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Desidades

 ISSN 2318-9282

     

 

ESPAÇO ABERTO

 

Infância e ditadura: as marcas de uma experiência de controle e disciplinamento

 

Infancia e dictadura: las huellas de una experiencia de control y disciplinamiento

 

 

Entrevista de Alejandra EstevezI com Valeria LlobetII

II Universidad Nacional de San Martin, Buenos Aires, Argentina.

II Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

O tema percorrido nessa conversa deságua em duas vertentes. De um lado, versa sobre as causas e consequências da espinhosa relação entre os direitos das crianças e os conceitos de vulnerabilidade e subordinação. Depois, se desenrola na análise da experiência de controle e disciplinamento forçado pelo Estado para a manutenção de períodos ditatoriais e nos oferece um mergulho nas entrelinhas das relações de poder entre adultos e crianças. Nesse caso, a análise aponta para a família e a relação entre pais e filhos como um importante núcleo de produção de personalidades autoritárias que perpetuam um jeito de ser que também é produtor desses momentos históricos.

Palavras-chave: infância, vulnerabilidade, direitos da criança, ditadura, Argentina.

RESUMEN

El tema recorrido en esta conversación desagua en dos vertientes. De un lado versa sobre las causas y consecuencias de la espinosa relación entre los derechos de los niños y los conceptos de vulnerabilidad y subordinación. Después se desenvuelve en el análisis de la experiencia de control y disciplinamiento forzado por el Estado para el mantenimiento de periodos dictatoriales y nos ofrece la posibilidad de sumergirnos en las entrelineas de las relaciones de poder entre adultos y niños. En este caso, el análisis apunta a la familia y a la relación entre padres e hijos como un importante núcleo de producción de personalidades autoritarias que perpetúan una forma de ser que también es productora de estos momentos históricos.

Palabras clave: infancia, vulnerabilidad, derechos de los niños, dictadura, Argentina.


 

 

Alejandra Estevez - Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à revista pelo convite que fizeram a nós duas. Gostei muito de conhecer sua obra e seu trabalho. Gostaria que você pudesse falar um pouco sobre sua formação e como tem chegado nesse tema da infância na ditadura. Começou exatamente nesse foco, ou com um interesse mais geral pela temática contemporânea e depois se confrontou com o tema da ditadura?

Valeria Llobet - Eu comecei minha trajetória em temas da infância muito cedo na minha formação na graduação, e esses questionamentos foram me direcionando para o tema das desigualdades na contemporaneidade. Foquei-me, sobretudo em crianças em situação de rua. Meus primeiros interesses foram em torno das desigualdades na infância e sua expressão na situação das crianças na rua. Abordei isso a partir da perspectiva que as crianças geravam sobre sua experiência, primeiro, a partir do trabalho infantil como uma categoria que as próprias crianças utilizavam para recuperar sua experiência de uma maneira menos estigmatizada: o fato de estar na rua como um trabalho. Esses foram, de fato, trabalhos durante minha graduação. Sou formada em psicologia e minha tese começou muito próxima das preocupações mais tradicionais da Psicologia, vinha do lado da saúde pública, da psicologia preventiva, da epidemiologia, e então me perguntava, nesse momento, se a perspectiva de direitos da criança era uma perspectiva que transformava as instituições em um arranjo mais “saudável” para as crianças. Esses questionamentos vinham vinculados à ideia dos direitos como uma ferramenta de emancipação, que também tem uma relação com a saúde mental. Num certo momento, o movimento de saúde mental e antimanicomial, tanto no Brasil como na Argentina, vinculou-se à luta pelos direitos humanos. Essas eram lutas que também estavam envolvidas com a recuperação democrática e com a ideia de que os direitos dos pacientes psiquiátricos, os direitos das pessoas encarceradas, das pessoas em instituições totais, também estão dialogando com uma busca de maior autonomia, de emancipação e de menos submissão, ou a transformação da submissão em emancipação. Minha tese de doutorado se transformou na direção de pensar os temas a partir de um ponto de vista social, e a própria tese teve uma inquietude vinculada às transformações históricas, os problemas do mundo contemporâneo. Cheguei à ditadura como um tema específico só recentemente, nos últimos cinco anos.

Alejandra Estevez - Então, a partir de seus estudos com crianças na rua, existe um olhar mais contemporâneo onde há uma maior aproximação com as discussões dos direitos humanos de maneira mais geral, que passam pela ditadura na Argentina de forma muito forte. Quais são os resultados deste novo foco? É um projeto de pesquisa que tem proposto tratar especificamente da ditadura?

