Desidades
ISSN 2318-9282
ESPAÇO ABERTO
Infância em contextos de luta por moradia na Argentina e no Brasil
Infancia en contextos de lucha por la vivienda en Argentina y en Brasil
Entrevista de Beatriz CorsinoI com Paula ShabelII, Marcia GobbiIII
II Universidad de Buenos Aires, Argentina.
II Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil.
III Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.
RESUMO
As ocupações, de modo geral, são povoadas por crianças de todas as idades, que vivem todas as aventuras e descobertas da infância em uma situação bastante diferenciada. O que acontece dentro das ocupações fica distante dos olhos da maior parte da sociedade e, nesta entrevista, abordamos o cotidiano de ocupações urbanas nas cidades de São Paulo e Buenos Aires. Ao conhecer a realidade das crianças, seja do ponto de vista delas, seja do de suas famílias, percebemos que a visão do observador externo pode estar carregada de preconceitos. Por exemplo, ao enxergar nesses atores mirins o antigo papel de coadjuvantes dos momentos históricos. Ao lançar luz sobre a temática das ocupações e o protagonismo da infância nesses eventos, somos levados a ultrapassar a falsa ideia das ocupações apenas como eventos sociopolíticos, alcançando também a materialidade das apropriações subjetivas que esse contexto possibilita. Mesmo diante dos riscos que a tarefa das ocupações impõe aos seus participantes, por meio dessa entrevista, as crianças começam a surgir como inventores e mantenedores de formas particulares de lidar com os temas da igualdade, identidade, intergeracionalidade, contestação e apropriação.
Palavras-chave: infância, ocupação por moradia, políticas sociais, protagonismo infantil.RESUMEN
Las ocupaciones, de modo general, son habitadas por niños de todas las edades, que viven las aventuras y descrubrimientos de la infancia en una situación bastante diferenciada. Lo que acontece dentro de las ocupaciones está distante de los ojos de la mayor parte de la sociedad, y en esta entrevista abordamos la cotidianidad de las ocupaciones urbanas en las ciudades de São Paulo y Buenos Aires. Al conocer la realidad de los niños, sea desde el punto de vista de las o de sus familias, percibimos que la visión del observador externo puede estar cargada de prejuicios. Por ejemplo, al otorgar a esos actores más pequeños el tradicional papel secundario en los momentos históricos. Al traer luz sobre el tema de las ocupaciones y el protagonismo de la infancia en estos eventos, somos elevados a trascender la falsa idea de que las ocupaciones apenas sean eventos sociopolíticos, alcanzando a percibir también la materialidad de las apropiaciones subjetivas que posibilita ese contexto. Incluso, ante los riesgos que la tarea de las ocupaciones impone a sus participantes, por medio de esta entevista los niños comienzan a surgir como inventores y sostén de formas particulares de lidiar con los temas de igualdad, identidad, intergeneracionalidad, contestación y apropiación.
Palabras clave: infancia, ocupación de la vivienda, políticas sociales, protagonismo infantil.
Beatriz Corsino - Marcia e Paula, vocês realizaram pesquisas tendo como tema as crianças que vivem em ocupação de imóveis por movimentos sociais. Eu gostaria que vocês falassem um pouco sobre como entendem esses contextos de luta por moradia na cidade de São Paulo e em Buenos Aires.
Paula Shabel - É um prazer, obrigada. Acho que é a primeira vez que compartilho os resultados da minha tese de doutorado depois de tê-la terminado. Eu trabalho com crianças dentre seis e dezessete anos em casas ocupadas da cidade de Buenos Aires. As casas ocupadas são um fenômeno muito comum na cidade, sobretudo desde a implementação da ditadura cívico-militar na Argentina, e ainda mais com a implementação do regime neoliberal que, bom, são muito similares à história do Brasil e da Argentina.
Suponho que sabemos, mais ou menos, o contexto sobre o qual estamos falando. Frente ao pouquíssimo trabalho que há, a população se concentrou muito em Buenos Aires e há uma falta absoluta de moradia, portanto, para essas populações migrantes, que se instalam no local onde há trabalho - muito precário, mas há trabalho –, e disso já são uma ou duas gerações. Portanto, há muitas crianças que nasceram nestas casas ocupadas, sua vida transcorreu sempre lá dentro e, portanto, um pouco, a pergunta era: como conhecem a política? Como conhecem a organização? Que ideias têm sobre os processos políticos organizativos essas crianças, que vivem suas atividades cotidianas em contextos de organização e em contextos de luta?
Particularmente, eu trabalho em bairros do centro da cidade de Buenos Aires, que é um contexto muito diferente do que são as villas, as favelas, que também são processos de luta pela moradia, mas esses são processos que têm sido historicamente mais ocultados, porque, ao virar a esquina da sua casa, há uma casa ocupada e talvez você não sabia, ficam ocultadas na lógica cotidiana da cidade. Porém, as crianças que moram nestas casas ocupadas ficam muito marcadas por seus vizinhos e também pelas escolas.
A maior problemática que há é a permanente possibilidade de expulsão, porque mesmo que estejam em diálogo constante com o Governo da Cidade de Buenos Aires, a possibilidade de que o acordo seja desfeito é permanente. Portanto, as crianças têm uma ideia muito concreta de que podem ficar sem lar, sem o lugar onde vivem cotidianamente e, partir daí, também conhecem a cidade, conhecem a escola, conhecem o mundo: a partir dessa organização permanente, por um lado, e, por outro lado, a partir dessa possibilidade permanente de ficar sem moradia.
Marcia Gobbi - Minha pesquisa resulta da busca por conhecer infâncias a partir de seus processos de elaboração de desenhos e fotografias. Essa procura encontrou lugares em que poderia coadunar a produção imagética e seus estudos à outra busca que julgo fundamental: a infância em luta em movimentos sociais. Durante algum tempo, a pesquisa se deu dentro do MST1, dentro do movimento social num tipo de assentamento que é considerado urbano, embora esteja na Grande São Paulo. Neste caso, as pesquisas todas estavam concentradas na cidade de São Paulo e no estado de São Paulo. Hoje não estou mais pesquisando o MST e acabei enveredando por uma pesquisa especificamente sobre as ocupações urbanas. Nós temos décadas de construção de lutas no espaço urbano constituídas num processo de urbanização que é absolutamente segregador, fato que já havia sido apontado por diversos pesquisadores, tais como Lúcio Kowarick, Nadia Somekh, Raquel Rolnik e Erminia Maricato, que chamaram a atenção de forma bastante consistente e admirável para essa cidade em constante disputa.
