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Desidades

 ISSN 2318-9282

     

 

TEMAS EM DESTAQUE - SEÇÃO LIVRE

 

UNICEF, (des)colonidades e infâncias: vidas negras importam

 

Unicef, (de)colonialities and children: black lives matter

 

Unicef, (de)colonialidads y niños: la vida negra importa

 

 

Flávia Cristina Silveira LemosI; Dolores Cristina Gomes GalindoII; Anderson Reis de OliveiraIII; Mateus Moraes de OliveiraIV

IUniversidade Federal do Pará, Faculdade de Psicologia, Belém, Brasil
IIUniversidade Federal do Mato Grosso, Programa de Pôs-Graduação em Psicologia, Cuiabá, Brasil
IIIUniversidade Federal do Pará, Faculdade de Psicologia, Belém, Brasil
IVUniversidade Federal do Mato Grosso, Programa de Pôs-Graduação em Psicologia, Cuiabá, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo busca problematizar práticas do UNICEF de (des)colonização e, paradoxalmente, de silenciamento e controle dos corpos de crianças e pela atualização dos mecanismos de colonialidades das vidas negras, a partir de uma conversação entre Mbembe, Foucault, Sontag, Carneiro, Gonzalez e Butler. O texto é resultado de pesquisas com documentos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Trabalha-se com documentos sobre a situação da infância brasileira, produzidos em português pela referida agência internacional, no país. Problematiza-se o enquadramento das vidas de crianças negras e como elas são construídas como precárias a ponto de serem vulnerabilizadas por mecanismos biopolíticos e necropolíticos de desautorização e interdição discursivos de todos(as) que são classificados(as) como não humanos, logo, alvos de colonização. Por fim, abordam-se fragmentos de relatórios do UNICEF em que os enquadres de guerra biopolíticos e necropolíticos são materializados por tanatopolíticas.

Palavras-chave: colonialidade, necropolítica, biopolítica, UNICEF, infâncias negras.


ABSTRACT

This article seeks to problematize UNICEF practices of (de)colonization and, paradoxically, of silencing and controlling the bodies of children and by updating the mechanisms of coloniality in black lives, based on a conversation between Mbembe, Foucault, Sontag, Carneiro, Gonzalez e Butler. The text is the result of research with documents from the United Nations Children's Fund (UNICEF). We work with documents on the situation of Brazilian childhood, produced in Portuguese by the aforementioned international agency in the country. The framing of the lives of black children is problematized as is how they are constructed as precarious to the point of being vulnerable by biopolitical and necropolitical mechanisms of disauthorization and discursive interdiction of all who are classified as non-human, therefore, target colonization. Finally, it addresses fragments of UNICEF reports in which the biopolitical and necropolitical frameworks of war are materialized by tanatopolitics.

Keywords: coloniality, necropolitics, biopolitics, UNICEF, black childhoods.


RESUMEN

Este artículo busca problematizar las prácticas de UNICEF de (des) colonización y, paradójicamente, de silenciar y controlar los cuerpos de los niños y actualizar los mecanismos de colonialidad en las vidas de los negros, basado en una conversación entre Mbembe, Foucault, Sontag, Carneiro, Gonzalez e Butler. El texto es el resultado de una investigación con documentos del Fondo de las Naciones Unidas para la Infancia (UNICEF). Trabajamos con documentos sobre la situación de la infancia brasileña, producidos en portugués por la mencionada agencia internacional en el país. El encuadre de las vidas de los niños negros se problematiza y cómo se construyen como precarios hasta el punto de ser vulnerables por mecanismos biopolíticos y necropolíticos de desautorización e interdicción discursiva de todos los que están clasificados como no humanos, por lo tanto, objetivo colonización. Finalmente, aborda fragmentos de informes de UNICEF en los que los marcos biopolíticos y necropolíticos de la guerra se materializan por tanatopolítica.

Palabras clave: colonialidad, necropolítica, biopolítica, UNICEF, infancias negras.


 

 

Este artigo busca problematizar práticas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) de (des)colonização e, paradoxalmente, de silenciamento e controle dos corpos de crianças, além de atualização dos mecanismos de colonialidades das vidas negras. Essa problematização será feita a partir de uma conversação entre Mbembe (2014, 2018, 2019), Foucault (1979, 1999, 2002, 2004, 2008a, 2008b), Sontag (2003, 2004, 2020), Carneiro (2011), Gonzalez (1984) e Butler (2018, 2019). Para tanto, interrogam-se as práticas de (des)colonização das infâncias negras, colocando em xeque as práticas do UNICEF no Brasil.

Esta agência montou o seu primeiro escritório no Brasil em 1950. Está ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), fundada no pós-II Guerra Mundial como uma reorganização da Liga das Nações. O Sistema das Nações Unidas tem fomentado articulações políticas e incidências intensivas em diferentes áreas do conhecimento e nas mais diversas políticas públicas voltadas aos mais variados grupos sociais e às questões sociais, econômicas, políticas, culturais, ecológicas e de segurança. Neste texto, busca-se especialmente problematizar as práticas de descolonizações racistas do UNICEF face às crianças e adolescentes no Brasil. A produção da diferença tem sido alvo de atenção dessa agência multilateral nos relatórios e ações políticas no país em várias esferas governamentais e não-governamentais.

Com efeito, a problematização das colonialidades é um foco de pesquisas e preocupações na atualidade, tanto em universidades quanto em organizações internacionais ligadas à ONU, tais como o UNICEF. Há 20 anos, trabalhamos com a análise de documentos em uma perspectiva histórica com fontes sobre a atuação do Fundo das Nações Unidas para a Infância no Brasil. Desse modo, pretende-se neste artigo problematizar acontecimentos específicos sobre as infâncias negras a partir de um recorte de uma pesquisa histórica. Vale mencionar que é um momento importante para escrevermos sobre este tema, pois em julho de 2020, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 30 anos de promulgação no país, e esta lei teve contribuições dos princípios da Convenção dos Direitos Internacionais da Criança de 1989, realizada pela ONU, tendo também a participação da articulação política de assessores do UNICEF no Brasil:

O trabalho arquivístico, historiográfico, crítico-disciplinar e, inevitavelmente, intervencionista envolvido aqui é, de fato, uma tarefa de "medir silêncios". Isso pode ser uma descrição do ato de "[...] investigar, identificar e medir [...] o desvio de um ideal que é irredutivelmente diferencial" (SPIVAK, 2010, p. 64).