Valeria Llobet - A vinculação com o tema da ditadura é tanto teórica quanto política, a partir da discussão mais geral de direitos humanos. Na Argentina, quem, assim como eu, estuda o tema da infância e dos direitos, não pode deixar de considerar algumas manifestações de certas organizações que lutam pelos direitos humanos, particularmente o grupo “Avós da Praça de Maio”.1 Então, todo tema das políticas para a infância tem uma vinculação mais ou menos direta com a ditadura. Mas, além da posição por parte desses organismos de direitos humanos, a coincidência histórica da recuperação democrática e a discussão sobre os direitos das crianças a nível mundial, há também uma questão biográfica: eu fui criança durante a ditadura, tenho uma vinculação pessoal com o tema, dado que foi uma marca biográfica importante para mim. De alguma maneira, as discussões dos últimos anos em relação a esse tema sofreram uma estagnação com uma espécie de recuperação do discurso mais de direita. Um discurso que busca silenciar o passado, uma espécie de posição pública cada vez mais legitimada que diz que “já está bom, já não é necessário seguir discutindo a ditadura”. Tudo isso justamente no momento em que se começava a perceber o compromisso da população civil e em particular de alguns grandes empresários. Bom, isso criou um contexto de relevância para relançar uma pergunta sobre a ditadura como o cotidiano, a ditadura como o comum, e pensar a infância a partir daí.

Alejandra Estevez - Geralmente, a historiografia sobre a ditadura focou justamente os grupos organizados, e você vem e coloca o foco no cotidiano, na infância, no que tem de mais simples, de filhos de pais que não necessariamente estavam envolvidos com a ditadura e nos ajudando a perceber como era essa sociedade na sua forma mais crua. Gostaria que pudesse contar melhor como era ser criança na ditadura na Argentina, o que tem sido descoberto neste percurso investigativo.

Valeria Llobet - A verdade é que, como sempre, o olhar sobre a trajetória biográfica e sobre o lugar da infância nessa trajetória biográfica sempre tem um lado relativamente melancólico que temos que tentar evitar, duvidar ou analisar, não é verdade? Nesse sentido, o que eu tenho colhido é como nós que hoje somos adultos vemos essa infância e como a reconstruímos. A memória biográfica ou a narrativa biográfica é sempre uma narrativa a posteriori, mas, ao mesmo tempo, é uma narrativa que nos permite olhar algumas das marcas mais significativas. A ideia das marcas da experiência como aqueles momentos em que um conjunto de questões teve lugar e de alguma maneira marcou a pessoa. Eu acredito que essas marcas estão em duas coisas: por um lado, o que é construído a posteriori, como uma narrativa que vem a fazer sentido a partir do tempo presente, mas também são marcas de uma experiência que foi significativa para a criança. Com essa consideração, por um lado, o que encontro é um descobrimento adiantado da presença da ditadura. Quero dizer, meninos e meninas, todos em algum momento – inclusive crianças que eram muito pequenas – se deram conta que havia algo nebuloso, uma ditadura. Essas crianças de alguma forma percebiam que havia uma ordem que gerava algo vinculado com o terror, com a mentira, ou com a dupla moral, com uma dobra da realidade.

E isso, no meu ponto de vista, é muito importante porque, por um lado, marca a impossibilidade ou mostra como infrutífera a ideia da inocência ignorante criada pelos adultos e, por outro, permite entender não somente a extensão da ordem ditatorial, senão precisamente sua sintonia com dimensões da vida cotidiana. Isto é, o fato de certas formas de construção das relações sociais, em particular de gênero e idade, nesse momento histórico, ainda terem muita sintonia autoritária com a ordem que pretendia reinstaurar a ditadura.

Quero dizer que não somente a ditadura estendia seus tentáculos na direção da ordem do privado em certos lugares, por exemplo, no interior do país, parece que há uma ordem do privado sustentada em relações de gênero e de idade particularmente autoritárias. Essas desigualdades estavam vinculadas a certos aspectos do conservadorismo moral que talvez nos centros urbanos tenham sido postos mais em questão, isto é, certas ordens de relação social que “sintonizavam bem” com o que a ditadura queria impor para a vida cotidiana. Esse conjunto de questões é também visualizado quando nos colocamos no nível do que as crianças viam naquele momento.