E nesse processo de disputa, ora é possível reconhecer a expulsão das famílias para as áreas periféricas, isso nos anos 70 e 80, quando se observa esse fenômeno de modo intenso na cidade de São Paulo, ora, mais recentemente, temos a busca dessas famílias pelo retorno e pela manutenção da moradia nas regiões centrais na cidade de São Paulo como um direito por conta do acesso e permanência no trabalho, por conta da própria mobilidade urbana, dos transportes, etc. Há então diferentes movimentos reivindicatórios que vão enfrentar o processo segregador permanecendo no centro.
É claro que isso se dá num momento em que temos cerca de 350 mil moradias vazias na cidade de São Paulo. E, no Brasil, cerca de 7 milhões de lugares vazios que poderiam ser utilizados para moradia. Nós temos praticamente a mesma quantidade de espaços vazios e de famílias requerendo esses mesmos espaços. Pensando nessas questões, existe uma lacuna bastante expressiva no âmbito das pesquisas que têm as crianças como seu objeto, mas que não estão sendo compreendidas nesse processo de luta.
É por isso que estou chamando de infância em luta, uma vez que, em tudo quanto é canto que nós vamos, a criançada está lá junto com os movimentos que organizam as ocupações, os momentos de festa, que são os momentos das ocupações, da construção da ocupação propriamente dita, e a criançada está lá.
Beatriz Corsino - Muitas pessoas podem dizer que as ocupações não seriam locais apropriados para uma criança viver, devido a sua precariedade e as possibilidades de conflitos com a polícia ou com os danos dos imóveis. Como vocês entendem essa questão?
Marcia Gobbi - Atualmente, estou pesquisando duas ocupações em regiões distintas da cidade de São Paulo. A ocupação chamada Jardim da União, que é no extremo sul da cidade de São Paulo, e a ocupação Prestes Maia, na região central, hoje a maior ocupação vertical da América do Sul. Essa convivência tem me tocado muito profundamente, tem me levado a pensar no que fazer. Politicamente, eu tenho algumas questões que fizeram com que eu tenha escolhido essa temática, não é à toa, mas essa convivência dá um sentimento de impotência, de desencanto. Eu acho que muitos de nós, pesquisadores, somos atravessados por esse sentimento, mas as pesquisas alimentam nosso desejo de lutar juntos.
Quando eu estou com as crianças, fica claro estar diante de vidas precárias. Ao estar com as crianças, elas vão se mostrando, brincando, fazendo diferentes atividades em ambas as ocupações e vão me dando a possibilidade de ver outro cotidiano a partir e com as crianças que estão lá, recriando suas próprias condições e a vida em diferentes modos de lutar. Isso tem se revelado em práticas sutis, ora trazendo desenhos extremamente bem elaborados e os criando junto a mim ou outros pesquisadores que estiverem comigo, ora chamando todo mundo para brincar juntos, e em outros momentos tirando fotos e/ou brincando de tirar fotos e de escolher as flores da ocupação (essa da região sul é horizontal, é tem terrenos floridos, embora esteja em permanente processo de transformação e construções de casas ou pequenas reformas).
Enfim, lá no Jardim da União, eu vejo as crianças curtindo os espaços, subindo em árvores, chamando a gente para ficar junto, parando para conversar, mostrando-se pertencentes a esse lugar e apropriando-se dele. Então, há uma convivência nessa precariedade - uma mostra de que esse lugar é delas, é quase uma dádiva, à moda do pensamento de Marcel Mauss2. Isso acontece na região sul. Certa vez, conversando com Sandra, que é uma super e sensível liderança local, ambas desabafamos sobre essas questões, sobre a precariedade imposta às nossas vidas e de alguns grupos, particularmente. Isso resultou numa grande viagem, verdade. Fizemos um combinado, algo que alterasse o cotidiano daquelas meninas e meninos, ainda que num único dia e de modo tão breve se comparado com a urgência de acontecimentos e mudanças estruturais em que vivemos. Assim, numa manhã, nem tão manhã assim, de sábado, muitas crianças e de variadas idades vieram a um museu de ciências, local escolhido por eles, todos numa van, cruzando a cidade, vindo para o Catavento, aqui na cidade de São Paulo, bastante visitado e situado na região do Brás. E aí, qual é a surpresa, né? Porque nós ficamos lá com a criançada.
Para mim, quando reflito sobre a pesquisa, o que poderia ser visto como um passeio teve um peso bastante grande. Tratou-se ali de amabilidades, de um circuito de confiança como bem precioso, daí eu me lembrar de Marcel Mauss, dar, receber e retribuir presentes é constante nessa relação. Conto isso também por não me esquecer das crianças chegando ao local. Eles diziam: “Isso tem na ocupação”, “Isso é lá de onde eu moro”. Um deles falou assim: “Ah, mas você é a mulher que vai para a ocupação. Você que vai na nossa casa”. Então essa conversa sobre casa e ocupação, sobre “este pássaro é um pássaro que tem na ocupação”, vai me dando algumas pistas para pensar o pertencimento a este lugar e, nessas entrefalas, uma movimentação de luta pela permanência nesse lugar. Revela-se, até onde compreendo, uma forma de enraizamento no lugar, que o consiste como seu, particular. Num momento de expulsões, como afirma Saskia Sassen3, sou levada a pensar, a partir dessas falas, em certa resistência, um freio à expulsão.
Isso, para mim, particularmente, é bastante forte. Em algumas das falas das crianças, enquanto foram desenhando, passeando conosco, vão nos mostrando elementos de uma luta de classes bastante forte. Então, elas falam: “Tem crianças que são muito ricas, né”? E aí param e falam, assim: “Mas nós não somos”. E aí eu fico pensando e converso com eles: “Mas então vocês queriam? Como é que é”? Tem alguns elementos bons para a gente pensar sobre isso. E eles falam também: “Não, porque na escola tem alguém que é rico. Aqui na ocupação não tem, aqui nós somos iguais”. Talvez iguais em forma e conteúdo de uma luta que se forja vagarosamente e constitui jeitos de ser menina e menino em ocupações. Faz-se necessário continuar, observar, estar junto e investigar...
Bom, até agora estou me referindo às crianças do Jardim da União, lá no extremo sul. Na região central há elementos bastante semelhantes nas suas falas. Há algo do apresentar-se mais, com vestimentas para as brincadeiras, mas há sempre uma participação muito grande. Algo como um processo de identificação das crianças, na região central, que é bastante consistente. Por exemplo, a ideia de que “Nós somos da ocupação Mauá”.
Do ponto de vista das lutas dentro e no centro da cidade de São Paulo, são duas grandes referências as ocupações Mauá e Prestes Maia, onde tenho permanecido. Elas têm grande importância e constantemente acessamos informações sobre suas lutas, conquistaram visibilidade e, creio, isso favorece a criação de elementos identitários em relação à ocupação.