Questionar especificamente a colonialidade dos corpos de crianças e adolescentes negras(os) é um relevante trabalho no presente, pois ainda há inúmeras violações de direitos dirigidas a este grupo social, sobretudo no Brasil. O UNICEF chama a atenção para este acontecimento e propõe intervenções, sugere pautas e políticas equitativas. Portanto, neste artigo, aborda-se esta temática por meio de uma perspectiva da História Cultural e da Psicologia Social.

 

Racismos e (des)colonidades: biopolíticas, necropolíticas e resistências

As práticas colonizadoras territoriais dos últimos séculos se atualizam por meio da cultura e da ciência, bem como por meio da concorrência desenvolvimentista entre os países. A emergência dos Estados Modernos marcou o aparecimento da competição entre empresas e entre trabalhadores(as) no liberalismo capitalista, paralelamente à criação da sociedade de direitos e da invenção da infância como objeto de governo.

Os racismos culturais e os biológicos surgem com força, no bojo da construção do capitalismo liberal, e são atualizados no neoliberalismo empresarial, lançando mão de racionalidades científicas e hirarquizantes das vidas não apenas como resquícios do colonialismo, mas como uma nova roupagem de colonialidade em imperialismos cognitivos, econômicos e políticos da modernidade. Na segunda metade do século XX, acirra-se a concorrência empresarial e entre indivíduos na biopolítica, pautada no empresariamento da vida e dos estilos de existência. O modo de subjetivação do capitalismo mundial integrado intensifica as relações de exploração do trabalho, da mercantilização dos direitos e das relações sociais (FOUCAULT, 2008b).

A visão de civilização e educação passa a traçar uma métrica dos valores e das subjetividades por meio da avaliação e do exame socioemocional para classificar desempenhos e justificar desigualdades socioeconômicas. A concorrência econômica e política ganha incidência maior com os fluxos do capital global, especialmente se materializa no incremento das tecnologias gerenciais da morte em nome da defesa social, criando inimigos e matando como tal ato fosse cuidado com a vida.

A biopolítica toma a vida como foco no fazer viver e deixar morrer, podendo matar em nome da gerência da saúde e em nome da proteção social. Por isso, Foucault (1999, 2008a) assinalou a função tanatopolítica no interior das políticas de governo da vida, na medida em que matar e exterminar grupos, os quais foram desumanizados, pode ser uma tática de morte materializada na biopolítica. Nesse sentido, o autor salienta que nunca se matou tanto quando a vida foi apresentada como valor supremo de uma certa sociedade.

Matar em nome da vida é uma necropolítica, e gerir a vida, deixando morrer e fazendo viver alguns face à eliminação de outros, passou a ser um objetivo da biopolítica (FOUCAULT, 2008b; MBEMBE, 2014, 2018, 2019). Para organizar essas práticas, constitui-se esquemas valorativos entre os grupos sociais, tais como: testes, sanções, punições, hierarquias, comparações, controles, repartições e classificações. Os racismos ganham visibilidade nessas ações e se tornam vetores de sectarismos, fundamentalismos, comunitarismos e extremismos como racionalidades de mediação dos corpos. Para tanto, o conceito de desenvolvimento ganha centralidade, pois é por meio dele que se enquadra os corpos em escalas e lugares em gráficos dos níveis de inclusão e exclusão, em uma determinada sociedade.

Foucault (2004) assinalou que o conceito de desenvolvimento foi importante para vertentes com enquadres psicoculturais e da economia política em que as noções de subdesenvolvimento econômico, privação afetiva e sociocultural ganharam difusão como justificativas das desigualdades, sendo utilizadas para naturalizar e banalizar os racismos de Estado e de sociedade. Com efeito, conforme Butler (2019), as narrativas sobre o desenvolvimento dos países e dos sujeitos trazem elementos racistas como legitimadores da meritocracia e explicativos das hierarquias e comparações excludentes.

Mbembe (2014) explica que a educação racional seria a condição para que as pessoas negras e indígenas fossem reconhecidas como semelhantes ao homem branco Ocidental e para que sua humanidade pudesse ser tomada como figurável e perceptível à luz dos olhos eurocentrados dos Iluminismos racionalizantes (MBEMBE, 2014, 2018). Esse movimento inscreve na lógica colonial um "apagamento" das emergências étnicas do lugar de ser visto e produzido enquanto colonizado; ele passa a ser um sujeito detentor de direitos na medida em que é conduzido à razão e aos moldes (margens, bordas, molduras) ocidentais. O sujeito de direitos é colado ao sujeito da razão e ambos são apresentados no liberalismo como articulados à própria ideia de humanidade, na sociedade contemporânea.

Nos estudos de relações étnico-raciais brasileiros, isso pode ser o que chamamos de embranquecimento científico e no Direito, pautado no pressuposto racional da consciência de um sujeito soberano. É importante também ressaltar a posição estratégica da educação no processo de violência colonial - a educação (Ocidental) aqui aparece como um instrumento político/processual de apagamento étnico e direcionamento moral, como uma assassina de histórias, como uma prática des-personificadora, ao mesmo tempo em que contém consigo a negação da diferença e o acesso ao estatuto de cidadão da pessoa colonizada. Contém a presença e a não-presença, direciona, de certo modo, o material e o que desenha como figura borrada-indiscernível. Mbembe (2014, p. 154) nos diz:

Assim, a essência da política de assimilação é dessubstancializar a diferença, através de todos os meios, para uma categoria de indígenas [e negros] cooptados para o espaço da modernidade, se fossem 'convertidos' e 'cultos', ou seja, aptos para a cidadania e para usufruir dos direitos cívicos.