E, para mim, a outra questão é como meninos e meninas construíam a possibilidade de acessar o conhecimento social e político do momento “nas costas” dos adultos. Tendemos a aceitar assim, que a família é uma instituição socializadora na qual os adultos e as crianças interagem na socialização, e o que eu encontro também é um espaço no qual as crianças constroem, mais à frente, narrativas ocultas e espaços de ação ocultos, e que neles não somente valorizam a cultura de pares, mas também a ação individual da criança, o que ganha um espaço de compreensão da realidade. Também mostra uma forma de sociedade que, diferentemente da nossa, não estava olhando tanto para as crianças. Davam-lhe muito menos proteção, por um lado, mas, ao mesmo tempo, muito mais espaços de liberdade, contraditoriamente, porque também é um regime, um modo de organização no qual, quando as crianças entram no espectro de visibilidade dos adultos, a relação é muito mais autoritária e mais rígida que a de hoje.

Alejandra Estevez - Você fala dessas técnicas de controle, do disciplinamento e também de educação, o que eles deveriam ser, o que pensavam. Como vê as diferenças em termos de controle do Estado e das instituições de maneira geral, inclusive a família? Como era a diferença, em termos de tratamento, da estrutura estatal autoritária em relação às crianças em oposição aos adultos? Quais as similitudes e diferenças entre essas duas culturas?

Valeria Llobet - O Estado ditatorial tinha mais critérios que o etário. Isto é, um primeiro critério substantivo me parece que era, antes de “adultos” ou “crianças”, “terroristas a serem exterminados” versus “cidadãos aceitáveis”. Entre os terroristas a serem exterminados, existia um subgrupo que era o dos “terroristas a serem reeducados”. Houve um projeto de reeducação na “Escuela de Mecánica de la Armada” desenvolvido por alguns dos dirigentes da ditadura, no qual também se procurava a reeducação dos adultos como forma de mostrar o projeto sociocultural da ditadura como um projeto bem sucedido.

Dentro dessa ideia da reeducação ou da normalização de certos sujeitos, as crianças de famílias de “terroristas” – digo obviamente “terroristas” entre aspas, pois é o discurso da ditadura – eram implantadas ou transplantadas para famílias apropriadas, que eram as famílias apropriadoras e, nesse sentido, as crianças eram consideradas também como população reeducável. Essas crianças eram filhas de terroristas que precisavam ser reeducadas. Nesse ponto, a ditadura argentina é diferente da ditadura brasileira, por exemplo, porque, até onde eu sei, não sei se é exatamente assim, no caso do Brasil predominava o caráter mais racializado e, nesse sentido, mais do que se apropriar dos filhos dos militantes populares, a ditadura no Brasil tendia a exterminá-los. No caso argentino, como é bem sabido, houve apropriação das crianças das famílias dos militantes sociais, que foram entregues às famílias vinculadas aos militares.

Nesse sentido é que eu dizia que a política da ditadura fazia primar os critérios de “terrorista” versus “cidadão”, antes do critério “adulto/criança”. Porém, dentro do esquema das diferenças de tratamento das crianças e dos adultos, a ditadura, para as famílias “normais” – “normais” também entre aspas –, trazia uma ideia de responsabilidade dos pais pelo comportamento dos filhos. Responsabilidade extrema que tinha a ver com o controle da literatura a qual as crianças tinham acesso, do controle das amizades, do controle do que fora dito pelos professores na escola. A ditadura tinha uma política de comunicação que implicava que mães e pais deviam estar atentos ao que os professores dissessem para os seus filhos, os livros que os professores entregassem etc. Havia uma interpelação direta às mães e aos pais para que usassem de controle sobre tudo o que acontecia com seus filhos. Controle que não necessariamente era exercido, mas que, por exemplo, no nível da escola, funcionava como autocensura. Havia, de qualquer maneira, professores e professoras que se desviavam desse controle, e mães e pais que talvez exercessem esse controle, mas, aparentemente, no que eu posso ver, a maioria não exercia esse controle tão extremo que lhes era requerido pela ditadura.

Alejandra Estevez - Você pensa que isso pode ficar como legado para as futuras gerações de adultos? Quando essas crianças se transformam em adultos, quais são os impactos na área da psicologia social, quais os impactos subjetivos para esses sujeitos, adultos agora, que viveram esse passado autoritário, apesar de terem tido suas frestas de liberdade?