Finalizei recentemente, junto a um orientando, o acompanhamento da ocupação do Largo Paissandu, que sofreu aquele incêndio trágico e bastante similar a outros que ocorreram e ainda acontecem constantemente em São Paulo, numa espécie de limpeza com fogo dentro da cidade de São Paulo, querendo referir-se à higienização da cidade, uma inegável manifestação da necropolítica, como diria Achille Mbembe4. Não sei se vocês tiveram a oportunidade de ver os gradis que foram sendo colocados e os moradores passaram lá, entre gradis, de primeiro de maio, quando foi o incêndio, até 10 de agosto. Processo de descaso revelado, entre outras coisas, pela fala de uma senhora entrevistada por mim, em que ela dizia: “Olha, nós estamos aqui feito bichos. Olha o que nós somos. Olha como nós fomos tratados”. Falava e, enraivecida, apontava para as grades e a curiosidade manifestada por muitos que olhavam, deixavam doações, ou não, e saiam, retornando a rotina diária que, para muitos, é também de agruras. “Animais enjaulados”, dizia ela. Ao observar as crianças, foi possível perceber que elas deram um uso especial para aquele lugar. Comentário de alguns moradores dos prédios do entorno, logo nos primeiros dias, e que foram ouvidos aleatoriamente, davam a entender que, até então, o espaço não tinha sido usado da mesma maneira.
As crianças que ocuparam, com suas famílias, o Largo do Paissandu, o encheram com seus sons, correrias e brincadeiras, relacionando-se com esse espaço que passou a ser disputado com passantes que contornavam motocas, bolas em jogo de futebol improvisado e, como descreveu Matheus, orientando de pesquisa, gerando desconforto entre as profissionais do sexo, trabalhadoras do local, que falavam: “Mas nós estamos trabalhando e as crianças estão nos atrapalhando no processo de negociação”. A criançada acabou se mostrando muito fortemente naquele espaço que havia sido criado na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad, um bom projeto para certas regiões da cidade, chamado Praia Urbana. Existem várias dessas praias na cidade de São Paulo e, curiosamente, uma delas está no Largo do Paissandu. Então, nós podemos dizer que houve uma apropriação do espaço. Mas essas vidas, que são precárias, e são tratadas com precariedade pelo poder governamental, por quem pensa projetos de habitação, acabavam mostrando outras possibilidades de uso do espaço urbano, impondo-se, e as crianças também se impondo nesse espaço e, curiosamente, o usando como deveriam ter feito durante todo o tempo.
Paula Shabel - Sim, acho que a Marcia dizia algo que é ressignificar a ideia desse espaço. Esse espaço não é nem todo perigoso, nem todo bonito, nem todo bom, como não é espaço nenhum. Perigosa é a pobreza. Perigosa é a falta de políticas públicas do Estado quanto à moradia, perigosa é a gentrificação. Há um monte de processos perigosos que afetam diretamente a vida material das crianças com as quais estamos trabalhando. Nesse sentido, também não vamos romantizar o cenário: é um cenário de múltiplos perigos. Mas não é somente isso. Na pesquisa, há um pouco do que a Marcia falava, dessa identidade, dessa pertença, e se há uma coisa que consegui observar no trabalho de campo, é que as crianças constroem um desejo muito grande de estar nesse lugar, e constroem sua identidade a partir da pertença a esse lugar. Além disso, tem uma coisa muito forte que surge, que é o permanente encontro. Essa é outra forma de viver a infância.
Nós temos uma imagem de infância muito individual, muito do que é a nossa família, e essa infância coletiva que surge dentro das organizações sociais - eu trabalho em casas que são prédios que têm três ou quatro andares, e moram todos lá dentro, e há espaços de encontro permanente. O valor que adquire o encontro para essas infâncias é um valor muito positivo, é um valor a partir do qual confluem sentidos e se constroem significados que geram infâncias com muita beleza e com um desfrute muito grande que também não pode ficar reduzido a um lugar perigoso ou um lugar pobre. Sim, é um lugar pobre. Mas o valor que tem para essas crianças o encontro, acho que é algo que devemos considerar e colocar em discussão para fazer um contraponto com aqueles discursos midiáticos do perigoso.
As crianças não querem sair desse lugar em que estão. Eu, além de fazer o trabalho em campo, fiz muitas entrevistas, e a verdade é que as crianças não querem sair. As crianças querem que este lugar tenha melhores condições, querem ter água limpa e querem ter luz, querem ter uma melhor cozinha e querem ter mais espaço. A reclamação principal das crianças com as quais trabalhei é ter mais espaço para brincar porque sabem que há pouco espaço, mas eles não querem sair da casa ocupada. Sua família é a organização. Temos que tirar das nossas cabeças a ideia da família nuclear: sua família é a organização, é o movimento social no qual se encontra. E seus adultos referentes são todos esses adultos referentes da ocupação.
Então, a ideia de sair de lá é a ideia de cortar um monte de vínculos que são fundamentais para suas vidas. Além de tudo o que Marcia disse - não quero repetir –, que existe a brincadeira, que eles aproveitam, tudo isso acontece e não pode ficar homogeneizado numa ideia do perigoso, mas tem me chamado muito a atenção isso, como eles não querem sair da ocupação. Para eles, é seu lar, e não somente seu lar no sentido das quatro paredes, mas seu lar no sentido dos vínculos que têm se gerado lá dentro, e que são vínculos de muitíssima reciprocidade e muita solidariedade, entre as crianças que habitam o espaço e também com os adultos.
Além disso, pensando por outra parte, quais infâncias não são perigosas? Quais espaços não são? Senão, questionarmos isto seria acreditar que as infâncias burguesas, ou nas classes altas, ou em outros contextos, ou em outros bairros, não são perigosas. Deveríamos também questionar o que é o não-perigoso: as crianças medicalizadas, as múltiplas problemáticas que atravessam as infâncias com o consumo. Também fica idealizada a ideia de que há uma infância pobre que sofre e uma infância rica que está fora de perigo, enquanto que, se falamos em violência doméstica, é muito mais perigoso nos espaços de famílias nucleares que nos espaços das organizações. Nas organizações sociais, uma família que bate nos filhos, ou o homem bate na mulher, é facilmente identificável e o homem é expulso da casa. Há redes de solidariedade que também temos de visibilizar para poder perguntar-nos a que estamos nos referindo com o perigo.
Beatriz Corsino - Vocês falaram desses processos das crianças e dos jovens, sem idealizar ou romantizar a pobreza, nos ajudando a ver outros aprendizados que se dão nas formas de apropriação do espaço, das redes de solidariedade, de outras formas de viver que a gente muitas vezes desconsidera, pois só vê pelo lado da falta, da desvalorização. Na pesquisa que fiz, eu via muitos usos que as crianças e os jovens faziam da favela, como brincar na rua, conhecer os outros vizinhos, os lugares, tem um saber que todo mundo ali compartilha. As crianças estavam muito mais expostas aos problemas, às dificuldades, como ver o esgoto a céu aberto, o lixo, a violência. Mas também tinham outros aprendizados, a construção desse sentimento de pertencimento e do conhecimento da sua realidade. Eu queria que vocês falassem um pouco sobre os aprendizados que se dão na ocupação justamente por elas estarem nessa situação e participarem dos movimentos sociais.