A infância, que significa "sem fala", também é vista como período de ausência, de menoridade política e psicológica (WEINMANN, 2014). A ideia de menos civilidade está na base da perspectiva de menoridade como menos desenvolvimento e é usada para relacionar a infância ao racismo pela classificação de primitivo (BUTLER, 2018). "Os tratados de civilidade pueril propõem-se a orientar os familiares e mestres, prescrevendo-lhes regras de conduta, que visam à normalização dos que são o mais infantes" (WEINMANN, 2014, p. 134).

A partir do século XIX, a biopolítica é tecida e se organiza por racionalidades dos racismos de Estado e de sociedade, que opera pela modernização normalizadora e moralizante das condutas pelo liberalismo individualista e totalizador, simultaneamente; pois individualiza a culpa e o desempenho e totaliza os valores e modelos de grupos sociais. Michel Foucault é importante nesse campo porque produziu pesquisas sobre a gestão da vida e a entrada da mesma na História, distinguidas por critérios valorativos de vidas consideradas importantes e aquelas que são desqualificadas e deslegitimadas pelo próprio Estado de Direito e pelos saberes científicos (FOUCAULT, 1999, 2008a, 2008b).

Por sua vez, Mbembe (2018) assinala que a necropolítica refere-se aos estudos sobre a colonialidade nas práticas do presente com os resquícios da escravidão nas políticas da inimizade, voltadas com mais incidência aos corpos de pessoas negras. Esta política é conceituada como necro por ser uma gestão da morte praticada contra grupos, constituídos como inimigos da sociedade em função de desigualdades socio-econômicas e injustiças históricas. A morte de jovens e adolescentes em práticas de extermínio, por exemplo, é um acontecimento analisador dessa necropolítica e está ligada à política da inimizade voltada contra povos, em função dos racismos. No bojo da invenção do Ocidente Moderno como desenvolvido pela primazia da branquitude, Mbembe (2014) salientou, em Crítica da Razão Negra, que os negros eram analisados como incapazes de se governarem.

Para apurar as implicações políticas desses debates, talvez seja preciso lembrar que, não obstante a revolução romântica, uma tradição bem vincada na metafísica ocidental define o ser humano como possuidor de linguagem e razão. Com efeito, não há humanidade sem linguagem. A razão em especial confere ao ser humano uma identidade genérica, de essência universal, a partir da qual decorre um conjunto de direitos e valores. A razão une todos os seres humanos. É idêntica para cada um deles (MBEMBE, 2014, p. 150).

Estes pontos são cruciais para a interrogação do silenciamento e apagamento de negros e indígenas no Brasil e em outros países, por exemplo, quando se busca pensar nos processos de subjetivação por meio de segmentações sociais, política, econômica, cultural e subjetiva realizados na gestão de uma necropolítica, conceito de Mbembe (2018). Uma pergunta se tornou central para esse autor: seriam essas pessoas inferiorizadas e desumanizadas dotadas de razão, de pensamento e de linguagem (MBEMBE, 2014)? Não podemos nos esquecer de que essas questões começaram a surgir apenas após todo o processo inicial de colonização, que trouxe consigo uma carga inimaginável de violência e xenofobia, sustentada pela certeza de que nenhum dos grupos colonizados era considerado humano. Certeza esta construída pela imagem que o branco europeu tinha de pessoas às quais eram classificadas como negras e indígenas, ou seja, sob a insígnia de selvagens, sem religião, sem moral, sem ordem, sem organização política e vistos como animais, portanto, infra-humanos.

Classificar o colonizado enquanto alguém "racional" foi um processo ocorrido após séculos de colonização, quando emergiram as chamadas revoluções burguesas e os princípios iluministas, na Europa, onde começaram a entrar em cena na história do pensamento branco Ocidental as noções modernas de direitos individuais, igualdade, liberdade e democracia, perspectivas estas conduzidas por aspectos morais e racionais. Mbembe (2014) diz então que essas questões deram lugar a três tipos de respostas às implicações políticas relativamente distintas.

A primeira delas viria a afirmar o negro como sem história, fora da história, situar a experiência humana do negro na ordem da diferença fundamental enquanto essência biológica e cultural (MBEMBE, 2014). Nada que viesse do negro importava, era útil, tudo era desprezível, inclusive ele próprio; seria impossível conviver com o signo africano e sua herança, com o corpo negro, colocando-o como igual ao corpo branco, à experiência branca de existência. O próprio corpo negro foi constituído como testemunho dessa diferença fundamental e inquestionável - traços fenotípicos, cabelo, dança, língua e, principalmente, a cor da pele. Mbembe (2014) encerra a primeira resposta dizendo que em virtude dessa diferença radical ou até desse ser-à-parte, justificava-se a sua exclusão, efetiva e por direito, da esfera da cidadania humana total. Reparem que o primeiro movimento é o de exclusão total, de existência à parte, ou como o próprio Mbembe (2014) coloca, ser-à-parte.

A segunda resposta está alinhada com a primeira em relação à diferença fundamental, mas lida com ela de outra maneira, se distanciando da exclusão total. Nesta resposta, a diferença não consiste num signo africano/indígena vazio, sem razão ou com absolutamente nada, ela considera a diferença, considera costumes e preenche o signo do outro. Como Mbembe (2014) explica, trata-se de inscrever a diferença em uma ordem institucional distinta, ao mesmo tempo que se constrange esta ordem distinta a operar em um quadro fundamentalmente igualitário e hierarquizado. A diferença existe não na lógica de um [signo, corpo, lugar] branco preenchido e um [signo, corpo, lugar] colonizado vazio, mas sim na lógica de um colonizado com suas diferenças e costumes, todos considerados. A partir disso, essa diferença contida no colonizado é "incorporada" à ordem Ocidental, num campo de igualdade que pode ser disposto em um plano de falsificado no jogo do controle da ordem discursiva.

