Desidades
ISSN 2318-9282
EDITORIAL
É recente o desafio de fazer os jovens se apropriarem das leis que os defendem. Atualmente, vivemos um avanço democrático onde a ordem legal de direitos construída nas últimas décadas se instala, mesmo que morosamente, no que se refere às práticas executivas de Assistência Social, Educação, Saúde, Segurança e Moradia, e novas práticas protagonizadas por crianças e jovens tem ganhado espaço. Os desafios que hoje nos atravessam, no entanto, são os de saber se e como o processo democrático se manterá, e se esses jovens aparelhados por leis de garantia de direitos terão como recorrer a elas. Dar espaço à palavra do jovem é ponto de partida para qualquer mudança e, nesse sentido, esta edição apresenta trabalhos que dão espaço à voz do jovem de modo a fazê-la intervir nos saberes produzidos e nos conhecimentos construídos.
Numa conversa sobre o tema da divisão dos três poderes, um jovem em cumprimento de medida socioeducativa retruca: “como assim não tem mais Rei? As senhoras não conhecem o Rei da Favela?”, se dirigindo às psicólogas e professoras que orientavam a roda de conversa com cerca de sete jovens e alguns alunos de Pedagogia. Seguiu a risada de todos os presentes. A graça do chiste evidencia uma verdade por todos compartilhada: em muitos espaços não há divisão dos três poderes, não há presença do Estado, nesse espaço se instala a lei do Rei, no caso, a lei do mais forte.
O diálogo aqui transcrito foi colhido numa atividade em função da recente liminar do Ministro Edson Fachin, de maio de 2019, que concedeu um Habeas Corpus coletivo para os adolescentes que cumprem medida em regime fechado e semiaberto em Estados que comprovadamente não cumpriam o Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA no tocante à socioeducação. Tal liminar estendia aos Estados do Rio de Janeiro, Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Sul, São Paulo, Tocantins e Distrito Federal a liminar concedida ao Estado do Espírito Santo em agosto de 2017, acatando o pedido da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo que apresentou a denúncia de maus tratos, de acomodações insalubres, dentre outras violações de direitos. A liminar estabelece uma ocupação máxima de 119% da capacidade de acolhimento dos institutos de internação e salvo casos de ato infracional cometido com grave ameaça ou violência, a pena de reclusão pode ser convertida em prisão domiciliar.1 Tal medida atingiu cerca de mil jovens internados ou semi-internados nos Estados referidos, o que exigiu do judiciário e do executivo novos expedientes para a execução das medidas.
Ainda que possamos comemorar um certo amadurecimento no que se refere à garantia de direitos da infância e adolescência, estando o Estatuto da Criança e do Adolescente prestes a completar 30 anos, vivemos um momento onde toda ordem de conquistas democráticas estão em risco, onde Estado e sociedade retrocedem no âmbito das medidas de proteção que deveriam oferecer e incrementam seu papel punitivo que novamente volta a obedecer um padrão tutelar histórico que culpabiliza, persegue e encarcera “os menores”. Por um lado, há uma expansão na garantia de direitos, por outro, um encolhimento das instituições onde se exerceriam esses direitos a partir de cortes sucessivos de orçamento, por exemplo, que deixam intocável e ainda mais exposta a condição de vulnerabilidade da infância, adolescência e juventude. Ficam-nos as seguintes questões: pode o sistema socioeducativo fazer frente à lei do Rei da Favela? Dispõem atualmente o Estado de outra forma de fazer frente a isso que não apenas uma desastrosa guerra às drogas? Adianta garantir o Habeas Corpus na Justiça, tal como sustentado pelo Ministro Edson Fachin e deixar o território livre para tráfico e milícias?
O Projeto de Vida Titanzinho, realizado na praia de Titanzinho em Fortaleza faz frente a isso trazendo à discussão o desafio de fazerem os jovens se apropriarem das leis que os defendem. O artigo de Iara Andrade e Paula Autran apresenta o trabalho de construção de identidade social de um grupo de jovens de uma população exposta a um alto índice de violência, abandono e exclusão, no Bairro de Serviluz, onde durante um ano atividades de rodas de conversa, palestras e ações coordenadas puderam fortalecer identidades e vínculos a partir da conscientização da violação dos Direitos Humanos no processo de constituição do bairro. O efeito sobre os jovens dos espaços propícios à circulação de palavra e de ideias pode ser neste trabalho contemplado.
Outros dois artigos trazem o exame sobre os papéis sociais e as práticas destinadas à infância e adolescência, que na atualidade continuam perpetuando um modus operandi histórico de tratamento punitivo que busca não apenas responsabilizá-los individualmente por sua desinserção social, mas encarcerá-los e medicalizá-los.
O artigo de Paulo Roberto da Silva Junior e Claudia Mayorga aborda a questão dos jovens nem nem (que nem estudam, nem trabalham), tratados como problema social pela Organização Internacional do Trabalho/OIT. Tal discurso cooptado pela mídia passa a se exercer como julgamento moral quanto à desocupação juvenil, o que escamoteia uma série de evidências históricas de desigualdades econômicas e de gênero. O artigo usa a análise lexical dos universos semânticos onde se trata dos jovens nem nem (documentos da OIT e sua repercussão na mídia), contrapondo-os a uma coleta qualitativa de dados com um grupo de jovens de favelas de Belo Horizonte que se enquadram nesta categoria. O resultado mais uma vez reafirma a importância da escuta dos jovens, objeto de políticas públicas e julgamento social, no exame dos discursos correntes.
No artigo Institucionalização da juventude pobre no Brasil: questões históricas, problemas atuais de Marianne de Camargo Barbosa e Danichi Hausen Mizoguchi temos uma abordagem histórica das estratégias de abrigamento e internação psiquiátrica de jovens pobres. Os autores traçam um excelente histórico das mudanças conquistadas com o ECA e com a Reforma Psiquiátrica que inaugura os CAPSi (Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil) no Sistema Único de Saúde. Apesar do ECA predizer práticas contrárias à internação, é destacado que por trás da categoria de risco social continua se operando uma lógica de exclusão, servindo de motivo para internações e afastamento do jovem de seu lugar de origem.
No Espaço Aberto é debatido sobre qual a responsabilidade da geração anterior em relação ao momento atual da juventude. Transcrição do encontro das professoras Carmen Teresa Gabriel e Lucia Rabello de Castro, no contexto do Ciclo de Debates “Subjetividade, Descolonialidade e Universidade”.
Nesta edição, a Revista DESidades também traz a resenha do livro “Infância em movimento, do adultocentrismo à emancipação”, de Santiago Morales e Gabriela Magistris, feita por Marta Martínez Muñoz. E do livro “O cotidiano na escola. 40 anos de etnografia escolar no Chile”, de Andrea Valdivia Berrios e Jenny Assael Budnik, feita por Antonio García.
Como em todas as edições, apresentamos um levantamento bibliográfico dos livros publicados recentemente na área das Ciências Humanas e Sociais dos países da América Latina sobre infância e juventude.
Boa leitura!
Andréa Martello - Editora Associada
1 Supremo Tribunal Federal. Imprensa. Notícias. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=412292. Acesso em: 20 jul. 2019.