Marcia Gobbi - Embora tenha muito mais precariedade, porque falta instalação em algumas casas, eles passam por um processo muito importante de transformação manifestada na construção das próprias casas que estão deixando de ser de madeira. As crianças estão participando desse processo, elas estão vendo e vivendo tudo isso e têm um conhecimento muito grande do lugar em que estão, conhecem bem o território e as pessoas que moram lá. Elas estão na região central da cidade de São Paulo, onde temos o que se convencionou chamar Cracolândia (termo que merece questionamentos por equivaler à Terra do crack, expressando um pensamento homogeneizante sobre a região e, pior, sobre aqueles que a habitam, fazendo desconhecer a complexidade das relações ali existentes). Nesse lugar, a circulação das crianças das ocupações é regulada por suas famílias. O perigo é iminente, está do lado de fora. O dentro da ocupação é sentido e construído como local de proteção. Num dos dias em que permaneci na Mauá, percebi que recebiam crianças que vinham das ruas da Cracolândia. Eu conversei com Nete, uma das maiores referências femininas na luta por moradia em São Paulo, ela afirmava: “É melhor que eles estejam aqui brincando com as nossas crianças”. Observo que há uma circulação dessas crianças que vêm para brincar, numa relação entre o perigo de fora e a proteção de dentro. O inverso, parece-me, não vai acontecer ou não acontece, pois essa região é vista como perigosa para aquela criançada. Em entrevista com Silmara, outra grandíssima referência na mesma luta, ouvi que, com a criançada menorzinha as saídas se dão com as avós, com as mães, pois tem uma predominância das mulheres nos cuidados para levar para a creche, para levar para a escola, raramente tem um transporte público e são caminhadas em direção às escolas públicas, várias na região.
Observando a permanência dentro das ocupações, a indagação era: e aí, o que é que se faz? Brinca-se bastante nos corredores, havendo uma limitação às falas mais altas e correrias, qual seja, o silêncio. Há placas pelas escadarias, todas pedindo silêncio. Corredores e dentro dos espaços em que moram, muitos com menos de 8 metros quadrados, são preenchidos de brincadeiras. Considerando que temos famílias com cinco crianças e duas adultas, por exemplo, todos dentro desse espaço, que é bastante pequeno, temos manifestações um pouco silenciadas. Há uma diferença bastante grande nesse uso do espaço, nos sentidos dados aos espaços quando elas estão no centro e quando elas estão no Jardim da União, lá no extremo sul. A ocupação Prestes Maia criou uma brinquedoteca, o que evidencia preocupação com a infância e seu direito à brincadeira, segundo meu ponto de vista. Carece de alguns cuidados, mas existe materializada no espaço, o que não é pouco.
Paula Shabel - Na verdade, é impressionante a similitude do relato da Marcia com o que tenho para dizer, fico muito impressionada com a semelhança. Claro que um dos conhecimentos principais que as crianças desenvolvem tem a ver com o conhecimento do lugar e do espaço, das ruas, como andar de ônibus, a que horas sair e a que horas não sair, qual é a loja que fia, e qual a que não é legal, mas o que tem me surpreendido mais dos conhecimentos dos quais vão se apropriando as crianças por fora dos processos de educação formal tem a ver com o conhecimento sobre como funciona o Estado, como funciona o governo, como quando vem a assistente social, tem que fazer silêncio, tem que ir para o quarto e ficar calado, ou tem que sair para que não veja quantas pessoas moram no quarto, ou tem que deixar fora o cachorro porque na realidade não pode ter um cachorro dentro da casa, todos esses aspectos, todas essas coisas que ninguém diz, mas que todos sabemos como deve funcionar.
As crianças sabem o que deve ser feito quando a polícia chega, sabem o que fazer quando chega a assistente social, sabem o que fazer, inclusive, quando chega um referente importante do movimento social e como, quando os adultos estão de mau humor, significa que alguma coisa grave aconteceu, então, nesse dia, fazem mais silêncio e se comportam melhor. Inclusive, para as crianças, nas ocupações, nos corredores, são os espaços onde a informação é compartilhada. Então eu tenho muitas fotos de cartazes que dizem “tal família deve x dinheiro” ou “tal dia tem marcha, esperamos todos em tal lugar”. Então eles vão observando isso e falam “ah, claro, tem marcha, então alguma coisa aconteceu com o governo” e conversam entre eles: “Ei, o que aconteceu com o presidente, ele fez alguma coisa?”, “temos que ir à marcha, bom, vamos” ou “não iremos, melhor ficarmos”.
A verdade é que o conhecimento de como funciona o aparelho governamental que têm as crianças desde muito pequenas, isso tem me surpreendido muito. E por outro lado, o conhecimento de como funciona a organização: do que significa fazer uma reunião, do que significa fazer uma assembleia. Enquanto eu ouvia a Marcia falar, me lembrava de um dia que eu cheguei numa das ocupações e as crianças estavam fazendo um cartaz onde convocavam a uma “reunião de crianças” porque estavam cansadas pois não deixavam elas brincarem em lugar nenhum.
É um pouco o que Marcia dizia sobre o silêncio, se podem gritar ou não podem gritar, não deixavam as crianças brincar em lugar nenhum e, também, seus quartos são muito pequenos e moram seis ou sete pessoas lá dentro, não têm espaço, então eles vão para os corredores, nos corredores fazem muito barulho, quebram coisas, são muito pouco cuidadosos com o espaço e os adultos ficam bravos, gritam com eles, os mandam voltar para os seus quartos, e um dia as crianças se chatearam tanto que fizeram uma “reunião de crianças”, e chamaram os dirigentes da ocupação para que chegassem lá para reclamar por um espaço para brincar para as crianças onde ninguém os perturbasse. E pediram que fosse assinado o caderno que os adultos têm, que é o livro de atas, e eu não sei como as crianças sabiam que nas reuniões havia um livro de atas, porque geralmente eles não vão nas reuniões, mas sabiam perfeitamente como convocar, onde colocar o cartaz, a que horas convocar. Tiveram uma discussão sobre como convocar no sábado, “não, mas no sábado não tem ninguém, melhor convocar na sexta-feira”, e discutiram que horas era melhor convocar para a reunião porque ia ter mais gente, e esse dia passaram pelos quartos para buscar as crianças, e falavam para os adultos: “Você não pode vir, somente as crianças podem vir nessa reunião”. O conhecimento de como se organizar para reclamar por algo que eles consideravam justo para eles é algo que nunca ninguém ensinou formalmente para eles e que, mesmo assim, sabem muito bem.
