você tem?” Isso vai levando as crianças a influenciarem umas às outras no sentido de ter um comportamento parecido e produtos consumidos de forma semelhante. Um dos vídeos que analisei era sobre um brinquedo que uma das youtubers havia recebido de um fabricante. Uma menina escreveu assim nos comentários: "gostei muito do seu anúncio. Vou pedir pra minha avó comprar". Mas ninguém tinha dito que aquilo era uma propaganda ou que aquilo era um conteúdo publicitário. Duas coisas ficaram claras nesse depoimento. Primeiro, há uma influência clara nos padrões de consumo das crianças sobre outras crianças. E, em segundo lugar, mostrou que elas facilmente detectam intenções mercadológicas.
Amanda Antunes – Existe uma tentativa de ser alguém dentro do escopo do reconhecimento, ou seja, do olhar do outro. A partir do momento que colocam isso na internet e as crianças percebem que essa visibilidade ampliada acontece é que elas notam que esse protagonismo se concretiza, só então elas têm a compreensão de que aquilo que estão fazendo é interessante ou gera um retorno de todo seu investimento.
Renata Tomaz – Isso mesmo! Qual é a diferença entre as situações de quando mostro um brinquedo ou alguma coisa para uma amiga no meu quarto e quando faço esse mesmo processo na internet? A diferença é que, na internet, ela pode ver quantas pessoas gostaram do que ela fez. Isso é muito potente! Porque uma coisa é saber que uma amiga minha no meu quarto gostou do meu brinquedo ou do que fiz. Outra coisa é você saber que milhares de pessoas gostaram daquele acontecimento e do que você fez. Isso é muito absurdo e mexe muito com a criança. Eu me lembro de quando estava conversando com uma menina youtuber e ela estava me contando de como seria quando ela chegasse ao esperado um milhão de inscritos no seu canal. Então perguntei: por que é tão importante? Ela falou assim: “Cara! é um milhão de pessoas que gosta de mim!” Você tem noção do que é esse poder da quantificação, o alcance que isso tem? Isso reconfigura, e muito, as práticas das crianças!
Amanda Antunes – Parece ser um capital afetivo que pode ter relação com uma lógica midiática massiva. Falando dessas questões associadas às práticas de consumo, como nós estávamos falando antes, você sabe se existe algum tipo de regulamentação dessa prática do mundo virtual com as crianças?
Renata Tomaz – Não existe uma legislação específica para o uso que as crianças fazem da internet. Mas é claro que nós temos o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que é um documento legal que protege as crianças e, obviamente, vai dar as diretrizes de como a sociedade brasileira deve perceber essas dinâmicas. Também ocorre que todas as plataformas têm as suas regulamentações de uso. Então, todos os sites oferecem um lugar apresentando as suas regras de utilização. Mas, muitas vezes, no caso dos sites, essas regulamentações se limitam a colocar uma determinada idade para sua utilização. No caso do Brasil, o YouTube exige que seu usuário tenha no mínimo 18 anos para produzir e postar conteúdo. Nos Estados Unidos, a faixa etária é de 13 anos. Entretanto, a plataforma não exclui, por exemplo, os usuários brasileiros com menos de 18 anos que quebram as regras. A empresa lava as mãos, jogando toda a responsabilidade sobre os pais e sobre as próprias crianças pelo uso que elas fazem do site. Além disso, o próprio Estado deixa a cargo do mercado essas decisões.
O Estado, pelo menos no Brasil, não se mobiliza para observar essas ações. O que existe são alguns movimentos por parte da sociedade civil de tentar punir e fiscalizar minimamente essas empresas que assediam as crianças da internet. Aqui no Ministério Público do Rio de Janeiro, por exemplo, tem uma ação contra as empresas que estão enviando produtos para as crianças. Obviamente, essas empresas não pedem nem exigem que as crianças façam propaganda e vídeos. Mas está implícito, para não dizer explícito, que, ao ganhar determinado produto, essas crianças precisam mostrá-los nos vídeos. Até porque se pararem de mostrar esses produtos nos seus vídeos e canais, as empresas vão parar de mandar os presentes.
Amanda Antunes – Então existe a necessidade de se olhar para a internet e começar a produzir mecanismos de regularizar esses acontecimentos visando, principalmente, a uma seguridade ética.