É possivelmente o que Césaire (1977) percebeu como mal enunciar os problemas para melhor legitimar as soluções que se lhe aplicam - e essa formulação pode, em última análise, servir para todas as três respostas elencadas por Mbembe (2018), na medida em que cristaliza a dinâmica relação de saber e poder, congelando-a em classificações racistas, às quais são transformadas em práticas de dominação social, econômica, política, cultural e subjetiva. Estes processos configuram uma violência, chamada de simbólica, todavia, também agenciam uma necropolítica, ou seja, uma gestão da morte na medida em que o silenciamento e exclusão são modos de matar, desumanizando em um primeiro momento para, posteriormente, deixar morrer ou fazer morrer as vidas enquadradas como desvalorizadas (MBEMBE, 2014, 2019; BUTLER, 2018).

Então, seriam produzidas formas de saber específicas, tais como: a ciência que passa a afirmar a dimensão colonial com o objetivo de documentar e arquivar a diferença, de eliminar a pluralidadee a ambivalência em prol da redução das mesmas à ordem das classificações cientificistas que geram efeitos da inferioridade e comparação racializada (MBEMBE, 2018), ou seja, o reconhecimento de uma existência "positiva" da diferença para menos em graus de intensidade e variação, seria o pré-texto para uma catalogação do colonizado, um movimento que afirmou de maneira decisiva a prática de considerar o colonizado um objeto, manipulável e, em certa medida, um processo de desumanização. Mbembe (2014, p. 153) encerra dizendo que:

O paradoxo deste processo de abstracção e de reificação é o seguinte: por um lado, aparenta reconhecimento; por outro, constitui por si um juízo moral, uma vez que, por fim, o costume é apenas singularizado para melhor indicar a que ponto o mundo indígena [e negro], na sua naturalidade, em nada coincide com o nosso; isto é, não faz parte do nosso mundo e não poderia, desde logo, servir de base à experiência de uma cidadania comum.

Por fim, a terceira resposta deriva da política/processo de assimilação/integração. Crê que é possível uma experiência situada de mundo que seria comum a todos os seres humanos enquanto uma suposta vivência de uma humanidade universal, a ser erguida por jogos de semelhanças essencializadas entre os seres humanos (MBEMBE, 2014). Aqui, as diferenças são deixadas de lado, e passa-se a acreditar em uma universalidade do ser humano tal qual uma essência, naturalizada. Porém, essa universalidade não pertence de início a todas(os), ao contrário, apenas ao branco europeu; a "herança" das outras duas "soluções" anteriores colocaria as pessoas negras e indígenas em uma posição de diferente (inferior) como pressuposto fundamental.

É possível encarar essas três respostas como três momentos e atos simultâneos. As consequências práticas desses atos foram decisivas para a formação das instituições e leis da forma como são conhecidas hoje. O primeiro ato fixa o pressuposto de diferença excludente das instituições modernas e todas as que viriam adiante (dentro da tradição Ocidental), colocando as pessoas negras e indígenas como seres à parte da humanidade. O segundo ato torna possível a instrumentalização dessa diferença, das formas quais fossem e forem possíveis. O terceiro ato, num gesto duplo, encerra o processo de universalização do Ocidental branco (estabelece o branco como humanidade e, a partir disso, fixa esse humano na educação, nos direitos, nas leis, na medicina, na psicologia, etc.), ao mesmo tempo em que encerra o processo de desumanização do colonizado, inscrevendo-o num eterno sentimento de incompletude, de negação de si mesmo, e de busca pela "instrução", pela existência "digna", nos moldes estabelecidos (e constantemente reafirmados pelas instituições ocidentais modernas) pelo europeu - no que Mbembe (2014) chama de humanidade prorrogada. A terceira resposta, como já disse antes, encerra o humano em torno do branco europeu ocidental. Ou seja, ela fecha o ser humano, constrói muros, fronteiras, margens, bordas - o que pretende delimitar o que está dentro e o que está fora.

O "lado de fora", o colonizado, como já dito anteriormente, entra numa condição de humanidade prorrogada, por estar inscrito numa ordem ocidental de organização social - modelos de organização social oriundos da modernidade. São esses modelos de organização que embaralham essa noção de humano; porém, não de maneira totalmente "acidental", mas de certo modo, proposital. Fazem parte das engrenagens da violência colonial, a mentira e a hipocrisia da igualdade e da universalidade, dos direitos e da individualidade e cidadania. Entretanto, apesar de ser algo proposital, acaba sendo também um ponto de embaralhamento, de confusão, de disseminação de possibilidades. A humanidade prorrogada acaba inscrita em um jogo de significantes que, ao mesmo tempo em que provoca sofrimento e dominação ao colonizado, lhe proporciona um espaço para criação e ressignificação, ou nos termos em que coloca Mbembe (2014): inversão. A respeito disso, ele diz:

É próprio dessa humanidade prorrogada, incessantemente condenada a reconfigurar-se, anunciar um desejo radical, insubmersível e vindouro, de liberdade ou de vingança, principalmente quando tal humanidade não passa pela abdicação radical do sujeito. Com efeito, ainda que juridicamente definidos como bem móveis e apesar de práticas de crueldade, de degradação e de desumanização, os escravos continuam a ser humanos. Através do seu labor ao serviço de um senhor, continuam a criar um mundo, através do gesto e da palavra, tecem relações e um mundo de significações, inventam línguas, religiões, danças e rituais, e criam uma 'comunidade'. A destituição e a abjecção que lhes são impostas não eliminam de todo sua força de simbolização. Pela sua mera existência, a comunidade de escravos não deixa de rasgar o véu da hipocrisia e da mentira que cobre as sociedades escravagistas (MBEMBE, 2014, p. 91).

