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Desidades

 ISSN 2318-9282

     

 

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“É o preço de um almoço”: Reflexões sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes no sertão do pajeú1 pernambucano - Brasil

 

“Es el precio de un almuerzo”: reflexiones sobre la explotación sexual de niñas y adolescentes en sertón  de pajeú pernambucano - Brasil

 

 

Marjorie Thaynnan Pereira da SilvaI, Epitácio Nunes de Souza NetoII, Normando José Queiroz VianaIII

I Faculdade de Integração do Sertão (FIS), Serra Talhada/PE, Brasil.

II Faculdade de Integração do Sertão (FIS), Serra Talhada/PE, Brasil.

III Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), PA, Brasil.

 

 


RESUMO

Este artigo busca compreender os fatores envolvidos no fenômeno da exploração sexual de crianças e adolescentes – ESCCA – a partir da percepção de caminhoneiros que cruzam as estradas e rodovias do Sertão do Pajeú, em Pernambuco. O grupo de amostragem foi composto por 21 caminhoneiros que utilizam os postos de gasolina instalados próximos à BR 232, no município de Serra Talhada, como ponto de apoio e local de pernoite. A desigualdade social, a cultura adultocêntrica e as relações de gênero figuram como importantes fatores que parecem contribuir para o processo de naturalização do fenômeno entre os sujeitos investigados. Apesar de conceberem criança e adolescente como sujeitos em desenvolvimento, entre muitos caminhoneiros, a recusa ou reprovação à prática da ESCCA está mais associada ao medo das implicações legais do que ao necessário e adequado processo de esclarecimento e conscientização sobre os direitos das crianças e adolescentes.

Palavras-chave: ESCCA, caminhoneiros, criança e adolescente.


RESUMEN

Em este artículo buscamos comprender los factores asociados al fenómeno de la explotación sexual de niñas y adolescentes – ENACS - desde el punto de vista de los camioneros que atraviesan las rutas y calles del Sertão de Pajeú, estado de Pernambuco. Nos remitimos a una muestra de 21 camioneros que utilizan las estaciones de servicio localizadas en las proximidades de la Ruta 232, municipalidad de Serra Talhada, como un punto de apoyo y lugar de pernocte. Los factores importantes que parecen contribuir con el proceso de naturalización del fenómeno investigado son la desigualdad social, la cultura centrada en el adulto y las relaciones de género. Identificamos que muchos de los camioneros reprueban o se recusan a practicar la ENACS por temor a las consecuencias legales. A pesar de percibir a las niñas y adolescentes como sujetos en proceso de desarrollo advertimos en los entrevistados la ausencia de mayores reflexiones sobre los derechos de los niños y adolescentes.

Palabras-clave: ESNA, camioneros, niños/as y adolescentes.


 

 

Introdução

A exploração sexual comercial de crianças e adolescentes – ESCCA – se configura como relação de mercantilização e abuso do corpo de crianças e adolescentes, promovida por exploradores sexuais através das grandes e complexas redes de comercialização local e global ou a partir da conivência de pais/responsáveis ou de consumidores do sexo pago (Souza Neto; Viana, 2015; Morais et al, 2007; Faleiros, 2000; Leal, 1999). A mesma se constitui como grave violação aos direitos da criança e é descrita pela Organização Internacional do Trabalho – OIT como uma das piores formas de trabalho infantil (Cerqueira-Santos et al, 2008). Violações aos direitos da criança e do adolescente resultam de relações assimétricas de poder consolidadas em uma cultura adultocêntrica e impactam suas dignidades e cidadanias. As múltiplas e complexas questões envolvidas na violação de direitos, somadas aos recortes de gênero, raça e etnia, ampliam o grau de vulnerabilidade a que algumas crianças e adolescentes estarão expostas (Gomes; Farias; Franco, 2017; Cegatti, 2017).