Valeria Llobet - Eu acho que há um ponto onde a ditadura se processa a nível intergeracional. Nós que hoje somos adultos e fomos crianças durante a ditadura acabamos por omitir ativamente uma pergunta sobre a posição dos nossos pais, que tem repercussão no nível dos vínculos intrafamiliares. A relação paterno-filial é tensionada a partir da possibilidade de colocar essa pergunta. No caso daqueles que a colocam e encontram nela uma resposta que vê os pais como culpáveis de ação ou omissão, isso tem uma consequência na relação paterno-filial, uma maior distância nessa relação, uma menor proximidade afetiva e um maior distanciamento identitário.

Há um aspecto que ainda não entendo por completo, porque ainda está em momento de análise. Esse aspecto é uma construção interessante da posição ideológica, da posição política. Há uma trama bem interessante que tem a ver com a identidade, com a sensibilidade, com dimensões muito subjetivas que constroem a posição política dos sujeitos, mas que claramente se entrelaçam de uma maneira muito complexa e essa trama chega até o nível da vida e da intimidade familiar, e que não se deriva diretamente: não há uma deriva direta da posição política da família e da sensibilidade da família e da posição dos adultos. Pelo menos nesse contexto, o que há são muitas rupturas, mais do que continuidades. Há uma experiência biográfica geracional na conformação da identidade política na qual os sujeitos são ativos, ao invés de uma transmissão da identidade política no ambiente da família como mera identificação ou herança.

A conjuntura de ter vivido a infância durante a ditadura e ter chegado à adolescência na recuperação democrática, com o que implicou de participação política naquele momento, é muito importante. Há uma posição que marca muito uma geração que teve majoritariamente uma participação política bastante ampla, ainda que seja nos primeiros três ou quatro anos da recuperação democrática.

A outra questão, que se dá nos planos intergeracional e biográfico desta relação com a ditadura, tem a ver com a questão de como se vinculam os adultos, não com seus pais, mas com seus filhos. Ali também há uma reconfiguração da autoridade, muito frágil, mas que me dá a sensação – e ainda é provisório porque eu não terminei de explorá-lo o suficiente – de que quem, como nós, viveu quando criança o autoritarismo ditatorial e esse autoritarismo nas relações familiares promovido pela ditadura, se coloca frente a autoridade parental de uma maneira mais difícil.

Por um lado, porque também o fazemos depois da Convenção dos Direitos da Criança, creio que é uma geração de pais e mães, sobretudo da classe média, que está muito marcada pela ideia da Convenção. Isto é, uma geração que promove, adota e se embandeira ao redor da Convenção dos Direitos da Criança, mas que, além disso, tem dificuldades para construir uma autoridade democrática, que vê isso como sumamente dificultoso.

Alejandra Estevez - Há, no Brasil, um grupo de militantes, uma organização de um coletivo que se autodenomina “Filhos e Netos” das vítimas da ditadura, sobretudo os militantes organizados. Eles se organizam a partir dessa identificação geracional para se posicionar no tempo presente, fazendo uma ponte entre o passado ditatorial e autoritário e chamando a atenção para discutir e rememorar este passado autoritário. Mas também demostrando sua continuidade no tempo presente, este autoritarismo do Estado que ainda permanece em nossas sociedades. Gostaria que comentasse um pouco acerca da existência de movimentos desse tipo organizados na Argentina.

Valeria Llobet - Não sei se é exatamente a mesma coisa, mas, na Argentina, em 1996/97, configurou-se a agrupação “H.I.J.O.S.”, “Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio”. “HIJOS” é uma agrupação de filhos e filhas de pais detidos, desaparecidos e assassinados pela ditadura, em que, posteriormente, também se incorporaram filhos e filhas do exílio.

A dimensão dos vínculos familiares articula muito da militância em torno da ditadura e, nos últimos dez anos, tivemos muita produção literária e fílmica a partir do ponto de vista da identidade como filho ou filha, o que tem a ver com a construção de um lugar de enunciação em relação a quem é concernido, quem tem uma voz legítima como vítima dentro desse esquema da ditadura. O que começou a ser discutido é qual a característica dessa geração posterior em relação aos fatos: trata-se de uma geração “pós” e, nesse sentido, se seria válido pensá-la a partir do ponto de vista da “pósmemória”, como a categoria de Hirsch para os crimes e o sofrimento da Shoá2, ou, como têm assinalado alguns autores, se é uma “geração 1.5”, uma geração que viveu mas que não foi agente da situação.