Uma análise prática desses termos entrega-nos o fato de, apesar de toda a mentira e hipocrisia do colonizador, e apesar de todas as instituições e conceitos existentes atualmente (principalmente no contexto brasileiro) terem sido fechados em torno da "humanidade universal", da obra que é o ser humano. Como a lógica da colonização pode ser observada de forma pronta e acabada no caso brasileiro, nos termos do que chamamos de mito da democracia racial, a perversão desses limites é disseminada e utilizada das mais variadas maneiras possíveis, constituindo privilégios, dinâmicas de exclusão, assim como formas de resistência e enfrentamento do racismo. Ainda mobilizando aspectos da terceira resposta, um deles é especialmente importante: a educação. Como Mbembe (2018) explica, seria por meio da educação que pessoas indígenas e negras seriam transformadas em cidadãs. Para além do que já foi discutido anteriormente a respeito da humanidade prorrogada, do ser-à-parte, podemos propor um olhar à palavra educação que esteja relacionando-a com outros significantes, como o próprio humano, cidadão, indivíduo ou civilização. Integrada na obra do humano, está a educação. Os limites, os supostos dentro e fora do humano são também, para efeito de análise, o dentro e fora da educação.

 

Contribuições de Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Judith Butler e Susan Sontag para pensar a descolonização das práticas

O colonizado, inscrito nessa ordem colonial, está para a educação assim como está para sua condição de humano. Isso quer dizer que ele é situado do lado de fora, nos currículos, nas aulas, nas discussões, no plano pedagógico, nas hierarquias de valores, nos ensinamentos morais; porém, acaba embaralhando o dentro-fora da educação, na medida em que existe e é violentamente integrado na ordem e modelo educacional Ocidental (CARNEIRO, 2011). Este enquadre é uma política de guerra, a qual opera por construções de esquemas para nomear e enxergar alguém em uma perspectiva específica, cujo campo de práticas forja modos de ver, sentir, pensar e agir em relação a alguns grupos sociais como se estes fossem vida inelutáveis, precárias e vulneráveis ao máximo, desvalorizadas e colocadas como menores e até mesmo desprezíveis em escalas comparativas, gerando quadros de extermínio e um processo de indiferença face a toda essa maquinaria letal (BUTLER, 2018; SONTAG, 2003, 2004).

O enquadramento é uma prática divisora, a qual fabrica efeitos de valoração, em graus de classificação, distribuídos em gráficos de controle populacional, em uma verdadeira economia política securitária, funcionando como gestão de nomeação de quem é vida passível de luto ou não (BUTLER, 2019; SONTAG, 2020). Com efeito, autorizar algumas falas e discursos em detrimentos de outros produz hierarquia de corpos e subjetividades, sendo que a educação é uma engrenagem agenciadora de forças que podem criar ordens de dominação pela linguagem e por decisões políticas em destinação de recursos, verbas, currículos, extinção e criação de programas de proteção, etc. (CHAUÍ, 1996).

No contexto brasileiro, esse embaralhamento do dentro-fora das práticas divisórias está intimamente relacionado ao mito da democracia racial que, de saída, foi se inscrevendo na sociedade brasileira para apagar as violências coloniais, nivelando a população brasileira na condição de mestiça e eliminando, portanto, o branco e o negro do palco histórico brasileiro, colocando em cena (de maneira mentirosa e hipócrita) o mestiço - como plano de fundo, visando eliminar a certeza de que o Brasil é um país racista. O mito da democracia racial se manifestou em estudos científicos (CARNEIRO, 2011; BOLSANELLO, 1996), na literatura brasileira, nas políticas públicas da primeira república (DOMINGUES, 2005; FERNANDES, 1989) e foi se fixando como mito fundador (CHAUÍ, 2006) na cultura do país de maneira extremamente eficaz - tendo como parâmetro de eficiência os objetivos da branquitude brasileira (SCHUCMAN, 2012).

Porém, apesar de ter promovido um apagamento e violências muito singulares à experiência brasileira, na esteira do branqueamento, da mentira e da hipocrisia vieram também alguns aspectos de subversão e perversão, que afirmam a presença negra (presença do que está fora) na "obra humana" (o dentro), e quando mostradas com nitidez e agressividade, golpeiam todas as bordas e limites desse interior. Ninguém melhor que a ativista, filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez (1984, p. 238) para nos mostrar esses aspectos de subversão e perversão da "obra humana" Ocidental:

É engraçado como eles gozam a gente quando a gente diz que é Framengo. Chamam a gente de ignorante dizendo que a gente fala errado. E de repente ignoram que a presença desse r no lugar do l, nada mais é que a marca linguística de um idioma africano, no qual o l inexiste. Afinal, quem que é o ignorante? Ao mesmo tempo, acham o maior barato a fala dita brasileira, que corta os erres dos infinitivos verbais, que condensa você em cê, o está em tá e por aí afora. Não sacam que tão falando pretuguês. E por falar em pretuguês, é importante ressaltar que o objeto parcial por excelência da cultura brasileira é a bunda (esse termo provém do quimbundo que, por sua vez, e juntamente com o ambundo, provém do tronco linguístico bantu que "casualmente" se chama bunda). E dizem que significante não marca... Marca bobeira quem pensa assim. De repente bunda é língua, é linguagem, é sentido, é coisa. De repente é desbundante perceber que o discurso da consciência, o discurso do poder dominante, quer fazer a gente acreditar que a gente é tudo brasileiro, e de ascendência europeia, muito civilizado, etc e tal. Só que na hora de mostrar o que eles chamam de 'coisas nossas', é um tal de falar de samba, tutu, maracatu, frevo, candomblé, umbanda, escola de samba e por aí afora.

