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Psicologia Clínica

versão impressa ISSN 0103-5665versão On-line ISSN 1980-5438

Psicol. clin. v.18 n.1 Rio de Janeiro  2006

 

RESENHAS

 

Silet, os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan

 

Silet, the paradoxes of drive from Freud to Lacan

 

 

Sandra Edler

Mestre e doutora em Teoria Psicanalítica, UFRJ,Membro psicanalista da SPID

 

 

RESENHA DE:

Jacques-Alain Miller (2005).Silet, os paradoxos da pulsão de Freud a Lacan.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 334 pp.

Este livro, concebido e escrito por Jacques-Alain Miller, recém-lançado no mercado editorial brasileiro, reproduz o material de seu seminário, desenvolvido no período de 1994 e 1995. A proposta do seminário é a de explorar, da maneira mais densa possível, o percurso de Lacan em torno da concepção freudiana da pulsão.

Na primeira lição, Jacques-Alain Miller procura satisfazer a curiosidade de seus alunos/leitores, dando explicações sobre o título que, num primeiro momento, nos parece obscuro. Trata-se da expressão latina silet, que, segundo o autor, guarda relação com o permanecer silencioso, guardar silêncio. Em seguida, propõe um jogo, uma adivinhação: "o que há em comum entre o analista e a pulsão?" (Miller, 2005: 11). A resposta é: o silêncio.

Fazendo uma série de associações a partir do silêncio, brincando com a possibilidade de permanecer, ele mesmo, silencioso diante de uma platéia que espera, ávida por suas palavras, Miller acaba por chegar à expressão — Lacan silet — Lacan faz silêncio. Comenta, neste momento, um aspecto da biografia de Lacan que poucas vezes é mencionado: o fato de que, nos anos que precederam sua morte, Lacan foi-se tornando cada vez mais silencioso. "Eu diria que Lacan foi em direção ao silêncio, em direção ao silêncio público" (p. 12). O discurso de Miller está, assim, às voltas com o silêncio da pulsão, o silêncio do analista e demais articulações possíveis, chegando a falar num gozo silet.

O texto milleriano discorre sobre o primeiro tempo do ensino de Lacan, o período da intersubjetividade, do sintoma como um significado que resiste a ser decodificado, tendo como base textos da década de 50, sobretudo, o Discurso de Roma (Lacan, 1953),até as últimas formulações que envolvem o desenvolvimento do conceito de gozo, com referências, em particular, ao Seminário 20 — Mais, ainda (Lacan, 1972-1973). Assim, o esboço de conceitos como o sintoma vão ganhando nova perspectiva. O desejo, inicialmente formulado a partir da interpretação kojèviana de Hegel, como desejo de reconhecimento, sofre uma verdadeira reviravolta, sendo inserido numa dialética e, depois, articulado a Antígona e à ética da psicanálise. Tais modificações repercutem diretamente na prática da psicanálise.

Um aspecto de fundamental importância diz respeito à fala, privilegiada no Discurso de Roma e durante todo o ensino inicial de Lacan. Nesta primeira cena conceitual, o âmago da questão diz respeito à demonstração da palavra enquanto doadora de sentido, e do campo da linguagem que, por sua estrutura, a suporta. Nesse contexto, o processo analítico se volta para as operações de história e a comunicação é intersubjetiva e dialética.

Mais adiante, a intersubjetividade é corrigida através da dissimetria que Lacan introduz na relação de sujeito a sujeito. O analista-sujeito com sua escuta, pontuando e interpretando, atua modificando o sentido. Pode-se perceber como, gradativamente, é inserida a instância do Outro, que irá se tornar o lugar da palavra, da linguagem e da estrutura, presidindo a determinação do sujeito. Nessa concepção inicial, o sintoma se sustenta num sentido recalcado que precisa ser liberado. Lacan privilegia a decifração e evidencia a satisfação de ordem semântica inerente às curiosidades lingüísticas, às formações do inconsciente. Nesse momento, Lacan classifica como imaginário tudo aquilo que não é suscetível de inscrição simbólica. O gozo não é dialético, é intra-imaginário. O real é excluído e o simbólico domina o imaginário. Na observação de Miller, "Lacan construiu seu conceito de simbólico a partir da lingüística, mas sobretudo como forma, como articulação diferencial, como sintaxe, que precisa ser completada por um léxico que, durante muito tempo, foi tomado emprestado do imaginário" (p. 96).