No Brasil, apesar de o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990) – estabelecer as responsabilidades da família, do Estado e da sociedade sobre a garantia dos direitos desta parcela da população como prioridade absoluta, percebe-se que a violência sexual presente na sociedade ainda representa grave violação que põe em risco o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes em todo o país. Um estudo da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI (2004) –, da Câmara dos Deputados do Governo Federal, identificou, no ano de 2003, em 23 estados brasileiros, 937 municípios onde a ESCCA se revelava prática recorrente. Deste total de municípios, 31,8% se concentrava na Região Nordeste; 25,7% na Região Sudeste; 17,3% na Região Sul; 13,6% na Região Centro-Oeste; e 11,6% na Região Norte. Em todas as regiões foram identificadas tanto a prática da prostituição quanto do tráfico de pessoas, da pornografia e do turismo sexual envolvendo crianças e adolescentes. O Nordeste apresentava o maior número de casos registrados.

Um relatório de Monitoramento de País sobre ESCCA, realizado pela ECPAT Internacional, e publicado em 2014, ressalta que os dados do Disque 100 revelam que, na estratificação das denúncias sobre violência sexual contra crianças e adolescentes, predominam os casos de abuso sexual, seguidos da exploração sexual, pornografia e tráfico de pessoas, com maior incidência na faixa etária de 07 a 14 anos. De acordo com os dados, somente nos anos de 2012 e 2013 foram registradas no Brasil 69.621 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes, totalizando uma média de 2.900 delações por mês. Apesar dos esforços dirigidos ao enfrentamento e combate à ESCCA, atualmente o país registra uma média diária de 87 queixas de violência sexual contra crianças e adolescentes.

Desigualdade social, vulnerabilidade socioeconômica, limitação do acesso a bens e serviços relacionados às diferentes políticas públicas, a exemplo das políticas de educação e saúde, assim como as vicissitudes do contexto da violência são, frequentemente, apontadas como os principais fatores que favorecem para que pais e/ou responsáveis, muitas vezes, submetam seus filhos às situações de exploração sexual (ECPAT, 2014; Libório; Castro, 2010; Viana, 2010). Outros estudos também apontam que alguns profissionais, pelas especificidades de suas atividades laborais, estarão mais propensos ao envolvimento com a ESCCA, atuando como clientes em um mercado clandestino e ilegal (Davidson; Taylor, 1996; Cerqueira-Santos; Rezende; Correa, 2010). Entre estes, se destacam os caminhoneiros, que cruzam as estradas, quase sempre, sozinhos. Tal especificidade parece favorecer seus engajamentos em práticas sexuais comerciais, não raro, com crianças e adolescentes (Cerqueira-Santos; Souza, 2015; Cerqueira-Santos et al, 2008; Koller, 2004).

Diversos dados do Fundo das Nações Unidas para Infância – UNICEF (2012) – apontam que as crianças estão entre as principais vítimas do tráfico de seres humanos para fins de prostituição. Também evidenciam que a exploração sexual de meninos e meninas acontece, com maior frequência, nas proximidades das rodovias, especialmente nos postos de gasolina. O grande fluxo de veículos e a constante circulação de pessoas em um mesmo local parecem favorecer a prática da ESCCA nestes locais, contando, muitas vezes, com a participação ativa de vários atores sociais, a exemplo dos próprios caminhoneiros, taxistas, comerciantes, donos de casas noturnas e familiares da criança/adolescente.

O VI Mapeamento de Pontos Vulneráveis à ESCCA nas Rodovias Federais Brasileiras, realizado pela Childhood Brasil, entre 2013 e 2014, registrou 1.969 pontos de risco e vulnerabilidade em todo o país. A estratificação dos números revela que a região Nordeste ocupa a segunda posição no ranking nacional, totalizando 475 pontos críticos, 19 a menos que a região Sudeste. Contudo, considerando os níveis de riscos classificados como “críticos”, “alto” e “médio”, a região Nordeste revela pontuações bem superiores. Em todas as regiões do país, os postos de gasolina foram destacados como os principais pontos de maior vulnerabilidade e risco para crianças e adolescentes.

Pernambuco tem se destacado como um dos estados com os maiores índices de ocorrências de ESCCA, com a prática da prostituição infanto-juvenil presente em 38,05% dos seus 184 municípios (Souza Neto, 2009). Na atualidade, a ESCCA ainda se faz prática comum, tanto na capital quanto nas demais regiões, especialmente, no sertão do Estado (Rios et al, 2009; Menezes-Santos; Rios, 2009; Souza Neto; Viana, 2011).