Beatriz Corsino - Como é que vocês acham que a brincadeira ou o jogo de futebol podem se tornar uma ação política das crianças nesse contexto? Revelam, também, de alguma forma, as diferenças, os conflitos intergeracionais?
Paula Shabel - Sobre os conflitos intergeracionais? São muitos. O tempo todo. Um pouco é o que falávamos antes sobre não romantizar esses espaços e não achar que, porque estão todos juntos, os vínculos são necessariamente amigáveis ou pacíficos, mas também partir de uma análise materialista, entender que quando o espaço é escasso, os conflitos são muitos. Uma das minhas principais considerações é que o espaço é fundamental em todas as etapas da vida, mas que, na infância, adquire uma relevância realmente impressionante. Um pouco, a qualidade dessa etapa da vida tem a ver com as possibilidades de andar pelo espaço e de contar com um espaço. Portanto, a escassez do bem precioso que significa, nas cidades tão populosas como São Paulo ou Buenos Aires, o espaço condiciona muito as formas de vinculação, das crianças entre si e com os adultos.
Os conflitos intergeracionais têm a ver com quais são os usos do espaço: se pode correr, se pode pular, se pode estar sentado fazendo o dever com um colega ou se os adultos vão estar utilizando o espaço para alguma reunião, se pode pedir o espaço para comemorar um aniversário, se as famílias não podem ter silêncio para poder conversar. A verdade é que as relações intergeracionais estão mediadas por esse bem. Acho que, também, para entender os conflitos intergeracionais, temos que ir a uma coisa que Marcia falou antes e que escreveu em um e-mail também, que é o lugar das mulheres nesses espaços: são as mulheres que ordenam um pouco as relações intergeracionais, as que estão lá, na cabeça das criações, e, portanto, habilitam canais de diálogos, e quando as mulheres não estão, realmente é muito mais difícil para os homens, nestes espaços, se aproximar das crianças a partir de um lugar que não seja o da violência.
Os conflitos são permanentes porque a pobreza é conflitiva e, claro, nesse ponto, o eixo da classe e da idade se entrecruzam, como se entrecruzam também com o gênero. Mas, outra vez, voltando talvez à primeira pergunta, mesmo que sejam particulares as formas em que acontecem as relações intergeracionais, não acho que sejam mais positivas nem mais negativas que em outros espaços, porém, diferentes, e que têm conflitos diferentes e também têm momentos de muito encontro. De novo: estar numa manifestação, comemorar que deu certo um aluguel ou que o governo cedeu a propriedade, e o lugar que as crianças têm nessa ocupação, porque as famílias sabem que as crianças fazem parte fundamental dos processos de luta. É uma alegria compartilhada que gera um vínculo muito forte que não sei se podemos entender inteiramente, mas que podemos, sim, dar conta disso.
Marcia Gobbi - Percebi alguns conflitos entre as crianças, ora pelo próprio uso do espaço dentro da ocupação, ora por querer brincar e ter o desejo combatido e invalidado pelo outro. Surge uma discussão, conflito físico, confronto dentro dos próprios espaços no desejo de brincar e de ocupar os espaços, mas não avalio como diferente de outros espaços de convivência entre muitas crianças. Retomando o que a Paula mencionou, observa-se que a presença dessas crianças faz com que determinadas áreas sejam desocupadas para que elas possam ficar e brincar. Outras lutas são implicadas à luta por moradia, extravasando-a. Luta-se pelas doações ou tentativas de compras de brinquedos para as próprias crianças, ou seja, há um condicionamento pela própria presença. Repito o que fora dito quanto à Praia Urbana no Largo do Paissandu. Sons diferentes passam a dominar e a construir o lugar, os brinquedos em desuso têm sua função cumprida, a areia da “Praia” passa a ser revirada e motivo de brincadeiras. Enfim, alterações no espaço e suas transformações a partir das próprias crianças que nos levam a considerar, nesse espaço, especialmente, a presença de diferentes temporalidades. Por exemplo, brincadeira do balanço junto à Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos, do século XIX se não me engano, tem detalhes de outras épocas, a relação própria ao que é possível conceber como cidade, ou urbano. Embora seja pouco usada, as crianças, ao movimentarem-se, forçam a existência desses espaços.
O grande desafio é não romantizar esse espaço, ou a própria infância, pois há sofrimento numa forma de vida de ausência de direitos, mas de fato, a presença delas vai implicar outro uso dos espaços e certa dose de pulsação da vida, que, como venho perseguindo, ou sendo perseguida pela pesquisa, observa-se que isso expressa formas de luta, particulares formas de luta envoltas em brincadeira e reivindicações, ainda que entre as falas, entre pedidos e descobertas. Ainda considerando as observações, nota-se que, ao mesmo tempo que o silêncio que é imposto, em algumas ocupações está implicando também um jeito de corpo que é diferente. Ter que ficar em silêncio traz implicações às relações. Como uso os desenhos como recurso metodológico, observo certas peculiaridades naqueles criados pelas meninas e meninos da Mauá e Prestes Maia. Embora possamos ter crianças numa mesma faixa etária, o fato é que esse corpo ocupante-morador é um corpo silenciado e que, curiosamente, desenha. Um corpo silenciado e que desenha de modo singular. Tenho como hipótese que essa manifestação expressiva ganha espaço, mas também serve como mecanismo disciplinador, lamentavelmente. Há uma lógica nessa relação, em que o silenciamento grita em traços e os faz belamente. Expansão e contenção constantes.
Beatriz Corsino - Mas elas respeitam, então, o silêncio? Elas não rompem com ele? Porque poderia haver um “faz silêncio! Cala a boca!” e as crianças continuassem aos berros e estarem nem aí. Uma obediência a essa autoridade.
Marcia Gobbi - Nós, eu e o grupo de estudantes em seus diferentes níveis de pesquisas que compõem o grupo de pesquisa coordenado por mim, inventamos uma brincadeira, que era uma caça ao tesouro em todos os andares, isso foi na Mauá. E aí, nós éramos usados para que o barulho acontecesse. Ao passar pelos corredores, percebia-se uma orientação: “Aqui é para ficar mais quieto”. Para fazer silêncio, então eles mesmos falavam: “A gente não pode correr tanto aqui, sabia?” Mas aí eles olhavam para a gente e corriam, quer dizer, tinham uma autorização implícita, ou se apoiavam em nós. As crianças diziam que lá havia uma bruxa que faz com que as pessoas e crianças fiquem quietas. Daí, uma figura feminina e importante liderança explicou: “Sou eu a bruxa. Eu já sei que eu sou a bruxa. Perguntei: e por quê? “Porque eu determino quem entra, quem sai, quais horários, com quem. Portanto, eu já sei que sou eu e fico tranquila de ser a bruxa”. Mas o fato é que existe um regulador no uso desse espaço, que é uma mulher da ocupação recriada em forma de bruxa. Vida em constantes subversões, aceitações e negociações.