Eu acredito que, do ponto de vista do caráter direto ou indireto dos sujeitos a respeito dos fatos, parece ser um pouco infrutífero ou um pouco equivocado pensar que somos uma geração posterior, porque isso pressupõe que meninos e meninas não têm nenhum caráter político nem agentivo na sua capacidade de ação: sua ação é restrita, mediatizada ou circunscrita ao setor privado. E, nesse sentido, parece-me que – e algumas pesquisas mostram, entre elas a minha – meninos e meninas são atores históricos como quaisquer outros, que têm vivido essas circunstâncias como os outros atores. No caráter geracional, é possível ver como se processam através de diferentes categorias de diferenciação social essas relações sociais autoritárias e essas práticas políticas. Mas me parece que seria um erro considerar que as gerações são outorgadas por graus distintos de sofrimento. Eu acho que as categorias geracionais têm servido para ampliar os espectros das vítimas da ditadura e para construir lugares de enunciação para as pessoas que não se deram conta da responsabilidade própria, que foram muito necessários politicamente, e ainda são. Mas me parece que é preciso construir a possibilidade de pensar a geração como uma relação social e não somente como um momento da história.

Alejandra Estevez - Você citou uma produção fílmica, e eu destacaria dois filmes que abordam a questão da infância durante a ditadura: “O ano em que meus pais saíram de férias”, do cineasta brasileiro Cao Hamburger, e “Infancia clandestina”, do argentino Benjamín Avila. Gostaria que comentasse um pouco como a produção fílmica tem influenciado as discussões sobre esta temática.

Valeria Llobet - Acho que o percurso na Argentina, por exemplo, começa em 2002/03, o percurso fílmico dos filhos. E tem a ver com duas questões: por um lado, com uma questão, nesse caso, sim, geracional, que estritamente tem a ver com a chegada à vida adulta dos filhos (nos anos 2000, todos começaram a fazer 30 anos), e tem a ver com um contexto político no qual os organismos de direitos humanos passaram a ser um ponto de articulação central na memória institucionalizada. Então, a institucionalização da retórica dos organismos de direitos humanos sobre a ditadura outorgou uma legitimidade em si à posição de filhos e filhas que até aquele momento reclamavam justiça ante a impunidade dos crimes ditatoriais. Isto modifica o cenário e permite que essas vozes, essas posições subjetivas, se traduzam num olhar, numa narrativa sobre o passado.

Ali, tem um esquema muito variado de posições, que também se dá no Chile e no Uruguai, que tem a ver com uma lógica mais íntima de ser filho e de se perguntar por que os pais o abandonaram, numa narrativa que tem uma vinculação que é sintônica com a narrativa de qualquer pessoa que tenha sido abandonada pela sua mãe ou seu pai. E, nesse sentido, é uma posição estritamente subjetiva, mas que se conecta com o fato de que esse abandono não era escolhido nem era o centro da ação do adulto –que é o que diferencia o “abandono” como consequência do desaparecimento daquele “abandono” porque alguém não pode tomar conta de um filho – mas foi produzido pela ditadura. É o caso, por exemplo, de “Los rubios”, que é de 2003, de Albertina Carri, onde a narrativa toda do filme está construída em torno da pergunta “por que meus pais escolheram a militância em vez de mim?”. O polo oposto é a narrativa do filme de Benjamin Ávila, “Infancia clandestina, que é de alguns anos depois, onde a construção é: “meus pais construíram uma militância na qual eu já estava incluído”. Nesse sentido, a pergunta é sobre a experiência militar infantil, a experiência da clandestinidade como criança, e uma criança que é ator dessa militância. Um outro filme é “El edificio de los chilenos”, que é um pouco anterior ao “Infancia clandestina”, e tem um arco narrativo emocional de um ponto de vista bastante amplo: da recriminação dos pais pelas decisões tomadas em relação às crianças até a compreensão da militância paterna ou materna e sua aprovação.