No Sertão do Pajeú pernambucano, microrregião formada por 20 municípios, Serra Talhada se destaca por sua forte economia, sendo responsável por 31,4% do Produto Interno Bruto – PIB – da Região (Tavares Neto et al, 2008). A inexistência de dados oficiais tem impossibilitado o mapeamento preciso do fenômeno da ESCCA, tanto no município, como na região. Contudo, a grande movimentação de caminhões nos postos de gasolina, bem como a constante circulação de crianças e adolescentes nas rodovias, especialmente na BR 232, alerta para as possíveis situações de vulnerabilidade e risco (Koller, 2004).

A partir dessas premissas, este estudo objetiva identificar como os caminhoneiros que transitam, pernoitam ou se hospedam em Serra Talhada compreendem o fenômeno da ESCCA. Busca assim, detectar a percepção dos sujeitos investigados sobre tal fenômeno, refletir sobre suas concepções acerca da infância e adolescência, bem como identificar até que ponto os mesmos se reconhecem como participantes ativos da violência sexual contra crianças e adolescentes. Em consonância com Morais et al (2007), acreditamos que a população de caminhoneiros precisa ser mais bem estudada, a fim de favorecer uma compreensão mais ampla acerca do que eles pensam sobre a ESCCA, como também sobre os fatores ou motivos que favorecem seus engajamentos com o referido fenômeno.

 

Violência sexual contra crianças e adolescentes

A violência contra crianças e adolescentes pode ser concebida como todo ato de maus tratos, negligência ou omissão, praticada por outras pessoas, sejam estas os pais, responsáveis, parentes, pessoas próximas ou não da família, bem como instituições. Este ato pode causar danos físicos, sexuais, morais e/ou psicológicos às vítimas. Se, por um lado, este tipo de violência se configura como descumprimento do poder/dever legal de proteção por parte do adulto e da sociedade, por outro, caracteriza um processo de coisificação da infância. Processo pelo qual se nega o direito que crianças e adolescentes possuem de serem concebidos e tratados como sujeitos em condições especiais de desenvolvimento (Deslandes; Assis; Santos, 2005).

Para Nunes e Sales (2016), a violência se configura como fenômeno social e de saúde pública, com maior exacerbação quando acontece com crianças e adolescentes, provocando impactos no desenvolvimento e grande repercussão no comportamento na vida adulta. Ressalta-se, assim, que tão importante quanto quantificar as formas de violência que acometem estes sujeitos, é saber diferenciar qual e como cada gênero sofre com os maus-tratos, haja vista que a intervenção deverá se dá em respeito às particularidades de cada caso. Neste sentido, para se caracterizar o gênero prevalente nos casos de violência faz-se necessário avaliar o tipo de violência perpetrada, considerando que a violência sexual tende a ser dirigida mais frequentemente às meninas e a física e a negligência, mais comumente dirigida aos meninos.

Segundo a OMS (2002), violência sexual é todo ato sexual não desejado, ou ações de comercialização e/ou utilização da sexualidade de uma pessoa mediante qualquer tipo de coerção. Sofrida em maior prevalência pelas mulheres, trata-se de uma das manifestações da violência de gênero mais cruéis e persistentes. Para Delalibera, Franco e Franco (2017), por muito tempo a violência sexual contra as mulheres foi considerada prática habitual, justificada e aceita por diferentes sociedades. A permanência da diferença/desequilíbrio de poder entre homens e mulheres tem permitido a perpetuação da mesma enquanto fenômeno que demanda estudos e análises mais amplos.

Scott (1988; 1995) propõe que o conceito de gênero é fundamental para explicar como as diferenças são transformadas em desigualdades através de um processo histórico, político e relacional de dominação masculina sob o feminino. Em sua concepção, o salto de uma discussão centrada na natureza para uma reflexão crítica sobre a política das relações permitiu o processo de desconstrução dos estereótipos e de luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. Assim, o construto gênero também passa a ser entendido como primevo na significação das relações de poder, sendo necessária sua redefinição e reestruturação de modo articulado a um senso de igualdade política e social que também abarca classe e raça.