Devemos nos atentar à capacidade da "comunidade negra" de estar dentro do cotidiano, ao mesmo tempo em que é jogada nas suas manifestações mais legítimas para fora: religião e funk, por exemplo. Até mesmo nesses exemplos, a "obra brasileira" acaba trazendo para dentro em momentos específicos essas manifestações - pular ondinhas no ano novo, dançar funk nas festas de formatura das elites brancas, fazer feijoada vip, cobrando R$100,00 a entrada.

No contexto escolar, a língua formal (marca euro-ocidental) é a que aparece nos livros, na figura de poder de professores e diretores das escolas. Porém, é no pretuguês que as discussões sobre o conteúdo se desenvolvem, é no pretuguês que professoras e professores (principalmente os de escola pública, e mais ainda os que cresceram na mesma realidade que os alunos - escolas públicas e de periferia) conseguem conversar e estabelecer o tão valioso diálogo que Paulo Freire nos apresenta, numa tentativa de desconstruir a engrenagem hierárquica própria da colonização; é no pretuguês que seminários são apresentados em salas de aula de ensino médio.

Há uma relação com o mito da democracia racial que consiste justamente na percepção de que as relações raciais no Brasil são um grande e proposital - mas ao mesmo tempo acidental - embaralhamento entre o que se situa "dentro" e o que se situa "fora", com uma série de aspectos que se repetem, se recriam, criam aspecto novos e disseminam possibilidades de destinos infinitas. Tudo depende de como se direciona o olhar para tudo isso, e a respeito do olhar, o colonialismo pode ser utilizado para direcionar. Contudo, a diretiva tem limites e não controla todas as possibilidades de existência, apesar de se caracterizar como uma violência, à qual extrapola as relações de saber e poder, caminhando entre o plano de dominação simbólica para o da violência de uma tanatopolítica e de uma necropolítica. A colonização - o processo educativo cunhado na violência da colonização - direciona o olhar de quem estiver sendo educado, e faz parte dessa violência que esse olhar direcionado se torne hábito, se torne prisão; a mera busca por novas possibilidades sem o combate explícito aos modelos coloniais não tem resultado algum, pois se o colonizado não consegue ver o que direciona seu olhar, não vai conseguir impedir que seu olhar seja direcionado; por mais que existam infinitas possibilidades, o hábito tenta direcionar o colonizado para o "lado de fora".

O processo histórico foi, para grande parte da nossa humanidade, um processo de habituação à morte do outro - morte lenta, morte por asfixia, morte súbita, morte delegada. Essa habituação à morte do outro, daquele ou daquela com quem se crê nada haver para partilhar, estas formas múltiplas de enfraquecimento das fontes vivas da vida em nome da raça ou da diferença, tudo isso deixou vestígios muito profundos, quer no imaginário e na cultura, quer nas relações sociais e econômicas. Tais lesões e cicatrizes impedem de fazer comunidade. De fato, a construção do comum é inseparável da reinvenção da comunidade (MBEMBE, 2014, p. 305).

Para Chauí (1996), o discurso competente e a fala autorizada presentes nas diferentes esferas da democracia brasileira materializam diferentes domínios de exclusão e interdição discursiva de diversos grupos sociais, silenciados e com suas posições e obras apagadas das práticas educativas, impedidas de circularem e serem difundidas nos lugares institucionais, nas publicações e editoras, etc. Podería-se ainda destacar o campo da formação e do currículo neste filtro seletista da ordem do discurso.

Para exemplificar esta prática divisória dos filtros discursivos, vale a pena consultar os trabalhos de Sontag (2003, 2004, 2020), nos quais a mesma assinala como os registros são usados por um processo de apropriação cultural que os desloca em seus efeitos, após passarem por seletividades de olhar, dos procedimentos editoriais, de uma política de publicação e circulação. Cada uma dessas etapas e processualidades implica um modo de organizar e criar dispositivos institucionais e de subjetivações singulares. Segundo Spivak (2010), as falas dos grupos desvalorizados em uma cultura, sociedade e por uma política econômica são subalternizadas de diferentes maneiras e por um conjunto de práticas cotidianas e macropolíticas de educação formal e informal, mas é fundamental salientar que: "o sujeito subalterno colonizado é irremediavelmente heterogêneo" (SPIVAK, 2010, p. 57).

Com efeito, o que está em disputa são resultados da colonialidade na educação, em parte, pois há dimensões econômicas, sociais, culturais, políticas e subjetivas correlatas, nas relações entre as histórias entre vida e morte. As maneiras de apreender os acontecimentos enquanto modos de conhecer e reconhecer são importantes práticas sociais a serem interrogadas se for desejado constituir e efetivar (re)existências (des)coloniais na educação no tempo presente. Reconhecer nem sempre é conhecer para Butler (2018). A forma de realizar a inteligibilidade implica produzir determinadas normas sociais e estas afetam a classificação dos corpos, relações, subjetividades e valores. Os quadros de guerra são fruto de regimes de verdade e de uma política dos saberes em que vida e morte são efeitos das práticas de enquadramento das normas e leis.

 

UNICEF, Brasil e racismos: infâncias negras importam

O UNICEF (2010) lançou um relatório específico sobre os racismos nas infâncias brasileiras, sendo o primeiro em que esta temática é colocada como central em uma publicação desta agência multilateral. No ano dessa publicação, o Fundo das Nações Unidas para a Infância completava 60 anos, portanto, esse documento ganha uma visibilidade importante na medida em que apresenta uma questão relevante para o país simultaneamente à comemoração da existência dessa organização internacional. O título do relatório é O Impacto do Racismo na Infância. O documento destaca que houve diminuição da mortalidade infantil e redução da miséria no Brasil. Porém, estes indicadores não seriam os mesmos quando se trata de crianças negras e indígenas.