Beatriz Corsino - Interessante. E como vocês entendem a ação das crianças dentro do movimento? Elas são escutadas, elas têm algum lugar, ou tem essa visão “ah, não, criança é para brincar”? Como é que vocês entendem isso?
Paula Shabel - Nas organizações de Buenos Aires, há uma tradição muito grande de participação de crianças, que um pouco aconteceu no Brasil com o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Aqui em Buenos Aires, foi muito forte o Movimiento Nacional Chicos del Pueblo, que foi uma organização muito grande que promovia a participação infantil em todos os espaços de luta. Porém, nas ocupações onde eu trabalho, a tradição não vem desse lado, não há um reconhecimento que talvez haja em outras organizações, em abrigos e refeitórios populares, mas não nas ocupações. A sensação é que não há uma reflexão muito grande sobre o lugar que ocupam as crianças, porque é tão cotidiana a luta, é tão parte da vida, que não há uma reflexão sobre que lugar ocupam os homens, as mulheres, as crianças. Talvez seja tão difícil como perguntarmos o que acontece em nossas casas, com nossos filhos, com nossos companheiros.
A verdade é que é muito difícil que as crianças sejam escutadas pelos adultos, de fato, já contei para vocês isso de que as crianças tiveram que fazer uma assembleia, uma reunião para apresentar suas reclamações. De modo geral, a própria cotidianidade não lhes outorga um espaço de protagonismo, o que não significa que não se reconheça a importância que as crianças têm, por exemplo, na vida econômica: todas as famílias das ocupações contam com os irmãos mais velhos para fazer as compras, cozinhar, cuidar dos menores e, nesse sentido, há, sim, um reconhecimento muito forte do lugar que as crianças ocupam na atividade produtiva das ocupações.
Com relação à atividade política, o movimento feminista foi muito claro nisso: no momento em que as mães começaram a ir às manifestações com seus filhos e filhas, as infâncias passaram a ser parte da atividade politica cotidiana. A inclusão de crianças no movimento é a consequência de uma necessidade e não de uma reflexão política de “bom, vamos incluir as crianças na política? Vamos perguntar para eles o que pensam?” Foi algo que aconteceu. Acho que só agora estão dando alguns espaços para que as crianças possam opinar, um pouco a partir das perguntas do movimento feminista, pelo menos na Argentina, está nos obrigando todos a fazê-lo. O que aconteceu com a lei do aborto atravessou as vidas dessas organizações sociais, e, neste sentido, as crianças, sobretudo os adolescentes, foram protagonistas desse processo. Mas também não é produto de uma reflexão, senão de que a sociedade foi nesta direção, então agora há mais escuta em direção às infâncias e, sobretudo, às adolescências. Mas o Movimento não tem canais de diálogo específicos com as crianças, e também não sei se há um interesse por parte das crianças em participar dos processos políticos, como ir a uma assembleia ou ir a uma reunião.
Acho que o desafio é pensar que forma de participação política convocaria as crianças, mais do que querer somá-los ao que já estão fazendo os adultos e as adultas. Acho que o desafio das organizações é esse, porque também não se pode levar uma criança de dez anos a uma reunião que dura cinco horas, ela vai se entediar, vai querer ir para casa. Então acho que o desafio é esse: nos perguntarmos que formas específicas de participação de crianças podem existir nesses espaços que também não atente contra essa particular etapa da vida que estão vivendo, porque se para a gente é um tédio estar numa reunião cinco horas, no caso das crianças é impossível.
Beatriz Corsino - E quando as crianças fizeram essa reunião para reivindicar os espaços para brincar, os adultos receberam bem essa negociação?
Paula Shabel - Na verdade, as crianças começam a ir às reuniões quando têm um interesse. Não há uma idade no Movimento, então alguns deles, já aos quatorze ou quinze anos, começam a participar, mas no formato dos adultos. Já alguns que têm vinte não vão e não irão nunca porque não lhes interessa. Não há uma idade, tem a ver com o interesse que tiver cada criança de se unir à atividade dos adultos. Não há um convite formal por parte do Movimento, mas quando as crianças decidem participar também não há uma proibição por idade.
Marcia Gobbi - Quanto à participação, o que tenho visto é um discurso bastante frequente, por parte das mulheres, de falar sobre o direito de fala das crianças. Elas argumentam que quando as crianças vêm às reuniões, às assembleias, e elas têm direito a participar, o que elas falam é ouvido. Mas isso é uma fala das mães, avós e representantes das ocupações. Não presenciei ou fui informada da existência de um grupo infantil organizado à parte aos adultos e adultas. Elas estão acompanhando e falando, ao mesmo tempo, em algumas situações e assuntos.
Há uma participação, uma vez que elas vão dizer o que elas querem, então podem estar presentes nas assembleias. Os bebês estão nas assembleias. Há uma forma cooperativa de cuidados dos bebês e das crianças, portanto, elas estão em grupos nas assembleias, nas grandes discussões, no momento de festa quando se dá a ocupação, as crianças estão lá, de corpo inteiro, e não são caladas. Algo sobre o que pensar, e muito.
Beatriz Corsino - Vocês falaram desse modo de vida mais coletivizado das crianças, e das famílias também, dessa rede de apoio. Queria que vocês falassem um pouco como é que se dá essa forma mais coletiva de viver das crianças.
Marcia Gobbi - Na União, no extremo sul, o próprio espaço garante essa forma mais coletiva no modo de viver. Então, é como se as crianças fossem de todo mundo, porque muitas pessoas conhecem muitas crianças e frequentam umas às outras, dormem nas casas e ficam nas casas. Enfim, referem-se às diferentes pessoas, todas elas mulheres, como aquelas que “olha, eu vou passar um dia na casa de tal pessoa. Eu vou na casa de tal pessoa.” Sobre as mães, respondem: “Ué, minha mãe tá não sei aonde. E eu tô aqui brincando”. E comem doces e os oferecem, muitos salgadinhos, muitos, o que reforça em mim certa preocupação quanto à alimentação. Enfim, contém essa forma cooperativa mesmo, de cuidados das crianças. Na União, se dá da mesma maneira. Parece-me haver um cuidado mais coletivizado entre algumas famílias vizinhas, mais próximas. Observei essa relação ao propor que fizessem desenhos. Ao indagar sobre o processo de elaboração de um dos desenhos que chamou-me muito a atenção, recebi como resposta que havia ali a “mãe do David”. Disse-me um dos meninos: “Ah, é a mãe do Davi que vai e ensina a gente a desenhar”. Mas a mãe do Davi é sua tia? “Não! É que todos nós ficamos juntos com a mãe do Davi e ela ensina todo mundo a desenhar”.