Dentre as modalidades de violência, o abuso sexual revela-se uma das mais cruéis, afetando a dimensão física, moral e a autoestima das vítimas. Abuso sexual pode ser definido como todo e qualquer ato de sedução ou jogo sexual entre um adulto e uma criança/adolescente, podendo ou não haver contato físico e uso de força (Rios et al, 2009; Ungaretti, 2010). Segundo a OMS (1999), os maus-tratos sexuais devem ser entendidos como atividades de caráter sexual, exercidas por uma pessoa mais velha contra uma criança ou adolescente, objetivando prazer sexual por parte do agressor. Inclui os abusos sensoriais, que abrangem a pornografia, o exibicionismo e a linguagem sexualizada; os estímulos sexuais, que podem envolver as carícias e toques nas genitálias e a masturbação; e o ato sexual propriamente dito, caracterizado pela realização, ou tentativa, de conjunção carnal (Souza Neto; Viana, 2015).

Já a exploração sexual, de natureza complexa e multifacetada, se configura como prática cruel e criminosa, capaz de provocar danos profundos no corpo e na alma das vítimas. Trata-se de um fenômeno mundial não associado, exclusivamente, à pobreza e/ou miséria, que afeta todas as classes sociais e está diretamente ligado a aspectos culturais, bem como, às questões de gênero, de faixa etárias, de raça e condição socioeconômica, cuja prática se faz comumente coligada às redes de exploração sexual em suas diferentes expressões (Souza Neto; Viana, 2015; Figueiredo; Bochi, 2010).

Tanto as situações de pobreza como a violência intra e extrafamiliar são frequentemente apontadas como fundamentais para que milhares de meninas e meninos se tornem mais expostos aos riscos da violência sexual e de outros tantos tipos de violação de direitos (Libório, 2005). Ainda que as mesmas não sejam, em si, determinantes para o ingresso de crianças ou adolescentes nas redes de exploração sexual comercial, é inegável suas configurações enquanto fatores de vulnerabilidade bastante significativos (Figueiredo; Bochi, 2010).

 

A Participação dos Caminhoneiros no Fenômeno da ESCCA

No contexto da ESCCA, seja nas ruas dos grandes centros urbanos ou mesmo nas das pequenas cidades de Pernambuco, não raramente se constata a abordagem por parte de adultos, especialmente do sexo masculino, com propósitos sexuais, dirigidas a crianças e adolescentes. Se, na capital Recife, tais situações podem ser facilmente identificadas em pontos estratégicos (Souza Neto; Viana, 2015; Souza Neto, 2009), no Sertão do Pajeú, cenas similares são facilmente observadas nas estradas e rodovias e, em especial, nos postos de gasolina que servem, muitas vezes, como ponto de apoio e de concentração para caminhoneiros em viagem. Segundo Morais et al (2007), os caminhoneiros se destacam como importantes personagens envolvidos no fenômeno da ESCCA, juntamente com os pais/responsáveis das crianças, policiais, taxistas e donos de boates.

Um estudo abrangendo o período de 2005 a 2010, promovido pela Childhood Brasil, revela o perfil do caminhoneiro brasileiro, destacando como seu envolvimento com a ESCCA tem se mostrado situacional, moldado por variáveis pessoais – que incluem as próprias crenças éticas, morais e religiosas –; contextuais – caracterizadas pela influência do grupo social –; e culturais – respaldadas pela naturalização da violência contra crianças e adolescentes. Os dados revelaram ainda significativo conhecimento dos caminhoneiros sobre o fenômeno, bem como a clara percepção dos mesmos acerca dos impactos da ESCCA sobre a saúde física e mental das crianças e adolescentes vitimadas.

A replicação do estudo junto a caminhoneiros de empresas privadas, no período de 2013/2014, evidenciou a recorrente utilização de argumentos de cunho moral, legal e pessoal, como principais motivos para o não envolvimento sexual com crianças e adolescentes. Segundo os dados, para 95% dos participantes, a prostituição é uma prática comum nos postos de gasolina e nas estradas por onde circulam. Para 79,1%, é bastante comum verificar o envolvimento de meninos e meninas com menos de 18 anos nas práticas de prostituição nestes locais. Relativo à rede de proteção às crianças e adolescentes, os dados evidenciaram que os caminhoneiros possuíam conhecimentos específicos e gerais sobre as leis, equipamentos e serviços voltados à fiscalização e enfrentamento à ESCCA.