Um ponto abordado na introdução do relatório é a grave conjuntura de desigualdades sociais e econômicas na vida de crianças e adolescentes brasileiros(as), quadro este que se materializa nas escolas, nas cidades, nos estabelecimentos de saúde, na segregação social, no âmbito das violências sofridas e das políticas de assistência social. Espaços de proteção podem se tornar lugares de discriminação negativa e de preconceito, bloqueando acessos e oportunidades, por exemplo, como é possível visualizar, abaixo:

Essas crianças e adolescentes ainda vivem em contextos de desigualdades. São vítimas do racismo nas escolas, nas ruas, nos hospitais ou aldeias e, às vezes, dentro de suas famílias. Deparam-se constantemente com situações de discriminação, de preconceito ou segregação. Uma simples palavra, um gesto ou um olhar menos atencioso pode gerar um sentimento de inferioridade, em que a criança tende, de forma inconsciente ou não, a desvalorizar e negar suas tradições, sua identidade e costumes (UNICEF, 2010, p. 3).

Vinte e seis milhões de crianças e adolescentes brasileiros vivem em famílias pobres. Representam 45,6% do total de crianças e adolescentes do País. Desses, 17 milhões são negros. Entre as crianças brancas, a pobreza atinge 32,9%; entre as crianças negras, 56%. A iniquidade racial na pobreza entre crianças continua mantendo-se nos mesmos patamares: uma criança negra tem 70% mais risco de ser pobre do que uma criança branca (UNICEF, 2010, p. 6).

Os índices de mortalidade infantil de crianças indígenas e negras é bem maior do que o de crianças brancas, assim como o da pobreza. Iniquidades históricas têm sido reproduzidas no tocante à raça-etnia no Brasil, e estas atingem de modo intenso as vidas de infâncias negras, as prejudicando gravemente em diferentes áreas e setores de suas vidas e existências.

No Brasil, apesar de todos os esforços que asseguraram uma taxa de mortalidade infantil em torno de 19 mortes para cada 1.000 crianças nascidas vivas, a taxa de mortalidade infantil indígena ainda representa um sério problema de saúde pública. Em 2009, relatório oficial da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) revelou a taxa de 41,9 mortes infantis para cada 1.000 crianças indígenas nascidas vivas. Embora esse dado reflita uma forte tendência de queda desde 2000, ele representa valores acima da população em geral (UNICEF, 2010, p. 6):

Uma criança indígena entre 7 e 14 anos tem quase três vezes mais chance de estar fora da escola do que uma criança branca na mesma faixa etária; e uma criança negra entre 7 e 14 anos tem 30% mais chance de estar fora da escola do que uma criança branca na mesma faixa etária (UNICEF, 2010, p. 7).

O bloqueio escolar e a evasão fazem parte de repúblicas pouco democráticas e que exclui muitos da condição de cidadania efetiva ao impedir a escolarização de determinados grupos sociais de diferentes modos pelo preconceito, discriminação negativa e ausência de políticas sociais afirmativas. Castel (2008), ao estudar o processo de bloqueio escolar, na França, ressaltou que em boa parte eram filhos de imigrantes da África e, para este sociólogo, esses estudantes eram construídos como autóctones da República, em uma política explícita de impedimento educativo. Esta prática assinala um ponto importante a ser considerado na colonialidade cultural, educativa e científica na medida em que deixa evidente o campo de disputas racistas no apagamento das crianças e adolescentes cedo, já no contexto escolar:

Na adolescência, algumas das maiores violações são os homicídios, a exploração sexual. [...] No tema da exploração sexual, as vítimas desse tipo de crime, em sua grande maioria, são adolescentes entre 15 e 17 anos de idade, quase sempre negras ou indígenas (UNICEF, 2010, p. 7).

Na adolescência, algumas das maiores violações são os homicídios, a exploração sexual nas grandes cidades e os suicídios nas aldeias indígenas. Segundo o estudo realizado sobre o Índice de Homicídio na Adolescência (IHA) - uma parceria entre Laboratório de Análise da Violência, UNICEF, SEDH e Observatório de Favelas -, o risco de ser assassinado é 2,6 vezes maior para os adolescentes negros em comparação aos brancos, nas grandes e médias cidades brasileiras, com população acima de 100.000 habitantes (UNICEF, 2010, p. 8).

O extermínio de adolescentes negros(as) e o alto índice de mortalidade infantil de crianças negras é um analisador da necropolítica e da tanatopolítica na medida em que evidencia o deixar morrer e o matar aqueles que são classificados como vidas matáveis e que são desvalorizadas de modo racista pelo Estado e pela sociedade. O deixar morrer é o não agir para diminuir e eliminar a vulnerabilidade maior de um grupo pela implementação de políticas sociais e definição de orçamento específico para tais ações. Já o genocídio de jovens negros(as) é a própria política de morte e da inimizade em ato, na matança desse grupo por milícias, por policiais e durante o cumprimento de medidas socioeducativas de privação da liberdade, por exemplo. É nesse sentido que Mbembe (2018) destaca que o matar se torna uma assunto e ato de alta precisão, no contemporâneo. A patrulha e a intimidação são também maneiras de efetuar guerras altamente destrutivas na atualidade contra os grupos que são tornados não valorizados e não importantes.

Cálculos econômicos produzidos nos últimos anos mostram que, para superar os atuais indicadores de desigualdades raciais na população brasileira, seriam necessários R$ 67,2 bilhões, investidos em curto prazo. Com esses recursos, seria possível equalizar os indicadores de educação, habitação e saneamento, e como consequência desencadear um processo de equilíbrio na igualdade de acesso aos serviços para os diferentes grupos da sociedade. Esse valor pode ser revertido em ações comprometidas com a cidadania e com a ética, que buscam a promoção da igualdade étnico-racial, resultando em efeitos positivos na educação de crianças e adolescentes (UNICEF, 2010, p. 12):

Chamar a atenção sobre os impactos do racismo na formação de uma criança é reconquistar os valores e as atitudes que possibilitam o reconhecimento da riqueza da diversidade brasileira; e de como essa riqueza tem valor como bem imaterial para nossas crianças e adolescentes, gerando uma sociedade mais justa.