Agora, uma parte da recepção desses filmes está determinada, ao menos na Argentina, por uma posição política do espectador: aqueles que têm uma proximidade com a militância social e de esquerda da década de 70 vão compreender o sofrimento produzido pela ditadura para com as famílias de ativistas numa perspectiva distinta daquelas pessoas que não têm essa proximidade. Aqueles que não têm essa proximidade tenderão a olhar para a prática da militância de mulheres que eram mães e homens que eram pais do ponto de vista da irresponsabilidade: “esses são pais irresponsáveis que faziam coisas que não devem ser feitas quando se tem filhos”, com uma distância moral muito grande. Há aqueles que vão realçar a violência como parte dessa irresponsabilidade ou a incompetência moral ao “expor as crianças a isso”, ou vão movimentar ideias estereotipadas, moralistas e universalistas sobre a infância – “as crianças não podem estar em contato com determinadas situações” – para estabelecer um julgamento sobre essas mães e esses pais. Têm outros que vão vê-lo de uma maneira muito mais complexa, tentando entender distintas formas de cuidado que eram construídas em espaços onde era questionada a ideia de infância e a ideia de família, que eram parte do que se buscava transformar, e nos espaços em que a violência política era compreendida como produzida centralmente pelos atores estatais e suas práticas repressivas. Acredito que é sim a partir dos anos 2000 que se deu essa possibilidade de construir essas posições de enunciação e essas narrativas que, por diferentes motivos, políticos ou geracionais, não foram possíveis antes.

Alejandra Esteves - Nos seus textos, você fala de uma violência que seria própria de uma experiência da infância, das crianças que passaram por essa situação, que seria uma experiência diferente dos adultos durante a ditadura.

Valeria Llobet - Em alguns contextos em que eu fiz as entrevistas, o que emergia era uma relação entre crianças e adultos muito autoritária, onde uma quantidade muito grande de violência era permitida. Mas isso era, por um lado, sintônico com alguns dos argumentos conservadores, no sentido de que, para a ditadura, o modelo de família era o modelo mais conservador, católico, baseado na figura do pai como a autoridade parental e da mãe como a autoridade moral e emocional da família, mas subordinada à do pai, e as crianças como sujeitos que deviam respeito e obediência. Sobretudo nas áreas que não eram metropolitanas, esse tipo de família, embora estivesse sendo questionada e demograficamente também estivesse em transição, meninos e meninas estavam expostos à ideia de que qualquer um na cidade, qualquer um no bairro, qualquer um na rua podia chamá-los à ordem, repreendê-los, exigir formas de respeito. Ao mesmo tempo, estavam expostos, por exemplo, as meninas estavam expostas a uma violência sexual que hoje problematizamos, mas que naquele momento era da ordem do comum.

Todas as mulheres que entrevistei tiveram ao menos uma experiência na qual um adulto lhes mostrou a genitália, ou que as tocou, ou que as perseguiu, no começo da sua adolescência, em torno dos 12 ou 13 anos. Todas experimentaram algo assim. E era algo do qual não somente não se podia falar, mas que era vivenciado sistematicamente como uma situação onde as mulheres eram as culpadas, as meninas eram culpadas, e isso deixava uma mancha na própria menina. E entre os meninos, o tipo de relações, de jogos, de formas de sociabilidade aceitáveis, parecia ter um grau de agressividade permitido e inclusive promovido, muito grande, uma agressividade que era socialmente festejada.

Há uma pesquisa em particular que assinala que a violência era vista ou vivenciada na época dos anos 70 como algo culturalmente aceitável e valioso. O que me parece é que havia uma construção do autoritarismo, diferentemente da violência, como uma forma valiosa de relacionamento intergeracional em alguns setores. Mas também era algo que já estava sendo bastante questionado, sobretudo nas áreas metropolitanas, onde as formas mais autoritárias da família estavam em franco retrocesso, e não se vincula de forma direta a uma suposta aceitação da violência social e política. Pelo contrário, se relaciona à ordem social.

Alejandra Esteves - Desde fins do século XX, junto com o avanço do projeto neoliberal e com o aumento da desigualdade e da exclusão social, está, por outro lado, o avanço de projetos de institucionalização dos direitos de crianças e da juventude. Gostaria que comentasse um pouco sobre esse aparente paradoxo, o que está em jogo e em qual direção avançamos. Se pudesse falar sobre a Argentina, claro, que é o seu lugar de pesquisa, mas também uma visão sobre a América Latina.