Considerei então a presença de outro modo de estar junto, de ocupar esse espaço e de ter essas referências - nesse caso, uma mulher que acolhia outras crianças, e desenhando –, que são referências para as diferentes crianças. Estar bem próximo é bastante constante. Na Paissandu, por exemplo, você tem algumas mulheres que vão cuidar das crianças com a alimentação, na hora de tomar banho (que a gente não sabe exatamente onde era, mas existia uma orientação para isso acontecer). Todas elas recebiam chamadas e ficavam com uma, duas, três, e frequentavam as barracas e estavam ali, meio que todo mundo junto. As crianças estão bem misturadas ali com todas elas tendo algumas referências adultas.
Paula Shabel - Na verdade, todas as referências que Marcia dá sobre as criações coletivas e a socialização do cuidado, sobretudo das mulheres com as crianças, também acontecem em Buenos Aires. Talvez, o que mais tem chamado minha atenção é que, na ocupação, como é o mesmo prédio, não somente o mesmo bairro, mas é a mesma estrutura que se compartilha, há uma noção muito clara de que é entre todos que se paga a luz, é entre todos que se pagam os serviços, é entre todos que se paga ou que se negocia com o Estado. A noção de comunidade excede a circulação das crianças, é uma comunidade muito construída a partir do material: se não estivermos todos juntos pagando o aluguel, se não estivermos todos juntos pagando os serviços, se não estivermos todos juntos no dia da reunião, vamos ser expulsos. E isso acontece todos os meses.
Uma coisa que acontece e que chamou muito minha atenção foi quando pedi para as crianças que desenhassem sua casa. E, no desenho da casa, os mais pequenos desenham o interior do seu quarto. Mas, a partir dos oito ou nove anos, desenham o prédio completo. A noção de casa é o coletivo da organização social que mora lá dentro.
Então, temos que seguir indagando, acho, a ideia de viver em comunidade. A comunalidade que se produz entre as crianças chega até um lugar que ainda me parece difícil de conceitualizar, mas que significa “a vida é juntos”, “a vida é nesse prédio porque nossa casa é a casa de todos”, porque o espaço material assim o condiciona também.
Beatriz Corsino - E essa experiência contrasta tanto com a experiência de uma infância mais burguesa, de uma criança de classe média, que está cada vez mais enclausurada na sua casa, no seu computador, no seu celular. E muito sozinha também. Um sofrimento por causa do isolamento.
Paula Shabel - Há uma coisa muito interessante também, para não romantizar o coletivo, é que, às vezes, o celular ou o computador é o único momento que as crianças têm de intimidade, também o valorizam muito como o único momento do dia em que estão sozinhas. Como o espaço é tão escasso, e estão o tempo todo entre todos, a possibilidade de ter uma conversa por Facebook ou no computador é o único momento solitário, que é totalmente o contrário de uma infância burguesa. Fico pensando no conceito de propriedade coletiva. Nós três chegamos a compreender o conceito de propriedade coletiva sendo adultas, e essas crianças, já aos dez ou onze anos, podem explicar, ou pelo menos experienciar e viver, o que significa a propriedade coletiva. Admite uma possibilidade real o compartilhar, dividir a vida, de alguma maneira.
Marcia Gobbi - Na ocupação da Prestes Maia, a área é muito grande e tem andares somente com imigrantes e refugiados. Tem alguns andares com bolivianos, por exemplo. Então, isso que a gente está comentando que eles andam juntos, estão brincando juntos, mas aí tem uma questão: os china, como são conhecidos os bolivianos, não brincam tão juntos. As mães, muitas vezes - em especial das crianças bolivianas –, têm certas ressalvas em consideração a brincar com as crianças brasileiras, que elas consideram bagunceiras. É possível criar pequenos grupos dentro de um grupo maior, são os paraguaios, os bolivianos e as crianças brasileiras. Isso foi abordado por uma orientanda em seu mestrado, a Carolina Abrão. Vão sendo compostas brincadeiras diferentes. Às vezes, furam um pouco esse cerco e todos se misturam.
Beatriz Corsino - Tem essa questão do imigrante que pega?
Marcia Gobbi - Pelo que observo, sim, pega. São grupos distintos, têm outra língua, chegam com outros modos de vida. No início do processo de ocupação no Jardim da União, eles fizeram uma coisa bacana com os bolivianos que lá chegaram. O que foi feito? Bom, você pode contribuir com alguma coisa. “Você vai dar aula de espanhol”. Então eles foram incorporados, passando a se relacionar com os demais moradores.
Beatriz Corsino - E vocês acham que essa forma de viver a infância, mais coletivizada, e que também se faz presente de uma outra forma nos espaços da cidade - eu estava lembrando também do seu texto, Marcia, que eu li, sobre o jogo de futebol, que você fala sobre essa presença do jogo de futebol na rua –, se isso favoreceria um engajamento mais político, a preocupação com o mundo comum, com outras preocupações que atravessariam essa infância?
Marcia Gobbi - Algo sobre o que venho refletindo é o atendimento das crianças do Centro pela Porto Seguro (empresa seguradora brasileira), que é quem está nos debates, na disputa por essa região central. Preocupa-me a inexistência de diálogo entre moradores da ocupação e as formas usadas pelas professoras junto às crianças. Infiro que as crianças pequenas da ocupação, ao irem para a creche, receberão uma formação contrária àquela vivida cotidianamente. Disputa-se entre o formar para o coletivo e uma formação universalizante que pressupõe o individual como valor e prática social a vigorar nas relações. Mas, como sabemos, as crianças - e nós - são atravessadas pelo contexto em que estão imersas e o constroem também a seus modos. Quero acreditar que argumentem, de um modo ou de outro, algo assim: “Não, mas a gente vive tudo junto”.
Paula Shabel - Não há motivos para pensar que uma forma de infância necessariamente leva a uma forma de vida adulta. Nem uma infância triste ou solitária vai levar necessariamente a construir adultos que não possam se relacionar. De fato, um pouco como dizia Marcia, a coletivização dos espaços, a coletivização dos objetos é vivenciada por muitas crianças como uma consequência da pobreza, e não como uma escolha. E isso é muito problemático, porque acaba sendo um estigma e não uma alternativa. Então, muitas vezes, o que acaba acontecendo é que essas crianças são como fanáticos da propriedade privada, porque é aquilo que não podem ter, e a alternativa do coletivo não é vista como alternativa, mas como uma necessidade, algo que é feito porque não há o que fazer, e isso se torna muito problemático nesse contexto. Porque, talvez amanhã, quando puderem ter sua casa própria, são os primeiros que vão querer tê-la. Porque nunca a tiveram, porque nunca puderam tê-la. A única forma de construir uma vida adulta diferente é tendo mais possibilidades. Não é que uma infância mais coletiva vai gerar uma solução mágica no futuro. Adoraria poder dizer o contrário, mas é que funciona, muitas vezes, de forma oposta ao que gostaríamos.