Miller nos informa que, para Lacan nesses primeiros passos, o simbólico estaria ligado, em princípio, à noção de ordem, a ordem simbólica, e que, no neurótico, esta ordem estaria desconcertada. Diz Miller: "se, em Freud, a pulsão é conceito fundamental, fronteiriço entre psíquico e orgânico, em Lacan ela aparece a princípio como fronteira entre simbólico, uma vez que é estruturada pela intencionalidade do desejo, imaginário e real" (p. 101).

Miller dedica-se, após as primeiras lições introdutórias, a penetrar no labirinto das pulsões utilizando referências dos Escritos e Seminários e tentando, através de inúmeros esquemas gráficos, dar maior clareza à leitura lacaniana do conceito de pulsão, passando por inúmeros impasses e sofrendo também os desdobramentos próprios do percurso de Lacan. Um desses desdobramentos foi atingido no último Lacan, o chamado período borromeano. Nessa fase, os registros imaginário, simbólico e real são similares e representados por anéis de barbante.

Essas subdivisões nos levam à evidência de que não é possível situar um conceito psicanalítico e lacaniano, em particular, sem a referência ao contexto no qual este conceito foi definido. Como observa Miller, "não se pode dizer, para Lacan, o desejo é..." (p. 28). Para uma análise precisa, é necessário cercar o conceito e esclarecer alguns elementos de seu desenvolvimento. É isso que o autor tenta promover nas páginas de Silet: idas e vindas conceituais para que os leitores possam acompanhar o nascimento de conceitos e seus desdobramentos no conjunto do percurso de Lacan. No caso da pulsão, conceito freudiano de alta complexidade, esta operação nada tem de simples, revestindo-se, ao contrário, de peculiar dificuldade.

Segundo Miller, Lacan atuou despedaçando a pulsão concebida por Freud, primeiramente tentando ligá-la à cadeia significante e, depois, explicitamente, ligando-a. Em seguida, isolou da pulsão a libido e toda a energia pulsional, isto é, colocou de um lado a pulsão, de outro, a energia e, por fim, colocou em seu centro um objeto. O resultado dessa operação foi a promoção do objeto a. A pulsão, conceito-limite, em Freud, entre o psíquico e o somático é transcrita por Lacan também como conceito-limite — entre o simbólico e o imaginário. Miller transcreve, do seminário sobre a Carta roubada (Lacan, 1955), a expressão, o mais íntimo do organismo do ser humano sofrendo as incidênciasdosimbólico, como referência ao que, em Freud, é designado como pulsão.

Para Miller, o conceito de pulsão em Lacan deve ser pensado como o testemunho da carne significante (p. 103), em sua articulação simbólica e também com sua ramificação imaginária. Não é possível pensar a pulsão sem esta dupla articulação.

Foi intenso o trabalho de Lacan em torno da pulsão, ou, como observa Miller, "as aventuras de Jacques Lacan às voltas com a libido freudiana" (p. 240). Silet, por sua vez, trata disso e muito mais. Nele, Miller, às voltas com a obra do mestre e sogro, tenta dar conta, da forma mais ampla possível, do conjunto de conceitos lacanianos desde o ponto de partida, este formulado pelo próprio Lacan, até a última parte de seu ensino, quando a topologia e os nós substituíram as palavras.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Miller, J. A. (1999). Lacan elucidadopalestras no Brasil. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro.

 

 

Recebido em 15 de março de 2006
Aceito para publicação em 20 de abril de 2006

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