Valeria Llobet - O primeiro ponto que deve ser levado em consideração é o que diz respeito aos direitos humanos e aos direitos das crianças e adolescentes. O processo de especificação e ampliação dos direitos implica algo da ordem da emancipação ou implica algo da ordem da extensão do governo? Acho que acontecem as duas coisas, se dá um processo de ampliação e especificação de direitos, que tem permitido que um conjunto de demandas e um conjunto de atores que não estavam sendo reconhecidos como sendo titulares de direito possam enunciar essas demandas. E tem permitido a problematização das áreas da vida nas quais se produzem múltiplas formas de subordinação e submissão. Ou seja, permite que sejam visibilizadas, tornadas públicas, politizadas e, nesse mesmo sentido, transformadas essas relações de subordinação e submissão.

As formas de violência no setor privado são uma das mais claras problemáticas nas quais o processo de ampliação de direitos permite modificar as situações de subordinação. Agora, também é verdade que os direitos de crianças e adolescentes não têm sido capazes de interpelar a discussão sobre a desigualdade social, apesar de ser um dos tópicos mais recorrentes no campo, porque eu acho que as crianças são sujeitos particularmente complexos para pensar a desigualdade social, porque precisamente mostram o axioma que, quando uma pessoa nasce numa família pobre, tem grandes chances de ser pobre. A desigualdade e a pobreza não se reproduzem graças à ação dos sujeitos e, nesse sentido, sua transformação requer dinâmicas que são mais estruturais do que singulares. Porém, os direitos de crianças e adolescentes ampliam o campo de direitos de um ponto de vista individual. Nesse sentido, vão numa direção que não necessariamente se vincula ao problema da desigualdade ou à injustiça social mais do que em alguns aspectos. E, além disso, tem sido construídos, sobretudo em alguns lugares, sobre a base de duas dinâmicas muito institucionalizadas: a primeira é o maternalismo e a desigualdade de gênero institucionalizada nos estados latinoamericanos, por exemplo, na Argentina, em particular, que levam a considerar os direitos da criança como direitos que se dão em oposição aos direitos das mulheres.

Isso tem consequências diretas na tendência a pensar as crianças como vítimas das suas mães e a suas mães como más mães. O maternalismo e os estereótipos de gênero institucionalizados no Estado, no poder judiciário, são uma das dinâmicas que complica a capacidade emancipatória dos direitos da criança. A outra dinâmica que me parece que os complica é que – e isto especificamente no caso da Argentina – a institucionalidade dos direitos, ou seja, as instituições que são as que captam os direitos das crianças e adolescentes são herdeiras do campo da minoridade, da atenção aos “menores delinquentes” e aos menores “vagos e mal-assistidos”, marcando uma dependência estrutural das instituições que delimita seu campo de ação de uma maneira que dificulta que sejam justamente instituições que pensem os direitos de um ponto de vista mais estrutural ou que não se concentrem basicamente nas crianças pobres, ou que não o façam de uma maneira punitiva.

Na América Latina, a maioria das entidades que se ocupam da proteção de direitos das crianças toma os direitos econômicos, sociais e culturais como áreas de ação substantiva, mas se ocupa desses direitos em virtude da sua vulnerabilidade, que por sua vez é entendida como produto da incompetência familiar, da falha da família. Em outros lugares, quando se discutem os direitos das crianças, os direitos centrais são a participação, a voz e os direitos políticos. Então, qual o motivo dessa diferença de ênfase? Bom, me parece que se origina nas tradições político-institucionais. Eu acho que, na América Latina, essa tradição vinculada aos “menores abandonados moral e materialmente” faz com que nossas interpretações sobre o que significa proteger seus direitos e qual é o campo de ação das instituições que devem protegê-los acabem centrando-se nas crianças pobres de uma maneira que acaba sendo mais reprodutora das desigualdades do que transformadora.

Alejandra Estevez - Sobretudo depois do início do governo do presidente Mauricio Macri, mas inclusive antes também, que demonstrou como vê esse cenário de políticas públicas, focadas na família, na infância e na juventude no contexto argentino, você vê sinais de mudança em relação a essas políticas depois do governo de Macri, ou em comparação com os Kirchner? Como isso se dá?

Valeria Llobet - A maior transformação é a socioeconômica. A perda salarial e a perda de ingressos dos setores populares têm sido muito grandes por via da inflação e pelo aumento concreto de alguns custos, com maior peso nos setores assalariados: luz, transporte, coisas muito básicas, ao mesmo tempo em que programas sociais não aumentaram no mesmo ritmo e, em alguns casos, diretamente não aumentaram. A outra transformação grande é em termos da retórica institucionalizada.