Beatriz Corsino - Mas, no presente, vocês percebem algo mais solidário, uma preocupação maior com o outro?
Paula Shabel - Eu acho que há, sim, uma ideia de uma vida em coletivo que, sim, vai sendo gestada nestas infâncias e, de fato, é algo que vão levar como prática: uma ideia de dividir com outros o tempo todo. Porque, além disso, a necessidade leva a gerar estratégias coletivas de criação, de educação, de saúde, de cuidado. No grupo que surge das crianças, são, sim, muito cuidadosos entre eles, não vão deixar que ninguém machuque seu companheiro. Eu também me sinto um pouco insegura, às vezes, estando nesses espaços que tínhamos dito que eram como “perigosos”, porque há também uma ideia de cuidado do tipo “bom, você é da gente, você vem da gente, não vamos deixar que ninguém te machuque, e se acontecer alguma coisa com você, vamos ajudar e, mesmo que não tenhamos dinheiro, vamos juntar e sair vendendo alguma coisa para que você tenha o que não pode ter agora”. Acho que isso, sim, é algo que vai se reproduzindo no Movimento, entre os adultos, entre as crianças. A experiência de ter atravessado uma participação coletiva deixa, sim, marcas de socialização que vão ter efeitos no resto da vida dessas crianças. Não há uma ideia linear, onde isso vai significar que eles serão de uma maneira ou de outra, mas a experiência do coletivo traz efeitos, nós veremos.
Marcia Gobbi - Acho que nesses momentos assim, ao cuidar umas das outras, algo que é muito frequente é as maiores cuidando de bebês, de crianças muito pequenininhas. Pega no colo, e leva, e troca, tem carinhos, tem cuidado mesmo. Inicialmente, eu perguntava: Mas é sua prima? É sua irmã mais nova? Mas não é, é a Lorena. Quem é a Lorena? Lorena é um bebê que requer cuidados próprios aos bebês. Então tem um cuidado, uma brincadeira com cuidado, no estar junto. Mas ela vai junto? Ela é muito pequena. “Não, mas ela pode ir junto com a gente, porque a gente cuida dela”. Existe um cuidado ali de todo mundo. Mas algo que seja tão diverso do que eu já vi nas outras crianças? Não. Tem esses cuidados mesmo. “Aqui é nossa casa”. Tem um respeito, tem o chamar para entrar, de me mostrar, de mostrar com certo orgulho, de estar meio que todo mundo junto.
Beatriz Corsino - Curioso como lá em Buenos Aires e aqui em São Paulo, apesar das suas especificidades, temos muitas coisas em comum. De repente, tem mais proximidades entre essas duas infâncias que vivem em ocupação do que entre uma outra de classe média alta dentro do próprio país.
Marcia Gobbi - Estamos procurando as crianças e suas manifestações, particularmente, estou encontrando especiais formas de lutar e se fazer presente cotidianamente, algo simples e que ainda pouco notamos, me parece. Acho que é um desafio muito grande para a gente não achar que as crianças são as grandes redentoras, porque não são. Vivem em condições, de fato, muito precárias, de pobreza. É importante a gente dizer isso. Um descaso entre as políticas governamentais, em discutir com todos sobre o direito à moradia, ao brincar dignamente, à educação, enfim, tudo que já sabemos. Mas acho que elas vão criando - quando você chama a atenção para que nós falemos sobre as brincadeiras e tudo mais - para a gente pensar que há uma forma particular dessa luta, que talvez esteja sendo tecida pelas próprias crianças no seu cotidiano. Há uma especificidade. É um modo particular de luta que é tecido pelas crianças no cotidiano. Isso é importante. Porque senão a gente pode correr o risco de cometer equívocos ao afirmar: “Olha que bacana, elas estão brincando”. Sim, olha que bacana estão brincando, mas poderíamos ter condições em que essas desigualdades não estivessem presentes e o brincar e desenhar e tantas outras formas de se relacionar com o mundo acontecessem em boas condições.
Beatriz Corsino - Até que ponto é desigualdade ou é diferença, isso é uma questão, né? Paula falou disso também, que essa diferença também se dá pela vulnerabilidade, pela pobreza.
Paula Shabel - Há colegas e companheiros que fazem análises econômicas ou políticas do que está acontecendo. E essas análises são necessárias, mas, nesse ponto, é quando as crianças ficam mais invisibilizadas, porque são poucos os que colocam centralidade no impacto que está tendo todo esse avanço neoliberal no continente, nas crianças, especificamente. Lembro que pensava, quando Lula foi preso, não, quando destituíram Dilma, lembro que pensava: o que os professores vão dizer aos seus alunos no dia seguinte? “Perdão, era mentira a democracia” ou “Perdão, isso aqui não serve”. Isso vai deixar marcas nas crianças, isso significa algo. E, às vezes, nas análises conjunturais mais macro, isso fica invisibilizado, o lugar que têm as crianças e os efeitos que todos esses processos têm nessa etapa da vida. Então, no meio de todo o caos que estamos vivendo na América Latina, agradeço a possibilidade de usarmos um tempinho para dar lugar às crianças.
Beatriz Corsino - Bom, muitíssimo obrigada pela entrevista.
Marcia Gobbi - Muito obrigada!
Paula Shabel - Obrigada.
Data de recebimento: 02/07/2018
Data de aceite: 05/09/2018
1 Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
2 Sociólogo e antropólogo francês.
4 Escritor e teórico Camaronês.
I Paula Nurit Shabel: Doutora em Ciências Antropológicas pela Universidad de Buenos Aires (UBA), Argentina, onde também é docente. Suas pesquisas tratam o tema da infância e organizações sociais, bem como a construção do conhecimento social por parte das crianças. Trabalha no Consejo Nacional de Investigaciones Científicas (CONICET), Argentina. E-mail: paulashabel@gmail.com
II Marcia Aparecida Gobbi: Cientista Social, Universidade de São Paulo (USP), Brasil. Mestre e Doutora em Educação (área de Ciências Sociais e Educação), pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil. Investiga e orienta pesquisas relacionadas à infância, em especial na produção de imagens em contextos urbanos e escolares, e ensino de Ciências Sociais. E-mail: mgobbi@usp.br
III Beatriz Corsino Pérez: Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF)/ Campos dos Goytacazes, Brasil. Investiga e orienta pesquisas sobre infância e juventude, em especial sobre os temas: participação, política, suas relações com a cidade e o campo, educação e psicologia escolar. Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC/UFRJ) e do Núcleo de Pesquisa Infâncias, Juventudes e Políticas Públicas (NIJUP/UFF). E-mail: biacorsino@gmail.com