Dentre os principais equipamentos e serviços, foram destacados o Conselho Tutelar, o Disque 100, o Juizado da Infância e Adolescência, o ECA, os Centros de Referência Especializados da Assistência Social – CREAS –, os Centros de Referência da Assistência Social – CRAS – e a Delegacia da Criança e do Adolescente (Cerqueira-Santos, 2010).

 

Desenho de pesquisa e demais questões metodológicas

O presente estudo parte de uma perspectiva qualitativa e se apresenta como estudo etnográfico, exploratório e descritivo. Tem como área de abrangência o Sertão do Pajeú, em Pernambuco, com foco na experiência de Serra Talhada, cidade-polo da região. A amostra do estudo consta de um contingente de 21 participantes, de sexo masculino, com idades entre 30 e 50 anos, que trabalham como caminhoneiros. No tocante ao método utilizado para coleta de dados, foi adotada a observação participante, a qual se deu em 02 postos de gasolina situados nas imediações da BR 232.

Quando da realização do campo, também foi aplicado aos participantes um questionário sociodemográfico, objetivando levantar o perfil da amostra, bem como as concepções dos mesmos sobre infância e adolescência, sobre os motivos implicados na inserção de crianças e adolescentes no universo da prostituição e sobre as razões favoráveis e contrárias ao engajamento sexual entre os caminhoneiros e as crianças e os adolescentes.

Durante o desenvolvimento da pesquisa, foram observados os aspectos éticos, de acordo com as normas para estudos envolvendo seres humanos, considerando a capacidade e direito dos próprios participantes em conceder seu consentimento livre e esclarecido, mediante a apresentação de informações precisas e seguras sobre a investigação e seus objetivos, bem como a garantia do sigilo sobre suas identidades.

 

Resultados e discussão

A análise dos dados revelou que os integrantes da amostra do estudo se encontram na faixa etária dos 30 aos 50 anos de idade, são analfabetos funcionais, com nível de escolarização restrita ao Ensino Fundamental I incompleto, e atuam na função há mais de 05 anos.

O campo da pesquisa evidenciou que, de modo geral, os caminhoneiros viajavam sozinhos, porém, em algumas situações, registrava-se a companhia de esposas, companheiras e filhos. Durante a noite, era comum a formação de rodas de conversas que, em geral, envolviam bebidas alcoólicas. Muitos dormiam dentro dos próprios veículos, enquanto outros dormiam em redes armadas nas estruturas externas dos caminhões.

Alguns dos caminhoneiros tomavam banho, se arrumavam e saiam para conhecer a cidade, às vezes em duplas, em grupos ou sozinhos, e não pernoitavam no local. Nas estradas da região, identificou-se considerável fluxo de mulheres, paradas em pontos estratégicos ou caminhando pela BR 232 em direção a um dos postos de gasolina. Algumas delas pediam carona e embarcavam nos caminhões ainda na estrada. Quando questionados sobre o fato, alguns caminhoneiros afirmaram se tratar de prostitutas que atuavam diariamente na rodovia. Ressalta-se que, durante a pesquisa, não foi registrada a presença de crianças e adolescentes nos dois postos de gasolina, apesar de alguns participantes declararem que é bastante comum a oferta de serviços sexuais por parte de meninas novas, sem, contudo, definição clara de suas idades.

Quanto à concepção acerca da infância, destaca-se que, para a maioria dos caminhoneiros, tal estágio da vida é concebido como “período de inocência” ou de “desenvolvimento”. Para sua descrição, também foram utilizadas expressões como “sagrada” e “fase de obrigações”. Relativo aos principais motivos que acreditam contribuir para a inserção de crianças e adolescentes no universo da prostituição, mostrou-se recorrente entre os caminhoneiros o discurso de que “elas gostam de sexo e têm prazer com isso”, e que muitas estavam nessa situação devido ao “uso de drogas”, como destacado por Alencar, 31 anos, casado, católico.