O novo governo, longe de sustentar uma retórica de direitos, coloca uma retórica mais vinculada às responsabilidades. Antes do cidadão, a figura chave é, por um lado, o empreendedor, ou seja, o sujeito que constrói sua própria inserção econômica a partir da criação de bens ou serviços que não existem, ou de auto-empregar-se, basicamente, e o pagador de impostos, a outra figura a partir da qual pode se construir a retórica política do macrismo, é a do “tax payer”. Esse é o sujeito que tem possibilidade de reclamação, de fato. Então, o cidadão com direitos é uma figura que não está presente dentro da retórica governamental. Isto se transfere ao sentido comum de alguma maneira e é sintônico com alguns aspectos mais conservadores ou mais republicanos, no sentido de que se entende que, na cidadania, os direitos derivam das obrigações, são secundários a elas.

Com esse tipo de retórica se legitimam essas dimensões mais meritocráticas presentes no senso comum e as pessoas começam a ver isso em algumas interpretações dos agentes públicos que tendem a tomar medidas de proteção de direitos. Então, se antes era mais legitimado que, frente às necessidades econômicas e sociais das famílias de setores mais populares, o que devia ser feito era responder, hoje está mais legitimado que o que deve ser feito é ativar a família, no lugar de responder. Isto não se vê ainda em tendências demograficamente importantes ou em regularidades sociais estatisticamente mais significativas, mas se vê. Começa a se observar essa transformação da matriz interpretativa que delimita o que vai ser feito pelo Estado e as necessidades dos sujeitos. Nisso, eu me associo a uma leitura do Estado de bem-estar como o Estado intérprete.

O debate político se dá no nível da interpretação: o que se interpreta como necessidades legítimas, o que se interpreta como sujeitos com legitimidade para enunciá-las. Então, ali há uma transformação que está começando a se visualizar. E dessas duas questões surge uma terceira transformação que efetivamente está começando a se visualizar em termos estatísticos que, em alguns distritos, triplicou-se a demanda aos sistemas de proteção de direitos. Nesses dois anos de governo da direita, há três vezes mais demanda de assistência vinculada a direitos violados. E há – e isto é outra mudança também importante, não no setor da proteção de direitos, mas no dos jovens em conflito com a lei – um discurso punitivista muito marcado, que identifica muitas áreas de comportamento como delitivas e identifica os jovens como delinquentes potenciais e potencializa a mão pesada como resposta apropriada.

Então, um policial que assassina pelas costas um suspeito de roubo é um sujeito que, ao invés de sofrer uma condenação social pelo uso indevido da força, pretende-se condecorar, tornando-se “o tipo de policial que faz falta”. Ao mesmo tempo, avança-se com um discurso punitivista sobre a participação política estudantil e sobre as ações dos jovens de maneira geral. Eu identificaria nessas questões as seguintes transformações: o acelerado empobrecimento dos setores populares, a perda de massa salarial, a perda de participação em lucros. Este aumento das necessidades dos setores populares se expressa num aumento da demanda de proteção de direitos, uma dinâmica de legitimação de discursos neoliberais na hora de interpretar de maneira restritiva esses direitos e as competências do Estado; e um aumento dos discursos punitivos e das demandas de repressão para com os jovens.

Alejandra Estevez - Estou muito satisfeita, continuarei lendo seus textos, e tomara que possamos compartilhar mais produções e nossos trabalhos também. Estreitar um pouco esses laços e conhecer melhor o que é produzido aí na Argentina.

Valeria Llobet - Adoraria. Muito obrigada pela entrevista. Foi um prazer enorme.

 

 

Data de recebimento: 13/03/2017
Data de aceite: 06/03/2017

 

 

1 Essa é uma organização em que as avós de crianças sequestradas e desaparecidas no período da ditadura lutam por esclarecimentos e justiça.

2 HIRSCH, Marianne. Surviving Images: Holocaust Photographs and the Work of Postmemory. The Yale Journal of Criticism, v. 14, n. 1, p. 5–37, 2001.

 

 

I Valeria Llobet: Doutora em Psicologia pela Universidad de Buenos Aires, Argentina. Professora da Universidad Nacional de San Martin. Pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Co-diretora do Centro de Estudios sobre Desigualdades, Sujetos e Instituciones. E-mail: valeria.s.llobet@gmail.com

II Alejandra Estevez: Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Professora da Universidade Federal Fluminense. Investigadora da Subcomissão da Verdade na Democracia. Membro do Observatório de Direitos Humanos do Sul Fluminense. E-mail: alestevez83@gmail.com

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