O Brasil tem desenvolvido muitas ações relevantes em favor da criança, mas a distância entre a política pública e as crianças indígenas, brancas e negras é muito grande e persiste há muitos anos. Precisamos pensar mais sobre por que essas distâncias não diminuem apesar das políticas e refletir sobre como nossas crianças estão se desenvolvendo sob a naturalização do racismo. Para fazer acontecer a igualdade, é preciso olhar de frente essa questão e dar o valor devido à diversidade (UNICEF, 2010).

Estes acontecimentos relatados pelo UNICEF (2010) delineiam o que Butler (2019) definiu como quadros de guerra, cujos enquadramentos das políticas públicas apontam que alguns grupos de crianças são privilegiadas face a outros que têm seus direitos negados. A maneira de distribuir recursos, de tomar decisões políticas e a prática de implementação e acompanhamento das intervenções sociais são formas de silenciar, apagar, interditar e subalternizar grupos. Portanto, a colonialidade é um projeto e não uma naturalidade econômica, cultural e subjetiva. Mbembe (2018) assinala que grupos produzidos como selvagens não são vistos como cidadãos.

Crianças e adolescentes têm o direito a conhecer e valorizar os diferentes modos de agir, de pensar, de ver o mundo e de aprender a se relacionar com o outro. Crianças também têm o direito de ser reconhecidas em suas identidades e de desenvolver a sua autoestima e seus valores como grupo étnico ou histórico. Dessa forma, tecidos sociais de igualdade tendem a ser mais fortes e reais (UNICEF, 2010).

Ser reconhecido(a), acessar direitos e ser valorizado(a) em uma sociedade é o efeito e resultado de um complexo contexto de ações éticas, estéticas e políticas, em um tempo e espaço históricos específicos. A colonialidade ocorre como uma guerra em que se exerce uma necropolítica, a qual forja alguém como inimigo e, sobretudo, visa submeter quem é colocado neste lugar. Este suposto inimigo é alvo de suspensão da sua humanidade, da sua cidadania e da sua condição de singularidade subjetiva. Alguém sem poder materializar e ter reconhecida a sua fala e o seu pensamento é um ser que é anulado e destituído de uma sociedade de direitos e da própria condição ontológica de existir como um ser humano.

 

Conclusões provisórias

Quando se problematiza educação e colonialidade, busca-se analisar o quanto os corpos dependem de condições de sobrevivência e de instituições sociais para reduzirem a precariedade da vida. A desumanização de grupos, sobretudo negros e indígenas, é parte de um projeto de sociedade em que disciplina, soberania, biopolítica, tanatopolítica, necropolítica, colonialidade, educação, dominação e violência estão interligadas, em uma imensa rede de forças, algumas mais duras e centrípetas; outras, mais flexíveis e centrífugas.

Os níveis de responsabilidade de cada política aprovada e/ou extinta, de cada aspecto das apreensões do pensamento, do conhecer e reconhecer são e podem ser distribuídos por todos e todas, na medida em que posiciona cada ser em um imenso plano de compromisso com o bem comum. Algo sério deve-se problematizar quando o sofrimento do outro não incomoda e toca alguém.

Ora, Butler (2018) provoca cada um a pensar o quanto a comoção é fabricada e como ela é resultante de uma regulação política. Qual é a capacidade do povo se indignar face aos poderes da necropolítica e da tanatopolítica, da violência e dominação, dos enquadramentos mortíferos das guerras e dos processos diferenciadores dos corpos em classificações disciplinares e soberanas, entrelaçados em uma biopolítica? Como o controle das imagens e dos discursos por um projeto colonial pode modular e em que medida um governo das condutas pautado no extermínio e o quanto o luto se torna passível de ser vivido a partir destas práticas?

Estas e outras questões são contundentes e auxiliam a formular um campo profícuo de estudos e políticas de cuidado com viés (des)colonial para que se realize uma educação libertária, a qual não desumanize nem menorize ninguém. Acreditar no que pode um corpo e tomar posse da fala, do lugar de quem pode falar porque ocupa uma posição sem ser necessariamente um especialista de algo, mas pela própria dimensão da experiência enquanto ato legítimo de uma política afirmativa da vida.

O UNICEF, ao trabalhar a infância sem racismo, atua em uma visão liberal de abertura de oportunidades e acessos, de quebra de preconceitos e segregações. Ainda atua na vertente dos direitos à igualdade e ao reconhecimento como fundamentais para a garantia da vida e do respeito às infâncias negras, no Brasil. Neste sentido, essa agência é uma parceira importante na defesa e promoção dos direitos das crianças e adolescentes negras e no enfrentamento aos racismos no país. O Fundo das Naçoes Unidas para a Infância faz pressões relevantes ao Brasil para a implantação de políticas públicas concretas de ruptura dos racismos e de resistências às práticas necropolíticas, biopolíticas e tanatopolíticas bem como de crítica aos apagamentos, desautorizações e interdições discursivas sofridas pelas crianças e adolescentes negras.

 

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Data de recebimento: 08/09/2020
Data de aprovação: 08/02/2021

 

 

Flávia Cristina Silveira Lemos Psicóloga. Mestre em Psicologia Social. Doutora em História Cultural pela Universidade Estadual Paulista, Assis, Brasil. Professora Associada III de Psicologia Social na Universidade Federal do Pará, Brasil. Bolsista de Produtividade PQ2/CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Brasil.
E-mail: flaviacslemos@gmail.com
Dolores Cristina Gomes Galindo Psicóloga. Doutora em Psicologia Social. Professora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil.
E-mail: dolorescristinagomesgalundo@gmail.com
Anderson Reis de Oliveira Aluno de graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Pará, Brasil. Bolsista de Iniciação Cientifica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico: CNPq, Brasil.
E-mail: andersonreis@1356@gmail.com
Mateus Moraes de Oliveira Aluno de graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Cuiabá, Brasil. Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico/CNPq, Brasil.
E-mail: mateus10tw@gmail.com

 

 

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