Alguns dos participantes destacaram ainda a prostituição como resultado ou reflexo da condição de pobreza, salientando que, quanto mais pobre a região do país, mais barato se paga pelos serviços sexuais “oferecidos” por crianças e adolescentes. Outros, por sua vez, ressaltaram que os valores pagos pelas interações sexuais com crianças e adolescentes nas regiões Norte e Nordeste são inferiores aos valores pagos nas regiões Sul e Sudeste. De acordo com Marcos, 32 anos, solteiro, católico, o valor pago no Sertão do Pajeú, muitas vezes, “equivale ao preço de um almoço”.

A falta de educação e orientação por parte dos pais/responsáveis também foi apontada como fator decisivo para a inserção de crianças e adolescentes no comércio sexual. Para muitos dos caminhoneiros, as crianças e adolescentes, na maioria das vezes, “são exploradas ou obrigadas a se prostituir por alguém”, seja por membros da própria família ou por cafetinas, devido às “necessidades financeiras da família”, como sinalizado por Betinho, 33 anos, solteiro, evangélico.

Referente aos motivos pelos quais alguns homens adultos resolvem se relacionar sexualmente com crianças e adolescentes, muitos destacaram a busca por “maior excitação e prazer”, ressaltando que esse maior prazer estará, quase sempre, associado ao padrão de “beleza da juventude”, imposto, hegemonicamente, pela sociedade e pela mídia e, consequentemente, incorporada pelos sujeitos. Para Ferreira, 40 anos, sem religião, divorciado, a “menina nova dá mais tesão porque é mais gostosa”. Entre alguns caminhoneiros, a fantasia e a curiosidade foram sinalizadas como fatores motivadores para as interações sexuais com crianças e adolescentes, pelas quais alegaram se sentir mais poderosos e, deste modo, em certa medida, conseguiam reafirmar suas masculinidades e, assim, fortalecer a autoestima.

Outro fator que parece contribuir para a naturalização do envolvimento sexual com crianças e adolescentes entre os caminhoneiros parece se respaldar na tese da carência afetiva e das necessidades fisiológicas, argumentos recorrentes em seus discursos. A solidão imposta pelo trabalho, assim como a distância da família e da esposa ou companheira, aliadas à grande oferta de serviços sexuais e aos baixos preços cobrados, parecem se revelar como impulsionadores para que tais práticas sejam concebidas e/ou reconhecidas entre os sujeitos participantes como naturais e corriqueiras.

Por sua vez, dentre os motivos pelos quais alguns caminhoneiros se mostraram contrários a tal prática, destacam-se os princípios morais, os quais ocupam um lugar fundamental quando da referida negativa. Para a maioria, o envolvimento com crianças e adolescentes se justificaria pela “safadeza e pela falta de vergonha na cara por parte dos adultos”. Entre os caminhoneiros que afirmaram nunca ter se relacionado sexualmente com crianças e adolescentes, a principal justificativa consistiu no fato de “que é como se fossem nossas filhas e netas”, como destacado por Freire, 36 anos, casado, católico. Assim, a moralidade parece, muitas vezes, simbolicamente associada à concepção de respeito e de proteção à própria família do agressor.

Apesar do forte apelo moral, muitos deles também revelaram preocupação com doenças sexualmente transmissíveis, parecendo reafirmar uma conduta comportamental fortemente marcada pela manutenção da própria saúde e da família. Segundo Sergio, 31 anos, católico, casado, “muitos dos caminhoneiros nunca ficaram com essas meninas somente por medo das doenças venéreas”. Para outros, como Pedro, 44 anos, evangélico, casado, “existe alto índice de doenças nesse meio”, o que justificaria o fato de “nunca ter saído com essa gurizada que se oferece nos postos de gasolina”.

A questão legal, bem como suas implicações, também figura como fatores inibidores à prática da ESCCA. Entre os caminhoneiros, evidencia-se grande preocupação em evitar problemas com a justiça. Para muitos, é bastante claro que a interação sexual com crianças e adolescentes “dá problema, encrenca e cadeia”. Para outros, tal prática “é problema na certa”, ou mais popularmente, “chave de cadeia”, e “porque a gente tem medo de ser pego”, como destaca Carlos, 37 anos, solteiro, sem religião.