Renata Tomaz – Nós temos uma categoria de trabalho para as crianças que é chamada de trabalho artístico infantil. Hoje, uma criança só é autorizada a exercer um trabalho artístico infantil no âmbito do Conselho Tutelar. Tem uma lei tramitando no Congresso Nacional que permitiria ao Ministério do Trabalho e não ao Conselho Tutelar arbitrar nessa decisão sobre o trabalho artístico infantil. Por que essa lei está tramitando lá? É claro que é para tornar mais fácil o exercício do trabalho das crianças nesse campo.
Amanda Antunes – Quais seriam os problemas éticos colocados pela emergência desse cenário das crianças nas novas mídias?
Renata Tomaz – Já ouvi muitas pessoas na universidade criticando a exposição das crianças. Elas diziam: “isso não é lugar para criança! Isso é muito perigoso!”. Mas observando muitos comentários e como as pessoas falavam com as crianças, fiquei várias vezes me perguntando: o que de fato incomoda boa parte das pessoas? Seria a exposição das crianças aos riscos? Ou também o fato de as crianças estarem dividindo esse bolo da visibilidade? Será que essas crianças youtubers também estariam nos incomodando porque elas estão disputando esse mercado, esses papéis de relevância e protagonismo social? Quando as pessoas falam assim: “aqui não é lugar de criança! Vai assistir TV Globinho!”. Alguns até dizem assim: “como pode essas crianças ficarem fazendo coisas inúteis e conseguem ter 5 milhões visualizações, enquanto o meu vídeo que é uma coisa tão útil, que me deu tanto trabalho, que realmente exigiu toda uma complexidade para ser feito, não tem tantas visualizações. Onde isso vai parar? O mundo está um absurdo!". Essa resistência ao protagonismo das crianças também estaria ligada à ideia de que estão disputando lugares com os adultos.
Uma segunda questão entre a ética e a visibilidade é a própria gestão da visibilidade. Qual é o problema? É a criança estar visível e exposta ou como e por que ela escolhe os modos pelos quais ela vai estar visível? Porque, na verdade, quem é que torna as crianças visíveis desde a barriga?! São os adultos! Porque são sempre os adultos que estão por trás dessa visibilidade das crianças. O tempo todo nós estamos tornando as nossas crianças visíveis. E quando a gente vê esse movimento das crianças tornarem-se visíveis, a gente se apavora, acha perigoso. Então, o problema é a visibilidade das crianças, ou o fato de que, em alguns momentos, são elas que estão criando essa visibilidade?
Além disso, é muito difícil olhar para esse objeto de pesquisa sem perguntar: o que essas crianças estão fazendo é trabalho? Eu perguntei para uma dessas meninas que eu estava pesquisando: “Juliana, você acha que seu site é trabalho?”. Ela disse que, de certa forma, é um trabalho porque aquilo envolve uma certa responsabilidade. Essa é uma pergunta particularmente penosa, porque no nosso país há muitas crianças trabalhando nos semáforos, nas lavouras. Todas essas crianças estão trabalhando no país, embora elas tenham o direito de não trabalhar. De que forma elas poderão produzir sem ser exploradas em função disso?
Por fim, há um desafio teórico, político, ético. Diz respeito a pensar as crianças dentro das nossas reflexões sobre o direito da infância. Elas têm direito à participação, bem como à provisão e proteção. Hoje, quando falamos em participação, falamos necessariamente em visibilidade. Não basta que alguém me represente no Congresso, é requerido que cada um tenha espaços legítimos de apresentar suas demandas. É impossível passarmos por essa discussão sem nos questionarmos: como garantir o direito de participação das crianças e, nesse sentido, garantir a elas uma visibilidade, sem ferir um outro direito que elas têm, o direito de proteção? Em outras palavras: qual é a articulação necessária para garantir a participação das crianças sem ferir seu direito à proteção?
Amanda Antunes – Obrigada por falar para a DESidades a respeito de um tema tão fascinante!
Renata Tomaz – Eu que agradeço!
Data de recebimento: 11/09/2017
Data de aceite: 13/12/2017
I Renata Tomaz: Jornalista. Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde realiza Pós-doutorado na Escola de Comunicação, com bolsa FAPERJ. Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Mídia, Emoções e Sociabilidade. E-mail: renatactomaz@gmail.com
II Amanda Almeida Antunes: Publicitária. Doutoranda em Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa Juventudes Cariocas, suas Culturas e Representações Midiáticas. E-mail: amandaantunesrj@gmail.com