Entre os entrevistados, a polícia tem uma representação bastante negativa, constantemente descrita como corrupta. Para muitos, existe, inclusive, uma “associação direta de policiais com as meninas que se prostituem”. Em seus discursos, foi destacado que, em algumas situações, “os policiais arrumam os flagrantes quando os caminhoneiros estão com as meninas, para extorquir dinheiro”, como evidenciado por João, 29 anos, solteiro, católico.

Os discursos salientam ainda que o fenômeno da ESCCA envolve muitos outros atores, além das vitimas e dos agressores diretos – os clientes. Nesse sentido, Carlos, 39 anos, casado, sem religião, relata que uma única vez se envolveu com “uma dessas garotas que se prostituía”, contudo, “a experiência foi sem graça porque fiquei preocupado com a polícia”. Na concepção dos caminhoneiros, a polícia figura muito mais como representação direta de perigo e corrupção do que como agente ou serviço destinado à prevenção e ao enfrentamento da ESCCA. Assim, de modo geral, entre muitos dos participantes, a recusa ou reprovação a tal prática parece muito mais relacionada ao medo da extorsão e das implicações legais do que resultante de um necessário e adequado processo de esclarecimento e conscientização sobre os direitos das crianças e adolescentes.

 

Considerações

No Sertão do Pajeú, a ESCCA ainda é tema pouco explorado pela academia científica e políticas públicas. As redes de exploração sexual parecem consolidadas no interior pernambucano, vitimando milhares de crianças e adolescentes inseridos no mercado sexual, devido, especialmente, a questões inerentes à vulnerabilidade socioeconômica das famílias. Os caminhoneiros têm se destacado como importantes atores, frequentes consumidores dos serviços sexuais oferecidos nas estradas e rodovias que cortam o Brasil. Apesar de majoritariamente conceberem a infância como período de desenvolvimento, contraditoriamente, afirmam acreditar que as crianças e adolescentes vitimadas gostam ou sentem prazer durante as interações sexuais com adultos. Para muitos, a situação socioeconômica das famílias é a principal justificativa para suas inserções no mercado do sexo.

Por sua vez, entre os caminhoneiros, em sua maioria homens adultos que viajam sozinhos, o argumento das necessidades fisiológicas, a grande oferta de serviços sexuais nas estradas e os baixos valores cobrados figuram entre os argumentos discursivos recorrentes. Os dados evidenciam que, de modo geral, a recusa e reprovação à prática da ESCCA entre os caminhoneiros estão muito mais associadas ao medo da polícia, às possíveis implicações legais e aos riscos de contaminação por doenças sexualmente transmissíveis do que ao adequado e necessário processo de educação e conscientização acerca dos direitos das crianças e adolescentes.

Acreditamos que a relevância deste estudo está fundada na importância de refletir sobre como os caminhoneiros compreendem o fenômeno da ESCCA, favorecendo análises futuras sobre o fato de os mesmos se reconhecerem ou não como participantes ativos da violência sexual contra crianças e adolescentes. Destacamos a urgência na implementação de programas de educação dirigidos aos caminhoneiros da região, em direta articulação com os órgãos governamentais e sociedade civil, como forma de garantir os direitos das crianças e adolescentes no Sertão pernambucano.

 

 

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Data de recebimento: 31/07/2017
Data de aceite: 04/01/2018

 

 

1 Trata-se de uma vasta região geográfica semi-árida do Nordeste do Brasil.

 

 

I Marjorie Thaynnan Pereira da Silva: Bacharel em Administração de Empresas pela Faculdade de Integração do Sertão (FIS), Serra Talhada – Pernambuco, Brasil. E-mail: marjorie.taai@gmail.com

II Epitácio Nunes de Souza Neto: Doutorando em Psicologia pela Universidad del Salvador (USAL), Buenos Aires – Argentina. Doutorando em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil. Professor na Faculdade de Integração do Sertão (FIS), Serra Talhada – Pernambuco, Brasil. E-mail: ensouzaneto@gmail.com

III Normando José Queiroz Viana: Doutor em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil. Professor Adjunto de Psicologia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), Brasil. E-mail: normando.viana@unifesspa.edu.br

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